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ANÁLISE DISCURSIVA DE UM LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA
PORTUGUESA: DA ABORDAGEM DA PONTUAÇÃO COMO RECURSO
EXPRESSIVO NA PRODUÇÃO ESCRITA
Danielle Bezerra de PAULA
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Maria da Penha Casado ALVES
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
RESUMO
Recorte de um projeto de doutorado (em andamento no PPgEL/UFRN) inserido na área de
conhecimento da Linguística Aplicada, o presente estudo objetiva analisar a abordagem dos
usos da pontuação como recurso de expressividade e de autoria para o ensino da produção
escrita em um livro didático de Língua Portuguesa voltado para a etapa final da Educação
Básica. Para a seleção e a análise do referido material, considerou-se, além da perspectiva
assumidamente discursiva por parte das autoras, a sua inclusão e sua positiva avaliação no
catálogo disponível no Guia Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para o ano letivo de
2015. Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa, de natureza documental, com perfil
qualitativo-interpretativista (CHIZZOTTI, 1998; FREITAS, 2002; 2007). Teoricamente,
consiste em uma pesquisa que se ancora na concepção social e dialógica da linguagem e de
gêneros discursivos (BAKHTIN, 2003; 2008; 2013; VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2006), bem
como nas investigações recentes de Da Silva (2009; 2011), Puzzo (2012; 2013) e Casado Alves
(2014) sobre a relação estilo e questões gramaticais em perspectiva discursiva. Ainda que
inicialmente, pode-se afirmar que, embora o material mantenha uma clara coerência de lidar
com os gêneros discursivos como organizadores das práticas sociais de leitura e de escrita, não
existe uma orientação explicitamente consistente para o uso dos sinais de pontuação dentro dos
encaminhamentos dados para a produção de textos escritos. Pelo contrário, identificou-se um
espaço ainda muito restrito à exploração desse aspecto, enquadrando-o, inclusive, em uma
delimitação específica e reservada dentro de um dos 3 volumes e circunscrito ao eixo
Gramática, uma divisão do livro didático analisado. Tal constatação sinaliza a urgência em
reavaliar o ensino da pontuação como um dos muitos recursos estilísticos e, resultante desse
entendimento, como elemento arquitetônico do gênero discursivo, que propicia efeitos de
sentido diversos e que demarca, inclusive, múltiplas relações dialógicas, entoação valorativa e
autoria.
Palavras-chave: Livro didático; Pontuação; Escrita.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
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Diversas reformas curriculares, propostas e diretrizes, especialmente a partir da
década de 70, têm colocado em (re)definição a Língua Portuguesa, dinâmica própria da
constituição de uma disciplina (BRITTO, 2007; BUNZEN, 2006; SUASSUNA, 2004).
As mudanças vão de ordem terminológica, (des)velando concepções de linguagem, à
metodológica, indicando objeto de ensino e sua abordagem. Como decorrência,
surgiram e surgem problematizações acadêmicas em torno dessas reformulações, pois
sabemos que – em maior ou menor grau – são implicações diretas: a formação docente e
discente, a transposição didática, a elaboração e a abordagem dos materiais didáticos
que mais circulam na escola.
Uma dessas implicações mencionadas diz respeito ao entrecruzamento da
compreensão de gêneros discursivos – cuja discussão tem ocupado a centralidade
principalmente depois da publicação e distribuição dos Parâmetros Curriculares
Nacionais/Orientações Curriculares para o Ensino Médio – e de análise linguística –
conforme tem defendido Geraldi, desde a década de 80, na primeira edição do livro O
texto na sala de aula. Dentro da problemática mais ampla acima indicada, portanto, este
artigo resulta da problematização sobre a abordagem adotada pelos materiais didáticos
que mais têm entrada nas salas de aula no país, via programa institucional: de que modo
os Livros Didáticos de Língua Portuguesa têm abordado a pontuação? É possível
identificar, nos livros indicados/avaliados pelo Programa Nacional do Livro Didático
(PNLD), uma mudança teórico-metodológica no que concerne ao uso e à reflexão
linguística?1
Consiste, pois, objetivo analisar a entrada e a abordagem dos usos da
pontuação como recurso de expressividade e de autoria para o ensino da produção
escrita em um livro didático de Língua Portuguesa voltado para a etapa final da
Educação Básica.
