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ANALISE Mortalidade Feminina no Brasil: Sexo Frágil ou Sexo Forte?* Estela Maria Leão de Aquino** Greice Maria Menezes*** Marúcia B. E. Amoedo**** Letícia C. C. Nobre***** *Trabalho apresentado no I Congresso Brasileiro de Epide- miologia. Campinas, Abrasco/U- nicamp, 1990. ** Doutoranda em Saúde Públi- ca (DMP/UFBA); Prof. Assis- tente do Instituto de Medicina Social (Uerj); Coordenadora do Núcleo de Estudos Mulher e Saúde (DMP/UFBA). *** Especialista em Medicina Social (DMP/UFBA); Pesquisa- dora do Núcleo de Estudos Mu- lher e Saúde (DMP/UFBA). ****Graduando em Medicina na Faculdade de Medicina (UFBA); Estagiária em Pesquisa no Nú- cleo de Estudos Mulher e Saúde (DMP/UFBA). *****Mestranda em Saúde Co- munitária (DMP/UFBA); Pes- quisadora do Núcleo de Estudos Mulher e Saúde (DMP/UFBA). A população feminina brasileira tem chegado à velhice de maneira mais significativa que a masculina. Este fenômeno tem sido também observado em países industrializados centrais onde é freqüente a sobremortalidade masculina. A análise dos diferenciais por causas específicas pode ajudar a compreender os determinantes do padrão brasileiro e a antecipar algumas tendências futuras, especialmente tendo-se em conta as profundas mudanças no papel social da mulher em nossa realidade. Assim, foi feito estudo de mortalidade em dez capitais brasileiras, em 1985, com taxas geral e específicas por cinco principais grupos de causas segundo sexo e padronizadas por idade pelo método direto. Como medida dos diferenciais, usou-se razões e diferenças entre os sexos. Os resultados revelam que o perfil regional relaciona-se ao padrão de urbanização e industrialização, com os maiores diferenciais por sexo nas capitais mais desenvolvidas do país. A sobremortalidade masculina explica-se basicamente pela magnitude das causas externas e das doenças do aparelho circulatório, sendo peculiar a especial importância das mortes violentas, que são as principais responsáveis pelos diferenciais por sexo. Acredita-se que a atual tendência venha a se manter, embora a longo prazo as diferenças entre os sexos possam se reduzir. De qualquer modo, o prolongamento da vida, sem adequadas condições de subsistência, não parece estar significando exatamente uma vantagem para a mulher brasileira. INTRODUÇÃO Apesar de ainda ser predominantemente jovem, a população brasileira tem envelhecido de modo muito rápido, sem que isso signifique uma real melhoria das condições de vida de sua grande maioria (Martine & Camargo, 1984; Ramos et alii, 1987; Saad & Camargo, 1989).

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ANALISE

Mortalidade Feminina no Brasil:Sexo Frágil ou Sexo Forte?*

Estela Maria Leão de Aquino**Greice Maria Menezes***

Marúcia B. E. Amoedo****Letícia C. C. Nobre*****

*Trabalho apresentado no ICongresso Brasileiro de Epide-miologia. Campinas, Abrasco/U-nicamp, 1990.** Doutoranda em Saúde Públi-ca (DMP/UFBA); Prof. Assis-tente do Instituto de MedicinaSocial (Uerj); Coordenadora doNúcleo de Estudos Mulher eSaúde (DMP/UFBA).*** Especialista em MedicinaSocial (DMP/UFBA); Pesquisa-dora do Núcleo de Estudos Mu-lher e Saúde (DMP/UFBA).****Graduando em Medicina naFaculdade de Medicina (UFBA);Estagiária em Pesquisa no Nú-cleo de Estudos Mulher e Saúde(DMP/UFBA).*****Mestranda em Saúde Co-munitária (DMP/UFBA); Pes-quisadora do Núcleo de EstudosMulher e Saúde (DMP/UFBA).

