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REVELL Revista de Estudos Literrios da UEMS ANO 2, v.1 ISSN: 2179-4456 agosto de 2011

Anais do II-EEL

II Encontro de Estudos Literrios:Desafios da teoria e da crtica literria: final do sculo XX e XXI

14 a 16 de abril de 2011 Unidade Universitria de Campo Grande

REVELL Revista de Estudos Literrios da UEMS ANO 2, v.1 ISSN: 2179-4456 agosto de 2011

Anais do II-EELII Encontro de Estudos Literrios:Desafios da teoria e da crtica literria: final do sculo XX e XXI

14 a 16 de abril de 2011 Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul Unidade Universitria de Campo Grande

Campo Grande/MS 2011

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ANAIS DO II EEL

II Encontro de Estudos Literrios:Desafios da teoria e da crtica literria: final do sculo XX e XXIUnidade Universitria de Campo Grande De 14 a 16 de abril de 2011REITOR Gilberto Jos de Arruda VICE-REITOR Adilson Crepalde GERENTE DA UUCG Celi Neres COORDENADOR DO CURSO DE LETRAS Daniel Abro COORDENADOR DO CURSO DE PS-GRADUAO LATO SENSU EM LETRAS Antnio Carlos Santana de Souza

COORDENADOR DO CURSO DE PS-GRDUAO STRICTO SENSU EM LETRAS Marlon Leal Rodrigues COORDENADORES DO II-EEL Danglei de Castro Pereira Daniel Abro COMISSO ORGANIZADORA Claudia Andra Ferreira Cristiane da Silva Umbelino Danglei de Castro Pereira Daniel Abro Gilson Vedoin Glaucia Beretta Isabelle Dinis Akemi Tanji JanderBaltazar Rodrigues Jos Omar Rodrigues Medeiros Lucilo Antnio Rodrigues Rosa Maria dos Santos Vanessa dos Santos Ferreira Walmir Cardoso Pereira O contedo dos artigos e a reviso lingstica e ortogrfica dos textos so de responsabilidade dos autores.

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SUMRIOApresentao ........................................................................................................................ 12

O corpo ertico em Bernardo Guimares..............................................................................13 Ana Maria Salvador Hauer Ribeiro Rodrigues Para alm do gnero: a inquietude do corpo em La pierna de Severina de Josefina Pl .18 Andr Rezende Benatti Literatura e adaptao audiovisual: elementos entrelaados na formao do leitor .............24 Carlos Alberto Correia Aline Calixto de Oliveira A configurao do mito em rfos do Eldorado .....................................................................32 Ftima do Nascimento Varela Milena C. M. S. Guido Uma nova tarefa poesia brasileira .......................................................................................42 Gabriel Pinheiro de Deus Deus na antecmara: o niilismo de Nietzsche em Ana Cristina Cesar .............................48 Glenda Yasmin S. da Silva The vigil between literary life and death: the case of Shirley Jackson .................................59 Gustavo Vargas Cohen A construo do espao no romance simbolista No hospcio de Rocha Pombo ....................67 Louise Bastos Corra Resgate de mitos e lendas nas Obras Completas de Hlio Serejo .......................................74 Mara Regina Pacheco Leon Astride BarzottoGlauce Rocha: desafios crticos do arquivo e da memria artstico-cultural em Mato Grosso do Sul 83

Marcia Maria de Brito Edgar Cezar Nolasco A dramaturgia do ator na Commedia dellarte .....................................................................96 Marcus Villa Ges Transgresso da linguagem na obra A ltima tragdia de Abdulai Sil ................................102 Ngila Kelli Prado Sana Ana Paula Macedo Cartapatti KaimotiO crioulismo de Hlio Serejo: uma representao literria do regionalismo no Mato Grosso do Sul 115

Noraci Cristiane Michel Braucks Leon Astride Barzotto

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Fundamentos para um estudo da fortuna crtica de Thiago de Mello .................................124 Pollyanna Furtado Lima O crtico de Rubem Braga .....................................................................................................137 Priscila Rosa Martins O amor em retrospecto: duas mulheres de Braga ................................................................146 Rafaela Godoi Bueno Gimenes Luiz Carlos Santos Simon Choque entre fico e real: releituras histricas nos contos de Fernando Bonassi .............156 Raquel Medina Dias A dialtica da malandragem revisitada em O Xang de Baker Street ..................................161 Renato Oliveira Rocha Gabriela Kvacek Betella A memria de um filho prdigo.............................................................................................168 Samuel Carlos Melo O entre-lugar do conto O trovo entre as folhas, de Augusto Roa Bastos ......................176 Silvia Morais Silva Leon Astride Barzotto Arcaico versus moderno em Lavoura arcaica ......................................................................191 Silvio do Espirito Santo

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APRESENTAOO EEL Encontro de Estudos Literrios da UEMS um evento organizado para possibilitar a divulgao das pesquisas em nvel de Ps-Graduao Lato Sensu e Graduao da UEMS, bem como de outras instituies de ensino em MS e em outros estados da federao. Sua primeira edio foi realizada em abril de 2010 com a participao de quinhentos congressistas de diversas instituies brasileiras. O principal objetivo do evento, agora em sua segunda edio, apresentar os resultados e a relevncia dos trabalhos realizados na rea de Letras na UEMS, fomentando, com isso, a consolidao dos Cursos de Graduao e PsGraduao Lato Sensu em Letras, a criao do Mestrado em Letras da UEMS e o fortalecimento dos Grupos de Pesquisa em Estudos Literrios da instituio. tambm objetivo do evento fornecer aos graduandos e ps-graduandos da UEMS um espao de discusses e troca de experincias com outros pesquisadores do estado e do Brasil, fato que contribui para a formao de novos pesquisadores e futuros docentes preocupados com a pesquisa relacionada ao ensino. uma das aes previstas dentro das atividades do Grupo de Pesquisa Literatura, Histria e Sociedade ao promover uma ampliao das discusses realizadas dentro do grupo durante o ano de 2010. Considerando, ainda, a participao da comunidade externa, egressos e professores do ensino fundamental e mdio, o evento tambm constituir uma oportunidade de consolidao da UEMS enquanto instituio pblica. Tendo em vista o incio em 2007 das discusses sobre a implantao do Programa de PsGraduao Stricto Sensu em letras na UEMS, avaliado pela CAPES em 2010. A transferncia em 2010 do Curso de Letras da UEMS de Nova Andradina/MS para Campo Grande, bem como a realizao, em abril de 2010, do I - Encontro de Estudos Literrios da UEMS: Literatura histria e sociedade; a realizao do II EEL Encontro de Estudos Literrios 'Desafios da teoria e da crtica literria: final do sculo XX e XXI" uma forma de divulgar e incentivar a Pesquisa na rea de Letras; fortalecer a Graduao e a Ps-Graduao em Letras na UEMS, tendo como foco especfico, neste caso, os Estudos Literrios. O II- ELL resultado, portanto, de uma ao conjunta entre o Curso de Ps-Graduao Lato Sensu em Cincias da Linguagem da UEMS de Campo Grande e do Curso de Licenciatura em Letras Habilitao Portugus/Ingls Portugus/Espanhol tambm da UEMS. , como j mencionado, resultado de discusses realizadas no Grupo de Pesquisa e uma forma de fortalecer as aes para a construo do Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Letras da UEMS, via fortalecimento dos grupos de pesquisa da instituio. A organizao do evento garante o envolvimento da comunidade acadmica e os resultados esperados s podem ser frutferos na medida em que cada acadmico/pesquisador envolvido no evento ter condies de ampliar seu conhecimento ao interagir com novos olhares, novas linguagens. Pensar no Tema Desafios da teoria e da crtica literria no sculo XX e XXI possibilita uma reflexo importante sobre os caminhos acadmicos para o enfretamento do objeto literrio no contemporneo ao considerar os caminhos trilhados pelos Estudos Literrios dentro do contexto de crise terica que se manifesta ao final do sculo XX e incio do sculo XXI. A compreenso de que a Lngua e a Literatura, vista como expresso cultural de um povo, comporta falares, vozes e posicionamentos ideolgicos conduzem a validade de uma reflexo sobre os caminhos da teoria e da crtica literria enquanto instrumento de avaliao da diversidade do literrio no contexto de transformaes e questionamentos do contemporneo. O II-EEL , neste sentido, um caminho para a ampliao das discusses surgidas no ambiente da UEMS, fato que garante a importncia do Grupo de pesquisa Literatura Histria e Sociedade como instrumento de discusses sobre e a partir do literrio.

Comisso Organizadora

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O CORPO ERTICO EM BERNARDO GUIMARESAna Maria Salvador (G-UFMS) Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS)RESUMO Este trabalho faz uma leitura do pecado e da transgresso sexual no poema O elixir do paj, de Bernardo Guimares, tendo como referencial terico conceitos de Bataille, em O erotismo, e por substrato a exposio sobre sexualidade elaborada por Marilena Chau em Represso Sexual, essa nossa (des)conhecida. O ndio, em Bernardo Guimares, figurativiza o ertico e, a ao do paj se caracteriza por palavres escrachados e por atitudes que o senso comum considera obscenas. Obra publicada em 1875, o poema de Bernardo Guimares, segundo a historiografia do romantismo brasileiro, se contrape tematicamente idealizao da figura do ndio e, em termos formais, faz singular pardia de poemas de Gonalves Dias. O erotismo, na viso de Bataille, se d atravs de transformaes e movimentaes corpreas que excitam interiormente o homem, estando ligado experincia e sendo condicionado pela transgresso: a experimentao ertica contm em si a experincia do pecado. Marilena Chau apresenta o pecado original como a descoberta do sexo, explicando o pecado em duas faces: a primeira o deixar-se seduzir, ou seja, a tentao, e a segunda a queda, o distanciar-se para sempre de Deus. Nosso trabalho tem como pressuposto a concepo de que o sexo reafirma sem cessar que o homem corpreo e carente e mostramos como tal concepo traduzida no poema de Bernardo Guimares. Palavras-chave: transgresso; pecado; Elixir do paj; Bataille. ABSTRACT This study is a reading of sin and sexual transgression in the poem O elixir do paj (The elixir of shaman), by Bernardo Guimares, had as a theoretic concepts of Bataille, in O erotismo (The erotism), and substrate exposure about sexuality developed by Marilena Chaui into Represso Sexual, essa nossa (des)conhecida (Sexual Repression, that our ( un) known). The indian, in Bernardo Guimares, show the erotic, and shamans action is characterized by dirty words and attitudes that common sense considers obscenes. Study published in 1875, the poem by Bernardo Guimares, according to the historiograpy of brazilian romanticism, thematically opposed to the idealization of the figure of the indian and, in formal terms, make a unique parody poems by Gonalves Dias. The erotism, in Batailles vision, occurs through bodily changes and movements that excite the man, being connected to the experience and being conditioned by transgression: erotic experimentation contens within it the experience of sin. Marilena Chaui presents original sin as the Discovery of sex, explaining the sin with two faces: the first is to be seduced, it means, temptation, and the second, is the fall , to distance themselves from God. Our study has how afirmation that the sex constantly reaffirms that the human has a body and needs and show how this concept is translated in the poem by Bernardo Guimares. Keywords: transgression; sin; Elixir of the shaman; Bataille.