Assim, para a construção deste trabalho, incursionaremos, inicialmente, pelo
suporte teórico que trata da concepção de língua(gem), gênero discursivo, estilo e
gramática; e, na sequência, avaliaremos o referido livro didático à luz das contribuições
bakhtinianas, a partir das quais formularemos as considerações finais deste artigo.
1 Refere-se ao problema maior de uma pesquisa de doutorado em andamento, situada na área de
conhecimento da Linguística Aplicada.
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2 ABORDAGEM TEÓRICA: PERSPECTIVA DIALÓGICA
Em nossa proposta investigativa, abalizamo-nos teoricamente na concepção
dialógica da linguagem e de gêneros discursivos (BAKHTIN, 2003;
VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2006), bem como no estudo sobre questões de estilística
no ensino (BAKHTIN, 2013) e nas investigações recentes que estabelecem a relação
estilo e gramática em perspectiva discursiva (DA SILVA, 2009; PUZZO e DA SILVA,
2013; PUZZO, 2012; CASADO ALVES, 2014).
2.1 Concepção bakhtiniana de linguagem e de gêneros discursivos
Na apresentação de sua concepção de linguagem, o Círculo de Bakhtin retoma
tanto a base estruturalista quanto a subjetivista a fim de evidenciar que, para abordagem
da linguagem enquanto como meio de interação e, por conseguinte, como ponte entre o
eu e o outro, as duas visões eram limitadas. Ao desenvolver as ideias,
Bakhtin/Volochinov (2006) defendem que a unidade real é o enunciado, categoria
central em suas discussões.
De acordo com essa orientação, a linguagem a todo instante se (re)constrói e,
ao mesmo tempo, constitui permanentemente o sujeito. Essa dialogicidade orgânica
revela, portanto, a dinâmica da linguagem e o inacabamento do ser.
Assim, todo enunciado encontra-se em uma rede de já-ditos e de ditos ainda em
vias de elaboração, apenas presumidos. Dessa maneira, o enunciado resulta de uma
cadeia discursiva, uma vez que concentra em si as várias vozes sobre um mesmo objeto.
A novidade, então, reside na eventicidade: um sujeito, em tempo e espaço definidos,
diante de um outro com o qual dialoga, para quem lhe dirige a palavra.
Decorrente dessa concepção da linguagem, compreendemos o conceito de
gêneros discursivos também nesse caminho de (re)construção permanente, visto que
auxiliam e materializam nossas práticas discursivas sempre em um campo de atividade
humana. Orientados pelos propósitos comunicativos, eles apresentam como traços
distintivos três elementos os quais, segundo Bakhtin (2003), são essenciais, a saber:
conteúdo temático (determinado assunto mais frequentemente abordado naquele
gênero), estrutura composicional (configuração espaço-textual, o acabamento
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discursivo) e configuração estilística (seleção e combinação de recursos expressivos da
língua).
A partir de tais peculiaridades, podemos dizer que, de um lado, existe uma
regularidade dos enunciados que deriva de certas regularidades da interação social por
ser esta, também, relativamente estável e constituída na historicidade das atividades
humanas; de outro, existe uma relatividade, indicando que não devem ser
compreendidos apenas como produtos totalmente acabados, estáveis e impassíveis às
mudanças, por vezes necessárias. Uma leitura precipitada e fragmentada dos escritos de
1952-1953 – Os gêneros do discurso – e o desconhecimento das especificidades do
enunciado podem levar uma possível fossilização, como o próprio Bakhtin (2003, p.
265) antecipa:
O desconhecimento da natureza do enunciado e a relação diferente
com as peculiaridades das diversidades de gênero do discurso em
qualquer campo da investigação lingüística redundam em formalismo
e em uma abstração exagerada, deformam a historicidade da
investigação, debilitam as relações da língua com a vida.
Essa observação nos conduz a uma das definições – parciais, em nosso
entendimento – mais lembradas: a de gênero como tipos relativamente estáveis. A
ênfase nessa definição, sob a perspectiva dialógica da linguagem, deve recair ao traço
do relativamente a fim de evidenciar a dinamicidade característica da pluralidade de
práticas de linguagem mobilizadas em um tempo e um espaço concretos.
De acordo com o pensamento bakhtiniano, portanto, defendemos a necessidade
e a importância do estudo pautado nos gêneros discursivos, porque são reveladores das
possibilidades de interação social entre sujeitos (AMORIM, 2004), em outras palavras,
no campo do ensino, são orientadores de atividades de leitura e de escrita.