A população feminina brasileira tem chegado àvelhice de maneira mais significativa que a masculina.Este fenômeno tem sido também observado em paísesindustrializados centrais onde é freqüente asobremortalidade masculina. A análise dos diferenciaispor causas específicas pode ajudar a compreender osdeterminantes do padrão brasileiro e a anteciparalgumas tendências futuras, especialmente tendo-se emconta as profundas mudanças no papel social damulher em nossa realidade. Assim, foi feito estudode mortalidade em dez capitais brasileiras, em 1985,com taxas geral e específicas por cinco principaisgrupos de causas segundo sexo e padronizadas poridade pelo método direto. Como medida dosdiferenciais, usou-se razões e diferenças entre ossexos. Os resultados revelam que o perfil regionalrelaciona-se ao padrão de urbanização eindustrialização, com os maiores diferenciais por sexonas capitais mais desenvolvidas do país. Asobremortalidade masculina explica-se basicamentepela magnitude das causas externas e das doençasdo aparelho circulatório, sendo peculiar a especialimportância das mortes violentas, que são as principaisresponsáveis pelos diferenciais por sexo. Acredita-seque a atual tendência venha a se manter, embora alongo prazo as diferenças entre os sexos possam sereduzir. De qualquer modo, o prolongamento da vida,sem adequadas condições de subsistência, não pareceestar significando exatamente uma vantagem para amulher brasileira.

INTRODUÇÃO

Apesar de ainda ser predominantemente jovem,a população brasileira tem envelhecido de modo muitorápido, sem que isso signifique uma real melhoria dascondições de vida de sua grande maioria (Martine &Camargo, 1984; Ramos et alii, 1987; Saad & Camargo,1989).

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Com provável caráter definitivo, especialmentepela irreversibilidade da esterilização do amplos con-tingentes de mulheres em idades precoces, o envelheci-mento não tem sido uniforme entre os sexos. O aumen-to da expectativa de vida ao nascer que, entre 1920e 1980, situou-se em tomo de 30 anos para ambosos sexos, foi mais significativo para as mulheres. Asdiferenças são presentes em todas as regiões do paíse, em 1980, as mulheres apresentavam vantagens sobreos homens que variavam de 5,8 anos no Nordestea 7,1 anos no Sul (A Mulher brasileira, 1986).

Essa tendência é consistente com o descrito naliteratura a respeito da ocorrência freqüente do fenô-meno de subremortalidade masculina em países indus-trializados centrais, desde o início deste século. Nessassociedades, especialmente após o controle da mortali-dade materna, os homens tenderam a morrer mais pre-cocemente que as mulheres, apresentando maiores ta-xas de mortalidade específicas por idade para a maioriadas causas de morte (Verbrugge, 1982; Wingard etalii, 1983; Wingard, 1982).

Durante muito tempo, estas diferenças foram ex-plicadas essencialmente por diferenças biológicas entreos sexos, tais como maior imunidade das mulherespara doenças infecciosas, maior proteção hormonal fe-minina para as doenças coronarianas etc (Waldron,1976). Ainda hoje, no âmbito da Epidemiologia, embo-ra a categoria sexo seja contemplada na grande maioriados estudos, esta aparece na sua dimensão estritamentebiológica e as diferenças, de um modo geral, tendema ser naturalizadas.

Assumimos como pressuposto teórico que o sexodos indivíduos é construído, socialmente, de mododiferenciado entre classes, grupos culturais e étnicos,e como tal precisa passar a ser explorado para melhorcompreensão dos fenômenos.

O presente estudo teve por objetivo identificaras principais características do padrão de mortalidadebrasileiro quanto aos deferenciais por sexo em diferen-tes grupos de idade e segundo grupos de causas especí-ficas, de modo a obter indicações relativas aos determi-nantes do padrão de envelhecimento nacional e a possí-veis tendências futuras, especialmente considerandoas profundas mudanças que vêm ocorrendo na inserçãoda mulher em nossa sociedade.

