Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni
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8/17/2019 Anarquismo Negro e Outros Textos Pretosni
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LNASPNPNMMMMMMMMMMMMMMMMMM
Anarquismo NegroE MAIS TEXTOS DE LIBERDADE
NEGRA
ASHANTI ALSTON, AUDRE LORDE , ABAMOD E ALINE DIAS
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Pra começar...
Este zine traz um compilado de cinco textos que possibilitam às
pessoas a se aproximarem um pouco da luta anti-racista. Antes de tudo é
um zine feito por uma pessoa negra e lésbica, recentemente anarquista,
que transitou em espaços “de esquerda e anarquistas, percebendo que
mesmo quando se diziam anti-racistas o debate de raça nesses espaços se
limitava (ainda se limita) a um “não faça isso”, “não diga aquilo”, “não
podemos esquecer dos negros”, mas raramente se aprofunda em
questões pelas quais as comunidades negras sempre lutaram e até hoje
lutam e tampouco as colocaram em suas pautas.
Os textos que selecionei para são de contextos distintos: um texto
introdutório escrito por mim, dois textos da poeta norte-americana Audre
Lorde traduzidos pela Tatiana, uma militante negra e lésbica aqui do df,
um texto que a militante Aline Dias publicou em seu blog e o texto do
estadunidense ex pantera negra, Ashanti Alston. “Anarquismo Negro” sero título dessa publicação se deve somente à minha falta de criatividade no
momento de fazer essa compilação, por todos os textos são importantes e
trazem questões centrais.
É importante escurecer aqui que parto do princípio de nossa
sociedade só é dessa forma porque é racializada, sem a paciência
pedagógica que exigem das pessoas negras de explicar quando é que o
racismo acontece e delimitar suas margens. As pessoas que pertencem à
hegemonia branca devem estar atentas e discutir sua branquidade, o ser-
branco e sua economia, e como isso necessariamente engloba ter
construído todas as outras comunidades como o outro, o não-ser; Sobre
como exercem sua opressão sobre as pessoas não-brancas
sistematicamente e como criar soluções que partam deles mesmos para
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diminuir essa forma de existir e atuar (caso realmente queiram ser anti-
racistas). Precisam se reconhecer como opressores históricos e, por um
exercício, tentar entender o quanto isso é pesado. Precisam aceitar o
fato de sua comunidade ter fundado o racismo como ideologia estrutural
da sociedade ocidental e de todas as suas instituições. Não precisam
andar do nosso lado ou dizer que nos compreendem. Primeiro por que é
uma compreensão intelectual, que não passa pelas intensidades do corpo
e segundo porque nossas dores não mudarão por isso. Dizer-se anti-
racista sem modificar suas relações de poder ou perceber quando se
apropriam de lutas que não deveriam protagonizar, apenas colando com
pessoas negras, é um desfavor que muitas pessoas brancas têm feito pra
nós.
Minha escrita se concentra questões das comunidades negras e falo
do lugar que ocupo: o de uma negra lésbica que nasceu e vive no brasil.
Muito embora eu tenha conhecimento dos meus ancestrais indígenas, não
me reconheço socialmente como uma pessoa indígena e não tenho o
direito de falar como se me reconhecesse ou como se as pessoas o
fizessem. Porém, as intersecções com as comunidades indígenas existem
pelo contexto de nossa exclusão, escravidão, tortura, tentativa de
assimilação, processo de genocídio, resistência e insurreição.
Não sou uma especialista em história, nem na história da diásporaou da comunidade negra e não poderia esperar até que fosse pra escrever
esse zine. Todxs somos capazes de falar minimamente sobre o que
vivemos e esse é o trunfo do zine, afinal. Portanto, escrevo daqui, onde
algumas coisas estão bem formadas e fincadas na experiência e os
argumentos são capturados de uma forma mais solta, sem
comprometimento com academicismos senão com as pessoas pra quais
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escrevo (todas as que se interessem) e com as pessoas com as quais
compartilho parte da minha história, as pessoas negras.
Abamodá.
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Introdução ou Nós: a comunidade que se reinventa.
por Abamodá
O navio partindoo garoto loirome dando um socooutro soco.baulejo no meu irmão,o homem me seguindo:- mulata, vem cá mulata.é o navio negreiro partindo...
Aqui o Dendezeiro foi brotando,sob a intempérie da cruze da ciênciaDandara gritandomeu cabelo soltomeu irmão deixandoseu black crescer.
Coloco o mariô na minha portaonde todas as pedras lisas dos homensse tornam pópara adornar minhas águas.
São essas mulheresque vão me parir no futuroainda agora,que minhas pernas sobem
essa avenida de asfalto.
Iroco é a árvore que não falhaabraça tecendo o tempoe preparandonosso parto.
Na diáspora negra, em que cerca de oito milhões de pessoas foram
escravizadas e traficadas para o continente americano, um processo muito
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particular de formação de identidade começou a tomar corpo. Meus
ancestrais negros escravizados tiveram de sobreviver a um projeto de
colonização que os desumanizava, tiveram de trabalhar duro sob tortura
em terras invadidas e compartilharam seu sofrimento com a tortura e
extermínio de grupos indígenas inteiros que viviam aqui. Os torturadores,
estupradores e saqueadores continuavam suas ações em África e na Ásia
enquanto, em uma parte seu ridículo pedaço de continente, a Europa,
enriqueciam e se modernizavam: modernizavam suas cidades,
desenvolviam a aclamada filosofia, faziam acontecer a história, a
maravilhosa e sublime arte...
Tudo o que conhecemos como Oficial - a história, a ciência, a
filosofia, a arte, a política (da direitona à marxista e à teórica anarquista) -
foi construído sobre os ombros dos grupos escravizados: alguns projetos
de pessoas anti-racistas dizem que Marx era também um anti-racista por
uma fala que ele fez contra a escravidão nos Estados Unidos, mas não se
lembram de quantas vezes ele afirmou que a colonização teria sido um
favor aos grupos “selvagens” e “primitivos” porque, por meio desse
processo, eles tiveram a oportunidade de sair de sua inferioridade
profunda e “entrar na História” participando assim da revolução
comunista que, na cabeça branca de Marx, estava pra acontecer e tinha
como parte do seu processo toda a desgraça que estava acontecendo
(com os outros, é claro) . Não podemos esquecer também da aristocracia
produzindo teorias libertadoras enquanto alguém limpava sua merda,
torrava seu café e produzia seu açúcar, adoçando sua vida na base do
chicote.
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Isso não significa que devemos simplesmente passar a ignorar essas
produções e “áreas do conhecimento” ou crucificá-las, mas não podemos
perder de vista o vínculo que elas têm com a escravidão, vinculo esse que
a escola (cumprindo sua função original) nos fez e faz esquecer. Não
podemos perder de vista que a famigerada escola, que vem do ócio grego
dos sensacionais pensadores gregos só pôde existir porque enquanto tais
pensadores iluminavam o mundo com suas ideias, alguém sob regime
escravo construía sua cidade. O mesmo se aplica à arte, essa palavra que
as pessoas usam de forma positivada: aquelas gigantescas esculturas de
ouro e bronze, as gravuras de cobre, as pinturas imensas feitas pela
sublime genialidade italiana, francesa, têm como matriz a tortura
sistemática e a ideia de que todos os não-brancos e todos os grupos
escravizados assim o eram porque mereciam. Esse “merecer” foi proferido
por alguns grupos como a igreja católica, com suas invenções mitológicas
racistas que nós na América Latina conhecemos bem e depois veio com a
ciência que, sob a argumentação de uma busca empírica pela verdade,
sustentou durante séculos teorias que “comprovavam” a inferioridade
racial e teve como principal cobaia o corpo de mulheres e homens
escravizadxs indígenas e negrxs. A ciência sim e não só a religião, como a
maioria dos anarquistas apegados à “superioridade da razão humana”
adora proclamar por aí, teve como carne pra seu moedor a carne negra ea carne não branca. Mas não só ontem. Sem ignorar que o trabalho
escravo ainda existe e escraviza centenas de pessoas para o sustento
pretensamente sereno do capitalismo, hoje ainda é da nossa carne que o
Estado tem fome. Mas porque não podemos esquecer disso? Para não
colaborarmos com o nosso silenciamento, idolatrando alguns cânones
como se o discurso valesse pela prática, como se o modo de fazer e as
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questões deixadas de lado não fossem importantes... Nós, que temos os
corpos vulneráveis a baculejos e balas sabemos bem o quanto o corpo é
importante.
Assim, dentro de todas essas coisas oficiais, desses campos de
estudo (filosofia, arte, biologia, história, física) e dessas construções
ocidentais (a cidade, a moda, a globalização, a internete...) o racismo se
manifesta. A pergunta que fica é: como nós estamos sobrevivendo? Como
podemos sobreviver se quase tudo o que aprendemos tem como
mensagem também a nossa inferioridade?
Bom, nós sobrevivemos exercendo táticas, porque não temos o luxo
de tecer estratégias, precisamos nos preocupar em ficar vivxs. Nossa
capacidade de auto-cura, de retomar nossa potência, de resiliencia, tem
acontecido desde que entramos nos navios-negreiros.