2.2 Estilo e gramática em perspectiva discursiva: a pontuação como entoação
valorativa do gênero discursivo
De modo geral, os aspectos constituintes dos gêneros discursivos como
conteúdo temático e estrutura composicional são dois elementos quase sempre
abordados pelos livros – sejam teóricos, sejam didáticos – que dão suporte ao ensino
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(BUNZEN, 2006). Além disso, em muitas situações de orientação didática, o professor
também direciona maior atenção para a estruturação por se tratar, quase sempre, de um
formato que nos vem à mente quando somos impelidos a produzir determinados textos,
enquadrados em certos gêneros. No entanto, no que se refere ao aspecto do estilo,
somos levados, muitas vezes, a observar os indícios valorativos a partir da seleção
vocabular, grau de (in)formalidade e de algumas construções sintáticas tão-somente.
Ficam sem visibilidade outras notações estilísticas, sobre, por exemplo, a pontuação:
também responsável por estabelecer a “liga” das construções sintáticas, bem como por
entoar valorativamente o enunciado e, inclusive, demarcar textualmente a interlocução,
a relação com o seu potencial leitor2. A respeito de questões gramaticais e construção de
sentidos, Bakhtin (2013), na década de 40, já fazia a crítica a um ensino que se fecha
para as possibilidades da língua.
Nessa mesma direção, cabe-nos dizer que o próprio Bakhtin (2003) alertou
para as possibilidades de estilo: individual e funcional. Tal destaque nos ajuda a pensar
também na escrita de determinados gêneros, alguns dos quais mais permissivos à
expressividade do sujeito-autor; outros mais rígidos e, por isso, menos propícios à
autoria individual. Observando as nuances, podemos dizer que a pontuação aparece,
sobretudo no primeiro caso, como um recurso importante para dar ênfase a alguma
informação, para dialogar – até mesmo com o interlocutor idealizado –, para oferecer
uma pausa dramática, por exemplo, enfim, para manter relações que saem daquela
previsibilidade classificatória e desbastada de voz que a gramática normativa sugere.
Apesar desse acento valorativo ser mais evidente no estilo individual, devemos
lembrar que, mesmo nos gêneros mais padronizados, os recursos da língua mobilizados
servem a certas intenções.
Com base nessas considerações, podemos estabelecer um relação mais estreita
entre estilo e gramática. A esse respeito, Puzzo e Da Silva (2013, p. 264) asseveram:
estilo não está ligado apenas ao sujeito, mas está relacionado com o
público leitor, portanto com o horizonte social de sua audiência
2 A esse respeito, as investidas teórico-analíticas de Silva têm sido utilizada em nossos estudos
por avançar nas pesquisas sobre pontuação em perspectiva discursiva, sobretudo nessa relação
interlocutiva, nessa expressividade valorativa. Sua dissertação abordou a relação dialógica
estabelecida entre os colunistas de um dado jornal e seus leitores (SILVA, 2009).
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(Bakhtin, 2003), o ensino de gramática deve estar vinculado à prática,
portanto à língua em uso, num movimento dialógico e interativo.
Ao se referir desse modo à construção do estilo, Puzzo e Da Silva (2013)
tomam como suporte uma gramática que não se fecha em classificações previamente
determinadas. Defendem, pois, que a escolha já consiste um ato estilístico frente ao
enunciado. Complementam ainda dizendo:
Ao desvincular o ensino da sintaxe do ponto de vista exclusivamente
gramatical, o autor introduz um aspecto caro para a sua teoria
dialógica de linguagem, o estilo. Nesse caso não o estilo como
manifestação pura e simples da subjetividade do autor, mas segundo a
concepção de estilo decorrente da duplicidade constitutiva em que
autor/leitor/público integram a estruturação enunciativa (p. 271).
Do modo como se entende a pontuação – dentro da perspectiva dialógica da
linguagem –, podemos perceber mais explicitamente sua íntima relação com a esfera em
que se produz/circula, com o gênero discursivo selecionado, bem como com o propósito
comunicativo almejado. Nesse sentido, a questão relativa à entoação valorativa não
deveria estar à parte e ser “estudada” apenas como um recurso estilístico em si,
desconsiderando o projeto de dizer do sujeito produtor.