MATERIAL E MÉTODOO estudo foi realizado a partir de dados consoli-

dados pelo Ministério da Saúde sobre óbitos ocorridosem 1985 em dez capitais brasileiras. Foram construídoscoeficientes de mortalidade geral e específica por cincoprincipais grupos de causas segundo sexo, padroni-zados por idade pelo método direto (Kirkwood, 1988).

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Como medidas dos diferenciais, foram calculadasrazões de mortalidade entre os sexos, ou índices desobremortalidade masculina (ISM) por idade. Para aanálise da contribuição dos grupos de causas na sobre-mortalidade masculina, foram calculadas diferenças ab-solutas e relativas (%) entre os coeficientes específicospor sexo.

Os dados foram processados em microcomputadorPC-XT, utilizando-se o programa Lótus. Para repre-sentação gráfica, adotou-se o Harvard Graphics.

RESULTADOSEm 1985, nas dez capitais selecionadas, o grupo

de doenças do aparelho circulatório foi de longe oprincipal responsável pelos óbitos (gráficos I e II).As causas externas foram o segundo grupo mais impor-tante em pessoas do sexo masculino, exceto em Salva-dor e em Porto Alegre, onde foram ultrapassadas, res-pectivamente, pelas doenças infecciosas e parasitáriase pelas neoplasias. Em mulheres foi o câncer que apare-ceu em segundo lugar de importância, à exceção deBelém, de Fortaleza e de Salvador. Nestas capitais,as doenças infecciosas e parasitárias foram mais rele-vantes como causas de morte.

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A sobremortalidade masculina foi constante emtodas as capitais (gráfico III): os menores diferenciaisestavam no Nordeste e os maiores no Rio de Janeiro,em São Paulo e em Brasília.

Entre ps principais grupos de causas, os diferen-ciais assumiram valores extremamente altos nas causasexternas, quando o risco de morrer masculino foi detrês a mais de cinco vezes o do sexo feminino (gráficoIV). Isso fica evidente na análise da contribuição degrupos de causas definidas para sobremortalidade mas-culina. Em todas as capitais, as causas externas "expli-caram"cerca de 30 a 40% dos diferenciais, sendo oprincipal grupo, exceto em Belo Horizonte e em PortoAlegre (gráficoV). Nessas duas capitais foram supera-das em importância relativa pelas doenças do aparelhocirculatório que, embora apresentando menores dife-renciais, assumiram relevância pela sua magnitude co-mo causas de morte. Em todas as capitais, esses doisgrandes grupos de causas responderam por metadeou mais do excesso" de mortes masculinas.

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As maiores diferenças entre os sexos situaram-senas faixas de 15 a 19 anos e de 20 a 29 anos (gráficosVI a VIII). Embora, de um modo geral, identifique-seuma curva unimodal com o pico localizado em tornodessas faixas etárias, grosseiramente podem ser obser-vados três padrões.

Um primeiro tipo, onde a curva apresenta umpico bem acentuado de 20 a 29 anos (em São Paulo,de 15 a 19 anos), quando o risco de morrer entreos homens é de três a cinco vezes maior que o dasmulheres (gráficos VI). Este padrão foi observado emSão Paulo, em Recife, em Porto Alegre, em Fortalezae em Brasília. Um segundo padrão, semelhante aoprimeiro, apresenta um platô entre 15 e 29 anos, ondeencontram-se riscos de morrer em torno de três vezesmaiores nos homens (gráfico VII). Este padrão foiobservado no Rio de Janeiro e em Curitiba. Por último,Salvador, Belo Horizonte e, especialmente, Belémapresentam curva mais suave, embora em adultos jo-vens a sobremortalidade ainda seja da ordem de 2a 2,5 (gráfico VIII). De qualquer forma, nos três con-

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juntos os diferenciais são praticamente nulos em crian-ças e tendem a se reduzir nas idades mais altas, chegan-do quase a desaparecer entre os mais velhos.

