ANÁLISE RETÓRICA DO FILME TEMPO DE MATAR
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Retórica e Verdade no Filme Tempo de Matar
Autores: Vasco Horta, Golçalo Costa e Luís Medeiros
Data de Publicação: 25/02/2009
IntroduçãoO trabalho presente nasce da ideia de aplicar os conhecimentos
adquiridos na disciplina de filosofia acerca de retórica e verdade no contexto do
filme Tempo de Matar de Joel Schumacher. Neste sentido, realizamos um
conjunto de dissertações acerca dos dois usos da retórica, a persuasão e
manipulação, nos discursos dos advogados de defesa e acusação. Entendendo-
se por persuasão um bom uso da retórica, um uso moral, com intenções
boas/razoáveis; e por manipulação um mau uso da retórica, oportunista, imoral,
prejudicial para o próximo, vamos demonstrar de que forma é que a persuasão
foi utilizada no discurso do advogado de defesa, Jake Brigance e a manipulação
no discurso do advogado de acusação, Rufus Buckley.
No âmbito da verdade, dissertamos acerca de uma questão proposta,
referindo-se à melhor teoria a aplicar no julgamento: a teoria sofista, platónica
ou aristotélica. Nesta reflexão visamos encontrar, não só, uma solução para o
julgamento de Carl Lee, como também, um sistema judicial, por nós considerado
ideal, que embora possa parecer, de certa forma utópico e inaplicável, nos
parece o mais justo.
Em suma, neste trabalho propomo-nos realizar uma reflexão filosófica
que, no seu âmago, explora os domínios da gnosiologia e da justiça, tendo em
vista encontrar uma posição realista e razoável na sociedade ocidental do século
XXI.
Conceito de Retórica e os seus dois usosA retórica nasceu de uma necessidade prática dos cidadãos resolverem
questões sociais e políticas com que se debatiam. Coube aos sofistas a defesa
dessa arte da sedução que contempla a diversidade e pluralidade de opiniões,
levantando questões relativamente a valores estabelecidos. É, pois, a retórica
um meio poderoso de expor crenças e procurar modificar opiniões recorrendo à
linguagem argumentativa. Contudo a mesma está dependente de quem a usa e,
assim, pode ser bem ou mal utilizada. A retórica em si não tem um valor positivo
nem negativo, mas, por outro lado, as intenções e contextos em que o rector1 a
utiliza para seu usufruto, como também, o tipo de uso que dá, são susceptíveis
de serem avaliados. Quer isto dizer que, a retórica não é perigosa ou reprovável
na sua essência, mas nas mãos de um manipulador2.
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Se o retor utiliza a argumentação visando operar uma mudança nos
pensamentos do interlocutor, propondo-se a modificar as suas crenças,
pensamentos, ou linhas de conduta, mas colocando o ouvinte numa posição de
participante dando a conhecer o assunto da argumentação, as soluções
disponíveis e as consequências inerentes a cada opção, sem desqualificar o
interlocutor, então abre-se o caminho para um bom uso desta técnica. Persuadir
implica um profundo respeito pela capacidade do outro de avaliar e ser o centro
das suas próprias decisões, devendo este, portanto ter capacidades cognitivas
propensas à deliberação racional.
Em contrapartida, se o retor não demonstra respeito pelo auditório,
privilegiando interesses pessoais e recorrendo a estratégias emocionais para
conduzir e manipular a opinião do receptor, colocando-o numa posição desigual
e, consequentemente, retirando-lhe a possibilidade de uma leitura crítica da
argumentação, está a recorrer à manipulação, onde o domínio sobre o outro se
impõe, transformando a argumentação numa atividade monológica. É possível
afirmar então, que todo o discurso manipulador decorre não só de uma intenção
de enganar o interlocutor mas de o levar a aderir acriticamente à posição do
orador. É a retórica negra.
De fato, a nosso ver, o discurso do advogado de defesa foi persuasivo e
não manipulador, uma vez que as suas intenções iam ao encontro da defesa de
Carl Lee Hailey, um homem que apenas fez a justiça que os tribunais
representativos do Estado do Mississipi não fizeram, nem fariam. Sendo tal
razoavelmente aceite na sociedade norte-americana dos anos 80-90. Por outro
lado, o advogado de acusação utiliza um discurso manipulador, pois a sua
intenção não era fazer justiça, mas sim, obter uma promoção na carreira.