Assim que chegamos, armamos revoltas e mesmo sendoseveramente castigadas formamos territórios livres, como o Complexo do
Malunguinho, território quilombola que abarcava enorme região (ia dmais
ou menos do meio de Alagoas até o meio de Pernambuco) e no qual havia
um dos mais conhecidos quilombos, o quilombo dos Palmares. O primeiro
território livre do império no continente americano do contexto
escravocrata, segundo algumas pesquisas, foi o palenque de San Basílio,
na colômbia. No brasil esses territórios autônomos livres foram
construídos por pessoas escravizadas, muitas vezes junto com pessoas
indígenas e alguns brancos excluídos. Tinham sua própria política, seus
modos de fazer e de reinventar o que estava sendo aprendido às duras no
processo de colonização e colocavam em prática suas táticas de guerra
para se defenderem das invasões genocidas promovidas pelo império e,
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posteriormente, pelo estado. Além de processos de embate corporal e
formação de territórios, várias outras táticas de sobrevivência e
resistência foram e são construídas.
Não que não houvesse, ou não haja hierarquia dentro dos
quilombos. Alguns inclusive reformulavam e se organizavam como alguns
reinados africanos e tinham sistemas rígidos de organização, mas que
estavam indiscutivelmente distantes do sistema escravocrata imperial...
Fantasiar sobre esses grupos é tão nocivo quanto negá-los e a mesma
observação vale para as aldeias que se constituem hoje como territórioslivres diante da contínua chacina promovida pelo Estado: não somos nós
que temos de validar os modos de se organizar de um grupo livre que se
defende das investidas genocidas. Investidas essas não apenas de
extermínio, de quanto nosso primo morre na porta de casa ou uma
liderança indígena é assassinada por encomenda de empresários. Mas
também investidas genocidas que usam meios simbólicos para nos
silenciar, como a falta de discussões sobre questões raciais e disciplinas
que abordem intelectuais negrxs e indígenas e temas relacionados à
diáspora negro-africana nas universidades, nas escolas e o inocente
protagonismo branco em espaços e manifestações de cultura negra
(quando tivermos corpos de baile como o do Balé de Bolshoi
majoritariamente negros, aí vamos conversar tranquilamente sobre o
trânsito de pessoas de “todas as raças” em “todas as manifestações
culturais” porque “a cultura é democrática”).
Não podemos esquecer de que os terreiros de candomblé,
construídos por nossas ancestrais para continuar cultuando divindades
(Orixás, Mikisis e Voduns) às quais estavam conectadas, sofreram e ainda
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sofrem retaliações violentas. Até a década de vinte praticar rituais de
matriz africana era expressamente proibido pelo estado e existe inclusive
um acervo do museu da polícia, que mais poderia ser um acervo de arte
religiosa de matriz africana, de tantos objetos de culto apreendidos nesse
período. Hoje nossos ilês (casas), nossos terreiros são incendiados em
manifestações de ódio da comunidade evangélica. Quando digo nossos
terreiros é porque sou Omo Orixá (filha de Orixá) e, portanto, tenho um
vínculo espiritual, histórico e afetivo com esses espaços. A capoeira, que
também foi proibida durante muito tempo, mais do que uma forma de
luta, expressa ainda hoje a insistente ideia de que viver o mundo de outra
maneira é algo possível e necessário e que isso começa com nossos
corpos... Um bom e simples exemplo, que estava sendo discutido em uma
aula com uma professora negra militante, de como o Estado continua
entendendo nossa liberdade corporal como uma ameaça, é o das raves e
dos bailes funk. Enquanto as festas rave, onde publicamente se sabe do
uso abusivo de drogas sintéticas ,têm segurança e grupos de saúde para o
atendimento das pessoas que eventualmente passam mal ou têm
overdoses, os bailes funk nas comunidades de morro, nas favelas e
periferias são sistematicamente controlados pela força policial militarizada
sob a acusação de ocorrerem em locais onde há uso de drogas e
prostituição.
Tanto a capoeira, quanto o jongo, o rap, o candomblé ,o funk...
Todas essas manifestações falam do corpo como lugar de libertação, de
reinvenção, afirmando um corpo-mente-espírito e refutando as teorias
racistas da supremacia da mente sobre o corpo (que também são teorias
machistas). Por isso, se pelo corpo nós fomos pegas, é por via do corpo
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também que vamos reinventando, fazendo oposições e também
subversões do que nos é imposto pelo racismo, pela hegemonia branca.
As histórias de nossas lutas dariam um enorme livro. Iríamos sem
grandes empecilhos desde os quilombos de San Basilio, Palmares e Rio dos
Macacos até o Partido dos Panteras Negras; de Dandara à Rosa Parks e
Angela Davis, Lélia Gonzales, Nzinga, Mãe Stella de Oxóssi e Audre Lorde,
encontrando os Zapatistas e o coletivo Maria Perifa no caminho e caindo
num Avamunha com Mestre Pastinha...Só pra começar! Falaríamos
também das lutas institucionais hoje, das políticas públicas, das disputas
pela demarcação de terras, porque tudo isso faz parte da nossa luta para
sobreviver e para viver.
As formas de vivenciar o mundo das comunidades negras e
indígenas, que experimentam globalmente o racismo, são o que eu
conheço de mais potente. Se alguma comunidade está interessada em
eliminar as relações de opressão são as comunidades historicamente
exterminadas. Segundo uma pesquisa do Ipea ( Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada ) pessoas negras têm 114% a mais de chances de
sofrerem violência letal e pouco se estuda, ainda, sobre as condições das
morte das mulheres negras. Grupos indígenas sofrem genocídios oficias
que o estado insiste em disfarçar de crime para terminar de transformar a
terra em produto e um embate muito parecido acontece com as
comunidades quilombolas apesar da boa propaganda a respeito do
reconhecimento oficial dos quilombos. No caso da relação com a terra,
atua também o que hoje se chama racismo ambiental , pelo fato de essas
comunidades sofrerem fisicamente com os impactos ambientais dos
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lugares onde vivem, já que a tecnologia sofisticada tem um preço que as
classes média e alta nunca estiveram dispostas a pagar.
Se alguma comunidade sofre materialmente pela atuação do
mercado e do estado, é a comunidade das pessoas negras, das pessoas
não-brancas, são as comunidades indígenas... E apesar de alguns poucos
esforços, o anarquismo no brasil ainda não se desapegou de um
eurocentrismo sintomático e nocivo, porque extremamente etnocêntrico.
Não quero de forma alguma dizer que as comunidades negras, indígenas
ou não-brancas devam ser anarquistas, mas que um anarquismo que nãose referencie também pelas lutas dessas comunidades é necessariamente
algo que reforça as falas hegemônicas e aplaude o silenciamento de
grupos severamente subjugados e, dessa forma, simplesmente se torna
uma bobagem que nem sequer pode ser atraente... Uma movida
opressora entre as movidas opressoras. Mais um grilhão para nossos
tornozelos fantasiado de luta e que não estou disposta a suportar.
Como uma negra anarquista me recuso a reforçar o silêncio diante
dos silenciamentos e acredito que devemos, sim, voltar à terra e rever
muito do que aprendemos na cidade, na lógica embranquecedora e
patriarcal. As comunidades periféricas têm resistido e se reinventado, mas
a urbanização vai comendo tudo, os alimentos baratos são cada vez mais
aqueles feitos em laboratórios que causam risco à nossa saúde, a
medicalização cada vez mais impregnada em nosso cotidiano nos fazendo
pagar muito caro. Por isso sinto-penso que devemos voltar à terra e aos
abraços, aos nossos tambores (que felizmente conseguimos manter por
aqui) e à nossa comida! – longe dos venenos das modificações de
sementes que afetam nosso corpo e são letais para a maioria de nós.
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Temos a capacidade de viver, mas sem a terra não teremos e sem nossas
comunidades fortalecidas também não.
Não escrevo isso como quem procura no passado uma tradição
perfeita e incorruptível que precisa ser retomada. Longe disso! O que
desejo aqui é o Sankofa: acredito que nosso tempo seja mesmo o agora e
que precisamos criar, mas sempre lembrando das pessoas que vieram
antes e nos deixaram ferramentas. Essas ferramentas inclusive devem ser
reinventadas, de acordo com os nossos desejos e necessidades, de acordo
com aquilo que vemos lá na frente, nosso horizonte político... Acreditoque todas essas reinvenções estão acontecendo, mas pra que sejam
contínuas precisamos ter consciência de comunidade, dividindo nossas
tardes, plantas no canteiro, travesseiros ou esteiras, rezas e tempestades.
Sem espaços de convivência para ensinarmos e aprendermos com amor o
que precisamos para tecer o que desejamos daqui pra frente eu
infelizmente acho que não poderemos conseguir nada realmente novo,
frutífero.
Saúde e anarquia!