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DISCUSSÃO

O padrão de mortalidade observado, com predo-mínio acentuado das doenças do aparelho circulatóriocomo causas de morte em ambos os sexos, vem seacentuando desde a década de 60, quando este gruposuperou as doenças infecciosas e parasitárias e passoua ser o principal responsável pelos óbitos do país (Mor-talidade nas capitais, 1984). Esta tendência ao aumen-to da relevância de doenças crônico-degenerativas edas violências como causas de morte vem se aprofun-dando em todo o país. Contudo, nunca é demais ressal-tar a coexistência de mortes por doenças do atrasoe da modernidade, especialmente no Norte e no No-deste. As doenças infecto-parasitárias como causas demorte não têm qualquer expressão em países industria-lizados centrais desde o início deste século (Lewis& Lewis, 1977; Verbrugge, 1980).

A constatação da existência dos maiores diferen-ciais por sexo nas capitais mais desenvolvidas é compa-tível com a tendência história de aumento da sobremor-talidade masculina concomitante ao processo de urba-nização e industrialização do país. Também é consis-tente com a literatura, onde se observam maiores índi-ces de sobremortalidade masculina nos países desen-

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volvidos que nos subdesenvolvidos (Wingard, 1984),Nestes últimos, os diferenciais são mais variados, sen-do mencionado o exemplo da Índia, onde há um padrãoinverso com vantagem de três anos para os homensna expectativa de vida ao nascer.

A contribuição de causas como as doenças cardio-vasculares e de causas externas para os diferenciaispor sexo é também descrita em outros estudos. Oque é peculiar à realidade brasileira diz respeito àenorme contribuição das causas violentas para os dife-renciais por sexo, não apenas pelo elevadíssimo riscomasculino de morrer por estas causas, mas tambémpela grande magnitude que estas assumem no Brasil.Embora sejam relatadas variações na magnitude dosdiferenciais entre os sexos na mortalidade por doençascardiovasculares (Waldron, 1976), estudos norte-ame-ricanos (Nathanson, 1977; Wingard, 1984; Waldron,1976), apontam este grupo de doenças (especialmenteas do coração) como as principais responsáveis pelo"excesso" de mortes masculinas. Os neoplasmas, queas seguiriam em ordem de importância, não têm grandeexpressão em nossa realidade como contribuintes paraos diferenciais, provavelmente pela relevância de neo-plasias como as do colo uterino, sob controle em paísesindustrializados centrais, que ocasionam altas taxasde mortalidade femininas (Faerstein, Aquino & Ribei-ro, 1989) e, conseqüentemente, diminuem as diferen-ças entre os sexos.

Os padrões etários de curva unimodal com picoem idades jovens são bastante semelhantes aos obser-vados em países do sul e do leste europeu (Lopez,s.d.). Certamente a importância inquestionável dascausas violentas de morte vai explicar a ocorrênciados maiores diferenciais em torno dos 20 anos. Empaíses europeus, nos EUA e no Canadá, é relatadaa existência de um segundo pico em torno dos 60anos (Nathanson, 1977; Wingard, 1984; Lopez, s.d.),o que não ocorre nas capitais brasileiras estudadas,onde se observam valores quase nulos nos extremosdas curvas etárias.

Na literatura revista, possíveis explicações paraos diferenciais de mortalidade entre os sexos têm en-volvido fatores biológicos, sociais e comportamentais.

A favor dos primeiros falariam as evidências demaiores taxas de mortalidade entre fetos do sexo mas-culino e entre meninos no primeiro ano de vida, oque seria também observado em outras espécies. Osestudos, porém, apresentam resultados contraditórios,tanto em relação ao papel de fatores genéticos quantoao de hormônios sexuais (Waldron, 1976).

Dessa forma, ainda que nenhum autor exclua acontribuição dos fatores biológicos, os trabalhos comênfase nos fatores sociais e comportamentais vêm pro-

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gressivamente ganhando mais espaço. A grande maio-ria, utilizando teorias de estilo de vida, faz inferênciassobre determinantes das diferenças na mortalidade en-tre os sexos, a partir da análise da contribuição decausas específicas de morte.