1. INTRODUO Este trabalho prope-se a uma breve anlise do Elixir do paj, poema de Bernardo Guimares, a partir da perspectiva da desconstruo de um ndio idealizado pela tendncia literria romntica. Heri s avessas, o velho paj, se destaca por ser o rompimento com as categorias literrias vigentes e por se tornar composio crtica ao autor Gonalves Dias.12

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Baseando-se em variados poemas do Gonalves Dias, Bernardo desconstri no somente a exaltao e o valor do ndio. Conceitos que demonstram a Deus, e da necessidade de tal presena no cotidiano indgena so quebrados, inserindo em questo o afastamento de Deus e a ocupao desse lugar celestial pelo desejo carnal. A experimentao de tal desejo expe a transgresso do interdito, e no momento da transgresso vem tona a angstia, ou seja, a experimentao do pecado. 2. DESCONSTRUO DO NDIO O ndio, em Bernardo Guimares, figuratiza o ertico e exterioriza um velho paj atormentado pela impotncia. Tal paj possua um caralho murcho, cabisbaixo, plido e pendente olhando para o solo que ao receber de modo misterioso uma gota do santo elixir, originrio de longcuas terras, sente renascer os brios de seu velho chourio. A partir deste feito, ningum mais via o velho paj, que sempre fodia.O paj se caracteriza por palavres escrachados, com comportamentos degradantes e por atitudes que o senso comum considera como obscenas. O poema, que era considerado imoral para os princpios da poca, foi excludo do cnone romntico e reprimido assim a vrias impresses clandestinas. A conseqncia da clandestinidade foi a popularidade. Publicada em 1875, o poema de Bernardo Guimares, segundo a historiografia do romantismo brasileiro, se contrape tematicamente idealizao da figura do ndio. O Romantismo nos leva ao contexto do processo de independncia, que se encontra no ndio a imagem que personifica e se projeta as idealizaes do ser brasileiro. I-Juca- Pirama exprime a sublimitude e exalta a imagem do ndio, que em Guimares se torna alvo de divertida chacota, sendo a pardia construda a partir de variaes mtricas, rtmicas e pelo uso de linguagem vulgar, aparecendo termos como caralho, cu, putas e foder com grande freqncia no poema. Tais palavras so explicadas por Bataille: os nomes sujos do amor no deixam de ser menos associados, de uma forma estreita e irremedivel para ns, a essa vida secreta que levamos ao lado dos sentimentos mais elevados.(1987, p.129). 2.1 Pecados: a ausncia de Deus Marilena Chau apresenta o pecado original como a descoberta do sexo, significando tanto como primeiro pecado quanto pecado da origem. Tal descoberta geraria o pecado que explicado em duas faces: a primeira o deixar-se seduzir, ou seja, a tentao, e a segunda a violao de um interdito relativo ao conhecimento do bem e do mal. Estas faces, quando colocadas em prtica, gerariam consequentemente efeitos. Primeiramente seria a descoberta da nudez, que, aliada a ela, traria o sentimento de vergonha de um lado e em outro, o medo da punio. Em segundo, a perda do Paraso. Contudo, esta perda traz implcito em seu significado uma constante: de que o homem13

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perderia o posto que lhe foi entregue Deus disse: Faamos o homem nossa imagem, conforme a nossa semelhana(Gn1.26) Essa igualdade levantada pelo prprio Deus seria quebrada, dando lugar a sua expulso do Paraso, ou seja, para queda. A sentena recebida pelo homem no momento da queda afetou sua relao com Deus, tendo como resultado o afastamento de Deus, o tornar-se mortal (descobrir a morte), conhecer a dor, o sofrimento, a carncia e a falta, alm da perda de atributos divinos como: eternidade, infinitude, incorporeidade, auto-suficincia e plenitude. Essa ruptura entre o ser celestial e o homem notria no Elixir quando se analisa que o termo Deus (no caso da religio do homem branco-civilizado) e Tup (o Deus indgena) no aparece nem uma nica vez, entretanto o que aparece seu oposto, o demnio. /Foi ter com o demnio, a lhe pedir conselho para dar-lhe vigor ao aparelho/ (BATAILLE,p.52). Essa oposio aos conceitos colocados nos textos produzidos pelo seu alvo Gonalves Dias, so perceptveis quando em vrias obras como IJuca-Pirama, h a aproximao dos dois deuses. Quando o forte ndio se v aprisionado pela tribo rival pensando ser tal situao um fardo imposto por DeusTup, faz dos seus rogos uma aproximao no s de discurso, porm tambm de atributos do ser soberano. A desconstruo de Gonalves Dias brilhantemente feita no poema de Bernardo j que ele o faz sem mencion-lo e sem utilizar das caracterizaes romnticas. Canto do Piaga demonstra claramente a preocupao do ndio ao clamar por Tup, que por no atender aos seus chamados, permite a aproximao do perigo. A ausncia do seu guardio facilita a entrada do mal. Mal que tambm cantado em Deprecao, Tup, Deus grande! Teu rosto descobre: bastante sofremos com tua vingana! O Elixir traz essa distncia de Deus de modo claro ao no apresentar a palavra Deus, mas tambm por seu ndio no trazer ao poema a necessidade de aproximao de tal. O paj Bernardino transfere esse lugar ocupado por Tup para algo carnal, demonstrando onipotncia humana, no padecendo de um ser superior. Seu martrio est na busca do preenchimento das suas necessidades corpreas, deixando a mostra que no era qualquer tipo de posse que lhe satisfaria, mas a posse de um corpo, outra pessoa, um algum viril. /Um cabao! Que era este o nico esforo, nica empresa digna de teus brios; porque surradas conas e punhetas so iluses, so petas, s dignas de caralhos doentios./ A virgem seria o seu objeto de desejo, intocada, inexperiente e com o desejo interior florescida. 2.2. Efeitos da queda: o desejo explcito nos poemas romnticos A perda do Paraso ou queda acarreta ao homem a sada da realeza para um campo de relativa inferioridade. O sentimento criado o de rebaixamento real e do qual produziria a descoberta do sexo como vergonha. Com esta humilhao o ser humano descobre o que a corporeidade, possuir um corpo. Corporeidade significa carncia (necessidade de outra coisa para sobreviver), desejo (necessidade de outrem para viver), limite (percepo de obstculos) e mortalidade (pois nascer significa que no se eterno, ter comeo e fim). (BATAILLE, p.86). A14

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necessidade de outrem, a fraqueza de ser s e precisar ser preenchido pelo outro trabalhada em G. Dias com uma perspectiva moderada. No poema Marab a personagem uma mulher, mistura de ndia com homem branco, apesar de uma beleza colossal e minimamente detalhada, representa a amada intocada, que vive sozinha, chorando a espera do seu grande amor. A descrio minuciosa feita por seu autor demonstra peculiaridades da jovem a formar um erotismo comedido, metaforicamente prudente para os apreciadores do romantismo. Tambm trabalhada a disposio da personagem em receber o amado, apesar da distncia e da demora, o vazio dentro de si o que lhe consome, em Leito de folhas verdes, /Por que tardas, Jatir, que tanto a custo voz do meu amor moves teus passos?/. O sexo masculino tambm exposto com seu amor no realizado, se encontrando na tristeza da solido por ter cado de amores por uma mulher de olhos verdes, o qual a personagem nunca mais voltou a ver e por isso padeceu em sofrimento. Olhos Verdes mostra o sofrimento causado pela prpria essncia humana de no se sentir completo em si, mas de padecer no desejo de possuir outra pessoa. 2.3. Transgresso: a violao do corpo Bataille expe a viso de erotismo como transformaes e movimentaes corpreas que excitam interiormente o homem, estando ligado experincia e sendo condicionado pela transgresso. A este respeito Gina Valbo Strozzi afirma:A verdade das interdies a chaves da nossa interdio humana. Elas no so impostas de fora. Isso nos aparece na angstia, no momento em que transgredimos a interdio, sobretudo no momento suspenso em que ela ainda atua, e no qual, contudo cedemos ao impulso a que ele se opunha. Se cedemos interdio, se estamos a ela submetidos, dela no temos mais conscincia. Mas experimentamos, no momento da transgresso, a angstia sem a qual a interdio no existiria: a experincia do pecado. (STROZZI, p. 51)

O pecado do sexo a nostalgia de transpor o abismo imposto pela queda do homem que atravs da atividade sexual diminuda, nos levando ao reencontro dessa continuidade. E ao som das inbias, e ao som do bor, na taba ou na brenha, deitado ou de p, no macho ou na fmea, de noite ou de dia, fodendo se via o velho paj! A ausncia do ser supremo exprime um vazio interior ao homem que precisa ser ocupado e esse ultrapassar a vontade divina que rege o prazer humano com expe Jos Paulo Paes:O prazer encontra seu maior estmulo no na liberdade de perseguir at onde quiser os seus objetivos, mas no constante interdito de faz-lo, o interdito criador do desejo em que Bataille v a prpria essncia do erotismo. (...) mas o interdito sempre andou de mos dadas com o seu oposto, a transgresso, a qual, numa incoerncia apenas aparente, serve exatamente para lembr-lo e refor-lo: s pode se transgredir o que se reconhea 15

REVELL Revista de Estudos Literrios da UEMS ANO 2, v.1 ISSN: 2179-4456 agosto de 2011 proibido. Esse jogo dialtico entre a conscincia do interdito e o empenho de transgredi-lo configura a mecnica do prazer ertico, (...). (PAES, 2006, p. 17)

B. Guimares utiliza da crtica no s ao G. Dias, mas ao romantismo, fazendo no Elixir a construo do pecado intrnseco ao homem, da necessidade de transferncia desse vazio e da sua infinitude a outro algum, conseguindo essa proeza na consumao do ato sexual, tal ato vislumbrado como proibido sendo ento necessrio transgredi-lo para o encontro do prazer. 3. CONCLUSO Estudamos superficialmente conceitos de transgresso e pecado no poema Elixir do paj, de Bernardo Guimares. Este estudo abrange vrios conceitos a serem trabalhados, propondo consequentemente um aprofundamento dos estudos. Pelo exposto, foi possvel aguar a curiosidade por maior conhecimento sobre o assunto, reiterando que este trabalho inicial e que prosseguir com suas pesquisas em busca de maior entendimento dos pensamentos propostos.

