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    ::. Anlise da letra de Mulheres de Atenas| Chico Buarque e Augusto Boal.

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    Anlise da letra de Mulheres de Atenas

    de Chico Buarque e Augusto Boal.

    Elaborao: Professor Jos Atansio Rocha

    Email: [email protected]

    Este material parte integrante do site www.mundocultural.com.bre pode ser redistribudolivremente, desde que no seja alterado, e de que todas as informaes acima sejam mantidas.Para maiores informaes escreva para [email protected].

    Atenciosamente,

    Equipe Mundo Cultural

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    Mulheres de Atenas

    Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de AtenasVivem pros seus maridos, orgulho e raa de AtenasQuando amadas, se perfumamSe banham com leite, se arrumamSuas melenasQuando fustigadas no choramSe ajoelham, pedem, imploramMais duras penasCadenas

    Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de AtenasSofrem por seus maridos, poder e fora de AtenasQuando eles embarcam, soldadosElas tecem longos bordadosMil quarentenasE quando eles voltam sedentosQuerem arrancar violentosCarcias plenasObscenas

    Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de AtenasDespem-se pros maridos, bravos guerreiros de AtenasQuando eles se entopem de vinhoCostumam buscar o carinhoDe outras falenas

    Mas no fim da noite, aos pedaosQuase sempre voltam pros braosDe suas pequenasHelenas

    Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de AtenasGeram pros seus maridos os novos filhos de AtenasElas no tm gosto ou vontadeNem defeito nem qualidadeTm medo apenasNo tm sonhos, s tm pressgiosO seu homem, mares, naufrgiosLindas sirenas

    Morenas

    Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de AtenasTemem pro seus maridos, heris e amantes de AtenasAs jovens vivas marcadasE as gestantes abandonadasNo fazem cenasVestem-se de negro se encolhemSe confortam e se recolhem

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    s suas novenasSerenas

    Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de AtenasSecam por seus maridos, orgulho e raa de Atenas.

    BUARQUE, Chico, BOAL, Augusto. In: Chico Buarque letra e msica. So Paulo: Companhia dasLetras, 1989. p. 144.

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    Memria discursiva.

    Mulheres de Atenas faz referncia a aspectos da sociedade ateniense do perodo clssico e aalguns episdios e personagens da mitologia grega. A letra faz uma aluso aos famosos poemaspicos Ilada e Odissia, ambos atribudos a Homero. Penlope, mulher de Ulisses, heri dopoema Odissia, viu seu marido ficar longe de casa por vinte anos, perodo em que ela se portacom dignidade e absoluta fidelidade; mas, por um lado, sua formosura, e, por outro, os bensfamiliares atraem a cobia de pretendentes, que julgavam seu marido morto. Ela lhes dizia ques escolheria o futuro marido aps tecer uma mortalha, que, a bem da verdade, no faziaquesto de terminar: passava o dia tecendo e, noite s escondidas, desmanchava o trabalhorealizado. E enquanto seu marido se mantinha ausente, embora por tanto tempo sem notcia, elase vestia de longo, tecia longos bordados, ajoelhava-se, pedia e implorava para a deusa Atenaque providenciasse o retorno de seu amado.

    Helena, filha de Zeus, era considerada a mulher mais bela do mundo. Sua histria uma das

    mais conhecidas na mitologia grega. Esposa de Menelau, rei de Esparta, foi seduzida e raptadapor Pris, filho do rei de Tria. Esse rapto deu origem guerra de Tria, que os gregospromoveram para resgatar Helena; fato narrado em Ilada de Homero. Embora Ulisses nofigurasse no primeiro plano da Ilada, nela freqentemente mencionado, como um viajanteconduzido terras distantes e heri da batalha de tria. Por essa escolha Homero, o poeta,relaciona as duas epopias. A esposa de Ulisses, a prudente Penlope, ope-se esposa infiel seno verdadeiramente culpada Helena, que na Ilada causa inicial da guerra. Por essas eoutras razes a Odissia est intimamente ligada Ilada.