Os principais determinantes da sobremortalidademasculina apontados dizem respeito às diferenças noconsumo de álcool e de tabaco, fatores de risco paraos neoplasmas e para as doenças cardiovasculares; àsdiferenças na exposição a fatores de riscos do trabalho;a hábitos masculinos mais perigosos, como a direçãode veículos e o uso de armas, e a comportamentosmasculinos mais agressivos e mais competitivos, con-tribuindo para as violências e para um maior stresscotidiano.

Mudanças no papel das mulheres em diferentessociedades ocidentais têm despertado o interesse sobreo impacto possível nos diferenciais de adoecimentoe de morte entre os sexos. Ao que parece, as chamadas"vantagens" femininas quanto ao tempo de sobrevidapoderiam estar se reduzindo em decorrência dessasmudanças. Nos EUA, por exemplo, a partir da décadade 70, observam-se três tipos de modificações de ten-dências (Verbrugge, 1980):— para muitas causas, como as doenças cerebrovas-culares, os acidentes de veículos e outros acidentes,a arteriosclerose e as anomalias congênitas, houve umaestabilização nos diferenciais;— para outras causas, como as doenças pulmonares(enfisema, asma, bronquite), os homicídios, a úlcerapéptica e as doenças da tenra infância, os diferenciaisdiminuíram com "erosão da vantagem feminina";— para todas as demais causas principais, como asdoenças do coração, os neoplasmas, a cirrose do fíga-do, os suicídios, as pneumonias, as nefrites e as nefro-ses, o incremento observado tem sido mais lento doque em anos anteriores.

No Brasil, o papel da mulher tem mudado muito,especialmente nas últimas duas décadas. Isso se ex-pressa na crescente participação feminina como forçade trabalho e como chefe de família, nas mudançasde comportamento quanto ao controle da reproduçãoe na maior organização política, através de movimentosespecíficos de mulheres.

O impacto dessas mudanças sobre a saúde aindaé pouco conhecido. E possível que as especificidadesdo processo em nossa realidade estejam conformandoum padrão peculiar, com características bastante diver-sas das observadas em outras sociedades.

Em primeiro lugar, a inserção profissional, embo-ra em velocidade acentuada, ainda se dá, de modoprivilegiado, em ocupações tipicamente "femininas"(Medici, 1989), expondo as mulheres a fatores de risco

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diferenciados dos experimentados pelos homens. Por-tanto, a entrada no mercado de trabalho não implicaria,necessariamente, uma equiparação de homens e mulhe-res quanto aos problemas de saúde relacionados aotrabalho. Por outro lado, essa crescente inserção pro-fissional não tem sido acompanhada da criação de me-canismos sociais, seja através de equipamentos coleti-vos como creches, lavanderias etc, seja pela mudançanas relações entre os sexos (extremamente marcadaspelo patriarcalismo) que as liberem de suas tarefastradicionais nos cuidados da casa e dos filhos. Comoresultado, é possível supor que os efeitos do trabalhosobre a saúde da mulher brasileira não se reproduzamnecessariamente com valor benéfico como o observadoem países industrializados centrais (Nathanson, 1975;Sorensen & Verbrugge, 1987; Waldron, 1983; Win-gard, 1984).

A redução acentuada do número de filhos, emtodas as regiões do país, tem sido atribuída, entreoutras causas, à necessidade efetiva de controle daprole, principalmente com a progressiva incorporaçãoda mulher ao mercado de trabalho. Essa queda dafecundidade tem se dado não apenas pela esterilizaçãode amplos contingentes de mulheres, mas também pelautilização maciça e indiscriminada de anticoncepcio-nais orais, que são fatores de risco para neoplasiase para doenças cardiovasculares. Pressupõe-se inclu-sive que essa utilização abusiva, sem orientação médi-ca, seja responsável, ao menos em parte, pelas altastaxas de mortalidade por doenças cerebrovasculares(Health policy, 1989), que corresponderam a 35,5%das mortes por aquele grupo de causas ocorridas, em1985, em mulheres adultas (Aquino, 1989).