Essa interrelação entre esfera e gênero e, obviamente, entre gênero e estilo vem
sendo colocada em evidência por Bakhtin (2003, p. 269), conforme constatamos:
A gramática (e o léxico) se distingue substancialmente da estilística
(alguns chegam até a coloca-la em oposição à estilística), mas ao
mesmo tempo nenhum estudo da gramática (já nem falo de
gramática normativa) pode dispensar observações e incursões
estilísticas. Em toda uma série de casos é como se fosse obliterada
a fronteira entre a gramática e a estilística.
Apoiada nesse pensamento, Casado Alves (2014) defende a não segmentação
das aulas de Língua Portuguesa, como habitualmente dividida em Literatura, Gramática
e Produção de textos, tal qual o livro em análise neste artigo. Essa separação, conforme
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alerta, pode perpetuar ainda mais a dificuldade de escrita do aluno e de sua plena
expressão.
Corroboram, ainda, essa visão Britto (2007) e Geraldi (2006) ao afirmarem
que, no processo de escrita, os variados recursos linguísticos são adquiridos. Assim, eles
ressaltam que, por meio do uso e da reflexão do uso, tal domínio vai se consolidando.
Esse domínio se estabelece nas situações específicas, nos contextos que indicam de que
modo o sujeito deve organizar o seu projeto discursivo.
3 ANÁLISE: ORIENTAÇÕES DE UM LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA
PORTUGUESA PARA O USO DA PONTUAÇÃO EM TEXTOS ESCRITOS
Recorte de um estudo mais amplo no âmbito da Linguística Aplicada, este
artigo caracteriza-se por sua abordagem qualitativa, de perfil interpretativista
(CHIZZOTTI, 1998; FREITAS, 2002, 2007). Assim, para aprofundar a presente
discussão, optamos por analisar apenas um Livro Didático de Língua Portuguesa,
considerando a resenha apresentada no Guia PNLD 2015, bem como os critérios
apresentados no próprio livro a respeito de seus fundamentos teórico-metodológicos.
3.1 Descrição do Livro Didático sob análise
Foi selecionado apenas um Livro Didático de Língua Portuguesa cujos critérios
se deram tanto pela sua menção e boa avaliação no catálogo disponível no Guia
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) do ano 2015 quanto pela explicitude de
sua base conceitual. Segundo as autoras dos livros em questão, a abordagem da
produção textual escrita tem natureza discursiva e, por isso, avaliamos que teria mais
pertinência se o estudo focalizasse o confronto entre a fundamentação teórica defendida
no material e sua efetiva consolidação por meio dos exercícios/propostas de produção
textual/leitura.
Trata-se da coleção Português: contexto, interlocução e sentido, de autoria de
Maria Luiza M. de Abaurre, Maria Bernadete M. Abaurre e Marcela Pontara, da Editora
Moderna, de 2013, em sua 2ª edição. Dividida em consonância com as séries do ensino
médio, apresenta-se em três volumes. Em cada um, o sumário se organiza em três
grandes frentes: literatura, produção de textos e gramática. Dentro de cada “frente”, são
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apresentadas unidades – estas, por sua vez, subdivididas em capítulos – que explorarão
determinados conteúdos.
Em linhas gerais, podemos dizer que a diversidade de gêneros de diferentes
esferas discursivas reflete já uma preocupação levantada por pesquisadores dessa área
de estudos. Identificamos, apenas para exemplificar, relato, carta pessoal, email, diário,
notícia, reportagem, resenhas, crônica, biografia, carta argumentativa, artigo de opinião,
editorial, conto, relatório... Além disso, conforme a avaliação do PNLD 2015, o livro
sob análise apresenta uma adequada linguagem para o público alvo (alunos do ensino
médio) e várias indicações de escrita e reescrita com base em determinados parâmetros
de avaliação do texto. Quanto a isso, o Guia avalia-o positivamente, ressaltando,
inclusive, a unidade interna na relação entre tipo textual e gênero:
A produção escrita privilegia as relações entre a linguagem e seus
contextos de uso, e conjuga o estudo de tipos e gêneros, reunindo
numa unidade dedicada a determinado tipo discursivo, capítulos que
focalizam gêneros textuais compostos predominantemente desse tipo.