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Brancos de estimação e o racismo em pele de empatia
por Aline Dias
Nós negras da diáspora fomos largadas para sobreviver num mundo cheio
de contradições e de ódio. Nós somos ensinadas a ter gratidão, empatia e
amor pelos nossos opressores. Afinal, se a gente fingir que não vê, ouve
ou entende todo o ódio que eles nos lançam, como vamos sobreviver se o
mundo é deles? A tática de sobrevivência acaba sendo sofrer quieta,
relevar e diminuir a importância do ódio lançado contra nós e assim
vamos vivendo, até o dia em que chega até nós aquela pessoa branca que
por algum motivo mágico não nos odeia. A vontade de ter um mundo
onde a igualdade racial é a norma é tão grande que nós acolhemos aquela
pessoa branca como se ela fosse da família, ensinamos tudo sobre nós e
nossos ancestrais na esperança de que ela vá e leve pro mundo branco
todas estas informações valiosas, e principalmente, que ela vá e ensine os
outros brancos que nós somos pessoas tão interessantes quanto eles, tão
complexos e tão legais quanto eles. Esse processo de aproximação para
troca de saberes, é com certeza uma maneira muito importante de
destruir preconceitos. Eu sinceramente acredito que conhecer para não
discriminar é parte de um processo importantíssimo que nos
levará á igualdade racial. O problema é quando nós ficamos inebriadas
com a esperança de estar plantando uma semente boa pra sociedade, ebaixamos a guarda esquecendo que o pessoal é politico, e
consequentemente deixamos de analisar nossas relações pessoais criando
cobras que só estão aguardando a hora certa pra nos picar.
O branco de estimação aproveita todas as regalias sociais de ser branco, e
faz questão de continuar fazendo seu papel de colonizador quando usa
http://servicodepreta.blogspot.com.br/2014/11/brancos-de-estimacao-e-o-racismo-em.htmlhttp://servicodepreta.blogspot.com.br/2014/11/brancos-de-estimacao-e-o-racismo-em.htmlhttp://servicodepreta.blogspot.com.br/2014/11/brancos-de-estimacao-e-o-racismo-em.html
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uma das armas mais antigas, criadas por ele mesmo pra nos confundir, a
mestiçagem. A mestiçagem combinada com um discurso de fluidez de
raça, tem tentado com alguns sucessos transformar a negritude num
sentimento, e não uma realidade material que elimina pessoas de pele
não branca com traços negróides. Mesmo os livros de história mais
antigos, mais mal escritos nós podemos ler sobre pessoas brancas se
aproximando, se mostrando amistosas e em seguida saqueando tudo o
que lhes interessa. Eles se aproximam, fazem seus estudos e em seguida
nos abandonam. Eu tenho certeza absoluta que todas nós temos mais de
um exemplo sobre essa relação que se torna cada dia mais complexa, mas
que ainda preserva mecanismos iniciais de conquista e controle étnico. Eu
sei que estamos vivendo um momento onde a biologia esta sendo
ignorada por convenção de algumas bandeiras, mas nós não podemos cair
na armadilha cultural que vincula a negritude somente á vestimentas e
outros traços culturais. Nós ainda somos violentadas e mortas por causa
do nosso fenótipo, por causa da cor da nossa pele e da textura dos nossos
cabelos. Se para uma parcela mínima de pessoas brancas, é possível
flutuar para viver, pra nós flutuar é permitir que assinem nossa sentença
de morte, outra vez. O professor Kabengele Munanga diz que o racismo
no Brasil é uma obra de engenharia, e não é por acaso que essa obra
arquitetada a tanto tempo ainda é importante pra manutenção de ummundo de exclusão. Nós não podemos nos perder nos discursos modernos
que parecem ser libertadores, esses discursos parecem um sonho onde
tem uma pessoa sorridente te estendendo as mãos e dizendo : " vem que
será tudo lindo", mas se segurarmos essa mão, vamos retroceder. Nós
estamos num momento fértil de conquistas, estamos nos levantando e
conseguindo representações onde não conseguíamos desde a década de
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70, e estamos avançando em espaços nunca antes habitados por negros,
como as universidades e com isso não podemos aderir ao discurso dos
opressores. A luta do povo negro tem cor, fenótipo e origem africana, não
há como se desprender disso, se alguém com outro fenótipo e cor se
sente negro, essa pessoa precisa de um bom psicologo.
Quem são os brancos de estimação? O que comem e onde vivem?
Branco de estimação é aquela pessoa de pele branca que convive com
pessoas negras, e foi ensinada sobre tudo do mundo negro. Brancos de
estimação podem ser nossos vizinhos, aquela amiga da faculdade ou do
trabalho, a moça que grudou em você numa manifestação ou sua amiga
de infância. Sabe aquele seu colega que comprou a biografia
do Malcolm X antes de você, leu e decorou tudinho, depois fica
postando incansavelmente sobre o Malcolm e os acontecimentos da
época, fica te perguntando coisas só pra você dizer " eu não sei" e então
esse amigo branco te aconselhar: Você precisa saber mais sobre seu povo
( ou qualquer coisa do tipo), e se você reclama ele logo foge e diz: " ah
mas fulano (outro amigo negro), não acha ruim ( logo, o problema é com
você). Então, esse branco provavelmente é o branco de estimação de
alguém, e cuidado esse tipo adora namorar pessoas negras, vivem
tecendo elogios loucos pra poder namorar uma pessoa negra e entãopoder dizer " mas minha namorada é negra..."
Estas pessoas conhecem nossas músicas, nossas danças, nosso jeito de
fazer as coisas, os penteados, as roupas e é comum dizerem que "queriam
ser negras". Num primeiro momento pode ser bonito pensar: " Ah, que
bonito! A fulana é branca, mas queria ser negra! O racismo finalmente
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esta diminuindo!". Cada dia que passa, a pessoa branca vai se informando,
vai se enturmando e absorvendo tudo o que pode da nossa cultura, até o
dia em que a partir da vivência dela, a pessoa vai acreditar que somos
todos iguais, e que é exagero nosso falar sobre apropriação cultural no
século XXI, e então, aquele branco que até então parecia nos
compreender, respeitar e amar, resolve se auto declarar negro,
naquela mesa de bar e todo mundo gargalha. Aquela pessoa branca que
ouviu tudo o que você disse sobre sofrer por não ter o cabelo liso, começa
a dizer que sofre muito porque seu cabelo enrolado não é aceito, e
justifica esse sofrimento dizendo possuir uma alma negra. Essa pessoa
branca te dá o ombro e ambas choram acreditando sofrer do mesmo mal,
o racismo. A partir destas vivências pessoais, o branco de estimação vai
ganhando força ideológica apoiada por alguns negros e começa a falar por
negros, e se questionada sobre o lugar de fala, usará seu mentor negro
pra dizer " ah, uma amiga negra que me disse isso", e assim o branco de
estimação vai te usando pra conquistar os espaços negros. Nós negros
lutamos, nos estamos a frente das nossas lutas, mas quando conseguimos
algum espaço, logo uma pessoa branca cola em nós e já solta que tem um
pé na cozinha. Porque será que está tão legal ser preto? Nós não devemos
achar graça quando uma pessoa branca, mesmo que seja branco de
estimação se diz negra porque permitir que esse discurso deauto identificação étnica seja reproduzido com o nosso aval, é
ainda resquício do racismo que impede o enfrentamento completo
desse problema. Quando uma pessoa branca tem nosso aval pra ficar
brincando de negritude só porque não esta mais achando tão legal assim
ser branca, nós estamos criando um branco de estimação e alimentando
uma cobra a conta gotas com a história dos nossos ancestrais. Entendam,
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um dos passos importantes para a igualdade racial, é os
opressores reconhecerem os crimes que cometem, reconhecerem seus
privilégios étnicos e não criar uma falsa simetria performando negritude.
Não se esqueçam, tentam durante séculos nos matar, nós como
resistência, acreditamos que se fossemos mais parecidos com eles o
racismo diminuiria, pra isso nós alisamos nossos cabelos, abandonamos as
religiões de matrizes africanas e apagamos muitas coisas importantes pra
nós. Nós fomos de coração aberto tentar entender o mundo deles, mesmo
que isso custasse nossos cabelos queimados e nossa auto estima ferida.
Eles riram de nós, disseram que nunca seriamos brancos, e continuaram
nos tratando mal. Essa assimilação não foi saudável nem pra nós e nem
pra eles. As diferenças são saudáveis e nós (todos nós) precisamos
aprender a lidar com ela e não tentar nos tornar o outro para respeitá-lo
por completo. Por isso queridas, não criem brancos de estimação.
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Poesia não é um luxo[1]
Audre Lorde
A qualidade da luz pela qual escrutinamos nossas vidas tem impacto
direto sobre o produto que vivemos, e sobre as mudanças que esperamostrazer por essas vidas. É dentro dessa luz que nós formamos aquelas ideias
pelas quais alcançamos nossa mágica e a fazemos realizada. Isso é poesia
como iluminação, pois é pela poesia que nós damos nome àquelas ideias
que estão – até o poema – inominadas e desformes, ainda por nascer, mas
já sentidas. Essa destilação da experiência da qual brota poesia verdadeira
pare pensamento como sonho pare conceito, como sentimento pare ideia,
e conhecimento pare (precede) entendimento.
Conforme nós aprendemos a sustentar a intimidade do escrutínio eflorescer dentro dela, conforme aprendemos a usar os produtos daquele
escrutínio para poder dentro de nossa vida, aqueles medos que
comandam nossas vidas e formam nossos silêncios começam a perder o
controle sobre nós.