A argumentação persuasiva presente no discurso do advogado de defesa
Retomando o conceito anterior de persuasão, esta explora três elementos
fundamentais: Ethos, Phatos, Logos. Estes constituem a chave para uma retórica
eficaz e, ao mesmo tempo, honesta, sem deturpar os acontecimentos, sem violar
a individualidade racional de cada um, isto é, a capacidade do locutor analisar os
argumentos, perante um painel completo de prós e contras.
O Ethos, no contexto da retórica refere-se ao caráter do orador. Este deve
mostrar-se benevolente, honesto e de confiança, conquistando mais facilmente o
seu interlocutor. O orador necessita, pois, de dar boa impressão, aparentando
uma inteligência superior e capacidade de alcançar soluções de excelência. O
seu discurso deve mostrar experiência e segurança no assunto em causa.
O Pathos centra-se no auditório. Refere-se a sentimentos e paixões
provocadas no interlocutor, variando de pessoa para pessoa, conforme viva
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estados de tristeza ou alegria, amor ou ódio, piedade ou irritação. Deste modo,
orador deve adquirir conhecimentos de psicologia e conhecer bem o seu
auditório. Note-se que, estes sentimentos são provocados propositadamente
pelo orador e por ele controlados, conduzindo o auditório às asserções
pretendidas ao longo do discurso. Quer isto dizer, que o orador, conhecendo a
psicologia do auditório, o leva por um caminho, abrindo portas em pontos
estratégicos do pensamento, rumo à certeza retórica de que as suas ideias são
as melhores.
O Logos representa o conjunto de argumentos e sua estrutura, é discurso
que o orador usufrui na defesa das suas opiniões ou posições. Decerto, a sua
exposição deve ser brilhante, surpreendente, bem estruturada, verossímil,
parecendo, ao mesmo tempo, calma, serena, clara e, principalmente,
improvisada. Neste sentido, é fulcral mostrar ritmo e não cair em rima, ter uma
boa intensidade de voz e não perder a calma. Em auxílio à linguagem oral, uma
linguagem gestual tem um efeito positivo, mostra espontaneidade.
Numa análise pormenorizada ao discurso de Jake Brigance, advogado de
defesa de Carl Lee Hailey, salientam-se alguns exemplos de persuasão no seu
sentido lato, utilizando o Ethos, o Pathos e o Logos.
Quanto ao Pathos, o advogado vai apresentar um sorriso vencedor ao
longo de todo o julgamento, não deixando sobressair indícios de fraqueza nas
situações de maior pressão. Sempre sereno, com a voz bem colocada, seguro de
si, Jake Bregance pretende mostrar-se um homem experiente, em controlo da
situação, o que confere credibilidade ao seu ponto de vista.
Já quanto ao Ethos, o protagonista do discurso procura explorar os
sentimentos de amargura e raiva em relação ao crime cometido pelos
violadores, embora este não esteja em causa no julgamento. Vejamos, por
exemplo, o momento em que Jake pergunta à mãe de um dos violadores de
Tonya, filha de Carl Lee, quantas crianças o seu filho já tinha violado antes.
Neste caso, é pretendido que o júri coloque a si próprio a questão de se não terá
sido justo matar aqueles criminosos. Repare-se também, que quando o
advogado pergunta ao xerife se os criminosos confessaram, ou quando
questiona o comissário baleado se deseja que Carl Lee seja punido é notória a
ambição de conduzir a discussão para um caminho propício à absolvição.
Por fim, o Logos, é visível na estrutura extremamente eficaz do seu
discurso, na fantástica capacidade de levar o auditório a sentir misericórdia pelo
réu. Não só, o advogado utiliza uma linguagem corrente e compreensível, como
também, gesticula energeticamente enfatizando as emoções da linguagem oral,
sabendo sempre quando falar num tom mais calmo, ou mais trágico.
O discurso final é o climax de emoções. Jake pede que todos fechem os
olhos, pedindo-lhes vejam apenas a cena dolorosa e apavorante de ser um dos
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seus filhos a ser violado. Esta cena é o supra-sumo do Pathos, o momento em a
certeza da absolvição do réu se instala no auditório.