Os gêneros são considerados em sua função nos contextos sociais de
uso, sua temática, sua forma composicional e seu estilo. (GUIA DE
LIVROS DIDÁTICOS, 2014, p. 28).
Já quanto ao direcionamento do trabalho com o conhecimento linguístico –
também de nosso interesse pelo entendimento que já expusemos –, são destacados os
aspectos que favorecerem o estudo das práticas de linguagem:
O trabalho com os conhecimentos linguísticos é desenvolvido em
todos os volumes da coleção. Além de tópicos comumente abordados
em materiais didáticos, abordam-se os usos da linguagem e suas
adequações linguísticas, examinando, entre outros, a influência da
internet na linguagem e na constituição dos gêneros digitais, os
neologismos no Brasil, que se aplicam às relações comunicativas
próprias aos gêneros digitais, bem como a formação do português
brasileiro, dentre outros. As reflexões linguísticas propostas
favorecem a compreensão de aspectos morfológicos, sintáticos e
semânticos, examinados em seu uso nos textos que ilustram os
trabalhos desse eixo. (GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS, 2014, p. 33
[grifo nosso]).
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Como se pode ver, os dois eixos descritos são positivos. Contudo, vale ressaltar
que, ao avaliarmos integralmente a coleção (volume 1, 2 e 3), somente em uma unidade
do último volume há uma dedicação à pontuação, em uma das três frentes: Gramática.
Tal organização, ainda que com objetivo didático, pode dificultar a percepção das
práticas de linguagem em sua inteireza. Para tornar esse dado mais claro, selecionamos
duas atividades, uma do volume 1 e outra do volume 3, as quais serão apresentadas a
seguir.
3.2 Análise do Livro Didático sob a perspectiva discursiva
Além da avaliação do PNLD, levamos em consideração, também, o que dizem
os documentos oficias para o ensino de Língua Portuguesa, uma vez que estes servem
como balizas para a Educação Básica. Inclusive, quanto a essas orientações, os
conselhos editoriais deve(ria)m ter interesse em acompanhar a fim de se alinharem
teórica e metodologicamente com as atuais recomendações para o mercado do livro.
Em Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006, p. 39),
especificamente na parte de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, são dadas
indicações para o trabalho com as práticas de linguagem. Quanto às ações sugeridas
para a escrita, estão:
Os documentos oficiais, de acordo com o que se constata, resguardam interesse
por uma abordagem que esteja voltada para a construção de sentidos, ou seja, para o
campo discursivo.
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Sabemos, porém, que os livros sugeridos no PNLD são submetidos a uma
avaliação com critérios previamente divulgados. Apesar disso, certas fragilidades são
evidenciadas, por exemplo, na referida coleção. A principal delas concerne à
dissonância entre a apresentação de sua fundamentação teórico-metodológica em
relação a alguns exercícios propostos.
Observemos, no volume 1 do referido Livro Didático, o caso específico de
uma proposta textual. A atividade integra o capítulo que se orienta pelas sequências
textuais narrativas e descritivas, sendo o relato o gênero escolhido para a produção
escrita.
Embora em capítulos anteriores a produção se organize em 3 etapas –
pesquisa e análise de dados; elaboração; e reescrita do texto –, nesta seção,
identificamos tão-somente as duas primeiras. Vejamos:
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Na atividade, a proposta situa o aluno em relação ao que está sendo abordado:
procura-se aproximar o tema sugerido ao aluno e, ao mesmo tempo, ao perfil do público
leitor indicado. Ademais, foi trazida uma amostra de um relato a fim de facilitar o
reconhecimento e a produção do texto enquadrado neste gênero. Depois, foi dada a
orientação para que fossem procurados casos que também pudessem ser reproduzidos
na modalidade escrita.
Para a elaboração, alguns lembretes foram fornecidos com objetivo de fazer
com que o aluno esteja atento a: 1) distinção entre as modalidades fala e escrita e suas
peculiaridades constitutivas; 2) estrutura a ser mantida a partir da explicação dada
naquele capítulo; 3) recursos específicos da fala que devem encontrar um registro
correspondente na escrita; 4) grau de formalidade a ser seguido em função do contexto
apresentado.
Interessa-nos, neste momento, destacar que os aspectos 1 e 3 estão
intimamente vinculados, pois, ao distinguir as modalidades de linguagem e
simultaneamente propor uma equivalência entre o oral e o escrito, poderiam ser
explorados explicitamente os sinais de pontuação. Afinal, estes são marcadores – nessa
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transição, sobretudo – de expressividade e de autoria do sujeito portador da voz.