As mudanças de comportamento têm envolvidoa incorporação de hábitos, como o de fumar, comconhecidas implicações para a saúde. O tabagismo estáassociado a doenças respiratórias (bronquite, asma eenfisema) e a doenças cardiovasculares; é sabidamenteo mais importante fator de risco isolado e removívelna prevenção do câncer, implicando o aumento derisco para neoplasias de pulmão, boca e faringe, larin-ge, esôfago, bexiga, rim e pâncreas (Faerstein, Aquino& Ribeiro, 1989).

Com o progressivo controle do consumo de cigar-ros em países do primeiro mundo, as indústrias dofumo deslocaram seus investimentos para os paísesperiféricos, com grande ofensiva publicitária. A exem-plo do que ocorrera em sociedades desenvolvidas(Ernster, 1985), essa publicidade envolveu estratégiasdirigidas ao público feminino, associando fumo e"emancipação", e o lançamento de "marcas femini-nas". Como resultado, a prevalência de fumantes que,após décadas de rápido aumento, vem diminuindo,

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mantém-se entretanto crescente entre mulheres jovens,principalmente as mais pobres e menos escolarizadas(Health policy, 1989).

Em relação ao padrão alimentar, embora as infor-mações no país sejam bastante desatualizadas, presu-me-se que, ao menos entre as camadas mais pobres,que constituem á grande maioria da população, a dietacontinue deficiente em proteínas, vitaminas e fibras.Por outro lado, a prevalência de obesidade, maior entreos pobres, é particularmente alta entre mulheres combaixa escolaridade (Health policy, 1989). Este padrãoteria implicações no aumento do risco para doençascardiovasculares e para neoplasias (como as de cólone de mama, por exemplo, especialmente relevante napopulação feminina).

A prática de exercícios, apontada como fator deproteção para problemas cardíacos, em recente inqué-rito nacional, revelou-se mais freqüente entre homens(30%) do que entre mulheres (18%), estando direta-mente relacionada ao nível de escolaridade (Healthpolicy, 1989).

Os reflexos da combinação desses fenômenos so-bre a saúde são ainda imprevisíveis, mais poder-se-iaespecular com algumas hipóteses.

Os diferenciais de mortalidade por doenças crôni-co-degenerativas devem se manter ou mesmo aumentarem um primeiro momento. Estudos sobre a evoluçãodas doenças do aparelho circulatório em São Paulodescrevem uma tendência ao aumento da mortalidadeaté meados da década de 70 (Laurenti & Fonseca,1977). A partir de 1976, começa a haver um declínioem ambos os sexos, principalmente das doenças isquê-micas do coração, cujo decréscimo é maior nas mulhe-res (Lolio et alii, 1986; Lolio & Laurenti, 1986a).A queda da mortalidade por doenças cerebrovascu-lares, entretanto, é maior entre os homens (Lolio &Laurenti, 1986b).

Pode-se supor que, estando os acidentes vascula-res cerebrais e as doenças isquêmicas do coração entreas complicações mais freqüentes da hipertensão arte-rial, descrita como associada ao stress , mudanças nainserção social da mulher venham a ter impacto, amédio e longo prazos, sobre a mortalidade por doençascardiovasculares, com diminuição dos diferenciais en-tre os sexos.

A ocorrência das neoplasias, segundo grupo maisimportante na população feminina adulta, não tem sidoalvo de ações efetivas de controle, que possam reduzira alta magnitude de cânceres tipicamente femininoscomo os de colo de útero e de mama. Em contrapartida,é possível que o aumento da prevalência do fumo,mais acentuado entre as mulheres, ocasione uma eleva-ção mais expressiva das neoplasias de pulmão nesse

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sexo, levando a uma diminuição do diferencial porsexo (Faerstein, Aquino & Ribeiro, 1989). De qualquerforma, estas mudanças devem demorar a ser sentidas,devido aos longos períodos de latência das doençasem questão.

