Análise de Eros e Psique

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Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP DLCV – Literatura Portuguesa VI – Profa. Dra. Marlise Vaz Bridi Nome: Ana Carolina Alecrim Benzoni – 3136567 - noturno A Complexidade de Fernando Pessoa em Eros e Psiquê A principal idéia deste trabalho é fazer, de maneira sucinta e compacta, uma análise do poema Eros e Psique de Fernando Pessoa, apresentando ao leitor uma idéia básica da intertextualidade que essa obra possui e do valor social que o poema revela ao longo de suas estrofes. Por ser um poema extremamente complexo, não será possível analisar todos os aspectos que lhe são inerentes e, por isso, o trabalho ficará restrito apenas a alguns aspectos mais gritantes no âmbito poético, psíquico e social. Eros e Psiquê …E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade. Do Ritual do Grau de Mestre do Átrio na Ordem Templária de Portugal Conta a Lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante, que viria

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Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP

DLCV – Literatura Portuguesa VI – Profa. Dra. Marlise Vaz Bridi

Nome: Ana Carolina Alecrim Benzoni – 3136567 - noturno

A Complexidade de Fernando Pessoa em Eros e Psiquê

A principal idéia deste trabalho é fazer, de maneira sucinta e compacta, uma

análise do poema Eros e Psique de Fernando Pessoa, apresentando ao leitor uma idéia

básica da intertextualidade que essa obra possui e do valor social que o poema revela ao

longo de suas estrofes. Por ser um poema extremamente complexo, não será possível

analisar todos os aspectos que lhe são inerentes e, por isso, o trabalho ficará restrito

apenas a alguns aspectos mais gritantes no âmbito poético, psíquico e social.

Eros e Psiquê

…E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.

Do Ritual do Grau de Mestre do Átriona Ordem Templária de PortugalConta a Lenda que dormia

Uma Princesa encantadaA quem só despertariaUm Infante, que viriaDe além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,Vencer o mal e o bem,Antes que, já libertado,Deixasse o caminho erradoPor o que à Princesa vem.

A Princesa AdormecidaSe espera, dormindo espera.Sonha em morte a sua vida,E orna-lhe a fronte esquecida,

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Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,Sem saber que intuito tem,Rompe o caminho fadado.Ele dela é ignorado,Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino —Ela dormindo encantada,Ele buscando-a sem tinoPelo processo divinoQue faz existir a estrada.

E se bem que seja obscuroTudo pela estrada fora,E falso, ele vem seguro,E, vencendo estrada e muro,Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,À cabeça, em maresia,Ergue a mão e encontra hera,E vê que ele mesmo eraA Princesa que dormia.

Não resta dúvida nenhuma, ao lermos o poema acima, de que se trata de uma

obra de Pessoa extremamente complexa e dialética. Neste poema, Pessoa nos mostra

mais uma vez todo o seu dom de lidar, tratar, de forma sutil com o bipolar, os opostos e,

acima de tudo, a facilidade que ele tem de não estigmatizar conceitos ou acabar com

conceitos estigmatizados, ajudando a destruir, desta forma, a idéia de que exista uma

verdade absoluta ou um único meio de se analisar o mundo e as coisas ligadas a ele.

Como podemos notar, o poema possui um fio narrativo e centra a história em

duas únicas personagens: Princesa e Infante. Essas personagens irão representar, ao

longo dos poemas coisas opostas que anseiam uma pela outra, vejamos:

A princesa está dormindo, ou seja, num estado passivo à espera de seu Infante.

Ligada a ela temos as palavras que nos remetem ao mundo da imaginação ou sonho – ao

mundo onírico. Por estar dormindo, ela está fora do mundo da razão.

"Conta a Lenda que dormia ...A quem só despertaria" (estr. 1)

"A Princesa Adormecida

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Se espera, dormindo espera.Sonha em morte a sua vida,E orna-lhe a fronte esquecida,Verde, uma grinalda de hera." (estr. 3)

"Ela dormindo encantada" (estr. 5)

"…em sono ela mora" (estr. 6)

"A Princesa que dormia" (estr. 7)

Como podemos ver, o estado de passividade da princesa, esse estado adormecido

permite à mesma sonhar.