REFERNCIAS BATAILLE, G. O erotismo. Porto Alegre: L&PM,1987. CHAU, M. Represso Sexual: essa nossa (desconhecida).So Paulo : Editora Brasiliense, 1984. CORRA, I. E. J. O elixir do paj de Bernardo Guimares. Cien. Let.,Porto Alegre, 2006, p.83120. GUIMARES, B. Poesia ertica e satrica. Rio de Janeiro: Imago,1992. PAES, J. P. Poesia ertica em traduo: seleo e traduo de Jos Paulo Paes. So Paulo: Cia das Letras, 1990. STROZZI, G. V. Experincia ertica e religiosa em Georges Bataille. Faculdade Teolgica IV Centenrio, 2007, p.51. NASCIMENTO, M. A. Faces do erotismo na http://www.filologia.org.br/viicnlf/anais/caderno10-07.html (acessado em: 16.10.10) aprendizagem dos prazeres.

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PARA ALM DO GNERO: A INQUIETUDE DO CORPO EM LA PIERNA DE SEVERINA, DE JOSEFINA PLAndre Rezende Benatti (PG UFMS)RESUMO O presente trabalho tem como intuito uma anlise de alguns dos semblantes que envolvem a escrita feminina no conto La Pierna de Severina, de Josefina Pl, poeta, dramaturga, critica de arte, ensasta, pintora e jornalista paraguaia moderna, enfatizando as questes relativas ao corpo e as inquietudes femininas. A pesquisa foca-se na imagem da personagem Severina, que possui deficincia em sua perna e que por conta disso no pode exercer a funo de hija de Maria, na igreja da pequena comunidade em que vive no interior do Paraguai, e de todo o universo obscuro que a envolve, tais como a no aceitao de seu prprio corpo, a ocultao de desejos e vontades, e a busca e desconstruo de seus sonhos. Nesse segmento, foram utilizadas teorias acerca da escrita feminina, ressaltando alguns aspectos como a presena do corpo no texto e a inquietude subjetiva dos desejos e anseios, a voz, o vulto feminino da personagem. O estudo ancora-se nas contribuies de Lucia Castelo Branco, Ruth Salviano Brando e Cristina Pia. Assim, o trabalho pretende aclarar de forma expositiva o universo feminino dentro do conto de Josefina Pl, bem como ajudar na divulgao da escritora paraguaia, to pouco conhecida no Brasil. Palavras-chave: feminino; corpo; inquietude. ABSTRACT This paper aims an examination of some of the faces that surround women's writing in the story "La Pierna Severina", Josefina Pl, poet, playwright, art critic, essayist, painter and a modern paraguayan journalist, emphasizing issues related to the body and the concerns of women. The research focuses on the character Severines image, who has disabilities and because of that that cannot perform the function of "hija de Maria " in the church in the small community she lives in Paraguay, and all the dark world surrounding it, such as non-acceptance of his own body, the concealment of desires and wishes, and deconstruction and the pursuit of their dreams. In this segment, were used theories of feminine writing, highlighting aspects such as the presence in the body text and the restlessness of the subjective wishes and desires, the voice, the feminine face of the character. The study is anchored on the contributions of Lucia Castelo Branco, Ruth Salviano Brando Cristina Pia. Thus work intends to clarify the exposition of the female form in the tale of Josefina Pl, and help spread the Paraguayan writer, so little known in Brazil. Keywords: female; Body; restlessness.

Ao analisarmos qualquer obra literria temos de imediato a sensao de que o autor, de tal obra, como se fosse um ventrloquo, que comanda suas personagens conforme quer. No entanto, existem aquelas personagens que, de certa maneira, comandam seus autores, tratam-se de personagens com tanta complexidade, profundidade e fora, que fica impossvel que os autores mudem os rumos de seu destino. Portanto, dentro da Literatura, segundo Brando (2006), h a presena do consciente e do inconsciente, pois as personagens criadas, que tomam suas prprias atitudes, podem revelar algo de inconsciente do autor que inventou esta personagem. Este o caso que acontece no conto La Pierna de Severina 1, de Josefina Pl, autora paraguaia. Ao lermos a narrativa fica clara a impossibilidade da autora de modificar certas atitudes da personagem, devido tamanha fora e complexidade com que esta foi escrita. Severina uma1

Trad. A perna de Severina. 17

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mulher que, ao mesmo tempo forte, porm delicada, criada como uma anttese contrapondo-se com a figura que se tem da forte e inabalvel mulher paraguaia, figura esta criada desde a poca da Guerra do Paraguai. Em La Pierna de Severina, a personagem ttulo, Severina, uma moa de origem humilde que vive em uma pequena comunidade no interior do Paraguai e que h quinze anos vive a cuidar de sua tia doente e no sai de casa por ter vergonha de ser deficiente fsica, ela somente sai para ir missa, porm faz tudo o que esta a seu alcance para que ningum a veja. Seu desejo maior, desde antes do acidente o qual perdeu a perna, ser hija de Maria 2 da igreja de sua comunidade, e esta no poderia por conta de seu problema com a perna, pois uma hija de Maria teria que acompanhar as procisses e fazer pequenos trabalhos na igreja que envolveriam longas caminhadas e horas sem sentar-se. Dentro do que se passa no decorrer da narrativa, percebe-se que quase todas as atitudes da personagem so realizadas por meio do extremo desejo, que segundo Leyla Perrone-Moiss (1998) est ligado a toda e qualquer atividade humana, que, no caso de Severina, de se tornar hija de Maria e o nico impedimento que a mesma tem o de ser deficiente fsica. Sendo assim, o corpo torna-se alvo de uma constante inquietao da personagem, para alm de seu desejo de se tornar uma hija de Maria, a mesma v em sua perna a nica forma de impedimento para que seu desejo se torne real. Para Chevalier a perna um smbolo do vnculo social. Permite as aproximaes, facilita os contatos, suprime as distncias. Reveste-se, portanto, de importncia social. (2001, p.710), posto isto podemos compreender o carter de importncia que Severina da perna. A personagem s reconhece-se por meio do corpo para alcanar o lugar onde quer estar. Segundo Santaella:Descartes definiu o humano como a mistura de duas substancias distintas: de um lado o corpo, um objeto da natureza como outro qualquer (res extensa), de outro lado, a substncia imaterial da mente pensante, cujas origens, misteriosas, s poderiam ser divinas. (SANTAELLA, 2004, p.14)

No entanto ele no encontrou nada que explicasse a ligao de ambos, assim Santaella (2004), nas palavras de Doel explica que o corpo o meio pelo qual a mente expressa seus desejos, suas angstias. Em La pierna de Severina, a protagonista est entre os desejos que sua mente tem de se tornar hija de Maria e as limitaes que a mesma tem por conseqncia de sua perna. Dentro da narrativa o corpo se torna a matriz pela qual as aes de Severina se desenrolam. E a escritura deste corpo, no plano ficcional, estritamente fsica, pois a personagem projeta na perna todas as dificuldades que encontra para a realizao de seu objetivo maior. O problema que a protagonista tem em uma de suas pernas desenha o movimento interno da mesma para a2

Trad. filha de Maria. 18

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exteriorizao problemtica corporativa, exteriormente um fator fsico passa a ser o motivo que leva a personagem a desenvolver determinadas aes dentro da narrativa. Na mente de Severina, ela somente poder encontrar exlio por conseqncia de uma suposta aceitao por si mesma e pela sociedade, se tiver um corpo em que no encontrar determinadas limitaes, o corpo passa a ser algo que a identifique como algum normal perante si mesma. O corpo se torna um lugar em que se inscrevem as marcas de determinada cultura. No incio da narrativa, a personagem vive em completa passividade em relao a seu problema, ela no o aceita, porm no tm meios, nem conhecimento para modific-lo, o que, segundo Brando e Castello Branco (2004), pode representar a morte pelo inconsciente da personagem. A mulher, na cultura ocidental, caracterizada como um ser de falta. Segundo Brando e Castello Branco (2004), ao contrrio do homem, a mulher se define como ser atravs de privaes, perdas, ausncias, o que Pl retrata com maestria em sua narrativa. A ela relegada a falta, a lacuna. nesse vazio que se instaura o feminino. Dentro da narrativa, Severina no consegue manipular esses sentimentos, da sua busca sagaz por preenchimento de seu vazio, tal busca a relaciona com a morte de seu intelecto, para que ela possa ser reconhecida socialmente. O boom da personagem para ao se d com a possibilidade de ter uma nova perna, uma mecnica. Com isso, h uma espcie de despertar interior por parte da personagem, que passa a querer buscar por uma resoluo para seu problema e no mais fica passiva em relao a ele. Pela primeira vez Severina vai igreja, no para se confessar, mas sim para conversar com o padre, transgredindo assim uma regra imposta pela prpria. Segundo Brando (2006, p.94-95), a imagem exerce um encanto hipntico em Narciso, quando este se v refletido no espelho dgua onde acaba mergulhando para a morte, esta imagem que Narciso reconhece e nela percebe a impossibilidade de te-la para si. No conto de Josefina Pl, Severina se encontra em estado parecido ao de Narciso, porm, ela almeja parte do eu, que lhe est fazendo falta, para que se realize seu objetivo maior. A existncia dela, assim como a da imagem de Narciso refletida depende unicamente do reconhecimento de seu prprio corpo como forma identitria. Enquanto o mundo de Narciso feito de reflexos e ecos de seu prprio corpo, o mundo de Severina, a partir de certo ponto, gira em torno de parte de seu prprio corpo. A partir ento do momento de transcendncia, onde ela passa de um ser passivo ao que est a seu redor a um ser ativo no qual busca meios para que possa conseguir ser hija de Maria, Severina se sente maior que tudo, capaz de realizar qualquer coisa. Seu impedimento no era mais a falta de conhecimento e sim a tia da qual cuidava. Creca la ansia, la montaa de obstculos