Em suma, o advogado profere um discurso cabalmente retórico e
persuasivo. A sua naturalidade e benevolência, a sua aptidão para conduzir as
emoções do júri e o seu discurso bem construído levam-no a conseguir que o júri
tome a decisão por ele pretendida.
A argumentação manipuladora presente no discurso do advogado de acusação
Retomando a questão inicial sobre a índole da argumentação utilizada
pelo advogado de acusação, o grupo considerou como claramente manipuladora
a retórica posta em cena pela acusação. Vejamos porquê. Tomando em conta as
definições acima enunciadas desde logo é perceptível a existência de interesses
pessoais por parte do Delegado do Ministério Público escolhido para defender os
dois violadores assassinados. Atente-se que o seu êxito neste caso mediático em
particular o promoveria junto do eleitorado branco, sulista, conservador e em
maioria do condado de Canton, Mississipi. Este caso condensava em si o
confronto entre duas facções antagônicas, brancos e negros, que tentavam fazer
prevalecer os seus ideais para a sociedade. Por isto, deste logo, se exclui a tese
de um discurso retórico legítimo e isento de conotações manipuladoras.
Uma primeira prova ressalta de imediato nos primeiros contactos de
Buckley com os seus colaboradores. Prepara um esquema para levar o juiz
Noose a negar qualquer tipo de transferência de julgamento, o que levaria a que
a probabilidade do júri integrar jurados negros fosse obviamente baixa. Nesta
perspectiva o advogado de acusação colocava-se, à partida, do lado dos
vencedores deste processo. Investe noutras ações no sentido de enfraquecer a
defesa e afastá-la da sua vontade e determinação.
Para nos situarmos na forma como irá decorrer o julgamento e no tipo de
argumentação usada pela acusação, faremos uma breve passagem pela
audiência preliminar. Carl Lee, interrogado pelo juiz, declara-se inocente por
insanidade jurídica, no momento do crime. Neste contexto a acusação antecipa o
pedido de fiança pela defesa opondo-se a este, na suposição do homicídio ter
ocorrido a sangue-frio. Pede ainda a avaliação psiquiátrica do réu a ser realizada
por médicos estatais. A defesa, em contrapartida, pede a transferência para
outro local de julgamento. Finalmente, o juiz nega a fiança e reconsidera, após
argumentação da defesa, a possibilidade de aceitar um pedido de transferência.
Continuando a demonstrar as possíveis intenções duvidosas por parte da
acusação é perceptível a existência de contactos pessoais entre o advogado de
acusação e o juiz no período de duração do julgamento. Neste sentido, o
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advogado de defesa é, também chamado a casa do juiz, que o tenta demover do
processo e levá-lo a persuadir o cliente a fazer um acordo para aceitar a
possibilidade de uma pena menor.
Outro pormenor não poderá passar despercebido no âmbito das
possibilidades de interferência e obstrução à justiça. A escolha dos jurados
anunciada como sendo completamente isenta e independente de qualquer
interferência, quer da acusação quer da defesa é levada em envelope selado,
sim, mas transportada pelo colaborador de Buckley. Uma autêntica contradição.
Debrucemo-nos agora sobre o julgamento propriamente dito, centrando-
nos exclusivamente na forma como o advogado de acusação conduz o seu
interrogatório às testemunhas escolhidas. Quando alguma destas testemunhas
nas suas respostas não se cinge exclusivamente ao assassinato dos violadores
referindo o episódio da violação da menina, Buckley opõe-se à apresentação
destes testemunhos, procurando isolar a ação cometida do seu contexto,
situação esta recorrente durante todo o julgamento. Está aqui presente,
portanto, uma tentativa de ocultação de fatos ou dados essenciais para uma
avaliação justa deste caso.
Aquando do interrogatório a Dwayne Looney, comissário da polícia que
ficara gravemente incapacitado por também ter sido atingido pelos tiros de Carl
Lee, aqui, de novo, a acusação tenta boicotar as afirmações da testemunha que
poderiam ir contra os intentos da acusação.