O Infante, por sua vez, está extremamente ligado ao mundo material, ao mundo

da razão:

"A quem só despertariaUm Infante, que viriaDe além do muro da estrada." (estr. 1)

"Ele tinha que, tentado,Vencer o mal e o bem,Antes que, já libertado,Deixasse o caminho erradoPor o que à Princesa vem." (estr. 2)

"Longe o Infante, esforçado,Rompe o caminho fadado." (estr. 4)

"Ele buscando-a sem tino" (estr. 5)

"…ele vem seguro,E, vencendo estrada e muro,Chega onde em sono ela mora." (estr. 6)

É o Infante que vai atrás da amada, vencendo obstáculos como o mal e o bem,

tendo que fazer escolhas, deixando o caminho errado, fadado. Temos um Infante

esforçado que desatinado (sem tino) busca a Princesa com a ânsia de quem precisa ser

completado.

Essa história narrada não nos é estranha, com razão, ela nos remete, num

primeiro momento ao Conto de Fadas “Bela Adormecida”, tão conhecido popularmente

e que foi provavelmente originado do mito grego que traz o mesmo título que o poema:

Eros e Psique.

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Em resumidas palavras, o Mito de Eros e Psique nos conta a história de amor

entre Eros (o deus do Amor, que por vezes é apresentado como criança, por vezes como

um jovem) e uma mortal extremamente bela Psique.

Psique era umas das três filhas de um rei, todas belíssimas. Ninguém mais

visitava os templos de Afrodite deusa da beleza. Todos dirigiam-se à formosura de uma

simples mortal: a princesa Psique. Enciumada, Afrodite envia Eros para vingar-se: ele

deveria, com suas flechas, fazer Psique apaixonar-se pela criatura mais desprezível e

feia do mundo. Mas, Eros se fere com suas flechas e se apaixona por Psique. Num ato

de paixão, Eros mente à mãe dizendo que ela estava livre da rival. Sendo muito bela

Psque não conseguia um marido, pois todos temiam sua beleza. Preocupados, seus pais

procuraram os oráculos (que já havia se aliado a Eros) e foram instruídos para vesti-la

com as roupas de casamento e deixá-la no alto de um rochedo, lá no alto um vento

muito forte (Zéfiro) começou a soprar e a carregou pelo ares com delicadeza e a

depositou no fundo de um vale. Exausta, Psique adormeceu. Quando acordou, se viu

num maravilhoso castelo de ouro e mármore. À noite, percebeu a presença de seu

esposo predestinado pelo oráculo. Este lhe disse que seria o melhor dos maridos, mas

que ela jamais poderia vê-lo, se não iria perdê-lo para sempre. E assim foram seus dias,

seu marido lhe trazia o mais profundo amor. Com o tempo, Psique sentiu saudades dos

pais e pediu para visitá-los. Os oráculos advertiram que essa viagem não seria boa, mas

ela implorou, ... até que seu marido cedeu. Suas irmãs ao vê-la tão bem, se encheram de

inveja e ao saberem que ela nunca tinha visto o marido, convenceram- na de fazê-lo;

com a intenção de prejudicá-la. De volta, Psique curiosa: tão logo veio a noite, acendeu

uma vela para ver o marido, ficou embevecida com tamanha beleza. A vela derreteu-se

e um pingo de cera caiu sobre o peito de EROS, seu marido oculto, fazendo-o acordar.

Disse-lhe: "O amor não vive sem confiança". Com a quebra da promessa, Eros partiu,

fazendo cumprir a sentença do oráculo. Abandonada sentindo-se só e infeliz, Psique, a

Alma, passou a vagar pelo mundo na companhia de Tristeza e Inquietude. De tanto

sofrer, ela entregou-se à morte, e caiu num profundo sono. Eros, não suportando ver a

esposa passar por tanta dor, implorou a Zeus que tivesse compaixão deles. E com a

permissão deste tirou-a do sono eterno com uma de suas flechas e uniu-se a ela, um

deus e uma mortal, no Monte Olimpo. Assim Eros e Psique (o Amor e a Alma)

permaneceram juntos por toda a eternidade.

