Análise - O Mulato

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O Mulato Aluísio Azevedo publicou O Mulato, obra inaugural do Realismo/Naturalismo no país, em 1881 – mesmo ano em que Machado de Assis inaugurava o Realismo nas letras brasileiras com Memórias Póstumas de Brás Cubas. Em seu segundo romance, o escritor maranhense faz uma impiedosa crítica social a partir da sátira de personagens típicas de São Luís, capital da então Província do Maranhão. Os comerciantes grosseiros, as senhoras de escravos sádicas, as velhas beatas e fofoqueiras e o padre sedutor, maquiavélico e assassino são alguns exemplos de uma sociedade apodrecida e racista. Ao inspirar-se em pessoas de São Luís que, de fato, conhecia, Azevedo despertou a ira da sociedade maranhense e, embora louvado por críticos do Rio de Janeiro, teve de sair da sua cidade natal temendo maiores represálias. No anticlericalismo evidente da obra, há ecos de O Crime do Padre Amaro (1875), de Eça de Queirós, até então o maior expoente do Naturalismo em Língua Portuguesa. Mesmo assim, a obra ainda apresenta alguns resíduos românticos. Na reta final da campanha abolicionista, Aluísio Azevedo idealiza a figura do mulato Raimundo, que pouco retém, na pele, as suas origens negras e é “moralmente impecável”. Além disso, a trama central do romance repete o estereótipo romântico do amor que luta contra o preconceito e as proibições familiares. 1. O Realismo O Realismo significou a aparição de uma série de temas novos, mas, sobretudo, uma maneira diferente de entender a Literatura. O subjetivismo romântico foi substituído pela descrição da realidade externa. O escritor realista desejava retratar a realidade tal como era, sem deixar de lado nenhum aspecto, por mais desagradável que fosse. A base do romance realista é

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O Mulato

Aluísio Azevedo publicou O Mulato, obra inaugural do Realismo/Naturalismo no país, em 1881 – mesmo ano em que Machado de Assis inaugurava o Realismo nas letras brasileiras com Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Em seu segundo romance, o escritor maranhense faz uma impiedosa crítica social a partir da sátira de personagens típicas de São Luís, capital da então Província do Maranhão. Os comerciantes grosseiros, as senhoras de escravos sádicas, as velhas beatas e fofoqueiras e o padre sedutor, maquiavélico e assassino são alguns exemplos de uma sociedade apodrecida e racista. Ao inspirar-se em pessoas de São Luís que, de fato, conhecia, Azevedo despertou a ira da sociedade maranhense e, embora louvado por críticos do Rio de Janeiro, teve de sair da sua cidade natal temendo maiores represálias. No anticlericalismo evidente da obra, há ecos de O Crime do Padre Amaro (1875), de Eça de Queirós, até então o maior expoente do Naturalismo em Língua Portuguesa. Mesmo assim, a obra ainda apresenta alguns resíduos românticos.

Na reta final da campanha abolicionista, Aluísio Azevedo idealiza a figura do mulato Raimundo, que pouco retém, na pele, as suas origens negras e é “moralmente impecável”. Além disso, a trama central do romance repete o estereótipo romântico do amor que luta contra o preconceito e as proibições familiares.

1. O Realismo

O Realismo significou a aparição de uma série de temas novos, mas, sobretudo, uma maneira diferente de entender a Literatura.

O subjetivismo romântico foi substituído pela descrição da realidade externa. O escritor realista desejava retratar a realidade tal como era, sem deixar de lado nenhum aspecto, por mais desagradável que fosse. A base do romance realista é a relação entre o indivíduo e a sociedade. Por meio das personagens, abordavam-se conflitos sociais: entre a burguesia e o proletariado, entre a sociedade urbana e a sociedade rural, entre a ideologia conservadora e a liberal e progressista. As personagens eram estudadas em detalhe.

