Análise Do Texto O Beijo, De Millôr - Lílian Alves
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO
DEPARTAMENTO DE LETRAS
DISCIPLINA: PORTUGUÊS III: MORFOSSINTAXE II
DOCENTE: ANA LIMA
DISCENTE: LÍLIAN ALVES
Análise textual da crônica O beijo, de Millôr Fernandes
Tendo como ponto de partida o título do texto e as suas primeiras linhas,
pode-se observar o quanto direta e objetiva é a sua linguagem. Desde o início, o
autor procura transmitir suas ideias de maneira clara, já definindo para o leitor o
assunto sobre o qual irá discorrer: o beijo. A simplicidade com que Millôr tece as
considerações sobre o tema pode ser justificada pela proposta da obra
Composições Infantis. O beijo, assim como as outras histórias da publicação, é
formada por textos breves, em primeira pessoa, que focalizam temas do cotidiano –
a maioria no contexto urbano –, onde a linguagem utilizada tenta aproximar-se da
oralidade, além de apresentar informalidade, como se o autor fizesse um relato ao
leitor numa situação de conversa. A partir dessas características, podemos concluir
que o texto em análise se trata de uma crônica, marcada pela visão pessoal do autor
sobre o tema, que faz uso de uma interpretação humorística do imaginário da
criança sobre o que é o beijo. E é justamente a representação de uma leitura de
mundo infantil, aliada à coloquialidade do texto, que causam no leitor uma quebra de
expectativa, dando comicidade à crônica.
Como exemplo da maneira que Millôr desenvolve em seu texto a retórica da
criança, podemos trazer o seguinte trecho da crônica: “o beijo no escuro demora
mais porque todo beijo no escuro não acaba mais”. Neste momento, o autor (ou a
personagem infantil que fala por ele) tenta explicar algo sobre o beijo, partindo da
ideia de que o beijo no escuro é de um tipo que demora mais do que os outros.
Porém, a explicação para esse fato é a própria atestação do fato: “porque o beijo no
escuro não acaba mais”. Essa é uma forma de expressão de pensamento muito
associada à fala infantil, quando percebemos que o “não acaba mais” está refletindo
a experiência sensível de perceber o tempo do beijo, e não a uma explicação lógica,
como, por exemplo, “o beijo no escuro demora mais porque dá mais prazer do que o
no claro”.
Com relação à estrutura, o autor compõe uma narrativa que pode ser dividida
em três momentos, os quais a personagem tenta responder a três questões: o que é
o beijo, como as pessoas lidam com ele e quais os tipos de beijo. Num primeiro
momento, o autor explica que o beijo é uma prática unânime, apesar de que há
aqueles que gostam e os que não gostam. Depois, explica que existem dois tipos de
beijo, o no escuro e o “no claro”. Essa última expressão destacada, que
tradicionalmente funciona como um especificador, está exercendo o papel de
modificador do nome beijo, trazendo uma ocasião onde o beijo acontece. O uso
desse recurso demonstra a indistinção entre a oralidade e escrita presente no texto
analisado. Outra amostra desse movimento é a ausência de pontuação em dados
momentos, causando, durante a leitura, a sensação de uma fala contínua,
espontânea. Em “O beijo no claro é o que papai dá na mamãe quando chega, o que
eu dou na vovó quando vou lá”, o primeiro termo destacado, trata-se de uma elipse.
Facilmente podemos concluir que “em casa” é o complemento correspondente. Já
no marcador espacial lá, subentende-se as expressões “onde ela está” ou ainda “na
sua casa” ou seja, apreende-se que a avó está a uma distância considerável, que
pode representar, inclusive, um espaço habitual. Já no enunciado “como aquela
mesma irmãzinha que eu falei lá em cima” a palavra palavra “lá” é utilizada com uma
finalidade diferente, retomando um lugar no próprio discurso, e não no espaço
concreto; isto é, é um elemento que volta o leitor para características do próprio
texto.
Já em “Agora o beijo no escuro (...)”, temos no termo destacado um efeito
comum àquele que ocorre na oralidade, onde “agora” funciona como um conectivo
que introduz um assunto a ser dito, diferentemente das prescrições de seu uso pela
gramática normativa, que o define como termo que designa uma circunstância
temporal.
Finalmente, pode-se inferir a partir da fala da criança uma série de aspectos
sobre as convenções e ritos sociais que giram em torno do beijo. De fato, como
prática social que demonstra afetividade, a forma de beijar está muito relacionada à
intimidade entre as pessoas, podendo assumir o papel de mero cumprimento formal
(a personagem-narrador chega a descrever que é obrigado a beijar a avó) ou ainda
uma manifestação de carinho onde pode-se buscar a satisfação algum desejo
sensual. Qual seria, por exemplo, a natureza do beijo que o pai deu na empregada?
Esse relato da criança parece indicar duas possibilidades de interpretação: ou foi
realmente um beijo “sem querer”, ou o beijo aconteceu e foi intencionalmente rápido
para evitar que um caso amoroso entre os dois fosse descoberto. Portanto, o beijo é
um indicação de nível de relacionamento e possui um determinado peso simbólico,
principalmente na nossa cultura ocidental. O humor na crônica muitas vezes decorre
da interpretação da criança acerca dessa prática, já que para ela o beijo não tem o
sentido que é atribuído àqueles que foram iniciados nesse costume. Ela ainda está
se apoderando esses símbolos e ainda não experienciou o beijo em todas as suas
manifestações.
Millôr retrata desta forma descontraída e direta a perspectiva da criança sobre
o mundo, pincelando situações do cotidiano que devem despertar identificação por
parte do leitor, principalmente pelo texto também se inserir num momento histórico
correspondente ao nosso. Assim como outras praxes, o beijo permeia várias etapas
do nosso desenvolvimento e assume uma série de significados a depender da
situação, como o autor nos faz refletir nesta crônica.