Quando consideramos o texto como enunciado, no sentido proposto por Bakhtin (2003),
percebemos que todos os recursos – em conjunção – revelam a integralidade do dizer,
acentuando ou amenizando, por exemplo, algo. Ao observar assim a pontuação,
entendemos, com Puzzo (2012), que seu uso sinaliza o “cruzamento de vozes de várias
instâncias sociais expressas na materialidade textual” (p. 170), sendo responsável por
registrar “o embate e a tensão decorrentes dessa heterogeneidade” (p. 170). Nesse
sentido, o estilo passa a ser um conjunto de procedimentos, sejam lexicais, sejam
gramaticais, que sinaliza as posições de sujeito, sua expressividade.
Vale a ressalva de que, na parte em que são expostas as características do
gênero em questão, as autoras – quando tratam da estrutura concernente ao relato – em
sua versão escrita, destacam que o sujeito precisa estar atento ao que se segue:
Apesar de não adensarem a importância de se compreender a pontuação e seus
efeitos de sentido, elas fazem um destaque importante. Contudo, não o recuperam na
atividade encaminhada.
Sob um viés discursivo, portanto, vemos o estilo intimamente vinculado à
gramática. Contudo, esse olhar depende das “lentes” teóricas com as quais analisamos o
caso. Nas palavras de Bakhtin,
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Pode-se dizer que a gramática e a estilística convergem e divergem em
qualquer fenômeno concreto de linguagem: se o examinamos apenas
no sistema da língua estamos diante de um fenômeno gramatical, mas
se o examinamos no conjunto de um enunciado individual ou do
gênero discursivo já se trata de fenômeno estilístico. Porque a
própria escolha de uma determinada forma gramatical pelo falante é
um ato estilístico (BAKHTIN, 2003, p. 269 [grifo nosso]).
Agora, passemos para o segundo caso de uma proposta de escrita que integra o
volume 3. A atividade faz parte unidade que trata de convenções de escrita. Essa
unidade se desdobra em dois capítulos, um exclusivamente voltado para a crase e outro
para a pontuação. Essa entrada, tímida e já no final, acaba por se assemelhar a outros
materiais que não se dizem estar no campo discursivo da linguagem. Tal segmentação
também já nos antecipa o tratamento dado no que se refere aos aspectos de produção
textual. Vejamos:
A começar pela composição da atividade, visualizamos já uma formatação,
uma disposição visual distinta das propostas3 de produção textual que constam no
restante do LDLP: não há um momento destinado à pesquisa, para fundamentar o
projeto de dizer, nem um último direcionado para a reescrita, para poder refletir sobre as
escolhas que foram realizadas com base na intenção pretendida. Esse tratamento visual
sinaliza, antes mesmo de olhar atentamente para o exercício, que a escrita – se
3 Naquela primeira análise, também identificamos que apenas duas sessões são oferecidas como suporte: a
da pesquisa e da escrita propriamente dita.
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acompanharmos a estruturação integral do LDLP – não ocorre em um processo. O
momento da escrita parece ser pontual, desarticulado das demais etapas. Ressaltamos,
nesse sentido, que a seleção do verbo “pratique” nos faz pensar que, de fato, o propósito
recobre tão somente a ideia de fixação/verificação.
Diferentemente do que vimos no primeiro caso analisado em que são dadas
algumas coordenadas relativas à situação, no segundo caso, observamos que, apenas em
função do que foi estudado no capítulo, solicita-se uma produção escrita em que sejam
utilizados também os mesmos sinais de pontuação. Na proposta, portanto, balizas
necessárias ao projeto de dizer do sujeito foram deixadas de fora: a situação, a
circulação, a publicação, o público leitor possível. Destaquemos aqui outro dado e
natureza coercitiva: “escrever uma crônica utilizando uma estrutura semelhante à
apresentada no texto de Paulo Mendes Campos, na qual vírgula e ponto e vírgula
desempenham um papel fundamental”. Esse tipo de atividade não coloca a pontuação a
serviço da funcionalidade do gênero. Pelo contrário, o parâmetro foi exclusivamente
estrutural sem levar em conta uma situação comunicativa que pudesse suscitar a escrita
da crônica. A lógica foi invertida com o intuito apenas de verificar se o aluno foi capaz
de assimilar o conteúdo trabalhado no capítulo.