1a. O Realismo/NaturalismoO Realismo/Naturalismo apareceu por volta de 1870 como uma

derivação do Realismo. Recebeu profunda influência de algumas das teorias e doutrinas que estavam no auge naquele momento, sobretudo do materialismo e do determinismo. O Naturalismo considerava a vida do homem resultado de fatores externos (raça, ambiente familiar, classe social etc.). Influenciado pelas ciências experimentais, o escritor naturalista tentava demonstrar, com rigor científico, que o comportamento humano

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estava sujeito a leis semelhantes às que regiam os fenômenos físicos. Se o Realismo pretendia ser objetivo e imitar a realidade, o Naturalismo desejava fazer uma análise histórica, social e psicológica da realidade, um estudo profundo a partir de uma ampla documentação prévia.

1b. Registro Da RealidadeO Realismo/Naturalismo, cujo marco inicial no Brasil é O Mulato, era

cientificista e determinista. Considerava que as ações humanas eram produtos de leis naturais: do meio, das características hereditárias e do momento histórico. O Naturalismo, por sua vez, buscava compor um registro implacável da realidade, incluindo seus aspectos repugnantes e grotescos.

Por meio da representação literária, os romances naturalistas procuravam demonstrar teses extraídas de teorias científicas.

2. Meio Social

O romance O Mulato abre-se com a descrição nada elogiosa da cidade de São Luís do Maranhão:

“Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras escaldavam; as vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes; as paredes tinham reverberações de prata polida; as folhas das árvores nem se mexiam; as carroças de água passavam ruidosamente a todo o instante, abalando os prédios; e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçadas, invadiam sem cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos não se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado, adormecido; só os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho.”

É nessa atmosfera abafada, do ponto de vista tanto climático quanto do convívio social, que as personagens são apresentadas. Até os cães se envolvem no ambiente de letargia preguiçosa: “Os cães, estendidos pelas calçadas, tinham uivos que pareciam gemidos humanos, movimentos irascíveis, mordiam o ar querendo morder os mosquitos”. O mau cheiro domina o ambiente: “Às esquinas, nas quitandas vazias, fermentava um cheiro acre de sabão da terra e aguardente”. A grosseria do ambiente envolve as ações das personagens: “O quitandeiro, assentado sobre o balcão, cochilava a sua preguiça morrinhenta, acariciando o seu imenso e espalmado pé descalço [...] as peixeiras, quase todas negras, muito gordas, o tabuleiro na cabeça, rebolando os grossos quadris trêmulos e as tetas opulentas”.

Os cães “tinham uivos que pareciam gemidos humanos”, as peixeiras, animalizadas, apresentavam “tetas opulentas”. Homens e animais misturavam-se, portanto, no universo bestializado e asfixiante de São Luís do Maranhão.

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3. A Casa De Manuel Pescada

Em seguida, o narrador apresenta a casa de Manuel Pescada e sua filha Ana Rosa, leitora ávida de romances, como Emma Bovary de Madame Bovary, de Flaubert, ou a Luísa de O Primo Basílio, de Eça de Queirós, que Manuel Pescada quer fazer casar com seu empregado, o caixeiro Luís Dias, rapaz promissor no comércio, mas que é assim descrito:

“O Dias, que completava o pessoal da casa de Manuel Pescada, era um tipo fechado como um ovo, um ovo choco que mal denuncia na casca a podridão interior. Todavia, nas cores biliosas do rosto, no desprezo do próprio corpo, na taciturnidade paciente daquela exagerada economia, adivinhava-se-lhe uma idéia fixa, um alvo para o qual caminhava o acrobata, sem olhar dos lados, preocupado, nem que se equilibrasse sobre uma corda tesa. [...] Lama ou brasa – havia de passar por cima; havia de chegar ao alvo – enriquecer. Quanto à figura, repugnante: magro e macilento, um tanto baixo, um tanto curvado, pouca barba, testa curta e olhos fundos. O uso constante dos chinelos de trança fizera-lhe os pés monstruosos e chatos; quando ele andava, lançava-os desairosamente para os lados, como o movimento dos palmípedes nadando. Aborrecia-o o charuto, o passeio, o teatro e as reuniões em que fosse necessário despender alguma coisa; quando estava perto da gente sentia-se logo um cheiro azedo de roupas sujas.”

A descrição, um dos momentos mais claramente naturalistas do romance, não deixa dúvidas quanto ao aspecto repugnante do caixeiro. As personagens caricaturais dominam o romance.