    Assim, como uma referncia histrica de um momento da humanidade que data de 5 sculosantes de Cristo, os autores de Mulheres de Atenas valem-se da ideologia de Odissia parachamar a ateno das mulheres que ainda vivem e secam por seus maridos ao estiloateniense. Aps a narrativa da morte dos pretendentes de Penlope, o rei Agammnon, filho de

    Atreu, lamenta profundamente a morte dos que lhes eram caros e faz a seguinte referncia esposa de Ulisses, descrita em Odissia, de Homero, na Rapsdia XXIV, p. 216, Abril Editora,edio de 1981:

    A alma do filho de Atreu exclamou: Ditoso filho de Laertes, industrioso Ulisses, grande era omrito da que tomaste por esposa. Nobres os sentimentos da irrepreensvel Penlope, filha de

    Icrio, que soube manter-se sempre fiel a seu esposo Ulisses! Por isso, jamais perecer a famade sua virtude, e os Imortais inspiraro aos homens belos cantos em louvor da prudncia dePenlope.

    Os autores tambm realizam um apurado trabalho com a linguagem, no que se refere tanto construo das frases quanto seleo e ao emprego das palavras. Para obtermos uma melhorcompreenso desse texto, necessariamente teremos de percorrer os caminhos da histria, damitologia, e reconhecer o dilogo aberto com outros textos, contido em Mulheres de Atenas.

    Entretanto, no nosso ofcio nos deter extensivamente com a histria que envolvia a sociedadeateniense na poca de Odissia. Por essa razo, e colaborando com o trabalho de estabeleceressas pontes, antes do desenvolvimento de nossa anlise, de forma sucinta, apresentamos umtrecho escrito pelo historiador Edward MacNall Burns sobre o comportamento das mulheres deAtenas dos sculos V e IV a.C.:

    Embora o casamento continuasse a ser uma instituio importante para a procriao dos filhos,que se tornariam os cidados do Estado, h razo para se crer que a vida familiar tivesse

    declinado. Ao menos os homens de classes mais prsperas passavam a maior parte do tempolonge de suas famlias. As esposas, relegadas uma posio inferior, deviam permanecer

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    reclusas em casa. O lugar de companheiras sociais e intelectuais dos maridos foi ocupado por

    mulheres estranhas, as famosas heteras1, algumas das quais eram naturais das cidades jnicas edemonstravam grande cultura. Os homens casavam para assegurar legitimidade ao menos a

    alguns de seus filhos e para adquirir prosperidade por meio do dote. Era tambm necessrio,naturalmente, ter algum para tomar conta da casa.

    comum, ainda nos dias de hoje, leitores menos avisados considerarem essa msica como umaapologia submisso e subservincia feminina ao machismo brasileiro, a exemplo dasmulheres da Grcia antiga. Alis, isso aconteceu com muitas mulheres que se diziam feministas,algumas leitoras vacilantes e obtusas, que criticaram os autores porque julgaram a msicamachista segundo elas, a letra da msica sugeria que as mulheres de hoje tivessem o mesmocomportamento das mulheres da antiga Atenas. No conseguiram perceber a inteligente ironiado texto... Onde se l Mirem-se... sugere-se que se faa o contrrio; dessa forma, o texto umhino contra a submisso das mulheres que se sujeitam s regras ditadas pelas sociedadespatriarcais. O prprio Chico Buarque, em uma entrevista televiso Cultura, ao ser indagadosobre o pensamento das feministas da poca, disse: Elas no entenderam muito bem. Eu disse:

    mirem-se no exemplo daquelas mulheres que vocs vo ver o que vai dar. A coisa exatamenteao contrrio.

    1mulher dissoluta, cortes, prostituta elegante e distinta.

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    Estrutura do Texto.

    Mesmo sendo uma letra de msica, portanto um texto para ser ouvido, Mulheres de Atenasapresenta um primoroso trabalho formal. O texto se compe, fundamentalmente, de cincoestrofes de nove versos cada uma. As estrofes apresentam um esquema fixo de rimas: oprimeiro verso rima sempre com o segundo, o quinto o oitavo e o nono; o terceiro rima com oquarto; o sexto com o stimo. Do ponto de vista mtrico, inegvel a habilidade do autor queabusou de uma mtrica eleboradssima: os dois primeiros versos tm 14 slabas poticas: oterceiro, o quarto, o sexto e o stimo tm oito; o quinto e o oitavo tm quatro e o nono temduas. Os dois primeiros versos funcionam como refro. As idias bsicas do poema soreafirmadas pelo fim do poema que traz o refro como se quisesse inicial uma sexta estrofe.