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desmoronaba. El ms grande lo representaba su ta clavada en la cama y que necesitaba se la atendiera constantemente3 (PL, 2000, p.169) Severina via a vida passar diante de seus olhos, no entanto, estava estagnada, no esboava qualquer reao em relao do que acontecia a seu redor, pois, estava obsecada pela idia de conseguir a parte que lhe faltava. Brando (2006), citando Kristeva, nos revela que a face escondida de Narciso, que o leva morte, a que ele v em lugar daquela que ama, como miragem, onde se admira. Sendo assim, podemos perceber que dentro da narrativa de La Pierna de Severina, h uma espcie de narcisismo por parte da personagem, pois ela somente se v como mulher e membro da sociedade se tiver a perna, como todos ao seu redor. Para ela, se no fosse assim no seria um ser humano completo, e este pensamento a leva morte intelectual fazendo com que viva somente para conseguir a parte que lhe falta. Manter-se isolada do mundo ao seu redor, para Severina, a nica maneira de manter a imagem que deseja visvel. A imagem to almejada da personagem no a de si prpria bela e perfeitamente normal, mas sim a de um esteretipo, que esta v desde muito tempo pela janela da casa onde vive a imagem do que fazem as hijas de Maria. Severina no as conhece, apenas conhece o que v, somente a superfcie do que so as hijas de Maria. O corpo passa a ser ento, para Severina, o smbolo para o que significa para ser hija de Maria, ela idealiza o seu prprio eu, de como deve ser para realizar sonho.(...) essa mediao superpe-se ao Imaginrio e o organiza, levanto o sujeito a encontrar um lugar para si em um ponto, o Ideal do Eu, que determina e sustenta a projeo imaginria sobre o Eu Ideal. A relao dual instaurada por este ltimo seria impossvel de viver pois a imagem ideal de uma unidade vislumbrada a mesma do outro na qual o Eu, capturado, se aliena.(...) (SANTAELLA, 2004, p. 145, 146)

O narcisismo de Severina ento uma mediao que lhe permite ver-se igual s demais hijas de Maria que ela observa to atentamente. Elas se tornam o smbolo que a personagem tanto almeja alcanar, um significante pelo qual ela vai desenvolver as atividades de sua vida. A busca de Severina por seu corpo se torna uma odissia no labirinto de uma local desconhecido para ela. Com a chegada em Assuno, ela d alimento sua loucura quando percebe que a perna manca motivo de chacota em um restaurante. Fato esse que atordoa Severina, deixando-a ainda mais gauche, que assim como no Poema das Sete Faces, de Drummond, diz de algum que se encontra s avessas na vida, indo margem da sociedade, observando, o que, segundo Eco (2000), leva a constatar, mesmo que erroneamente, que somente com a perna seria

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Trad. Crescia a ansia, a montanha de obstaculos desmoronava. O maior era representado por sua tia cravada na cama e que necessitava que a atendera constastemente. 20

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perfeita e poderia ser hija de Maria, dando maior nfase idealizao de hija de Maria, tida por ela. Um ponto importante da narrativa e que marca sua sutileza, o fato de a personagem principal, por conta provavelmente de sua obsesso por se tornar hija de Maria, totalmente celibata. Celibato que interrompido de maneira brutal dentro da narrativa. Severina violentada. O momento principal do conto, quando Severina se encontra j em Assuno, se d de maneira violenta, uma epifnia brutal que lhe revela o verdadeiro mundo e que a transforma por completo. Depois de chegar a Assuno, Severina se v sozinha e sem muito dinheiro em um lugar totalmente desconhecido, perambulando pela cidade encontra abrigo em um ambiente que para ela parece familiar, uma igreja. L Severina dorme, onde acordada sendo espancada. A partir desse ponto da narrativa os sonhos construdos pela personagem ao longo de sua vida so destrudos. Para Brando:Se pela palavra que se constroem as pretensas verdades, as ideolgicas, fundadoras dos valores sociais, a verdade sobre o feminino faz-se tambm como construo masculina, seja pela imaginria, mtica ou cientfica. (BRANDO, p. 116, 2006)

Portanto, se o masculino capaz de construir os valores femininos, tambm capaz de destru-los, o que acontece na narrativa de Pl, quando Severina alvo de chacotas por ser manca, (...) _ Es renga nipo ra.4(PL, p 172, 2000), e em seguida vitima de violncia sexual. Desfaz-se assim, com a impossibilidade de auto-defesa por parte da personagem, os sonhos que havia construdo ao longo de sua vida. Diante do ato, Severina se encontra atnita, (...) como si todo hubiese sido una pesadilla. 5 (PL, p 172, 2000). Este momento funciona como se a gua que refletia a imagem de Narciso, to adorada, se turve, tornando a imagem disforme, e Severina se v pela primeira vez sem o objetivo de obter a parte que lhe falta. Sua conscincia desperta, a personagem, agora machucada e sem a mscara de ser hija de Maria, se arrasta pelas ruas de Assuno, at que encontra ajuda para se recuperar. No entanto, Severina, assumindo mais uma vez, porm de outra forma, sua caracterstica passiva em relao aos fatos que lhe aconteceram, nada faz a respeito, volta para seu povoado no interior do pas. O casulo, onde a personagem se manteve durante toda sua vida aumenta ainda mais com sua volta ao povoado. Ela no conta nada a ningum. Severina ento volta a olhar por sua janela discreta, onde apenas v o mundo caminhar e progredir. No entanto, ela mesma se encontra novamente parada, estagnada diante de tudo, apenas

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Trad. (...) _ Estou vendo que manca.( Trad. (...) como se tudo houvesse sido um pesadelo. 21

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observando, de uma maneira ainda mais passiva, pois nem ao menos o desejo de ser hija de Maria expressa mais. A mesma inquietude que levou Severina, mesmo passivamente, a buscar algo para ser hija de Maria, a fez aceitar sua condio diante de seus problemas e a despertar do sonho narcisista ao qual se encontrava para comear a viver por sua prpria conta. REFERNCIAS BRANDO, Ruth Salviano. Mulher ao p da letra: a personagem feminina na literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. BRANDO, Ruth Silviano; CASTELLO BRANCO, Lcia. A mulher escrita. Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2004. CHEVALIER, Jean, 1906. Dicionrio de smbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, nmeros. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 2001. ECO, Umberto. Tratado geral da semitica. So Paulo: Editora Perspectiva, 2000. PL, Josefina, Cuentos completos. Organizao de Miguel ngel Fernadez. Assuno: Editorial El Lector, 2000. SANTAELLA, Lcia; Corpo e Comunicao: sintoma da cultura. So Paulo: Paulus, 2004.

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LITERATURA E ADAPTAO AUDIOVISUAL: ELEMENTOS ENTRELAADOS NA FORMAO DO LEITORCarlos Alberto Correia (PG-UNESP) Aline Calixto de Oliveira (PG-UFMS)RESUMO Este trabalho tem como finalidade apontar os entrelaamentos entre literatura e sua adaptao para linguagem audiovisual. O fulcro da anlise evidenciar neste processo a tica da complementaridade. Para tal a figura de um novo leitor/telespectador se articula, dialoga na relao entre interao e sociedade. Deste modo este novo leitor (re)afirma-se conectado a esses diversos suportes, por meio de vastos recursos propiciados por sua polissemia, ativando assim, sua memria em outros textos, interligando-os em lugares distintos e atribuindo-lhes significao. Palavras-chave: adaptao audiovisual; literatura; leitor ABSTRACT This work aims pointes out the interconnections between literature and its adaptation to audiovisual language. The fulcrum of this process analysis is to show the viewpoint of complementarily. For such of a new reader is articulated, dialoguing on the relationship between interaction and society. Thus this new reader asserts connected to these various media, through its vast resources provided by polysemy, thus activating his memory in other texts, linking them in different places and giving them meaning. Keywords: audiovisual adaptation; literature; reader.

1. A ADAPTAO E SOCIEDADE A literatura integra um sistema cultural amplo, estabelecendo diversas relaes com outras artes e mdias. A diversidade de meios e a hibridao de linguagens exigem um leitor que no se prenda letra e esteja aberto diversidade de suportes pelos quais a literatura circula, bem como s suas combinaes com outras artes, ressaltando assim, o dilogo interartstico e a considervel presena das tecnologias e dos meios de comunicao na formao desse leitor. Na sociedade moderna os meios de comunicao ocupam grande parte do cotidiano das pessoas. A televiso o meio de comunicao que adquiriu grande espao neste territrio, no sendo utilizada somente para o entretenimento, mas tambm para a formao e o contato social, tornando-se inclusive substituto do contato com os outros e das relaes face a face. Por ser um veculo que est em constante atividade, a programao televisiva formada por um amplo nmero de apresentaes, j que a grade deve suprir 24 horas de exibio. Essa estrutura televisiva composta por fluxos que enveredam por vrios caminhos, desde informaes referentes s atividades cotidianas, at programas criados desde o intertexto que reafirmam os laos com outros meios de comunicao, como as adaptaes de obras literrias para a televiso. Embora a televiso, jornal, livro, cinema sejam meios diversos, esses entrelaamentos devem ser vistos pela tica da complementaridade, pois os textos dos diferentes suportes guardam23