Dentro desse panorama, um elemento novo é oaparecimento da AIDS (Síndrome da ImunodeficiênciaAdquirida) que, atingindo preferencialmente homosse-xuais masculinos, em um primeiro momento pode con-tribuir para o aumento dos diferenciais. Porém, háque se considerar que, no Brasil, o elevado númerode homens com histórias de relações bissexuais, a gran-de freqüência de práticas de coito anal entre casaise o controle deficiente do sangue e derivados paratransfusões têm contribuído para a expansão da doençaalém dos clássicos grupos de risco (Health policy,1989).

De qualquer modo, o aumento da sobremorta-lidade masculina por todas as causas deve se manterno curto prazo, especialmente porque um dos princi-pais componentes para sua manutenção — o maior riscomasculino de morrer por causas externas — não deveser afetado de modo substancial pelas mudanças recen-tes no papel social da mulher. E muito possível queo acirramento das contradições sociais na conjunturarecente contribua, inclusive, para perpetuação da ten-dência ao aumento das causas violentas de morte, quetem sido identificada em estudos regionais (A Mulherbrasileira, 1986; Ortiz & Yamazaki, 1984).

Como conseqüência, o envelhecimento populacio-nal rápido, com especial "vantagem" para as mulheres,deve se manter no futuro mais imediato. Cabe indagarem que condições esse processo tem se dado e o quesignifica o prolongamento da vida em nossa realidade?

A violência que se expressa através das estatísti-cas de mortalidade, e de modo inegável atinge priorita-riamente a população masculina, corresponde à facevisível de uma realidade, onde as desigualdades assu-mem formas menos evidentes, mas nem por isso menosperversas. O "lado submerso do iceberg" esconde ummundo de violências não-declaradas, que envolvem asdiscriminações de raça, o abandono de menores, afome de milhões de trabalhadores, e particularmentea violência cotidiana contra mulheres no espaço invio-lável do lar. Esta violência, que raramente ganha aspáginas dos jornais e tende a ser tratada como"na-tural", decorre de relações de gênero assimétrico, ondea mulher ocupa posição subalterna. Ganha alguma visi-bilidade apenas quando são criados mecanismos sociaiscomo as delegacias de mulheres e outros organismosde apoio às vítimas. As agressões que chegam a serdenunciadas, embora em sua maioria não resultem emmortes, nem por isso causam pouco sofrimento: são

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praticadas no espaço domiciliar, por maridos, compa-nheiros e outros familiares (Goldenberg, Medrado &Pasternostro, 1989).

Uma outra forma de violência cotidiana diz respei-to à situação da pessoa idosa no Brasil, A mulhervelha, sobrevivendo mais, está mais exposta à viuvez,e menos instrumentalizada que o homem para comple-mentar aposentadorias e pensões miseráveis. Em umasociedade marcada pelas desigualdades, o maior enve-lhecimento feminino tem significado, portanto, a com-binação de pobreza, doença e solidão.

A perspectiva de agravamento das precárias con-dições de vida pela crise econômica e pelo arrochosalarial certamente torna o horizonte ainda mais som-brio. Desse modo, não é possível supor que, em nossaperversa realidade, o prolongamento da vida, sem ade-quadas condições de subsistência, esteja significandoexatamente uma vantagem.

Population ageing in Brazil has been more rapid andmore intense among women. This phenomenon is welldescribed in developed countries where mortality ratesare higher for men than women. In this regard, theanalysis of mortality patterns by cause contributes toelucidate the determinant factors of the presentsituation in Brazil and provides indications of somefuture trends in female mortality. This is especiallyimportant due to the fact that in Brazil the socialrole of women has experienced great changes. Thisstudy presents data on mortality from ten capital citiesin 1985, showing age-standardized overall andcause-specific mortality rates for five of the maingroups of causes by sex. Ratios and differences effectestimators were used. The results revealed thatregional patterns are associated with the urban andindustrial processes with greater differences by sexin more developed regions. External causes andcardiovascular diseases are the main factorsresponsible for higher mortality among men withspecial emphasis on violent deaths. It is inferred thatthe present trend will be maintained, though it ispossible that mortality differences by sex coulddecrease in the near future. The authors discuss thatlonger survival among women in Brazil does not revealbetter life conditions.

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