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Podemos ver muitas semelhanças entre o Mito original e o poema de Pessoa, o

que faz então de Pessoa um poeta tão singular se ele nos traz uma releitura de um mito

tão antigo? Ao observarmos melhor, podemos perceber que Pessoa sutilmente nos trará

uma inversão de valores ao longo do poema: No início da narrativa do Mito, é Eros que

está dormindo quando tem sua identidade desvendada por Psique, e é esta que irá

procurá-lo (a sua identidade, saber quem ele é), que irá despertá-lo do sono; além disso,

no mito é Psique quem, após ter perdido seu amado, irá buscá-lo desesperadamente,

tendo que vencer obstáculos até conseguir recuperar o amado. Em Fernando Pessoa é o

infante que é submetido a provas: “vencer o mal e o bem”, antes que “deixasse o

caminho errado”. No mito original, Psique vence, sucumbindo ao mal quando

desobedece às ordens de Eros (infringindo a proibição de vê-lo), mas vence o mal

quando é tentada nas provas a que é submetida, e assim "deixa o caminho errado" e

poderá reunir-se futuramente a seu amado. Por seu turno, Eros, nesse meio tempo, jazia

num leito (recuperando-se da queimadura).

Mas, não é nesta sutil inversão de papéis que Pessoa irá revelar toda a sua

grandeza no poema, e sim na última estrofe, principalmente nos dois últimos versos:

“E inda tonto do que houvera,A cabeça em maresia,Ergue a mão e encontra a hera,E vê que ele mesmo eraA princesa que dormia”

Ao revelar que o Infante e a Princesa eram, constituíam o mesmo ser, Pessoa

destrói o conceito de verdade absoluta que acompanha a humanidade há milênios.

Voltemos à polaridade descrita acima entre a Princesa e o Infante: Para a

Princesa, temos as palavras: sonhos, fantasia, ilusão, espera, contemplação, repouso,

passividade, feminino enquanto para o Infante temos vigília, realidade, verdade, busca,

ação, luta, atividade, masculino.

Todas as características atribuídas à Princesa, são socialmente atribuídas ao

universo feminino, às mulheres: a mulher é passional, emotiva, está sempre à espera de

algo (marido, filho..), ilude-se mais facilmente, fantasia com mais freqüência; enquanto

aos homens cabe a descrição dada ao Infante: é o homem quem protege a casa, quem

trabalha na busca do alimento, está sempre em atividade...

Nas sociedades ocidentais, ainda nos dias de hoje, encontramos esta visão em

que homens e mulheres são diferentes um do outro com características previamente

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marcadas por anos de cultura. Ao observarmos esta descrição podemos perceber quão

distante, acordo a cultura ocidental, encontra-se o universo masculino do feminino. E, é

com essa idéia que temos convivido, e a essa idéia damos o parecer de “verdade

absoluta”1.

Ao revelar, nos dois últimos versos, que O Infante e a Princesa tratam-se da

mesma pessoa, de um ser uno, Pessoa acaba por destruir todo o conceito de divisão de

mundo já descrito acima e, por sua vez, o conceito de verdade absoluta. Ele revela que

homem e mulher são um só, e que um pode trazer consigo as características inerentes ao

mundo do outro.

Vamos observar a epígrafe do poema, até agora deixada de lado: “…E assim

vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas

que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma

verdade.” O que Pessoa nos revela com esta parte de um Ritual oculto? Exatamente a

mesma idéia que está presente no desfecho do poema: Duas verdades opostas (dois

mundos opostos – feminino e masculino) são a mesma verdade, compõe a mesma

unidade, não há separação entre elas.