Seguidamente a acusação recorre à Falácia do Espantalho, tentando
denegrir a defesa e deformando o seu dizer, ao fazer uso de termos pouco
técnicos e com um caráter algo injurioso. Assim, também o júri poderia ser
levado a uma falsa percepção da argumentação. Mais uma vez a acusação
mune-se de falácias para fortalecer junto dos jurados a sua perspectiva. Um
exemplo muito característico foi o usado para atacar o psiquiatra apresentado
pela defesa. Este foi acusado de ter ocultado elementos importantes do seu
cadastro pessoal que incluíam uma condenação por violação de uma menor.
Trata-se, aqui, de fato, do uso de uma Falácia ad hominem em que se tenta
invalidar argumentos apresentados, desacreditando a personalidade do
argumentador. Neste caso dá-se ainda a agravante de os argumentos
apresentados pela acusação terem sido incompletos, ocultando esta o fato de o
psiquiatra em questão ter uma pequena diferença de idade em relação à jovem,
prestes a atingir a maioridade, e de ter posteriormente vindo a contrair
matrimônio com ela, sua atual mulher. Na técnica de questionamento a
acusação mostra, ainda, uma estratégia ardilosa, dando ao Psiquiatra duas
únicas possibilidades de resposta, sim ou não, impedindo-o de apresentar
qualquer tipo de justificação para a acusação que sobre ele era lançada. Tal
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situação constitui a falácia da falsa dicotomia que leva o auditório a crer que
numa dada realidade existem apenas dois caminhos contrários.
Ao interrogar o réu, a acusação recorre a uma estratégia de empolamento
emocional, o Pathos, pressionando Carl Lee, de uma forma profundamente
violenta, para que este, inadvertidamente, se auto-incrimine. Deste modo,
consegue criar em todo o júri e na própria audiência um clima de acusação e de
descontrolo emocional.
Nas alegações finais da acusação dirigidas em particular ao júri, Buckley
incita-o à condenação do réu evidenciando unicamente o acto, isolando-o, de
novo, dos motivos que estiveram na sua origem, isto é, a violação e tentativa de
assassinato da filha de dez anos de idade. Nas invectivas finais que profere
(gritando “culpado, culpado, culpado!”), exerce sobre o júri uma forte pressão
psicológica que “incendeia” todo o tribunal.
Em jeito de conclusão, após percorrer toda a retórica utilizada pela
acusação neste julgamento, verificamos como está impregnada desde o início de
más intenções para as quais concorrem o recurso sistemático a falácias diversas,
e outras formas de domínio sobre a capacidade do auditório discernir em
liberdade e na posse de maior número de factos. Estamos pois perante a
antítese da função da justiça face à Sociedade.
Considera que a melhor forma de julgar a ação do réu é segundo
o preceito sofista ou segundo o de Aristóteles ou de Platão?
Dissertação acerca da questão inicial com aplicação prática no contexto do filme em estudo
Segundo a ideia, advogada por Immanuel Kant, o homem, como ser dual,
em que corpo e razão são objetos separados, não é capaz de percepcionar a
verdade no sentido absoluto, se é que tal existe, uma vez que, como ser
empírico, apenas toma consciência de uma interpretação singular da verdade. A
busca incessante da verdade pura e essencial é um trabalho impossível de
terminar.
Sendo a tese kantiana defendida pelo grupo, considera-se que a teoria do
conhecimento de Platão, que perspectiva a verdade como algo absoluto e cuja
busca deve ser empreendida, não é a melhor estratégia a utilizar em qualquer
atividade de cidadania, que vise uma sociedade justa, como por exemplo um
julgamento. Até porque, por vezes, a verdade pode não ser a melhor escolha
para os indivíduos.
Por outro lado, os Sofistas negam a existência de uma verdade pura,
exterior ao homem. Para os sofistas a verdade é apenas um de muitos pontos de
vista acerca de algo, que por ter sido defendido pelo melhor e mais convincente
discurso retórico, passa a possuir esse título. Por outras palavras, o indivíduo
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defende uma posição, tenta convencer o auditório e se tal acontecer, se o seu
ponto de vista for o mais convincente, este torna-se a verdade. É, pois, evidente
nesta teoria a inferiorização da verdade, tão venerada ao longo da história das
nossas sociedades. – O grupo vê também a posição sofista como desadequada,
uma vez que não há reflexão coletiva, racional e sincera acerca dos pontos de
vista a pôr em prática.