    Por conta desse rol de advertncias podemos verificar uma situao cclica de ladainhas que nopretendem parar no poema. Ao introduzir no final do poema a repetio, como se fosse iniciaruma nova estrofe, o autor deixa livre para a reflexo do leitor que poder buscar no

    subconsciente qualquer fato que se assemelha s advertncias anteriores para complet-lo.Exatamente por conta disso que o refro vem no incio de cada estrofe.

    O refro apresentado nessa msica nos remete mesma estrutura usada nas cantigasmedievais. O paralelismo apresentado nele bastante semelhante ao das cantigas medievais,porm, com ligeiras alteraes no segundo verso. O primeiro verso do refro sempre se repeteidenticamente em todas as estrofes, introduzindo uma idia de mltiplas escolhas no segundoverso, com poucas variaes entre si em todas as estrofes, mantendo-se fixas as formas prosseus maridos e Atenas. A semelhana no reside somente no paralelismo, mas tambm namtrica de 14 slabas poticas, uma contagem marcante na Cantiga de Amor de Bernardo deBonaval, entre os sculos XII e XIII, aproximadamente. Essa no , sem dvida, a primeira enica performance de Chico Buarque com semelhanas medievais. As msicas Atrs da Porta eCom Acar Com Afeto, por exemplo, so claros exemplos de cantigas medievais de amigo, de

    autoria masculina para um Eu-lrico feminino, cujo tema sugere um lamento pela ausncia doamigo (amante). Esse , sem dvida, um recurso marcante nas cantigas medievais tambmusado nas msicas dos autores contemporneos Caetano Veloso (Esse Cara) e Vincius de Moraes(Pobre Menina Rica).

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    O eixo paradigmtico da cano.

    Do ponto de vista sinttico, podemos destacar os sujeitos presentes na cano (SN sintagmanominal) e seus respectivos predicados (SV sintagma verbal). O ponto mais importante dacano est no segundo verso de cada estrofe. Ele tem sua carga significativa centrada no verbo,sempre em terceira pessoa do plural, tendo como SN ELAS, asmulheres de Atenas.Evidentemente, no coletivo, porm, representadas pelas figuras de Penlope e Helena. H,tambm, outro SN que introduzido no enredo e faz parte do contexto, sem importncia central:ELES (soldados, seus maridos, bravos guerreiros, etc). A meno de Helena, uma figura deconduta antagnica de Penlope, feita no poema para expressar sua rara beleza. Assim seusmaridos buscam os carinhos de outras falenas (outro SN), mas mantm em suas residnciasuma mulher de beleza maior para quem sempre voltam para os braos, sem reminiscncia deseus atos extraconjugais.

    Mas o eixo paradigmtico da cano marcado pelo SV, mais notadamente com a presena dos

    verbos conjugados em 3 pessoa do plural, como uma ao que ainda ocorre no presente doindicativo. Eles se fazem presentes no segundo verso de cada estrofe, denunciando adesafortunada vida das mulheres de Atenas. Assim, vivem, sofrem, despem-se, geram,temem, secam, so verbos se so colocados numa forma cclica das funes e das vidasdaquelas mulheres. Temos, assim, um ciclo que se inicia com o verbo viver e se fecha com overbo secar, isto , morrer. No meio desse trajeto as mulheres de Atenas despem-se para seusmaridos com a finalidade nica de gerarem os filhos, pois o amor deles desfrutado pelasfamosas heteras (falenas) ou amantes; afora isso, s fazem sofrer e temer. Esses verbosresumem uma existncia quase sem muito propsito e sem autonomia, como escravas de seusprprios maridos.

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    Marcadores da narrativa e da oralidade.

    H muito, muito pouca caracterstica de oralidade no poema, podendo somente ser percebida norefro, mais notadamente no segundo verso de cada estrofe com a conjuno (em contrao)pros. Na instncia da narrativa no observamos fortes demarcaes de tempo(no se definepoca ou momento histrico; considera-se um tempo genrico, falando no presente, mas sereferindo a um passado indeterminado). Quanto ao espao,este demarcado como a cidade deAtenas, havendo menes de mares e de guerras (supostamente em terras distantes, fatodenunciado pelas ausncias e naufrgios de seus maridos).