Para cada de nós como mulheres, há um lugar escuro por dentro, onde
escondido e crescendo nosso espírito verdadeiro se ergue, “lindo / e firme
como uma castanha / opondo-se colunar ao (v)nosso pesadelo de
fraqueza”[2] e impotência.Esses lugares de possibilidade dentro de nós são escuros porque são
ancestrais e escondidos; eles sobreviveram e cresceram fortes através
daquela escuridão. Dentro desses lugares profundos, cada uma de nós
mantém uma reserva incrível de criatividade e poder, de emoção e
sentimento não examinado e não registrado. O lugar de poder de mulher
dentro de cada uma de nós não é branco nem superfície; é escuro, é
ancestral, e é profundo.
Quando vemos a vida no modelo europeu unicamente como um problema
a ser solucionado, nós contamos somente com nossas ideias para nos
deixar livres, pois isso foi o que os patriarcas brancos nos disseram que era
precioso.
Mas quanto mais vamos entrando em contato com nossa consciência de
vida ancestral, não europeia, como uma situação a ser experienciada e
com a qual interagir, nós aprendemos mais e mais a cultivar nossos
sentimentos, e a respeitar aquelas fontes secretas de nosso poder de
onde vem conhecimento verdadeiro e, portanto, ações duradouras vêm.
http://traduzidas.files.wordpress.com/2013/07/poesia_nao_eh_um_luxo_audre_lorde2.pdfhttp://traduzidas.files.wordpress.com/2013/07/poesia_nao_eh_um_luxo_audre_lorde2.pdfhttp://traduzidas.wordpress.com/Users/Sinaide/Documents/tat/traduzidas/lorde/poesia_nao_eh_um_luxo_Audre_Lorde.docx#_ftn2http://traduzidas.wordpress.com/Users/Sinaide/Documents/tat/traduzidas/lorde/poesia_nao_eh_um_luxo_Audre_Lorde.docx#_ftn2http://traduzidas.files.wordpress.com/2013/07/poesia_nao_eh_um_luxo_audre_lorde2.pdf
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Nesse ponto no tempo, acredito que nós mulheres carregamos dentro de
nós mesmas a possibilidade de fusão dessas duas abordagens tão
necessárias à sobrevivência, e chegamos perto dessa combinação em
nossa poesia. Eu falo aqui de poesia como uma destilação revelatória da
experiência, não o jogo de palavras estéril que, muitas vezes, os patriarcasbrancos distorceram a palavra poesia para significar - para cobrir um
desejo desesperado por imaginação sem vislumbre.
Para mulheres, então, poesia não é um luxo. Ela é uma necessidade vital
de nossa existência. Ela forma a qualidade da luz dentro da qual
predizemos nossas esperanças e sonhos em direção a sobrevivência e
mudança, primeiro feita em linguagem, depois em ideia, então em ação
mais tocável. Poesia é a maneira com que ajudamos a dar nome ao
inominado, para que possa ser pensado. O horizonte mais distante denossas esperanças e medos é calçado por nossos poemas, talhado das
experiências pétreas de nossas vidas diárias.
Conforme eles se tornam conhecidos e aceitos por nós, nossos
sentimentos e a exploração honesta deles se tornam santuários e solo
polinizado para o mais radical e audaz de ideias. Eles se tornam um abrigo
para aquela diferença tão necessária à mudança e a conceituação de
qualquer ação significativa. Agora mesmo, eu poderia nomear pelo menos
dez ideias que eu teria achado intoleráveis ou incompreensíveis eassustadoras, exceto se tivessem vindo depois de sonhos e poemas. Isso
não é fantasia tola, mas uma atenção disciplinada ao verdadeiro
significado de “isso parece certo para mim.” Nós podemos nos treinar a
respeitar nossos sentimentos e transpô-los em uma linguagem para que
possam ser compartilhados. E onde aquela linguagem ainda não existe, é
nossa poesia que ajuda a tecê-la. Poesia não é só sonho e visão; ela é a
estrutura óssea de nossas vidas. Ela lança as fundações para um futuro de
mudança, uma ponte entre nossos medos do que nunca aconteceu antes.
Possibilidade não é para sempre nem instante. Não é fácil sustentar
crença em sua eficácia. Às vezes podemos trabalhar muito e duro para
estabelecer uma primeira trincheira de resistência real às mortes que
esperam que vivamos, só para ter essa trincheira roubada ou ameaçada
por aquelas calúnias que fomos socializadas a temer, ou pela retirada
daquelas aprovações que fomos alertadas a buscar por segurança.
Mulheres nos vemos diminuídas ou abrandadas pelas falsamente benignas
acusações de infantilidade, de não-universalidade, de mutabilidade, de
sensualidade. E quem pergunta a questão: eu estou alterando sua aura,
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suas ideias, seus sonhos, ou eu estou meramente movendo você a atos
temporários e reativos? E mesmo que a segunda não seja má tarefa, é
uma que deve ser vista no contexto de uma necessidade de verdadeira
alteração das fundações mesmas de nossas vidas.
Os patriarcas brancos nos disseram: penso, logo existo. A mãe Negradentro de nós – a poeta – sussurra em nossos sonhos: eu sinto, portanto
eu posso ser livre. Poesia cunha a linguagem para expressar e empenhar
essa demanda revolucionária, a implementação daquela liberdade.
Contudo, a experiência nos ensinou que ação no agora é também
necessária, sempre. Nossas crianças não podem sonhar a não ser que elas
vivam, elas não podem viver a não ser que estejam nutridas, e quem mais
vai alimentá-las da comida verdadeira sem a qual seus sonhos não serão
nada diferentes dos nossos? “Se você quer que nós mudemos o mundoalgum dia, nós ao menos tempos que viver tempo o bastante para
crescer!”, grita a criança.
Às vezes nos drogamos com sonhos de ideias novas. A cabeça vai nos
salvar. O cérebro sozinho vai nos libertar. Mas não há ideias novas ainda
esperando nas asas para nos salvar como mulheres, como humanas. Só há
aquelas velhas e esquecidas, novas combinações, extrapolações e
reconhecimentos desde dentro nós mesmas – junto à renovada coragem
para tenta-las. E nós temos que encorajar constantemente a nós mesmase a cada outra para tentarmos as ações heréticas que nossos sonhos
implicam, e que tantas das nossas velhas ideias desprezam. Na linha de
frente de nossa movimentação até mudança, só há poesia para aludir à
possibilidade feita real. Nossos poemas formulam as implicações de nós
mesmas, o que sentimos dentro e ousamos fazer realidade (ou trazer ação
de acordo com), nossos medos, nossas esperanças, nossos terrores mais
cultivados.
Pois dentro de estruturas vivas definidas pelo lucro, pelo poder linear,
pela desumanização institucional, nossos sentimentos não foram feitos
para sobreviver. Mantidos por perto como adjuntos inevitáveis ou
passatempos prazenteiros, era esperado que sentimentos se curvassem a
pensamento como era esperado que mulheres se curvassem a homens.
Mas as mulheres temos sobrevivido. Como poetas. E não há sofrimentos
novos. Nós já os sentimos todos. Nós escondemos tal fato no mesmo lugar
em que nós escondemos nosso poder. Eles emergem em nossos sonhos, e
são nossos sonhos que apontam o caminho para liberdade. Aqueles
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sonhos se tornam realizáveis por nossos poemas que nos dão a força e
coragem para ver, sentir, falar, e ousar.
Se o que precisamos para sonhar, para mover nossos espíritos mais
profunda e diretamente até o encontro e através de promessa, é
menosprezado como luxo, então nós desistimos do cerne – a fonte – denosso poder, nossa mulheridade; nós desistimos do futuro de nossos
mundos.
Pois não há ideias novas. Só há novas maneiras de fazê-las sentidas – de
examinar como nos parecem aquelas ideias sendo vividas no domingo de
manhã às 7 A.M, depois do café da manhã, durante amor voraz, fazendo
guerra, parindo, chorando nossxs mortxs – enquanto nós sofremos as
velhas esperas, combatemos os velhos conselhos e medos de sermos
silentes e impotentes e sós, enquanto nós provamos nossas possibilidadese forças.
[1] Traduzido por tatiana nascimento, novembro de 2012.
[email protected] / traduzidas.wordpress.com
[2] Publicado pela primeira vez em Chrysalis: A Magazine of Female Culture, n. 3
(1977). Nota da autora
http://traduzidas.wordpress.com/Users/Sinaide/Documents/tat/traduzidas/lorde/poesia_nao_eh_um_luxo_Audre_Lorde.docx#_ftnref1http://traduzidas.wordpress.com/Users/Sinaide/Documents/tat/traduzidas/lorde/poesia_nao_eh_um_luxo_Audre_Lorde.docx#_ftnref2http://traduzidas.wordpress.com/Users/Sinaide/Documents/tat/traduzidas/lorde/poesia_nao_eh_um_luxo_Audre_Lorde.docx#_ftnref2http://traduzidas.wordpress.com/Users/Sinaide/Documents/tat/traduzidas/lorde/poesia_nao_eh_um_luxo_Audre_Lorde.docx#_ftnref1
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Anarquismo Negro
Ashanti Alston[1]
Tradução: Mariana Santos (Das Lutas)
Apoio: Caralâmpio Trillas
Muitos anarquistas clássicos consideravam o anarquismo como um corpo
de verdades elementares que apenas precisavam ser reveladas ao mundo
e acreditavam que as pessoas se tornariam anarquistas uma vez expostas
à lógica irresistível da idéia. Esta é uma das razões pelas quais eles
tendiam a ser tão didáticos.