Tal como os Sofistas, Aristóteles refuta a existência de uma verdade
absoluta no domínio do homem3, antes prefere um diálogo entre os sujeitos, no
qual se procura uma verdade consensual. Quer isto dizer, que os indivíduos
analisam racionalmente todos os pontos de vista possíveis e, através do diálogo,
vão refutando um a um, escolhendo aquele que consideram o melhor. É de
notar, que os participantes no diálogo não se posicionam, até observar
coletivamente e com rigor todos os pontos de vista.
Embora seja representativa, a Democracia é uma aplicação da teoria
gnoseológica de Aristóteles, dado que um grupo de indivíduos, a população de
um estado livre, analisa todos os pontos de vista, os programas eleitorais dos
partidos, e elege o representante daquele que lhe parecer melhor. O diálogo
está presente na atividade parlamentar, em que os deputados, representantes
da população, aprovam políticas de ação através da dialética. Neste sentido, a
teoria de Aristóteles parece-nos ser a mais proporcional a uma sociedade justa,
em que todos os indivíduos participam e se age para o bem comum.
Foi com o intuito de as aplicar no contexto do filme em exame, que
apresentamos as três teorias do conhecimento e nomeamos a aristotélica com
preferível.
Comecemos por mostrar as consequências nefastas derivadas da
aplicação das teses platônica e sofista:
A teoria platônica do conhecimento tem uma falha notória na sua
aplicação prática: a busca infinita e interminável da verdade implica só agir
quando da descoberta da verdade, e uma vez que esta é, a nosso ver, impossível
de alcançar em absoluto, a não decisão, a não ação é a única opção do defensor
desta teoria.
Neste sentido, num tribunal, nem o juiz, nem o júri, nem os advogados,
nem qualquer autoridade competente e digna de decisão seriam capazes de
decidir a sentença do réu, pois esta teria de ser ditada de acordo com a verdade.
Este cenário seria, de fato, um entrave para o funcionamento da sociedade e
propício à instalação da anarquia.
Já a doutrina sofista, em vigor nos tribunais dos EUA, local onde se passa
o filme, permite aos advogados convencer um júri a deixar impune o criminoso
mais perigoso e imoral, através de um discurso retórico, em que as falácias, o
sentimentalismo, a ausência de reflexão racional são instrumentos legítimos.
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Deste modo, a Constituição, documento patente das máximas unanimemente
aceites pela sociedade, torna-se um argumento inferior e inválido. Quer isto
dizer, que se dá mais poder aos advogados, e aos seus discursos do que à Lei do
país.
Vejamos agora a aplicação por nós proposta da teoria de Aristóteles,
tomando como cenário os Estados Unidos da América:
A Constituição do país foi fruto do diálogo entre os fundadores da
Democracia nos EUA e tem sido ao longo dos anos aperfeiçoada e adaptada aos
contextos nacionais contemporâneos e aos valores da sociedade atual. Este
documento é, então, o resultado do diálogo e dos pontos de vista consensuais do
povo norte-americano, pois a população elege os seus representantes e estes
dialogam no Congresso dos EUA e põem em prática a vontade do povo, a justiça
do povo.
Com efeito, os tribunais deveriam juntar todas as provas possíveis e no
caso de serem conclusivas seguir o livro das regras do povo e aplicar a sentença
correspondente.
No entanto, se não existirem provas com a qualidade e quantidade
necessárias, a reunião de um júri representativo, com todos os dados clarificados
e à sua disposição, sem os discursos persuasivos e até manipuladores dos
advogados, é o procedimento certo. Esse júri deveria então fazer uma eleição
interna, proferindo por unanimidade ou por maioria uma sentença, sendo um
conselho de juízes a decidir a condenação a aplicar.
Deste modo, Carl Lee Hailey teria de ser condenado a uma pena de
prisão4 pelo homicídio que cometeu e os homens que matou deveriam ter sido
logo condenados pela violação da sua filha, como também pelos crimes
anteriores. E uma vez que estes homens fossem condenados, Carl Lee não os
teria morto5.
Porém, nem Carl Lee, nem os outros dois homens foram condenados pela
justiça. Atente-se que, nos anos 80-90, o estado do Mississipi tinha uma
população majoritariamente branca e racista, a ocupar todos os cargos de poder.