Tomo a liberdade de chamar essa revelação de “Quarto Golpe ao Narcisismo

humano”. Freud nos traz, em um de seus ensaios, as três revelações que ele chama de 3

Golpes ao narcisismo humano, seriam eles: O golpe cosmológico: quando Copérnico

revela que a Terra gira em torno do sol e não o contrário como acreditava-se, o golpe

biológico: quando Darwin revela que nós somos “descendentes dos macacos” e o

terceiro que é o golpe psicológico, em que Freud revela a existência do inconsciente e

afirma que ele às vezes nos domina muito mais do que nosso consciente: “O ego não é

o senhor de sua própria casa”. A revelação de Pessoa pode ser encarada como “golpe

social” em que ele destrói a tão antiga visão da separação de mundos. Infelizmente, o

poema de Pessoa não repercutiu tanto quanto qualquer um dos outros três golpes, não

considero isso como um fato que impede a sua denominação, mesmo que apenas em

caráter analítico deste trabalho.

Mas, qual seria a intenção de Fernando Pessoa em romper com os costumes,

com as “verdades absolutas”? Como sabemos, Pessoa era um iniciado das ciências

1 É importante ressaltar que, após o surgimento do movimento feminista, esta idéia de divisão de mundos tornou-se menor, apesar de não ter deixado de existir. Por isso, torna-se necessário retomar os valores culturais contemporâneos à Fernando Pessoa para um completo entendimento do que está sendo analisado. Não levarmos isto em consideração acarretaria num erro de análise e interpretação.

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ocultas, tinha um grande interesse pelo conhecimento de forma geral, acreditar em uma

“verdade absoluta” seria impedir, truncar a busca pelo conhecimento.

Por fim, voltemos à simbologia do poema: “E orna-lhe a fronte esquecida,/ Verde, uma grinalda de hera.” Para os gregos Hera era a coroa utilizada pelos poetas. Se retomarmos as características atribuídas à Princesa, são todas relacionadas ao mundo onírico/mítico, ao mundo da poesia, enquanto as características do Infante são relacionadas ao mundo da razão, mundo humano. Ao revelar, no final do poema que: “Ergue a mão e encontra a Hera / E vê que ele mesmo era / A princesa que dormia”, encontramos a dialética presente na obra de Fernando Pessoa, como diz Coelho : “Ao conhecemos, no todo, a poesia fernandina, essa identificação essencial, Poeta / Poesia, se torna evidente corno sendo a força dialética que a dinamiza.” A última estrofe do poema nos confirma a afirmação de Coelho e, acima de tudo, uma grande característica da obra de Pessoa: A dialética – Poeta e poesia são uma unidade única, se unem em grandeza, em êxtase : “Inda tonto, do que houvera / à cabeça em maresia”.

Muitas outras abordagens, análises e muitos outros aspectos podem ser tratados

neste poema, quer seja uma análise semiótica, uma análise psíquica ou social, este é um

poema complexo, talvez tão complexo quanto o seu autor. Analisar todos os seus

aspectos em um único trabalho é algo que foge ao propósito deste, por isso, atenho-me

ao que foi analisado até agora, aspectos suficientes para comprovar quão complexo e

revolucionário é Fernando Pessoa. O trabalho trouxe uma pequena análise poética, uma

social e uma psíquica para comprovar quão universal é a obra pessoana.

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BIBLIOGRAFIA

COELHO, N. N, - “Fernando Pessoa, a Dialética de ser em Poesia” – (retirado da Internet)FRANÇA, I, M – “Fernando Pessoa na intimidade: O espiritualismo Pessoano” – (retirado da Internet)FREUD, S. –“Uma dificuldade a caminho da psicanálise” in Uma neurose infantil – Edição Standard Brasileira, vol XVII, Imago Ed., Rio de Janeiro, 1976MENESES, A. B. – “Verdade e Imaginação, ou uma releitura de Eros e Psiquê, de Fernando Pessoa” – (retirado da Internet)SCHWAB, G. – “As mais belas histórias da Antiguidade clássica: Os Mitos da Grécia e de Roma” Paz e Terra ed. São Paulo, 1996 – 4 ed.