Felizmente a prática vivida do movimento anarquista é muito mais rica do
que isso. Poucos “convertem-se” de tal forma: é muito mais comum que
as pessoas abracem o anarquismo lentamente, à medida que descobrem
que é relevante para a sua experiência de vida e permeável a suas
próprias percepções e preocupações.
A riqueza da tradição anarquista está justamente na longa história de
encontros entre dissidentes não-anarquistas e o quadro anarquista queherdamos do final do Século XIX e início do Século XX. O anarquismo tem
crescido através de tais encontros e agora enfrenta contradições sociais
que antes eram marginais ao movimento. Por exemplo, há um século
atrás, a luta contra o patriarcado era uma preocupação relativamente
menor para a maioria dos anarquistas, mas hoje é amplamente aceita
como uma parte integrante da nossa luta contra a dominação.
Foi somente nos últimos 10 ou 15 anos que os anarquistas na América do
Norte começaram a explorar à sério o que significa desenvolver um
anarquismo que tanto pode combater a supremacia branca como articular
uma visão positiva da diversidade cultural e de intercâmbio cultural.
Camaradas estão trabalhando duro para identificar os referenciais
históricos de tal tarefa, como o nosso movimento deve mudar para
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abraçá-lo, e como um anarquismo verdadeiramente antirracista pode
parecer.
O seguinte material, de Ashanti Alston, membro do conselho do IAS[2],
explora algumas destas questões. Alston, que era membro do Partido dos
Panteras Negras e do Exército Negro de Libertação, descreve o(s) seu(s)
encontro(s) com o anarquismo (que começou quando ele foi preso por
atividades relacionadas com o Exército Negro de Libertação). Ele toca em
algumas das limitações das visões mais antigas do anarquismo, a
relevância contemporânea do anarquismo para os negros, e alguns dos
princípios necessários para construir um novo movimento revolucionário.
Esta é uma transcrição editada de uma palestra dada por Alston em 24 de
outubro de 2003 no Hunter College, em Nova York. O evento foi
organizado pelo Instituto de Estudos Anarquistas e co-patrocinado pelo
Movimento Estudantil de Ação Libertadora, da Universidade de Cidade de
Nova York ~ Chuck Morse
_____________
Embora o Partido dos Panteras Negras fosse muito hierárquico, eu aprendi
muito com a minha experiência na organização. Acima de tudo, nos
Panteras me marcou a necessidade de aprender com as lutas de outros
povos. Eu acho que tenho feito isso e essa é uma das razões pelas quais
sou um anarquista hoje. Afinal, quando velhas estratégias não funcionam,precisamos olhar para outras formas de fazer as coisas, para ver se
podemos nos descolar e avançar novamente. Nos Panteras, absorvemos
muita coisa de nacionalistas, marxistas-leninistas, e de outros como eles,
mas suas abordagens para a mudança social tinham problemas
significativos e me aprofundei no anarquismo para ver se haviam outras
maneiras de pensar sobre como fazer uma revolução.
http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftn2http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftn2http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftn2http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftn2
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Eu aprendi sobre anarquismo através de cartas e de literatura enviadas
para mim, enquanto estava em várias prisões por todo o país. No começo
eu não queria ler qualquer material que recebi – parecia que o
anarquismo era apenas sobre o caos e todo mundo fazendo suas próprias
coisas – e por muito tempo eu o ignorei. Mas houve momentos – quando
eu estava na solitária – que não tinha mais nada para ler e, para fugir do
tédio, finalmente comecei a meter a mão no tema (apesar de tudo o que
eu tinha ouvido falar sobre o anarquismo até o momento). Fiquei
realmente muito surpreso ao encontrar análises de lutas populares,
culturas populares e formas de organizações populares – aquilo fez muito
sentido para mim.
Estas análises me ajudaram a ver coisas importantes sobre a minha
experiência nos Panteras que não estavam claras para mim antes. Por
exemplo, eu pensei que havia um problema com a minha admiração por
pessoas como Huey P. Newton, Bobby Seal, e Eldridge Cleaver e com o
fato de que eu os tinha colocado em um pedestal. Afinal de contas, o que
isso diz sobre você, se você permitir que alguém se estabeleça como seu
líder e tome todas as suas decisões por você? O anarquismo me ajudou a
ver que você, como um indivíduo, deve ser respeitado e que ninguém é
suficientemente importante para pensar por você. Mesmo que nós
achemos que Huey P. Newton ou Eldridge Cleaver são os pioresrevolucionários do mundo, eu deveria me ver como o pior revolucionário,
exatamente como eles. Mesmo que eu fosse jovem, tenho um cérebro. Eu
posso pensar. Eu posso tomar decisões.
Eu pensei em tudo isso enquanto estava na prisão e me vi dizendo: “Cara,
nós realmente nos colocamos de uma forma que éramos obrigados a criar
problemas e produzir cismas. Fomos obrigados a seguir programas sem
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pensar”. A história do Partido dos Panteras Negras, tão incrível como é,
tem esses esqueletos. A menor pessoa no totem deveria ser um
trabalhador e o que estava na parte superior era quem tinha o cérebro.
Mas na prisão eu aprendi que eu poderia ter tomado algumas dessas
decisões sozinho e que as pessoas ao meu redor poderiam ter tomado
essas mesmas decisões. Embora eu tenha apreço por tudo o que os líderes
do Partido dos Panteras Negras fizeram, eu comecei a ver que podemos
fazer as coisas de forma diferente e, assim, extrair mais plenamente
nossas próprias potencialidades e nos encaminharmos ainda mais para
uma autodeterminação real. Embora não tenha sido fácil no início, insisti
com o material anarquista e descobri que eu não poderia colocá-lo de
lado, uma vez que começou a me dar vislumbres. Eu escrevi para pessoas
em Detroit e no Canadá, que tinham me enviado a literatura, e pedi para
que me enviassem mais.
No entanto, nada do que eu recebi tratava de pessoas negras ou latinas.
Talvez houvesse discussões ocasionais sobre a Revolução Mexicana, mas
nada falava de nós, aqui, nos Estados Unidos. Houve uma ênfase
esmagadora sobre aqueles que se tornaram os anarquistas fundadores –
Bakunin, Kropotkin, e alguns outros – mas estes valores europeus, que
abordavam as lutas europeias, realmente não dialogavam comigo.
Eu tentei descobrir como isso se aplicava a mim. Comecei a olhar para aHistória Negra de novo, para a História Africana, e as histórias e lutas das
outras pessoas de cor. Eu encontrei muitos exemplos de práticas
anarquistas nas sociedades não europeias, desde os tempos mais antigos
até o presente. Isso foi muito importante para mim: eu precisava saber
que não eram apenas os europeus que poderiam funcionar de uma forma
antiautoritária, mas que todos nós podemos.
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Fui encorajado por coisas que eu encontrei na África – não tanto pelas
antigas formas que chamamos de tribos – mas por lutas modernas que
ocorreram no Zimbabwe, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Ainda que
fossem liderados por organizações vanguardistas, eu vi que as pessoas
estavam construindo comunidades democráticas radicais na base. Pela
primeira vez, nesses contextos coloniais, os povos africanos estavam
criando o que era chamado pelos angolanos de “poder popular”. Este
poder popular tomou uma forma muito antiautoritária: as pessoas não
estavam só conduzindo suas vidas, mas também as transformando
enquanto lutavam contra qualquer poder estrangeiro que os oprimia. No
entanto, em cada uma dessas lutas de libertação, novas estruturas
repressivas foram impostas logo que as pessoas chegavam próximo à
libertação: a liderança estava obcecada com idéias de governança, em
estabelecer um exército permanente, em controlar as pessoas depois que
os opressores forem expulsos. Uma vez que a tão apregoada vitória foi
conseguida, o povo – que havia lutado durante anos contra os seus
opressores – foi desarmado e, em vez de existir um poder popular real,
um novo partido foi instalado no comando do Estado. Assim, não houve
reais revoluções ou a verdadeira libertação em Angola, Guiné-Bissau,
Moçambique e Zimbabwe, porque eles simplesmente substituíram um
opressor estrangeiro por um opressor nativo.Então, aqui estou eu, nos Estados Unidos, lutando pela libertação negra e
me perguntando: como é que podemos evitar situações como essa? O
anarquismo me deu uma maneira de responder a esta questão, insistindo
que nós ponhamos no lugar, como fazemos em nossa luta agora, as
estruturas de tomada de decisões e de fazer coisas que continuamente
tragam mais pessoas para o processo, e não apenas deixar a maioria das
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pessoas “iluminadas” tomarem decisões por todos os outros. O próprio
povo tem que criar estruturas em que articulem sua própria voz e em que
tomem suas próprias decisões. Eu não recebi isso de outras ideologias: eu
recebi isso do anarquismo.
Também comecei a ver, na prática, que as estruturas anarquistas de
tomada de decisão são possíveis. Por exemplo, nos protestos contra a
Convenção Nacional Republicana, em agosto de 2000, eu vi os grupos
normalmente excluídos – pessoas de cor, mulheres e gays – participarem
ativamente de todos os aspectos da mobilização. Nós não permitimos que
pequenos grupos tomassem decisões por outros e, apesar de as pessoas
terem diferenças, elas eram vistas como boas e benéficas. Era novo para
mim, depois da minha experiência nos Panteras, estar em uma situação
onde as pessoas não estão tentando disputar o mesmo lugar e realmente
abraçam a tentativa de resolver nossos interesses por vezes
contraditórios. Isso me deu algumas idéias sobre como o anarquismo
pode ser aplicado.