O Realismo/Naturalismo abusa das caricaturas para ressaltar o lado apodrecido das personagens e da sociedade retratadas.

4. A Idealização Romântica

A jovem Ana Rosa sonhava com um casamento romântico, “sonhava umas criancinhas loiras, ternas, balbuciando tolices engraçadas e comovedoras, chamando-lhe ‘mama!’”. E lembrava-se sempre do conselho que lhe dera a mãe ao leito de morte: “não consintas nunca que te casem, sem que ames deveras o homem a ti destinado para marido. Não te cases no ar! Lembra-te que o casamento deve ser sempre a conseqüência de duas inclinações irresistíveis. A gente deve casar porque ama, e não ter de amar porque casou. Se fizeres o que te digo, serás feliz!”. Assim, a moça vai formando a imagem de um herói romântico que virá salvá-la da mediocridade da vida em São Luís do Maranhão.

4a. O HeróiÉ nesse ambiente que chega a São Luís o jovem advogado

Raimundo, sobrinho há muito afastado de Manuel Pescada. Sua descrição

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em tudo contrasta com a de Luís Dias. Mas ambos são personagens planas, superficiais, e servem apenas para que Aluísio Azevedo prove sua tese anti-racista:

“Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro, se não foram os grandes olhos azuis, que puxara do pai. Cabelos muito pretos, lustrosos e crespos; tez morena e amulatada, mas fina; dentes claros que reluziam sob a negrura do bigode; estatura alta e elegante; pescoço largo, nariz direito e fronte espaçosa. A parte mais característica da sua fisionomia eram os olhos – grandes, ramalhudos, cheios de sombras azuis; pestanas eriçadas e negras, pálpebras de um roxo vaporoso e úmido; as sobrancelhas, muito desenhadas no rosto, como a nanquim, faziam sobressair a frescura da epiderme, que, no lugar da barba raspada lembrava os tons suaves e transparentes de uma aquarela sobre papel de arroz. Tinha os gestos bem educados, sóbrios, despidos de pretensão; falava em voz baixa, distintamente, sem armar ao efeito; vestia-se com seriedade e bom gosto; amava as artes, as ciências, a literatura e, um pouco menos, a política.”

5. Em Busca Do Passado Escondido

Raimundo saíra criança de São Luís para Lisboa. “Em toda a sua vida, sempre longe da pátria, entre povos diversos, cheia de impressões diferentes, tomada de preocupações de estudos, jamais conseguira chegar a uma dedução lógica e satisfatória a respeito da sua procedência. Não sabia ao certo quais eram as circunstâncias em que viera ao mundo; não sabia a quem devia agradecer a vida e os bens de que dispunha. Lembrava-se, no entanto, de haver saído do Brasil bem pequeno e podia jurar que nunca lhe faltara o necessário e até o supérfluo.

Esse jovem rico e virtuoso regressa a São Luís, depois de anos na Europa, formado e com o intuito de desvendar o mistério de seu passado. Antes, passara um ano no Rio de Janeiro e agora voltava a São Luís para rever seu tio e protetor distante, Manuel Pescada.

Raimundo é bem recebido pela família do tio, com exceção da sogra de Manuel, a racista radical Dona Maria Bárbara. Estranha alguns olhares enviesados da população, mas imagina-os fruto do estranhamento causado por um forasteiro. O sedutor advogado, como não poderia deixar de ser, logo cai nas graças de sua prima Ana Rosa que, arrebatada, declara-lhe seu amor. Raimundo corresponde à paixão da prima, mas os jovens encontram fortes obstáculos, principalmente a oposição de Manuel Pescada, que queria a filha casada com Luís Dias, da avó Maria Bárbara, racista intransigente, e do cônego Diogo, velho amigo da casa e adversário não-declarado e ardiloso de Raimundo.

Ao contrário dos amantes, seus três grandes opositores conheciam as raízes negras de Raimundo. Aos poucos o leitor vai tomando conhecimento das origens do herói que, no entanto, permanece ignorando tudo.