Portanto, os júris eram majoritariamente compostos por brancos para respeitar a
representação proporcional à população do estado. Não é de admirar que o júri
estadual que julga os dois violadores por crimes de assassínio de crianças negras
os tenha deixado sair em liberdade. Efetivamente, o assassínio daqueles
homens, por parte de Carl Lee, foi uma resposta aos crimes anteriores6. Carl Lee
supôs que não acontecesse nada aos criminosos à semelhança dos outros
crimes, pois se a população do estado era a mesma, o júri seria provavelmente
do mesmo gênero.
A morte daqueles dois homens foi uma forma de fazer a justiça que os
tribunais corrompidos não fizeram. Carl Lee provocou-lhes a morte, à
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semelhança do que um juiz e um tribunal representativo do país teriam feito,
pois a pena de morte é a condenação mais comum nestes casos. Portanto, o
filme leva-nos a legitimar o ato de Carl Lee Hailey, que a maioria da população
nacional teria desejado por lhe parecer justo e por constituir um grito de revolta
contra a violação da liberdade e igualdade, pilares estruturais para a existência
dos EUA como a sua população ambiciona e sempre ambicionou. Efetivamente, a
lei deve ser flexível e aberta a exceções, em que a sua aplicação seria injusta,
como o caso presente.
Enfim, em resposta à pergunta inicial, ao mote desta discussão, parece-
nos que a melhor forma de julgar o réu é segundo o preceito aristotélico. De
certa forma a lei, verdade inter-subjetiva, visa a aplicação da justiça e, deste
modo, a condenação à de Carl Lee Hailey nunca seria justa. Neste sentido, a sua
absolvição foi justa.
ConclusãoO filme em análise mostra-nos uma situação propícia a inúmeras
discussões com argumentos completamente opostos e legítimos. Avançar com
um ponto de vista defendido por todos foi um trabalho difícil, uma vez que, nos
encontramos no domínio das questões humanas. Conceitos como justiça, bem,
mal, verdade constituem ideais demasiado abstratos para definir em poucas
palavras. A filosofia manifesta-se pela liberdade de pensamento e de expressão,
em que todas as posições bem argumentadas são aceites. Portanto, a nossa
reflexão é apenas um conjunto de ideias associadas que, não se contradizendo,
formulam uma tese credível. De fato, a absolvição de Carl Lee Hailey não foi
autenticamente justa ou injusta, foi antes um ato razoável, num espaço, num
tempo e numa sociedade.
BibliografiaSOUSA, Américo de, A Persuasão, Estratégias para uma comunicação
influente, tese de mestrado em Ciências da Comunicação pela Universidade da
Beira Interior (consultado em http://www.bocc.ubi.pt/pag/sousa-americo-
persuasao-0.html )
ABRUNHOSA, Maria Antónia, LEITÃO, Miguel; Um outro olhar sobre o
Mundo, Edições Asa, 1ªEdição, 2008.
PAIVA, Marta, TAVARES, Orlanda, BORGES, José Ferreira; Contextos,
Porto Editora, Porto, 2007.
MORA, José Ferrater, Dicionário de Filosofia, Publicações Dom Quixote,
Lisboa, 1991.
NOTAS
1. Entende-se por retor, um orador/locutor que utiliza a retórica para se dirigir ao
seu interlocutor
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2. O descrédito da retórica como objeto independente é advogado por Américo de
Sousa em A persuasão, Estratégias para uma comunicação influente (ver
http://www.bocc.ubi.pt/pag/sousa-americo-persuasao-0.html)
3. Aristóteles considera existirem verdades absolutas no domínio da natureza,
recusando, por outro lado, a sua existência no domínio do homem.
4. Não concordamos com a aplicação da pena de morte
5. Ao ver o filme, fica claro que Carl Lee mata os dois violadores com o intuito de
fazer justiça, apenas porque os órgãos responsáveis não o fazem.
6. No filme, Carl Lee confessa ao seu amigo e advogado Jack Brigance que a
morte destes homens é também forma de fazer justiça pelas mortes das outras crianças.
Texto disponível em:
<http://www.notapositiva.com/pt/trbestbs/filosofia/11retoreverd.htm>
Acesso em: 28 mar, 2009.
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