Também me fez pensar: se pode ser aplicado para os diversos grupos no
protesto contra a Convenção, poderia eu, como um ativista negro, aplicar
essas coisas na comunidade negra?
Algumas de nossas idéias sobre quem somos como povo bloqueiam
nossas lutas. Por exemplo, a comunidade negra é muitas vezesconsiderada um grupo monolítico, mas na verdade é uma comunidade de
comunidades com muitos interesses diferentes. Penso em ser negro não
tanto como uma categoria étnica, mas como uma força de oposição ou
como pedra de toque para ver as coisas de forma diferente. A cultura
negra sempre foi opositora e tudo isso é a busca de caminhos para
criativamente resistir à opressão aqui, no país mais racista do mundo.
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Então, quando eu falo de um Anarquismo Negro, não está tão ligado à cor
da minha pele, mas quem eu sou como pessoa, como alguém que pode
resistir, quem pode enxergar de uma forma diferente quando eu estou
bloqueado e, assim, viver de forma diferente.
O que é importante para mim sobre o anarquismo é a sua insistência de
que você nunca deve ficar preso em velhas e obsoletas abordagens e
sempre deve tentar encontrar novas maneiras de ver as coisas, de sentir e
de se organizar. No meu caso, eu apliquei pela primeira vez o anarquismo
no início de 1990 em um coletivo que criamos para rodar o jornal dos
Panteras Negras novamente. Eu ainda era um anarquista “no armário”
neste momento. Eu ainda não estava pronto para sair e me declarar um
anarquista, porque eu já sabia o que as pessoas iriam dizer e como eles
iriam olhar para mim. Quem eles veriam quando digo “anarquista”? Eles
veriam os anarquistas brancos, com todos aqueles cabelos engraçados,
etc. e dizer “como diabos é que você vai se envolver com isso?”
Houve uma divisão neste coletivo: de um lado havia companheiros mais
velhos que estavam tentando reinventar a roda e, por outro, eu e alguns
outros que diziam: “Vamos ver o que podemos aprender com a
experiência vinda dos Panteras e construir em cima dela e melhorá-la. Nós
não podemos fazer as coisas da mesma maneira”. Enfatizamos a
importância de uma perspectiva antissexista – uma velha questão dentrodos Panteras – mas do outro lado estava algo do tipo “eu não quero ouvir
todas essas coisas feministas”. E nós dissemos: “Tudo bem se você não
quer ouvir isso, mas queremos que as pessoas jovens ouçam, para que
eles saibam sobre algumas das coisas que não funcionaram nos Panteras,
para que eles saibam que nós tivemos algumas contradições internas que
não poderíamos superar”. Nós tentamos forçar a questão, mas se tornou
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uma batalha e as discussões tornaram-se tão difíceis que uma separação
ocorreu. Neste ponto, deixei o coletivo e comecei a trabalhar com grupos
anarquistas e antiautoritários, que foram realmente os únicos a tentarem
lidar de forma consistente com essas dinâmicas até o momento.
Uma das lições mais importantes que eu também aprendi com o
anarquismo é que você precisa olhar para as coisas radicais que já
fazemos e tentar incentivá-las. É por isso que eu acho que há muito
potencial para o anarquismo na comunidade negra: muito do que já
fazemos é anarquista e não envolve o Estado, a polícia ou os políticos. Nós
tomamos conta um do outro, nós nos importamos com os filhos uns dos
outros, nós vamos para o mercado uns para os outros, encontramos
maneiras de proteger nossas comunidades. Até mesmo igrejas ainda
fazem as coisas de uma forma muito comunal, até certo ponto. Eu aprendi
que existem maneiras de ser radical sem ficar distribuindo literatura e
dizendo às pessoas: “Aqui está o retrato da situação, se você enxergar
isso, vai seguir automaticamente a nossa organização e se juntará à
revolução”. Por exemplo, a participação é um tema muito importante para
o anarquismo e também é muito importante na comunidade negra.
Considere o jazz: é um dos melhores exemplos de uma prática radical
existente porque ele assume uma conexão participativa entre o individual
e o coletivo e permite a expressão de quem você é, dentro de umambiente coletivo, com base no gozo e no prazer da música em si. Nossas
comunidades podem ser da mesma forma. Podemos reunir todos os tipos
de perspectivas de fazer música, de fazer revolução.
Como podemos nutrir cada ato de liberdade? Seja com as pessoas no
trabalho ou as pessoas que passam o tempo na esquina, como podemos
planejar e trabalhar juntos? Precisamos aprender com as diferentes lutas
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ao redor do mundo que não são baseadas em vanguardas. Há exemplos
na Bolívia. Há os zapatistas. Há grupos no Senegal construindo centros
sociais. Você realmente tem que olhar para as pessoas que estão tentando
viver e não necessariamente tentando chegar com as idéias mais
avançadas. Precisamos tirar a ênfase do abstrato e focar no que está
acontecendo na base.
Como podemos construir com todas estas diferentes vertentes? Como
podemos construir com os Rastas? Como podemos construir com as
pessoas da Costa Oeste que ainda estão lutando contra o governo, por
conta da mineração em terras indígenas? Como podemos construir com
todos esses povos para começar a criar uma visão da América que seja
para todos nós?
Pensamento de oposição e os riscos de ser oposição são necessários. Eu
acho isso é muito importante neste momento e uma das razões pelas
quais eu acho que o anarquismo tem muito potencial para nos ajudar a
seguir em frente. E isso não é um pedido para aderirmos dogmaticamente
aos fundadores da tradição, mas para estarmos abertos a tudo o que
aumenta a nossa participação democrática, a nossa criatividade e nossa
felicidade.
Acabamos de ter uma Conferência Anarquista de Pessoas de Cor em
Detroit, de 03 a 05 de outubro. Cento e trinta pessoas vieram de todo opaís. Foi ótimo para vermos nós mesmos e bem como o interesse das
pessoas de cor de todo o Estados Unidos em busca de formas marginais
de se pensar. Vimos que poderíamos nos tornar aquela voz em nossas
comunidades, que diz: “Espere, talvez nós não precisemos nos organizar
assim. Espere, a maneira que você está tratando as pessoas dentro da
organização é opressiva. Espere, qual é a sua visão? Gostaria de ouvir a
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minha?”. Há uma necessidade para esses tipos de vozes dentro de nossas
diversas comunidades. Não apenas as nossas comunidades de cor, mas
em toda comunidade há uma necessidade de parar o avanço dos planos
pré-fabricados e confiar que as pessoas podem descobrir coletivamente o
que fazer com este mundo. Eu acho que nós temos a oportunidade de
deixar de lado o que nós pensamos que seria a resposta e lutarmos juntos
para explorar diferentes visões do futuro. Podemos trabalhar nisso. E não
há uma resposta: temos de trabalhar com isso à medida que avançamos.
Embora queiramos lutar, vai ser muito difícil por causa dos problemas que
herdamos deste império. Por exemplo, eu vi algumas lutas muito duras,
emocionadas, em protestos contra a Convenção Nacional Republicana.
Mas as pessoas se mantiveram bloqueadas, mesmo quem começou a
chorar no processo. Não vamos superar algumas das nossas dinâmicas
internas que nos mantiveram divididos, a menos que estejamos dispostos
a passar por algumas lutas realmente difíceis. Esta é uma das outras
razões pelas quais eu digo que não há uma resposta: só temos que passar
por isso.
Nossas lutas aqui nos Estados Unidos afetam todos no mundo. As pessoas
nas classes subalternas vão desempenhar um papel fundamental e a
maneira como nos relacionamos com elas vai ser muito importante.
Muitos de nós somos privilegiados o suficiente para ser capaz de evitaralguns dos desafios mais difíceis e vamos ter de abrir mão de parte desse
privilégio, a fim de construir um novo movimento. O potencial está lá. Nós
ainda podemos ganhar – e redefinir o que significa vencer – mas temos a
oportunidade de promover uma visão mais rica da liberdade do que já
tinha antes. Temos que estar dispostos a tentar.
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Como um Pantera, e como alguém que passou à clandestinidade
enquanto guerrilha urbana, pus a minha vida no limite. Eu assisti meus
companheiros morrerem e passei a maior parte da minha vida adulta na
prisão. Mas eu ainda acredito que podemos vencer. A luta é muito difícil e
quando você cruza esse limite, você corre o risco de ir para a cadeia, ficar
gravemente ferido, morto, e assistir seus companheiros ficando
gravemente feridos e mortos. Isso não é uma imagem bonita, mas isso é o
que acontece quando você luta contra um opressor enraizado. Estamos
lutando e isso vai tornar tudo mais difícil para eles, mas a luta também vai
ser difícil para nós.