    Quanto aos verbos, podemos afirmar que eles fazem a funo da narrativa, exibindo a condiodos sujeitos atenienses. Entretanto, do ponto de vista gramatical destacamos que o autor dirige anarrativa ao conjunto de mulheres que se submetem aos valores da sociedade patriarcal noinstante presente. Esse conjunto est representado gramaticalmente pelo sujeito da forma verbalde terceira pessoa do plural do imperativo afirmativo mirem-se (vocs). Observe que o verbo

    no imperativo no admite a classificao de sujeito indeterminado (a norma culta diz que s seemprega o imperativo quando se tem certeza do enunciatrio da mensagem, da no ser possvelclassificar o SN de um imperativo como indeterminado).

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    Da instncia lexical.

    Podemos destacar, para elucidar um pouco mais o poema, duas palavras estrategicamente

    citadas pelo autor: Cadena e Falena. Cadena um espanholismo que significa cadeia, corrente.Se consultarmos o Aurlio, teremos a seguinte definio: Meio empregado para tirar dos chifresdo touro, sem perigo, o lao que o prende. Os dois sentidos significam um aprisionamento ouacorrentamento. Assim, cadenas nos remete cadeia em que as mulheres de Atenas vivem,aprisionadas pelos desejos e caprichos de seus maridos. Falenano mesmo dicionrio explicadada seguinte forma: Gnero de insetos lepidpteros, noctudeos, que rene mariposas noturnascujas larvas, fitfagas, so nocivas a culturas vegetais. Todavia o sentido empregado aqui metafrico, referindo-se a uma prostituta.

    Ao usar o verbete falena, o autor estabelece uma das metforas mais significativas do poema. Nosentido denotativo, falena significa mariposa de ao noturna, ou seja, que brilha a noite. Nosentido conotativo, o termo falena empregado no poema, fazendo uma aluso s prostitutasque brilham a noite, ou seja, que tm vidas noturnas, que so procuradas noite pelos maridos.

    Assim, falena representa uma grande e importante metfora que denuncia o comportamentonarrado pelo historiador Edward MacNall Burns quando diz: O lugar de companheiras sociais eintelectuais dos maridos foi ocupado por mulheres estranhas, as famosas heteras, conforme j odissemos anteriormente.

    Do ponto de vista semntico, h um grande emprego de palavras com muita aproximao paracorroborar a idia condicional das mulheres atenienses. Podemos destacar algumas palavrasmais prximas semanticamente: amadas... carinhos; pedem... imploram; fustigadas... penas;carcias... carinhos; gosto... vontade; sonhos... pressgios; Por outro lado, h outras maisdistantes semanticamente: amadas... fustigadas; violentos... amantes; violentos... carinho;defeito... qualidade; amadas... abandonadas; encolhem... confortam. Mas o grande sentido dedistanciamento se encerra na grande anttese do poema: vivem... secam (no sentido demorrem).

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    O dilogo entre os textos (intertextualidade)

    O dilogo que Mulheres de Atenas estabelece com o poema Odissia, com a histria e amitologia da Grcia Clssica o que podemos chamar de intertextualidade. O poema fazreferncias camufladas obra mitolgica grega de Homero, mais notadamente histria dePenlope, despersonalizao das mulheres de Atenas e passagem pela ilha das sereias, vividapor Ulisses.

    importante notar a forma subentendida que o autor se refere Penlopeno poema.Segundo a histria de Penlope, em Odissia, a virtuosa esposa de Ulisses convence seuspretendentes de que deveria fazer uma tnica, que serviria de mortalha para cobrir o corpo deLaertes, o venervel pai de Ulisses, que com a notcia do casamento de sua nora, morreria dedepresso, dado ao avanado da idade. E como era costume das mulheres tecerem umamortalha para os entes queridos que se encontravam prestas a deixar esse mundo, Penlope usadesse artifcio para ganhar tempo com seus pretendentes, que aquiesceram de pronto, por ser

    uma proposta justa. Entretanto, ela nunca a terminaria, pois na tentativa de fazer com que seuspretendentes desistissem da idia de disputar o lugar de Ulisses, ela desmanchava a noite o quefazia durante o dia. Ento a esposa do aventureiro Ulisses conhecida na mitologia grega como osmbolo da mulher que tece longos bordados, enquanto seus maridos se ausentam por perodosdelongados. No poema de Chico Buarque essa referncia Penlope feita na segunda estrofe:Quando eles embarcam, soldados / Elas tecem longos bordados / Mil quarentenas.