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entre si relaes que apontam o aproveitamento, a parfrase e a intertextualidade. V-se que o leitor/telespectador tambm se modifica com esta nova realidade, pois se o contato com os diversos meios de comunicao uma das experincias na atualidade mais significativas, quando se tange a relao de interao e sociedade, esse leitor tambm precisa se conectar a esses suportes explorando os diversos discursos polissmicos da televiso, ativando em sua memria outros textos, interligando-os em lugares distintos, pensando por meio da teoria da intertextualidade, a qual incide que os textos so lidos em sua(s) relao(es) com os outros, as ligaes parafrsticas, incluindo tambm os de formato audiovisual que se interagem e se interligam com os mais variados textos que coabitam o fluxo miditico. A relao entre parfrase e polissemia, tal como formulada em Orlandi (1998), a que permite a fluidez dos sentidos, por meio do jogo entre o mesmo e o diferente; da repetio do mesmo, no caso dos processos parafrsticos, e de rupturas, deslocamentos nos processos de significao. Nos termos de Orlandi (2001, p. 36): nesse jogo entre parfrase e polissemia, entre o mesmo e o diferente, entre o j-dito e o a se dizer que os sujeitos e os sentidos se movimentam, fazem seus percursos, se significam. Dentro dessa perspectiva Balogh (2002) afirma que o telespectador/leitor precisa ser muito competente para captar o rico tecido oferecido por esta intertextualidade antropofgica, que deixa de ser apenas citao, mas a partir da deglutio passa a constituir a cerne de um processo criativo, e por isso significativo. John Fiske, em seu livro Television Culture (1987) discute a interveno dos meios de comunicao e as tecnologias na formao do pblico leitor. Ele aponta que esse novo leitor criado por essas novas tecnologias, quanto em contato com a televiso ou produtos audiovisuais, explora a polissemia desses veculos ativando em sua memria outros textos. O espectador articula uma memria que dialoga com o seu horizonte cultural. Essa memria audiovisual contribui para os possveis elos que esse espectador possa traar, tanto no campo da literatura (palavra escrita) ou do cinema (linguagem visual, sonora, artstica e outras). A adaptao de obras literrias para o audiovisual, por exemplo, intensifica o repertrio e a possibilidade dessa leitura. Pois, em si, congrega uma articulao mltipla, que auxilia na produo de significado e veiculao de uma obra antes restrita a apenas um suporte. As diferentes adaptaes de uma mesma histria contribuem para sua veiculao e ampliam o seu sentido, pois cada leitor ao se defrontar com a obra poder entend-la de acordo com suas vivncias, experincias e conceitos de vida. Justamente por estarem nesse terreno de possibilidades que as adaptaes audiovisuais propiciam algumas questes de interesse, quanto o referido o leitor/leitura, sendo estas: a apropriao e ressignificao de produtos culturais do passado pelos atuais meios de comunicao de massa, o que as faz se projetar para diferentes pblicos e atribuir-lhes novas significaes e sentidos.

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2. DILOGO E CONTEXTO: A NARRATIVA COMO ENTRETENIMENTO Um dos elos marcantes a se pensar quanto o assunto adaptao de obras literrias para a linguagem audiovisual o retroalimentao entre as artes audiovisuais e a literatura. O paralelo abordado a conexo entre o cinema e romance. Uma vez que entre os finais do sculo XVIII e as primeiras dcadas do sculo XX, o pblico do romance alargara-se desmedidamente e, para satisfazer a sua necessidade de leitura, numerosos romances foram escritos para a satisfao deste pblico. Temos neste contexto a narrativa como entretenimento. O cinema, seguindo esses passos surge como uma espcie de narrativa do entretenimento, que brota de um crescimento considervel de um pblico leitor da palavra impressa que se assemelha ao crescimento de um pblico leitor do cinema. Porm vlido ressaltar que o cinema no deve ser visto como apenas arte de entretenimento, j que estrutura-se por meio de redes amplas e plurissignificativas. Desse modo tem-se um gnero comunicativo, o cinema, aliado desde suas origens a aspectos to peculiares comunicao humana: a necessidade de registrar e de contar, a necessidade de abrir espao manifestao do imaginrio e a parceria to enriquecedora entre a narrativa e a expresso dramtica. E neste percurso de relaes entre linguagens que se torna inevitvel mencionar aquelas que se estabelecem entre a literatura e a stima arte. Talvez o que nos ocorra primeiro seja a constatao relativamente bvia das inmeras adaptaes (transcodificaes) que levaram tantas obras do papel s telas do cinema, preenchendo caminhos do imaginrio com seu encanto de transformar as vidas de papel em algo cada vez mais concreto e verossmil. A linguagem audiovisual, pela qual, o telespectador v/l a histria na tela ou na telinha, exige de seu criador um exerccio articulado de linguagens (verbais e no-verbais), considerando a complexidade de signos e cdigos que devem ser compartilhados para o bem contar uma histria. O bem contar audiovisual no significa apenas uma adaptao ou narrao habilmente estruturada e tramada. A histria tem de ser mostrada em cenas esmeradas, com papis bem concebidos (e bem interpretados) que com o auxilio do cengrafo, o fotgrafo, o compositor, o montador e todos os demais colaboradores a acrescentam seus talentos forma final com que as imagens e palavras do roteirista aparecem perante o espectador. Assim, quando se fala do formato audiovisual, no pode deixar de pressupor todo o conjunto de linguagens e respectivos operadores que se lanam tarefa de construir um artefato artstico a que chamamos de narrativa audiovisual. E, vinculado a este trabalho coletivo, est toda uma gama de leituras, experincias e olhares criativos que incrementam e alimentam o carter do bem contar no formato audiovisual. Contemplando a relao de dilogos entre diferentes suportes, o ato de criar, o ato de enunciar geram novas formas expressivas, possibilitando a criao de novos produtos. Seguindo os conceitos da cultura miditica, a qual se apropria de vrios mecanismos de informao, a enunciao em um produto pode lhe proporcionar novo corpo e forma. o caso dos muitos textos que circundam o fluxo miditico, que partem de25

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uma matriz, o livro, e a partir de sua forma de enunciao, de criao, so reelaborados, adaptados em outros suportes, no caso o audiovisual, transformando-se em um novo produto. Esta definio o ponto de partida que permite retirar os textos audiovisuais do terreno das evidncias, pois esses textos passam a ser visto como uma construo que, como tal, altera a realidade atravs de uma articulao entre a imagem, a palavra, o som e o movimento, contribuindo assim para a formao e troca de conhecimento entre seus praticantes, tanto produtores quanto os consumidores. Os vrios elementos da confeco de um filme, de uma minissrie, tais como: a montagem, o enquadramento, os movimentos de cmera, a iluminao, a utilizao ou no da cor so elementos estticos que formam a linguagem cinematogrfica, conferindo-lhe um significado especfico que transforma e interpreta aquilo que foi recortado de um livro, ou do real. Segundo Nagamini (2004), adaptar um texto reinterpretar e redimensionar aspectos da narrativa a fim de adequ-la linguagem do outro veculo.

3. LITERATURA E ADAPTAO: UM TERRENO A SER DISCUTIDO Quando se questiona a relao entre literatura e a sua transcodificao para outros cdigos, como os do cinema e da televiso, abrem-se muitas possibilidades de estudo e interpretao. Esta relao no recente, pois essas linguagens mantm entre si vnculos com antigas estruturas comunicativas. A integrao interartes se mantm desde a inveno do folhetim romanesco, que procurou tornar a linguagem mais estimulante, valendo-se de temas vibrantes, suspenses para nutrir expectativas, artimanhas que vieram a influenciar a arte do cinema, que se difundiu graas aos seriados, que obedeciam mais ou menos os mesmos princpios, ajustados a tela. Sobre esta relao Balogh afirma que:A narrativa na fico abriga estruturas antigas, j consagradas em outras artes, que convivem com formas novas e so revitalizadas por novos modos de recepo e veiculao. Os relatos so veiculados de modo descontinuo, interrompidos pelos comerciais. A fragmentao representa outra marca do mundo contemporneo, ao qual as estruturas narrativas antigas se adaptam. (BALOGH, 2002. p.52)

A adaptao possvel, pois algumas alteraes se instalam no campo em que literatura e cinema se interceptam, encontram uma esfera comum de operaes que pode ser descrita com as mesmas noes, por exemplo, as relaes de semelhana entre imagem e palavra atravs da metfora, ou, a sensaes de causalidade e associao advinda das metonmias, as figuras de linguagem entrelaando o poder exercido pela associao da palavra e da imagem. Com base, nessa ideia podemos perceber que a literatura no se exaure em pginas de livros, ela tambm pode ser transposta para vrios veculos de informao. Como se v, o processo de transposio, transcodificao pode gerar uma cadeia infinita de referncias a outros textos, constituindo um26

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fenmeno cultural, que dialoga entre as mais diferentes linguagens. Fiske (1987) aponta que o estudo das relaes intertextuais pode nos proporcionar valiosas pistas para compreender as leituras de culturas particulares ou de possveis subculturas. Mikhail Bakhtin prope um conceito intrigante para pensar essas possibilidades. O conceito de dialogismo proposto por Bakhtin via Stam (2006) aborda de forma mais generalizada s inmeras possibilidades de abertura e aproximaes geradas por todas as prticas discursivas de uma cultura aplicadas tanto a fala cotidiana quanto tradio literria, artstica, social e cultural. Por esse vis, todos os textos possuem aproximaes e estabelecem fortes laos e dilogos com outros tantos textos que surgiram anteriormente. Desse modo, como afirma Stam Qualquer texto que tenha dormido com outro texto tambm dormiu com os outros textos que o outro texto j tenha dormido (2006. p. 28) Antonio Candido (1985) afirma que na literatura, a extrema plurivalncia da palavra confere ao texto uma elasticidade que lhe permite ajustar-lhe aos mais diversos contextos. Ao se estudar adaptao no se deve reconhec-las como simples cpias ou tentativas de reproduo de um texto, pois cada mecanismo de comunicao possui suas especificidades, e, a relao intertexto se constri sempre entre diversos textos e texturas sociais, num constante fluxo de ideologia, manifestaes e criao. Se valendo da Concepo de texto assim sintetizada por Roland Barthes (1987): um texto um tecido de citaes, sadas dos mil focos da cultura. Podemos ento correlacionar os mais variados textos, tanto os textos escritos como os textos audiovisuais, uma vez que textos so constitudos de narrao. Narrar tramar, tecer, e como tal, h muitos modos de faz-los, em conexo com a mesma histria. Ao termo intertextualidade, Julia Kristeva (1966) apud Robert Stan (2006) refere-se a uma propriedade inerente ao texto literrio que se constri como um mosaico de citaes, como absoro e transformao de outro texto. Assim, o que antes era entendido como uma relao intersubjetiva passa a ser coletiva, uma vez que, vrios textos so anexados, somados e interligados para constituio de um todo textual. Assim, a linguagem audiovisual e escrita, tanto do romance, quanto das adaptaes apesar de suas especificidades somam-se, integram-se, transformando-se em um novo produto resignificado. Perrone-Moiss (1990), diz que o objetivo da intertextualidade examinar de que modo ocorre essa produo do novo texto, os processos de rapto, absoro, extenso, proliferao e integrao de elementos alheios na criao da obra nova. Robert Stam (2006) caminha nessa esteira afirmando que A adaptao assim molda novos mundos mais do que simplesmente retrata/ trai mundos antigos. (STAM, 2006, p. 26). Neste vis, ao se afirmar o cruzamento com escritas anteriores, a individualidade de cada intertexto e suas memrias se firmam. Desse modo, ao se concretizar como adaptao, tanto a minissrie quanto o filme tornam-se produes totalmente independentes, configurando-se assim, como produtos novos, com renovadas significaes e27

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sentidos, estabelecendo-se como um sistema de trocas, de releituras, na qual as questes de propriedade, de originalidade se relativizam no priorizando apenas a origem, mas resultado final. Sobre esse prisma, ao abordar as adaptaes audiovisuais, Robert Stam afirma:[...] adaptaes cinematogrficas, desta forma, so envolvidas nesse vrtice de referencias intertextuais e transformaes de textos que geram outros textos em um processo infinito de reciclagem, transformaes e transmutaes, sem nenhum ponto claro de origem (STAM, 2006, p. 34).