É por isso que temos de encontrar maneiras de amar e apoiar uns aos
outros através de tempos difíceis. É mais do que apenas acreditar que
podemos vencer: precisamos ter estruturas consolidadas que possam nos
ajudar a caminhar, quando sentirmos que não podemos dar mais nenhum
passo. Acho que podemos mudar novamente se pudermos descobrir
algumas dessas coisas. Este sistema tem que cair. Isso nos fere a cada dia
e não podemos desistir. Temos que chegar lá. Temos que encontrar novas
maneiras.
O anarquismo, se significa alguma coisa, significa estar aberto para o que
quer que for preciso em nosso pensamento, em nossa vivência e nas
nossas relações – para vivermos plenamente e vencermos. De certaforma, eu acho que são a mesma coisa: viver a vida ao máximo é ganhar. É
claro que vamos e devemos entrar em conflito com os nossos opressores
e precisamos encontrar boas maneiras de fazê-lo. Lembre-se daqueles das
classes subalternas, que são os mais afetados por isso. Eles podem ter
diferentes perspectivas sobre como essa luta deve ser feita. Se nós não
podemos encontrar caminhos para nos encontrarmos cara-a-cara afim de
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resolvermos essa situação, velhos fantasmas reaparecerão e nós
voltaremos à mesma velha situação em que estivemos antes.
Vocês todos podem fazer isso. Você tem a visão. Você tem a criatividade.
Não permitam que ninguém bloqueie isso.
De Perspectivas sobre a teoria anarquista, Primavera 2004 – Volume 8, número
1 http://www.anarchist- studies.org/publications/perspectives
FONTE: http://www.anarchist- studies.org/article/articleview/70/1/8/
Instituto de Estudos Anarquistas: http://www.anarchist- studies.org/
[1] In. “Perspectivas sobre a teoria anarquista”, boletim semestral do Instituto de
Estudos Anarquistas, Primavera 2004 – Volume 8, Número 1
[2] Institute for Anarchist Studies
http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftnref1http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftnref1http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftnref2http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftnref2http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftnref2http://daslutas.wordpress.com/2014/09/01/anarquismo-negro-por-ashanti-alston1/#_ftnref1
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USOS DO ERÓTICO: O ERÓTICO COMO PODER
Audre Lorde[1]
Há muitos tipos de poder, usados e não usados, reconhecidos ou não. O
erótico é um recurso dentro de cada uma de nós, que paira num plano
profundamente feminino e espiritual, firmemente enraizado no poder de
nossos sentimentos impronunciados ou não reconhecidos. Para se
perpetuar, toda opressão deve corromper ou distorcer aquelas várias
fontes que há na cultura de oprimidxs e podem suprir energia para
mudança. Para mulheres, isso tem significado a supressão do erótico
como fonte considerável de poder e informação dentro de nossas vidas.
Fomos ensinadas a suspeitar desse recurso, caluniado, insultado e
desvalorizado pela sociedade ocidental. De um lado, o superficialmente
erótico foi encorajado como símbolo da inferioridade feminina; de outro
lado, as mulheres foram levadas a sofrer e se sentirem desprezíveis e
suspeitas em virtude de sua existência.É um pequeno passo daí à falsa crença de que só pela supressão do
erótico de nossas vidas e consciências é que podemos ser
verdadeiramente fortes. Mas tal força é ilusória, pois vem adornada no
contexto dos modelos masculinos de poder.
Como mulheres, temos desconfiado desse poder que emana de nosso
conhecimento mais profundo e irracional. Fomos alertadas contra ele por
toda nossa vida pelo mundo masculino, que valoriza essa profundidade do
sentir a ponto de manter as mulheres por perto para que o exercitemos
para servir aos homens, mas que teme tanto essa mesma profundidade
para examinar suas possibilidades dentro delas mesmas. Então as
mulheres são mantidas numa posição distante/inferior para serem
psicologicamente ordenhadas, mais ou menos da mesma forma com que
https://traduzidas.files.wordpress.com/2013/07/audre_lorde_usos-do-erotico_o-erotico-como-poder.pdfhttps://traduzidas.files.wordpress.com/2013/07/audre_lorde_usos-do-erotico_o-erotico-como-poder.pdfhttp://traduzidas.wordpress.com/2013/07/11/usos-do-erotico-o-erotico-como-poder-audre-lorde/#_ftn1http://traduzidas.wordpress.com/2013/07/11/usos-do-erotico-o-erotico-como-poder-audre-lorde/#_ftn1http://traduzidas.wordpress.com/2013/07/11/usos-do-erotico-o-erotico-como-poder-audre-lorde/#_ftn1https://traduzidas.files.wordpress.com/2013/07/audre_lorde_usos-do-erotico_o-erotico-como-poder.pdf
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as formigas mantêm colônias de pulgões para fornecer uma substância
doadora-de-vida para seus mestres.
Mas o erótico oferece um manancial de força revigorante e provocativa à
mulher que não teme sua revelação nem sucumbe à crença de que a
sensação é bastante.
O erótico tem sido frequentemente difamado por homens e usado contra
mulheres. Tem sido tornado na confusa, na trivial, na psicótica, na
plastificada sensação. Por essa razão, temos frequentemente dado as
costas à exploração e consideração do erótico como uma fonte de poder e
informação, confundindo-o com seu oposto, o pornográfico. Mas
pornografia é uma negação direta do poder do erótico, pois ela representa
a supressão do verdadeiro sentir. Pornografia enfatiza sensação sem
sentimento.
O erótico é uma medida entre os princípios do nosso senso de ser e o caos
de nossos sentimentos mais fortes. É um senso interno de satisfação ao
qual, uma vez que o tenhamos vivido, sabemos que podemos almejar.
Pois tendo vivido a completude dessa profundidade de sentimento e
reconhecendo seu poder, em honra e respeito próprio não podemos exigir
menos de nós mesmas.
Nunca é fácil demandar o máximo de nós mesmas, de nossas vidas, de
nosso trabalho. Encorajar a excelência é ir além da mediocridadeencorajada de nossa sociedade, é encorajar a excelência. Mas ceder ao
medo de sentir e trabalhar no limite é um luxo que só xs despropositadxs
podem bancar, e xs despropositadxs são aquelxs que não desejam guiar
seus próprios destinos.
Essa demanda interna por excelência que aprendemos do erótico não
pode ser mal entendida como exigir o impossível nem de nós mesmas
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nem das outras. Tal exigência incapacita todo mundo no processo. Porque
o erótico não é uma questão só do que nós fazemos; é uma questão de
quão penetrante e inteiramente nós podemos sentir no fazer. Uma vez
que sabemos a extensão à qual nós somos capazes de sentir esse senso de
satisfação e plenitude, nós podemos então observar qual de nossos afãs
de vida nos traz mais perto dessa completude.
O objetivo de cada coisa que fazemos é fazer nossas vidas e a vida de
nossas crianças mais ricas e mais possíveis. Na celebração do erótico em
todos os nossos envolvimentos, meu trabalho se torna uma decisão
consciente – um leito muito esperado em que entro com gratidão e do
qual levanto empoderada.
Obviamente, mulheres tão empoderadas são perigosas. Então somos
ensinadas a separar a demanda erótica de quase todas as áreas mais vitais
de nossas vidas além do sexo. E a falta de consideração às raízes e
satisfações eróticas de nosso trabalho é sentida em nosso desafeto por
tanto do que fazemos. Por exemplo, quantas vezes amamos de verdade
nosso trabalho até em suas maiores dificuldades?
O principal horror de qualquer sistema que define o bom em termos de
lucro ao invés de em termos de necessidade humana, ou que define a
necessidade humana pela exclusão dos componentes psíquicos e
emocionais dela – o principal horror de tal sistema é que rouba de nossotrabalho seu valor erótico, seu poder erótico e interesse e plenitude da
vida. Tal sistema reduz trabalho a uma caricatura de necessidades, um
dever pelo qual ganhamos pão ou esquecimento de nós mesmas e de
quem amamos. Mas isso é o mesmo que cegar uma pintora e dizer a ela
que melhore sua obra, e que goste do ato de pintar. Isso não é só perto do
impossível, é também profundamente cruel.
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Como mulheres, precisamos examinar as formas pelas quais nosso mundo
possa ser verdadeiramente diferente. Estou falando aqui da necessidade
de reavaliarmos a qualidade de todos os aspectos de nossas vidas e de
nosso trabalho, e de como nos movimentamos até e através deles.
A palavra erótico mesma vem da palavra grega eros, a personificação de
amor em todos seus aspectos – nascido do Caos, e personificando poder
criativo e harmonia. Quando falo do erótico, então, falo dele como uma
afirmação da força vital de mulheres; daquela energia criativa
empoderada, cujo conhecimento e uso nós estamos agora retomando em
nossa linguagem, nossa história, nosso dançar, nosso amar, nosso
trabalho, nossas vidas.
Há tentativas frequentes de equiparar pornografia e erotismo, dois usos
diametralmente opostos do sexual. Por causa dessas tentativas, se tornou
modismo separar o espiritual (psíquico e emocional) do político,vê-
loscomo contraditórios ou antitéticos. “Como assim, uma revolucionária
poética, uma traficante de armas que medita?”. Da mesma forma temos
tentado separar o espiritual e o erótico, assim reduzindo o espiritual a um
mundo de afetos insípidos, um mundo do asceta que deseja sentir nada.