    Ao se referir s mulheres atenienses, o autor expe a vida de completa subservincia a que elasse submetiam para seus maridos. Em Ilada, Helena usada pela deusa Vnus para servir comoprmio para o prncipe Pris. Ao apaixonar-se por ele, ela tida como vulgar, por haver deixadode amar seu verdadeiro marido. Essa situao foi abordada e defendida por Grgias, um sofista emestre da retrica clssica grega, que escreveu um discurso intitulado Elogio a Helena, em 414a.C. A questo colocada por Grgias era que Helena, apesar de casada com Menelau e, do ponto

    de vista moral ligada a ele, tinha tambm o direito de apaixonar-se por Pris, dando vazo aosseus sentimentos. Na verdade, Vnus prometera a Paris no apenas Helena, mas o amor deHelena, dizendo: ... Se o amor um deus, como poderia ter resistido e vencer o divino poderdos deuses quem mais fraco do que eles? Se se trata de uma enfermidade humana e de umerro da mente, no h que se censurar como se fosse uma culpa, mas consider-la apenas uma

    m sorte2. Os versos que salientam uma absoluta despersonalizao das mulheres deAtenasesto na quarta estrofe: Elas no tm gosto ou vontade / Nem defeitos nem qualidade /Tm medo apenas.

    Outra referncia epopia de Homero o momento da passagem de Ulisses, em sua longaviagem, pela ilha das Sereias, prximo ao golfo de Npoles. Segundo o pico, Ulisses tapou comcera os ouvidos de seus companheiros e pediu que o amarrassem ao mastro do navio, para quenem ele nem a tripulao se deixassem seduzir pelo canto de morte das sereias, todavia, ele

    queria saber como era esse canto. Essa passagem no passa desapercebida pelo autor da msicae lembrada nos versos: O seu homem, mares, naufrgios / Lindas sirenas / Morenas. Sirenas,segundo o Aurlio, o mesmo que sirene (objeto emissor de som, muito usado em navios) ousereia. O aparelho que produz som tem esse nome por lembrar o hipnotizante canto das sereiasda mitologia.

    2 GRGIAS, Fragmentos y Testimonios, pp. 90-91. Traduo de Antnio Sures Abreu, professor livre docentepela Universidade de So Paulo, in: A Arte de Argumentar Gerenciando Razo e Emoo.

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    Os recursos expressivos do texto

    inegvel que o texto de Mulheres de Atenas bastante requintado e muito bem elaborado,tanto na sua estrutura quanto nas referncias cultura grega do perodo clssico. Numa primeiraleitura ou acompanhamento da msica somos fisgados pela emoo esttica da msica, podendoat nos determos em algumas passagens especficas. Mas s com sucessivas leituras, realizandoum trabalho mais racional (sem perder a emoo) que chagamos uma interpretao mais ricado texto.

    A cano inteiramente metaforizada. Isso faz dela um poema, embora haja um indcio denarrativa ao passar uma idia do que acontece com as mulheres em Atenas. Algumas metforasmais expressivas podem ser destacadas facilmente na cano e sua significao , quase sempre,muito sutil.

    Me t f o r a Sen t i d o s em n t i c oSe banham com leite No vem o sol nem a cara da rua.Tecem longos bordados Preservam-se.Mil quarentenas Anos a fio a espera de seus maridosAos pedaos Cansados, fatigados.Carcias Plenas Fazer sexoFalenas Prostitutas.Voltam pros braos ProcuramHelena Beleza de mulher / mulher bela.No tm sonhos Vida vaziaNo tm vontade No amamJovens vivas marcadas Aprisionadas

    No fazem cenas Subservincia, sem murmurar.Vestem-se de negros VivasSecam MorremDespem-se pros maridos Fazem sexoTemem por seus maridos Inseguras

    Outro recurso muito presente a anttese. Ao expressar a condio feminina da mulherateniense, o autor valoriza suas palavras com idias contrrias. Assim, podemos destacar:defeito... qualidade; vivem... secam (morrem); despem-se... vestem-se; gosto... vontade;amadas... abandonadas; embarcam (partem)... voltam; etc.