Para reforar a importncia da mdia como formao e articulao de conhecimento, apontamos no forma aprofundada, o posicionamento de um grupo de estudiosos latino-americanos, manifestados nas figuras de: Martin-Barbero (2009), Guilhermo Orozco (2006), Ortega (2006), Cancline (2008), que se posicionam de forma negativa em relao ao poder supremo atribudo mdia, embora eles no ignorem a fora dominante possuda por esse mecanismo. Para eles, no mdia que controla seu espectador, e sim, ele que usufrui de toda possibilidade manifestada por este meio. Segundo esses pesquisadores, o espectador tem a possibilidade de se armar contra a imposio e a moldura proposta pela mdia, j que ele possui a capacidade de criar mecanismos de resistncia produzidos pelo seu prprio cotidiano. Por meio desses elementos institudos pelos prprios consumidores que as mensagens veiculadas na mdia so filtradas e apreendidas, todavia esse entendimento d-se pelo grau de (re)leitura que estes indivduos possuem, levando em considerao as suas limitaes e seus horizontes sociais. Assim, a partir da juno de todos esses elementos que leitor/consumidor formula e estrutura seu conhecimento. Por conseguinte, a relao estabelecida com a mdia torna-se, de certa forma, uma complementao a formao sociocultural de um indivduo, devido excessiva quantidade de horas que o cidado global passa acessando esses suportes, atingindo assim por meio desse veculo, outros aspectos do conhecimento e dos processos de interao. Ao ligar a televiso, por exemplo, ao ver um filme, pesquisar na internet ou at mesmo folhear um jornal ou revista, os consumidores desses mecanismos de comunicao se interconectam com o globo, em uma transcendncia que encampa o aspecto temporal e espacial, pois mesmo estando longe, eles permanecem interligados. Pensando por esse prisma a comunicao comeou e comea a ocupar um lugar estratgico na configurao dos novos modelos de sociedade. O livro, esta antiga mdia de comunicao, continua a desempenhar na atualidade um alcance significativo, que transmite no s informao e conhecimento. Ela permite a circulao e veiculao de bens culturais s geraes que buscam por meio da leitura ampliar seu contedo simblico e cultural. Todavia, no se devem desprezar algumas limitaes que cerceiam esse suporte, como, por exemplo, o fato de ainda nos tempos atuais, ele, o livro, no atingir a todos os lugares sociais, geogrficos e espaciais de nosso pas.

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Frente a esse obstculo, novas mdias surgem como mecanismos e alternativas de difuso cultural. Dentre elas, destacam-se os meios eletrnicos de comunicao. Esses mecanismos, por terem o privilgio de ocupar um lugar estratgico na sociedade, conseguem sanar algumas especificidades em relao ao alcance do material impresso antes limitado, pois possibilitam aos produtos um alcance maior e significativo em relao a nmero de pessoas e localidades. Dentre esses produtos difundidos por esses meios de comunicao, est a adaptao de obras literrias para a linguagem audiovisual. Que a partir dessa difuso consegue atingir alguns leitores em potencial que antes no conheciam o contedo dos livros adaptados por essas produes. por esse vis, que este trabalho se props a discutir os meios de comunicao, a formao e a contribuio cultural da mdia, o papel e o posicionamento deste novo leitor articulado, organizado por meio de mecanismos de mediaes e funes sociais. Nesse novo cenrio, rearticula-se uma nova maneira de proliferao cultural, pois produzida em grande escala, essas obras podem ser negociadas, vendidas e consumidas por um maior nmero de pessoas, ocasionando o chamado intercmbio simblico cultural. E nesse processo de troca e aprendizagem, que se interconectam os meios de comunicao e seus consumidores.

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A CONFIGURAO DO MITO EM RFOS DO ELDORADOFtima do Nascimento Varela (PG-UNIR/CAPES) Milena C. M. S. Guidio (UNIR) RESUMO A partir do livro rfos do Eldorado, esta pesquisa tem o objetivo de averiguar o modo como est configurado o mito nessa obra, por meio de uma relao entre presente e passado, e evidenciar os recursos estilsticos de Milton Hatoum na apresentao dos mitos. Simultaneamente, a narrativa tangenciada por acontecimentos histricos e mticos, dualidade que figura aspectos da realidade e aspectos de um passado remoto. Palavras-chave: mitos; lendas; culturas; Milton Hatoum. ABSTRACT In this study we aim at investigating how Myht is presented in Milton Hatoums Orphans from Eldorado. We investigate the relation between present and past and observe the stylistic resources used by the author when relating to the myth. The narrative is symultaneous stricken by historical happenings and myths, a duality that portraits aspects of present reality and of a remote past. Keywords: myths; legends; cultures; Milton Hatoum. Um mito uma mscara de Deus, tambm uma metfora daquilo que repousa por trs do mundo visvel. (Joseph Campbell. In: O poder do mito) Mito. Enigma que surge como explicao para a origem das coisas e permanece vivo embora imperceptvel porque vivemos sua prpria sombra (CASSIRER, 2000), o fio condutor da novela rfos do Eldorado do escritor Milton Hatoum. Histria dramtica baseada no mito da Cidade Encantada que, no decorrer da narrativa, tangenciada por acontecimentos histricos e por lendas de povos indgenas dentre as quais algumas so oriundas dos povos Macurap, Tupari, Ajuru, Jabuti, Arikapu e Aru povos que habitam terras indgenas situadas no lado oriental do rio Guapor em Rondnia. Denise Maldi, em O complexo cultural do marico, comenta que essas sociedades partilharam um complexo cultural com caractersticas bem definidas eAs relaes intersocietrias se davam, e ainda hoje ocorrem, sobretudo atravs de dois mecanismos: as festas de chicha e os casamentos. Nas festas de chicha, as aldeias se alternavam nos papis de anfitri/convidada, criando redes de solidariedade e reciprocidade, como ocorria tambm nas sociedades do oriente boliviano.6

A leitura dessas lendas um mergulho numa cultura desconhecida e incompreensvel para ns, cristos, devido complexidade que envolve os seus significados. Nesse sentido, temos no6

Disponvel em: < www.pib.socioambiental.org/pt/povo/macurap/print >. Acesso em: 22 de abril de 2010. 31

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dilogo entre Fedro e Scrates uma reflexo pertinente acerca do significado do mito. Esse trecho apresentado no primeiro captulo do livro Linguagem e Mito de Ernest Cassirer:(...) Scrates, ao encontrar-se com Fedro, por ele levado longe das portas da cidade, at as margens do rio Ilisso. Plato reproduziu nos menores detalhes a paisagem onde se passa esta cena; (...) Embevecido pela paisagem, pergunta Fedro se acaso no seria este o lugar onde segundo o mito , Breas raptou a bela Ortia; (...) Indagado a seguir se julgava verdadeiro esse conto, esse mitologema, Scrates replicou que, mesmo se no lhe desse crdito, nem por isso teria dvidas sobre seu significado (CASSIRER, 2000, p. 15-16).

Scrates no teve dvidas quanto ao significado de um mito. Mito mito. No se coloca em pauta sua validade quanto ao s-lo mera fantasia de frteis imaginaes, pois o que importa o seu significado mstico. As lendas foram relatadas por Betty Mindlin em Moqueca de Maridos, livro composto por um conjunto de mitos maior do que o que compe os livros que o antecedem Vozes da origem e Tuparis e Tarups todos fruto de pesquisas realizadas pela antroploga que desenvolveu um denso levantamento das histrias de povos indgenas de diversas etnias que habitam a regio j referida aqui. Conforme a autora, os mitos revelam um imaginrio desconhecido por ns. Elas so histrias intocadas por influncias urbanas e correspondem a um perodo arcaico de vida no mato. (MINDLIN, 1997, p. 19) Parece que Hatoum segue a sugesto dada por Betty Mindlin, ela diz que as pequenas sociedades das aldeias da mata brasileira nos do um bom material para quebrar a cabea, no sentido de que esses mitostrazem tona uma substncia amorosa eterna, um padro de embates e acertos entre os sexos, surpreendentemente semelhantes atravs dos tempos, de diferentes sociedades, costumes, condies materiais, linguagens (...) e poderiam ser o ncleo de romances contemporneos (MINDLIN, 1997, p.17).