Mas nada está mais longe da verdade. Pois a posição ascética é uma do
mais grandioso medo, da mais grave imobilidade. A severa abstinência do
asceta torna-se a obsessão dominadora. E não é uma de autodisciplinamas de autoabnegação.
A dicotomia entre espiritual e político é falsa também, resultante de uma
atenção incompleta ao nosso conhecimento erótico. Pois a ponte que os
conecta é formada pelo erótico – o sensual –, aquelas expressões físicas,
emocionais e psíquicas do que é mais profundo e mais forte e mais rico
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dentro de cada uma de nós, sendo compartilhado: as paixões de amor, em
seus mais fundos significados.
Além do superficial, a considerada frase “me faz sentir bem” reconhece a
força do erótico em um conhecimento verdadeiro, pois o que ela significa
é a primeira e mais poderosa luz guia a qualquer entendimento. E
entendimento é uma ama que só pode esperar, ou explicitar, aquele
conhecimento, nascido fundo. O erótico é a nutriz ou a babá de todo
nosso conhecimento mais profundo.
O erótico para mim funciona de muitas maneiras, e a primeira é
fornecendo o poder que vem de compartilhar profundamente qualquer
busca com outra pessoa. A partilha do prazer, seja físico, emocional,
psíquico ou intelectual forma entre as compartilhantes uma ponte que
pode ser a base para entender muito do que não é compartilhado entre
elas, e diminui o medo das suas diferenças.
Outra forma importante com que a conexão erótica funciona é a ampla e
destemida ênfase de minha capacidade de gozar. Do jeito que meu corpo
se expande à música e se abre em resposta, auscultando seus ritmos
profundos, assim cada nível de onde eu sinto também se abre à
experiência eroticamente satisfatória, seja dançando, construindo uma
estante de livros, escrevendo um poema, examinando uma ideia.
Essa autoconexão compartilhada é uma medida do prazer que me seicapaz de sentir, um lembrete de minha capacidade de sentir. E esse
conhecimento profundo e insubstituível da minha capacidade de prazer
vem para demandar de toda minha vida que seja vivida dentro do
conhecimento de que tal satisfação é possível, e não precisa ser chamada
de casamento, nem deus, nem vida após a morte.
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Essa é uma razão pela qual o erótico é tão temido, e tantas vezes relegado
unicamente ao quarto, isso quando chega a ser reconhecido. Pois logo que
começamos a sentir intensamente todos os aspectos de nossas vidas,
começamos a esperar de nós mesmas e do que desejamos da vida que
isso esteja de acordo com aquele prazer de que nos sabemos capazes.
Nossa sabedoria erótica nos empodera, se torna uma lente pela qual
escrutinamos todos os aspectos de nossa existência, nos forçando a
examiná-los honestamente em termos de seus significados relativos em
nossas vidas. E essa é uma grave responsabilidade, projetada desde
dentro de cada uma de nós, de não se conformar com o conveniente, o
falseado, o convencionalmente esperado, nem o meramente seguro.
Durante a Segunda Guerra Mundial, comprávamos potes de plástico
selados de margarina branca, incolor, com uma minúscula, intensa cápsula
de corante amarelo encimada como um topázio bem sob a pele clara do
pote. Deixávamos a margarina de fora um tempo para amaciar, e então
furávamos a pequena cápsula para jogá-la dentro do pote, soltando sua
rica amarelice na macia massa pálida da margarina. Então pegando-a
cuidadosamente entre os dedos, balançávamos suavemente pra frente e
pra trás, várias vezes, até que a cor tivesse se espalhado por todo o pote
de margarina, colorindo-a perfeitamente.
Eu acho o erótico tal cerne dentro de mim mesma. Quando liberado deseu invólucro intenso e constritor, ele flui através e colore minha vida com
um tipo de energia que amplia e sensibiliza e fortalece toda minha
experiência.
Fomos criadas pra temer o sim dentro de nós, nossas mais profundas
vontades. Mas uma vez reconhecido, aqueles que não melhoram nosso
futuro perdem seu poder e podem ser mudados. O medo de nossos
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desejos os mantém suspeita e indiscriminadamente poderosos, pois
suprimir qualquer verdade é dar a ela uma força além da resistência. O
medo de que não podemos crescer além de quaisquer distorções que
possamos achar em nós mesmas nos mantém dóceis e leais e obedientes,
externamente definidas, e nos leva a aceitar muitas facetas da opressão
que passamos enquanto mulheres.
Quando nós vivemos fora de nós mesmas, e com isso digo em diretrizes
externas unicamente ao invés de por nossa sabedoria e necessidades
internas, quando vivemos longe daquelas guias eróticas de dentro de nós
mesmas, então nossas vidas são limitadas pelas formas externas e alheias,
e nós nos conformamos com as necessidades de uma estrutura que não é
baseada em necessidade humana, quem dirá na individual. Mas quando
começamos a viver desde dentro pra fora, em toque o poder do erótico
dentro de nós mesmas, e permitindo esse poder de informar e iluminar
nossas ações sobre o mundo a nosso redor, então nós começamos a ser
responsáveis por nós mesmas no sentido mais profundo. Pois quando
começamos a reconhecer nossos sentimentos mais profundos, nós
começamos a desistir, por necessidade, de estar satisfeitas com
sofrimento e autonegação, e com o entorpecimento que tantas vezes
parece ser a única alternativa em nossa sociedade. Nossas ações contra a
opressão se tornam integrais com ser, motivadas e empoderadas desdedentro.
Em toque com o erótico, eu me torno menos disposta a aceitar
desempoderamento, ou esses outros estados fornecidos de ser que não
são nativos para mim, tais como resignação, desespero,
autoaniquilamento, depressão, autonegação.
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E sim, há uma hierarquia. Existe diferença entre pintar uma cerca no
quintal e escrever um poema, mas só uma de quantidade. E não há, para
mim, diferença alguma entre escrever um bom poema e me mover à luz
do sol contra o corpo de uma mulher que eu amo.
Isso me traz à última consideração sobre o erótico. Compartilhar o poder
dos sentimentos umas das outras é diferente de usar os sentimentos de
outra pessoa como usaríamos um lenço de papel. Quando desviamos o
olhar de nossa experiência, erótica ou outra, nós usamos ao invés de
compartilhar os sentimentos daquelas outras que participam na
experiência conosco. E uso sem consentimento da usada é abuso.
Para serem utilizados, nossos sentimentos eróticos devem ser
identificados. A necessidade de compartilhar sentir profundo é uma
necessidade humana. Mas dentro da tradição europeia-americana, essa
necessidade é satisfeita por certos proscritos eróticos de gozar-junto. Tais
ocasiões são quase sempre caracterizadas por um simultâneo desviar o
olhar, uma pretensão de chamá-las outra coisa, seja uma religião, um
calhar, violência de multidão, ou mesmo brincar de médico. E esse mal-
chamar da necessidade e do ato dá vazão àquela distorção que resulta em
pornografia e obscenidade – o abuso do sentir.
Quando desviamos o olhar da importância do erótico no desenvolvimento
e sustentação de nosso poder, ou quando desviamos o olhar de nósmesmas ao satisfazer nossas necessidades eróticas em acordo com outras,
nós usamos umas às outras como objetos de satisfação ao invés de
compartilharmos nosso gozo no satisfazer, ao invés de fazer conexão com
nossas similaridades e nossas diferenças. Nos recusarmos a ser
conscientes do que estamos sentindo a qualquer momento, por mais
confortável que possa parecer, é negar uma grande parte da experiência,
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e permitir que nós mesmas sejamos reduzidas ao pornográfico, o
abusado, e o absurdo.
O erótico não pode ser sentido indiretamente. Como uma Negra lésbica
feminista, tenho um particular sentir, conhecimento e compreensão por
aquelas irmãs com quem eu dancei pesado, me diverti, ou até briguei.
Essa participação profunda tem sido muitas vezes o precedente a ações
conjuntas partilhadas não possíveis antes.
Mas essa carga erótica não é facilmente compartilhada por mulheres que
continuam a operar sob uma tradição exclusivamente masculina europeia-
americana. Eu sei que ela não estava disponível pra mim quando eu
tentava adaptar minha consciência a esse modo de vida e sensação.
Somente agora, eu acho mais e mais mulheres-identificadas-com-
mulheres bravas o bastante para arriscar compartilhar a carga elétrica do
erótico sem ter que desviar os olhos, e sem distorcer a natureza
enormemente poderosa e criativa dessa troca. Reconhecer o poder do
erótico em nossas vidas pode nos dar a energia para alcançar mudança
genuína dentro de nosso mundo, ao invés de meramente acomodação a
uma mudança de personagens no mesmo teatro tedioso.
Pois não só nós tocamos nossa fonte mais profundamente criativa, mas
fazemos aquilo que é fêmeo e autoafirmativo em face a uma sociedade
racista, patriarcal e antierótica.
[1] traduzido por tate ann de Uses of the Erotic: The Erotic as Power, in: LORDE, Audre.
Sister outsider: essays and speeches. New York: The Crossing Press Feminist Series,
1984. p. 53-59.
http://traduzidas.wordpress.com/2013/07/11/usos-do-erotico-o-erotico-como-poder-audre-lorde/#_ftnref1http://traduzidas.wordpress.com/2013/07/11/usos-do-erotico-o-erotico-como-poder-audre-lorde/#_ftnref1