    Outro, menos abundantes, o anacoluto, usado apenas para manter a construo idntica dasestrofes: Lindas sirenas (sereias) / Morenas; Se confortam e se recolhem / s suas novenas /

    Serenas; Querem arrancar violentos / Carcias plenas; etc.

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    Alguns eufemismos so empregados no texto para atenuar a condio de dramaticidade expostapelo autor. Destacamos alguns:

    Eu f em i sm o S en t i d o s emn t i c o

    Se banham com leite Aprisionam-se em casa.Despem-se pros maridos So usadas pelos maridosCostumam buscar os carinhos Traem suas mulheresSe entopem de vinhos Embriagam-seAos pedaos ImundosFalenas (mariposas) Prostitutas(Violentos), Carcias plenas Estupro, fazer sexo violentamenteNo tm gosto ou vontades Mal amadasNem defeito nem qualidade Abjeto (desprezvel)Lindas sirenas Morenas ProstitutasSe confortam e se recolhem Se aprisionam

    H outro recurso expressivo que aparece logo no incio do texto, na primeira estrofe, quedenuncia a degradante condio das mulheres de Atenas em total subservincia. o emprego daGradao. Nesse caso, o autor estabelece uma gradao com clmax ao empregar umaseqncia encadeada em ordem crescente: Se ajoelham, pedem, imploram / Mais duras penas /Cadenas(cadeias).

    O zeugma outro recurso presente nessa cano. O autor se vale desse recurso para imprimirum ritmo de reflexo maior ao comparar a condio (ou estilo de viver) da mulher com a dohomem; exemplo: Elas no tm gosto ou vontade / Nem defeito nem qualidade / (elas) tmmedo apenas / (elas) No tm sonhos, s tm pressgios / O seu homem (tem) mares,naufrgios / Lindas sirenas / Morenas. O zeugma marcado pela elipse de um termo integrante

    da orao que foi mencionado anteriormente. Quando se refere mulher, o autor usa o verbotm, considerando que elas no tm sonhos, mas apenas prenncios e agouro a respeito dofuturo, portanto, tm medo apenas; j seu homem, esse tem o mar, o naufrgio (aventura) elindas sereias morenas, ou mulheres para seus deleites, enquanto as esposas ficam encarceradasem casa, banhando-se com leite, pela ausncia do ar da rua.

    Mas o recurso estilstico mais importante dessa msica fica reservado para a ironia. Esse recursopermeia toda a cano e consiste em dizer o contrrio do que se est pensando ou questionarcerto tipo de comportamento com a inteno de ridicularizar, de ressaltar algum aspecto passvelde crtica. nesse sentido que o autor usa o verbo mirem-se para dizer no faa isso jamais,ou seja, tome cuidado com isso; evite isso.

    No a primeira vez que Chico usa de ironia em suas canes. Na msica Bom Conselho, Chicotrabalha ironicamente os provrbios tradicionais. Veja sua forma irnica de se referir a eles:

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    Bom Conselho

    Oua um bom conselho

    Eu lhe dou de graaIntil mentir que a dor no passaEspere sentadoOu voc se cansaEst provado, quem espera nunca alcanaVenha meu amigoDeixe esse regaoBrinque com meu fogo

    Venha se queimar

    Faa como eu digoFaa como eu faoAja duas vezes antes de pensarCorra atrs do tempoVim de no sei ondeDevagar que no se vai longeEu semeio vento na minha cidadeVou para rua e bebo a tempestade...

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    Concluso do ponto de vista estilstico.

    Mulheres de Atenas uma cano que pode ser considerada uma advertncia para as mulheres

    contemporneas que ainda vivem sob um modelo de uma sociedade patriarcal, com costumespraticados h quase 400 anos antes de Cristo, em Atenas, na Grcia antiga. Para expressar aidia irnica que sugere uma mudana de vida, o autor provoca intertextualidade com as maioresobras sobre a mitologia grega: Ilada e Odissia, ambas atribudas a Homero. Ao se referirquelas obras, o poema traz como referncia a histria de duas mulheres que representam asmulheres atenienses: Penlope e Helena. A primeira, mulher de Ulisses, heri do poema Odissia,viu seu marido ficar longe de casa por vinte anos, perodo em que ela se porta com dignidade eabsoluta fidelidade. A segunda, motivo da guerra de Tria, representa um smbolo da beleza paraquem seus maridos voltam sempre correndo para seus braos, aps deitarem-se e fartarem-secom suas famosas falenas (mulheres dissolutas, cortess, prostitutas elegantes e distintas).