Podemos afirmar que Hatoum utiliza-se do mito para ser o ncleo da novela em questo, mas a linguagem mtica recriada, h um revestimento ficcional que transforma as histrias primitivas. Elas passam por uma metamorfose, o El Dourado, lenda indgena que Surgia na mente de quase todo mundo, como sendo o lugar onde a felicidade e a justia estavam escondidas, ganha um novo significado diante da contextualizao em que inserida. Apossando-se de vrios mitos indgenas, a novela conta a histria da relao conflituosa entre um pai (Amando Cordovil) e seu filho (Arminto Cordovil) e da relao tumultuada entre este e sua amada Dinaura. A estrutura narrativa dessa novela nos remete ao oral que tem como contedo composicional a memria coletiva, o mito. Ela aborda a saga de uma famlia de colonizadores no auge da ascenso e sua decadncia que simbolizada pelo naufrgio do barco O nome do barco naufragado parecia atado ao meu destino: Eldorado. (p. 80)

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O mito da Cidade Encantada que nos remete ao paraso perdido adquire uma significao disfrica dada s circunstncias em que aparece. A busca por um mundo melhor, sem tanto sofrimento, desgraa, onde a riqueza e a opulncia seriam um bem comum a todos trazendo felicidade um desejo latente no ser humano desde os primrdios da civilizao humana. Na primeira cena que emerge das lembranas da infncia de Arminto, personagem central da trama que se desenrola no livro, essa lenda adquire uma nova configurao. A voz de uma tapuia, que falava em lngua indgena seu drama, atrai a ateno de muita gente e tambm a do narrador que foge da casa do professor e vai para a beira do Amazonas. Ela perde o marido e os filhos, mortos vtimas de febre, e tomada pela angstia e desespero atrada pelos mistrios das guas do Amazonas, ento decide morrer no fundo do rio porque no queria mais sofrer na cidade. Florita, que tambm tapuia e por isso domina a lngua indgena e ocupa a posio de me de Arminto, traduz a fala da mulher, mas traduz torto com a inteno de proteger a criana. Na traduo, o drama particular da tapuia transfigurado e traduzido como um discurso que pertence memria coletiva. A lenda da Cidade Encantada, nesse evento, adquire uma atmosfera de encantamento; o mesmo poder de encantamento dos contadores de histrias que envolvem os ouvintes:Dizia que tinha se afastado do marido porque ele vivia caando e andando por a, deixando-a sozinha na Aldeia. At o dia em que foi atrada por um ser encantado. Agora ia morar com o amante, l no fundo das guas. Queria viver num mundo melhor, sem tanto sofrimento, desgraa. Falava sem olhar os carregadores da rampa do Mercado (...). E todos viram que ela nadava com calma, na direo da ilha das Ciganas. O corpo foi sumindo no rio iluminado, a algum gritou: A doida vai se afogar. Os barqueiros navegaram at a ilha, mas no encontraram a mulher. Desapareceu. Nunca mais voltou. (HATOUM, p. 11-12) Eram atrados pela voz e pelo cheiro da seduo (p. 65)

O mito surge na circunstncia citada como um ato de transcendncia, o que real e trgico transferido para a esfera do mgico, e Florita lana mo da cultura das suas origens para explicar o ato da tapuia. Era ela quem traduzia as histrias que Arminto ouvia quando brincava com os indiozinhos da Aldeia. Nesse sentido, ela o ponto de integrao entre a cultura local e a cultura do colonizador, as duas culturas constituintes do personagem Arminto, mas que tambm constituem Florita estava acostumada ao conforto da chcara em Manaus e do palcio branco em Vila Bela. (p.15) Uma das histrias que Florita traduzia para Arminto a da anta macho. Nela h uma fuso de vrias verses criadas por povos indgenas de diferentes etnias. Hatoum pina elementos de trs lendas indgenas pertencentes a diferentes etnias: Macurap, Tupari e Jabuti. Essa lenda, em rfos do Eldorado, movimenta-se entre as trs verses que, embora diferentes, convergem na mensagem. Lvi-Strauss diz que um etnlogo, trabalhando na Amrica do Sul, espantou-se com o modo como os mitos chegavam a ele. Ele diz que cada narrador quase conta as histrias a seu modo. At mesmo33

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em detalhes importantes, percebia-se uma variao enorme, e, no entanto, os indgenas no pareciam sensibilizar-se com essa situao. (LVI-STRAUSS, 2004, p. 31) O mito A mulher do Anta, que pertence aos Macurap, povo que historicamente ocupa uma posio de destaque no complexo intertnico da margem direita do Guapor, tendo sua lngua se convertido em lngua franca desde o incio do sculo XX, conta que existia uma moa solteira que no se interessava por rapaz algum, desprezava os galanteios e as gentilezas de todos, mas um dia houve uma festa na aldeia e a moa se apaixona por um belo rapazEra forte, pesado, rosto comprido e o nariz grande; era muito cabeludo, tinha mais plos que os homens que ela conhecia. (...) Ela descobre que ele era o Anta naquele tempo os animais eram gente. (...) Gostou muito do homem Anta, no queriam se largar. (MINDLIM, 1997, p.79).

At que ela resolve viver com ele Aguento qualquer vida para ficar com voc, vou te acompanhar e desde ento no o largava mais, sempre abraada. (MINDLIM, 1997, p.80). Com o tempo ela teve um nen com cara de antinha. At a moa estava ficando com cara de anta. O pai e o irmo inconformados com a condio da moa preparam uma armadilha-buraco e matam o homem Anta e a Antinha filhote. A moa levada para casa e...a me havia preparado um banho bem quente com cinzas para jogar na cabea dela, para acabar com os carrapatos e plos que j cobriam todo o corpo da moa tambm ela estava virando anta. Os carrapatos e plos caram mas depois de trs dias a moa morreu de tristeza. J se habituara a viver no mato e chorava por sua Antinha morta. (MINDLIM, 1997, p. 81)

J na verso dos Tupari, o mito O pinguelo de barro narra a histria de uma moa solteira que faz para si uma piroca de barro, igualzinha a de um homem, mas oca por dentro:Ela namorava seu instrumento, falava com ele como se fosse gente de verdade. Sempre que tinha vontade, enfiava o pinguelo de barro, no precisava de rapaz algum. Acontece que um dia, sem que percebesse, um embo, um bichinho de muitas pernas (...) enfiou-se no oco do amante de barro. Entrou junto, pequeniniho, sem-vergonhinha, ficou l bem no fundo dentro da moa, chupando suas entranhas. Inexplicavelmente a barriga da menina foi crescendo, crescendo ela no sabia por que, j que graas ao artefato de barro no tivera homem algum. Eram embos que cresciam no seu interior, agora queriam sair. Quando a moa via alguma orelha-de-pau, sentava, e saam magotes de embos para roer a orelha-de-pau (...) at que se acabaram todos. A menina jurou para si mesma: - Que alvio, livrei-me deles! Nunca mais vou usar minha piroca de barro. (MINDLIN, 1997, p. 130)

A histria O Anta, pertencente ao povo Jabuti, narra a histria de uma mulher casada que se apaixona pelo homem Anta que vinha do mato etirava o couro, como se fosse uma capa ou uma fantasia, pendurava num galho de rvore. Vinha como gente, pintado, bonito, alegre. A mulher, cantando, assanhada, feliz, corria para abra-lo. O Anta a levava para um canto escondidinho. Namoravam esquecidos do mundo. (MINDLIN, 1997, p. 202) 34

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O marido descobre a traio, se junta ao compadre, ficam de tocaia e matam o Anta. A mulher consegue escapar porque correu para perto do filhinho, deu de mamar e o compadre no deixou que o marido a matasse.Na aldeia foram tratar o Anta, preparar a carne para moquear. Era um homem grande. Todos comeram um pedacinho, s a namorada recusou. Quando estavam preparando a carne do homem que era Anta, um rapaz novo viu o couro na rvore e quis vestir. Os outros desaconselharam: no devia, no era couro de gente, iria acabar sofrendo, crivado de flechas.(...)

O rapaz desobedeceu, pegou o couro do homem Anta e o ajustou no corpo,mal tinha posto, saiu correndo na forma de anta, desapareceu no mato. O rapaz chegou na casa da mulher do Anta que morrera. Triste, arrependido, pensativo, guardou suas flechas como o marido dela, o Anta, costumava guardar, no mesmo lugar, na aljava pendurada na palha. Estava no lugar do que fora morto, em vez de homem era o marido da Anta-fmea.(...) Ele deitou com a mulher do Anta e ela desapontou. Anta tem pica grande e ele era jovem, nem tinha namorado ainda quando virou anta. (MINDLIN, 1997, p.203)

Nas trs lendas, o castigo por ter violado uma regra aparece. A impresso de que o primitivo vive livre de qualquer tabu, ou lei, totalmente desfeita ao adentrarmos em seu universo com mais profundidade. Malinowski cita em Sexo e represso na sociedade selvagem que o tabu do irmo e da irm um aspecto extremamente importante nas relaes sexuais das crianas melansias:Desde a mais tenra idade, quando a menina pela primeira vez pe uma saia de folhas, os irmos e as irms da mesma me devem ser separados uns dos outros, em obedincia ao estrito tabu que prescreve no dever existir relaes ntimas entre eles. (MALINOWSKY, 1973, p. 57)

e a partir de uma leitura mais cuidadosa dessas lendas, podemos afirmar que a traio conjugal um tabu para os Macurapi e para os Jabuti, e que a unio conjugal praticada com animais inadmissvel para as trs etnias. Malinowski diz que em algumas sociedades primitivas h uma proibio mais ampla das relaes sexuais, que excluem grupos inteiros de pessoas de quaisquer relaes sexuais: Esta a lei da exogamia. Logo aps o tabu do incesto, o segundo em importncia a proibio do adultrio. Enquanto o primeiro serve para defender a famlia o segundo serve para a proteo do casamento. (1973, p.166) Em rfos do Eldorado a mulher seduzida pela anta-macho. O marido mata a anta, corta e pendura o pnis do animal na porta da maloca, masa mulher cobriu o pnis com barro at ficar seco e duro; depois dizia palavras carinhosas para o bichinho e brincava com ele. Ento o marido esfregou muita pimenta no pau de barro e se escondeu para ver a mulher lamber o bicho e sentar em cima dele. Diz que ela pulava e gritava de tanta dor, e que a lngua e o corpo queimavam que nem fogo. A o jeito foi mergulhar no rio e virar um sapo. E o marido foi morar na beira da gua, triste e arrependido, pedindo que a mulher voltasse para ele. (p. 12)

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As lendas indgenas no apresentam o aspecto dialtico em relao quele que castiga, mas do nvel mais profundo do texto emergem princpios que regem usos e costumes que para um ocidental parecem absurdos, por este desconhecer o significado daqueles. Na obra em estudo, a dialtica fica evidente, o marido castiga, mas se arrepende. A lenda do homem da piroca comprida que antecede lenda da anta-macho revela-nos um teor filosfico que perpassa os acontecimentos e transformaes sofridas por Arminto, na manifestao do imaginrio coletivo:Olha s: a histria do homem da piroca comprida, to comprida que atravessava o rio Amazonas, varava a ilha do Esprito Santo e fisgava uma moa l no Espelho da Lua. Depois a piroca se enroscava no pescoo do homem, e, enquanto ele se contorcia, estrangulado, a moa perguntava, rindo: Cad a piroca esticada? (HATOUM, 2008, p. 12)