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5a. O Segredo Encoberto Raimundo é filho do irmão de Manuel Pescada, José Pedro da Silva,

com sua escrava Domingas. Depois de seu nascimento, José Pedro casa-se com Quitéria Inocência de Freitas Santiago, mulher branca e impiedosa. Enciumada com a atenção especial que José Pedro dedica ao pequeno Raimundo e à escrava Domingas, Quitéria ordena que a negra seja açoitada e que suas partes genitais sejam queimadas. José Pedro, indignado com tamanha crueldade, leva o filho para a casa do irmão em São Luís. Voltando à fazenda, flagra a mulher e o então jovem e sedutor padre Diogo em pleno adultério. Enfurecido, José Pedro mata Quitéria e forma um pacto de cumplicidade com o padre Diogo: esconderão a culpa um do outro. Desgraçado e doente, José Pedro refugia-se na casa do irmão. Ao se restabelecer, resolve voltar à fazenda, mas, no meio do caminho, é assassinado por ordem do padre Diogo, que já começara a insinuar-se também na casa de Manuel Pescada.

5b.O DesfechoObcecado por desvendar suas origens, Raimundo insiste em visitar a

fazenda onde nascera. Após diversos adiamentos, seu tio finalmente o leva até a Fazenda São Brás. No caminho, o mulato começa a obter as primeiras informações sobre o passado trágico de seus pais. Ao pedir ao tio a mão de Ana Rosa em casamento, tem seu pedido recusado. Perplexo, Raimundo acaba descobrindo que a recusa se deve a suas origens negras.

Na fazenda, Raimundo é abordado, à noite, por uma velha negra de aspecto fantasmagórico que o quer abraçar. Assustado, por pouco não mata a estranha aparição. No caminho de volta a São Luís, descobre que se tratava de sua mãe, Domingas. Ao retornar à capital do Maranhão, Raimundo resolve voltar para o Rio de Janeiro. Não suporta mais viver com o tio e muda-se de sua casa, enquanto se prepara para viajar. Pouco antes do embarque, manda uma carta a Ana Rosa confessando seu amor. O amor pela prima o impede de partir. Os amantes encontram-se e Ana Rosa acaba engravidando. Contra tudo e contra todos, armam um plano de fuga.

No entanto, o cônego Diogo usa das confissões de Ana Rosa e da colaboração subserviente do caixeiro Dias, que intercepta as cartas do casal, para, ardilosamente, impedir a concretização da fuga. No momento em que planejavam partir, os amantes são surpreendidos. O cônego Diogo orquestra o escândalo e se finge de protetor do casal. Raimundo volta para casa atordoado e, ao abrir a porta de casa, é atingido nas costas por um tiro disparado por Luís Dias, com uma pistola que lhe emprestara o cônego Diogo. Ana Rosa, desolada, aborta o filho de Raimundo. “A nova firma comercial Silva e Dias nasceu, entretanto, no meio da mais completa prosperidade.” Seis anos depois, no Clube Familiar, vemos Ana Rosa e seu marido Dias saindo de uma recepção oficial.

“O par festejado eram o Dias e Ana Rosa, casados havia quatro anos. Ele deixara crescer o bigode e aprumara-se todo; tinha até certo emproamento ricaço e um ar satisfeito e alinhado de quem espera por

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qualquer vapor o hábito da Rosa; a mulher engordara um pouco em demasia, mas ainda estava boa, bem torneada, com a pele limpa e a carne esperta. Ia toda se saracoteando, muito preocupada em apanhar a cauda do seu vestido, e pensando, naturalmente, nos seus três filhinhos, que ficaram em casa, a dormir. – Grand'chaine, double, serré! berravam nas salas. O Dias tomara o seu chapéu no corredor, e, ao embarcar no carro, que esperava pelos dois lá embaixo, Ana Rosa levantara-lhe carinhosamente a gola da casaca. – Agasalha bem o pescoço, Lulu! Ainda ontem tossiste tanto à noite, queridinho!...”

Bem ao gosto naturalista, a ironia final coloca por terra toda a idealização romântica de Ana Rosa e Raimundo. Morto o primo, a prima acaba por se casar com seu assassino e parece levar, ao lado do marido que tão ferozmente rejeitara anteriormente, uma feliz e próspera vida burguesa. O Mal triunfa, associado à Igreja corrupta e ao comércio burguês.