    Composto de 5 estrofes de nove versos cada uma, o poema apresenta um esquema fixo derimas: o primeiro verso rima sempre com o segundo, o quinto o oitavo e o nono; o terceiro rima

    com o quarto; o sexto com o stimo. Os dois primeiros versos funcionam como refro. As idiasbsicas do poema so reafirmadas pelo fim do poema que traz o refro como se quisesse inicialuma sexta estrofe, entretanto, sugere uma continuidade s advertncias proferidas.

    Os sujeitos da histria so as mulheres de Atenas, no sentido coletivo. Por isso, o eixoparadigmtico da cano marcado pelo SV, mais notadamente com a presena dos verbosconjugados em 3 pessoa do plural, como uma ao que ocorre no momento presente. por issoque a advertncia dirigida para as mulheres que ainda se submetem ao sistema patriarcal, emcompleta subservincia aos seus desditosos maridos, at morrerem. Tais verbos marcam umasituao cclica, denunciando a desafortunada vida das mulheres de Atenas que vivem, sofrem,despem-se, geram, temem, secam, em que o verbo viver se une com o verbo secar, isto ,morrer. No meio desse trajeto as mulheres de Atenas despem-se para seus maridos com afinalidade nica de gerarem os filhos, pois o amor deles desfrutado pelas famosas heteras

    (falenas), ou amantes; afora isso, s fazem sofrer e temer.No s do ponto de vista estrutural que Mulheres de Atenas surpreendente.Semanticamente, ela se pauta sobre uma grande ironia. Assim, a grande surpresa da cano ficapor conta do sentido irnico que o autor estabelece na mensagem que procura passar para asmulheres que no perceberam que ainda vivem centenas de sculos atrs, secando-se por seusmaridos, sem serem amadas ou tratadas com dignidade. O movimento feminista trouxe vriasconquistas nas ltimas dcadas e a evoluo da condio feminina tem alterado ocomportamento geral, de homens e mulheres, no sentido de um equilbrio maior na distribuiode funes, no trabalho e na vida em famlia. Entretanto, h mulheres que ainda no perceberamessa mudana nem a importncia de seu papel na sociedade contempornea. Por isso, Chico faza advertncia, sugerindo que elas mudem de conduta e tomem outros rumos. Assim, o autorexprime-se do contrrio daquilo que se est pensando, ou seja, NO para seguir o exemplodaquelas mulheres de Atenas. Mirem-se no exemplo delas e faam o contrrio!

    A ironia no se prende somente falta de clareza da prpria condio da mulher. O autorestende sua ironia tambm aos homens que se consideram superiores e elevados, em relao aosexo feminino. Tomando como base o segundo verso de cada estrofe veremos que semprequando se refere aos homens atenienses, Chico faz complementos enaltecendo suascaractersticas. O exagero e a insistncia da exposio das qualificaes superiores masculinastornam-se cansativos e chamam bastante a ateno daqueles homens que, na viso dasmulheres de Atenas, so heris, mas, por outro lado, so cativos de suas falenas, de sereias,aventuras, naufrgios e morte prematura, por inconseqncias de seus atos vulgares. Assim, o

  • 7/25/2019 _Analise - Mulheres de Atenas

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    ::. Anlise da letra de Mulheres de Atenas| Chico Buarque e Augusto Boal.

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    que parece querer enaltecer as habilidades e as caractersticas dos maridos atenienses torna-seoutra ironia de grande dimenso. Os seus maridos, orgulho e raa, poder e fora, bravosguerreiros, procriadores, heris e amantes, na verdade so ausentes, agressivos, mal amantes,

    violentos, irresponsveis e infiis. nesse sentido que ironicamente o autor se refere supremacia masculina dos maridos das Mulheres de Atenas.

    Esse , sem dvida, um majestoso texto, como muitos outros desse poeta ainda pouco conhecidoe no to bem avaliado: o nosso grande Chico Buarque de Holanda.