É, portanto, preocupante essa “visada normativista do gênero”, como alerta
Rodrigues (2014, p. 43). Tal visão desconsidera o contexto em que se produz, minimiza
ou apaga as relações dialógicas possíveis, ignora a esfera em que texto pode circular,
coloca em segundo plano a historicidade que se revela por tal prática de linguagem. Em
outras palavras, o gênero, sob esse prisma, se reduz a uma fôrma a partir da qual o aluno
identifica suas regularidades como se os sujeitos implicados não tivessem qualquer
interferência sobre o enunciado.
Se o aluno for levado a refletir sobre os gêneros utilizados em função dos
efeitos de sentido, muito provavelmente ele pode reconhecer a necessidade de pontuar
adequadamente, seguindo, portanto, um parâmetro discursivo. Nesse sentido, acentua-se
ainda mais a importância de deixar de lado os exercícios prescritivos, embora em dado
momento eles sejam importantes, para ceder mais espaço para propostas textuais por
meio das quais sejam possíveis os momentos de análise, de reflexão, de reescrita. É
fundamental atentarmos para o fato de que “o texto do aluno é também uma reação-
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resposta a[o] material didático e ao trabalho do professor na sala de aula, que, por sua
vez, são balizados pela tradição escolar” (RODRIGUES, 2014, p. 46).
Percebemos que a noção de gênero empregada pelas autoras do LDLP
apresenta fragilidade, uma vez que alguns pressupostos são relegados a um segundo
plano na materialização linguística. De um lado, recursos gramaticais que poderiam
auxiliar na arquitetônica da produção não foram enfatizados; de outro, os aspectos
discursivos não foram mencionados para melhor direcionar a escolha dos recursos da
língua no processo de escrita. Essa polarização, inclusive, demarcada pela formatação
da coleção em que, em uma ponta, estão as atividades de produção, e, em outra, estão a
de gramática, apenas corrobora nosso posicionamento inicial: precisamos continuar
problematizando práticas de linguagem sugeridas pelos LDLP, em especial aquelas que
estão relacionadas aos usos da pontuação por ser ainda um campo de reflexão pouco
explorado em uma perspectiva discursiva.
As duas ocorrências, pelo que vimos, não permitem uma reflexão sobre os
sinais de pontuação como recurso expressivo. Não se coloca no centro da proposta a
produção de sentido, as relações interlocutivas possíveis, nem as coerções impostas pelo
gênero e pela esfera tendo em vista o uso que se faz da pontuação. Essas amostram são
representativas das práticas que entendem, portanto, o estudo da gramática fora dos
parâmetros discursivos. Isso demonstra a incongruência existente entre a fundamentação
teórica assumida pelas autoras e o tratamento dado nos exercícios encaminhados.
Em síntese, o material precisa ser revisto a fim de que se possa avançar no
ensino desse conteúdo e apresentar em uma versão realmente condizente com que os
especialistas da área têm defendido na contemporaneidade. Os autores do LDLP não
podem ser eximidos da responsabilidade que assumem quando ofertam seu material ao
mercado e às instituições de educação, principalmente quando se trata de escolas
públicas, já que representa um alto investimento por parte do governo federal, através
do programa institucional responsável pela seleção, divulgação e distribuição dos
materiais.
4 CONCLUSÕES PRELIMINARES
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O material analisado demonstra, conforme foi indicado pelo próprio PNLD,
uma clara coerência de lidar com os gêneros discursivos como organizadores das
práticas sociais de leitura e de escrita. Contudo, não existe uma orientação
explicitamente consistente para o uso dos sinais de pontuação dentro dos
encaminhamentos dados para a produção de textos escritos.
Essa ausência de direcionamento para os sinais de pontuação e seus efeitos no
processo de escrita faz com que o referido livro didático reforça uma organização
fragmentada. Vale destacar, uma vez mais, que o espaço destinado à exploração desse
aspecto é muito restrito: existe uma delimitação específica e reservada dentro de um dos
3 volumes e circunscrito ao eixo Gramática. Tal constatação sinaliza a urgência em
reavaliar o ensino da pontuação, afinal, deveria ser compreendido como um recurso
expressivo que serve tanto à estruturação do gênero discursivo quanto ao projeto
autoral.
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