Nesse trecho, a lenda representa a passagem de um drama individual para o universal reafirmado em Nossa vida no se cansa de dar voltas. Eu no morava nesta tapera feia. O palcio branco dos Cordovil que era uma casa de verdade. (HATOUM, 2008, p.14) Ele acaba com a herana deixada por Amando com a voracidade de um prazer cego. Quis apagar o passado, a fama do meu av Edlio (HATOUM, 2008, p. 14) e acaba ficando na misria. Nesse sentido autor do seu destino trgico. A lenda O homem do pau comprido que ser transcrita a seguir, no traz em si questes com esse teor. Nessa lenda Tampot movido pelo impulso masculino, livre das regras sexuais impostas pela sociedade, assim como era nos primrdios da civilizao humana, e a mulher tratada como uma propriedade, o que de certa forma perdura at nossos dias com a diferena de que, em algumas sociedades, essa forma de tratamento acontece de forma implcita:Chamava-se Tampot o homem que tinha um pau, um pinguelo, compridssimo, podia chegar a uns duzentos metros. De longe mesmo ele enfiava nas mulheres distradas, que pensando estarem sozinhas, abriam as pernas na beira do rio, tomando banho, ou se agachavam na roa para colher mandioca. Tampot nem saa da maloca; observava as mulheres gostosas, ficava vendo onde iam. Ai, ai, se fossem para a beira do rio, era um dos melhores lugares, os maridos bem longe, sem desconfiar de nada... Onde quer que uma moa bonita estivesse, l ia o pau comprido de Tampot atrs, tentando se introduzir nela. Uma mulher bonita no tinha sossego; se no quisesse brincar com o pinguelo de Tampot, se mudasse de lugar, fosse mais longe, no adiantava. O pinguelo a alcanava sem piedade. Casada ou solteira, pouco importa. O marido nem iria saber, estava sempre longe... A mulher fugia para a beira do rio, pensando que se livrara, l estava o pauzo, e Tampot nem se levantara de seu banco na maloca. O jeito era ceder, acalm-lo por um tempo, at ele cansar ou se engraar por outra. Pois se a moa fugisse pelo meio das rvores, na floresta espessa, o pau ia cavando debaixo da terra, a alcanava no lugarzinho em que parasse... Era muito safado esse homem, com essa piroca danada. Ah, se Tompat vivesse aqui, vocs mulheres que esto me ouvindo, to formosas, com as formas do corpo como Tampot cobiava, redondas e gordinhas do jeitinho que ele adorava, vocs no iam ter paz nenhuma, iam 36

REVELL Revista de Estudos Literrios da UEMS ANO 2, v.1 ISSN: 2179-4456 agosto de 2011 ter que namorar muito (...) Ele ia espichar o olho comprido para vocs, lamber os beios j assanhado, at vocs se arreganharem (...) (MINDLIN, 1997, p. 141-142)

Entre os povos primitivos, em tempos remotos, as relaes sexuais no eram regulamentadas, mas mesmo nesse perodo, sob a mulher recaiam tabus mais rgidos do que para os homens. A novela apresenta vrias lendas erticas que expressam como o primitivo trata esse tema. De certo modo, a sexualidade aflora naturalmente entre eles e, ao inserir lendas que abordam o ertico, Hatoum nos apresenta um contraponto cultura ocidental. Quando ocorre um suposto incesto entre Arminto e Florita, na construo do texto, transparece, da parte desses personagens, uma naturalidade em relao ao ato. Enquanto que Amando, pai de Arminto, smbolo de um tpico colonizador, ao falar O que fizeste com Florita obra de um animal (HATOUM, 2008, p. 17), expressa toda uma cultura calcada em valores ocidentais. Porm, h no decorrer do texto, indcios de que a explorao de Amando sobre Florita mais grave, pois ela ocorre tanto em nveis psicolgicos quanto fsicos, este engloba tambm a sexualidade. Florita duplamente colonizada, passiva diante dessa situao e a viso que tem de si prpria construda atravs das lentes do colonizador (Amando). Ela incapaz de lanar um olhar crtico sua condio de subjugada Dois amigos do teu pai me tiraram da rua, disse Florita com raiva. Mesmo morto, ele continua a me ajudar. (HATOUM, 2008, p. 82) sendo explorada, acredita est sendo ajudada. O olhar expresso de Arminto em relao s lendas de estranhamento, o que revela a incapacidade do ocidental de compreender o desconhecido, o Outro, mesmo tendo absorvido parte da cultura, no consegue adentrar o universo cultural calcado em aspectos mticos e msticos do Outro com profundidade. Cabe citar aqui o que Mircea Eliade pensa acerca desse estranhamento: Somente quando encaradas por uma perspectiva histrico-religiosa que formas similares de conduta podero revelar-se como fenmenos de cultura, perdendo seu carter aberrante ou monstruoso de jogo infantil ou de ato puramente instintivo (2004, p. 9-10). A relao tumultuada entre Dinaura e Arminto fruto, em parte, dessa incompreenso do Outro. Na Festa da Santa Padroeira, ela aparece de repenteParecia alucinao, porque, em meio aos vivas Virgem, senti o cheiro de lavanda, um arrepio no pescoo, e, quando me virei, os lbios de Dinaura tocaram meu rosto. Ela apareceu sem que eu percebesse, e me acariciou com as mos mornas que me deixaram febril (...). De repente me largou, correu at o coreto e comeou a danar. Foi uma gritaria, e no eram gritos de devoo. Ela imitava os movimentos e o ritmo da outra, os ombros ficaram nus, e no olhava para mim, e sim para o cu. Acho que no enxergava nada, ningum. Cega para o mundo, possuda pela dana. Danaram juntas como se tivessem ensaiado. No fim se abraaram, e Dinaura saiu por trs do coreto. Sumiu. Como eu podia entender uma mulher to volvel, de alma to instvel? (HATOUM, 2008, p. 46-47).

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Em O mrmore e a murta: sobre a inconstncia da alma selvagem (2002), Viveiro de Castro insere um trecho do Sermo do Esprito Santo de Antonio Vieira. Nesse trecho o escritor analisa a alma selvagem criando imagens com o mrmore e a murta. A esttua de murta contraposta a esttua de mrmore pela dureza e resistncia da matria enquanto que a primeira, embora sendo fcil de formar, necessrio andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se conserve (p. 183) devido inconsistncia da sua matria. Dinaura a esttua de murta feita de ramos, matria sem consistncia, basta encontrar uma brecha e os ramos escapam, deformando a forma, a mulher dividida da lenda da cabea cortada, lenda dos povos indgenas Macurap, Ajuru e Jabuti e que, na obra, ganha novos contornos. Essa histria provocou um estranhamento em Arminto a ponto de assust-lo:Uma histria estranha me assustou: a da cabea cortada. A mulher dividida. O corpo dela sempre vai atrs de comida em outras aldeias, e a cabea sai voando e se gruda no ombro do marido. O homem e a cabea ficam juntos o dia todo. A, de noitinha, quando um pssaro canta e surge a primeira estrela no cu, o corpo da mulher volta e se gruda na cabea. Mas, uma noite, outro homem rouba metade do corpo, dormindo e acordando com a cabea da mulher grudada no ombro. Cabea silenciosa, mas viva: podia sentir o mundo com os olhos, e os olhos no secavam, percebiam tudo. Cabea com corao. (HATOUM, 2008, p.13)

As cabeas representam as duas personagens femininas que marcam a vida de Arminto de forma significativa Uma das cabeas me arruinou. A outra feriu meu corao e minha alma, me deixou sozinho na beira desse rio, sofrendo, espera de um milagre. Duas mulheres. Mas a histria de uma mulher no a histria de um homem? A primeira cabea refere-se a Florita que exerce o papel de me, mas que tambm quem o leva a iniciao sexual:Abandonar Florita? Como eu podia abandonar a intrprete dos meus sonhos, as mos que prepararam minha comida, e lavavam, passavam, engomavam e perfumavam minha roupa? Gostei dela desde o dia em que a vi no meu quarto: a moa de rosto redondo, lbios grossos e cabelo escorrido, cortado em forma de cuia, o olhar terno e triste que foi adquirindo dureza e malcia no convvio com Amando. Florita sentia cime de mim por eu ter dormido com ela uma nica vez na rede: a brincadeira que me ensinou, dizendo: Faz assim, pega aqui, aperta minha bunda, no faz assim, pe a lngua pra fora e agora me lambe: a brincadeira que foi a despedida da minha juventude virgem e me castigou com a temporada na penso Saturno e quatro ou cinco anos de desprezo de Amando. (HATOUM, 2008, p. 74)

O ato incestuoso apresenta-se atravs da ambiguidade da relao retratada na citao, embora no tendo laos consanguneos, h uma suposta ligao parental entre os personagens estabelecida pelo convvio Amando entrou no meu quarto e disse: Ela vai cuidar de ti. Florita nunca mais arredou o p de perto de mim, por isso sentia falta dela quando morava na Saturno. (HATOUM, 2008, p. 16) e Amando, pela segunda vez, sentencia Arminto O que fizeste com Florita obra de um animal (HATOUM, 2008, p. 17)

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A proibio do incesto fruto de uma regra social, criada ainda pelas sociedades primitivas devido a uma necessidade que os selvagens sentiram em aprimorar a qualidade da prognie, visto que a endogamia produzia uma fraqueza excessiva devido a defeitos hereditrios, o que impressionou ainda mais a mente humana e isso resultou na criao mais e mais de tabus contra o matrimnio de parentes prximos. A outra cabea, talvez a mais poderosa, Dinaura, personagem ambgua assim como a linguagem literria. A ambiguidade em torno dessa personagem manifesta-se na sua origem De onde ela veio? (HATOUM, 2008, p. 40). O sumio de Dinaura outro ponto originador da ambiguidade e suas aparies so envolvidas por uma atmosfera misteriosa situando-a na fronteira entre o real e o imaginrioEla apareceu sem que eu percebesse. Parecia alucinao, porque, em meio aos vivas Virgem, senti o cheiro de lavanda, um arrepio no pescoo, e, quando me virei, os lbios de Dinaura tocaram meu rosto. Ela apareceu sem que eu percebesse, e me acariciou com as mos mornas que me deixaram febril (...) (HATOUM, 2008, p. 46)

Aspecto esse que nos remete natureza mitolgica. O olhar que hipnotiza, que tem a fora de atrair O olhar de Dinaura era o que mais me atraa (HATOUM, 2008, p. 31), assim como a cobra sucuri que atrai suas presas com o olhar algum espalhou que a rf era uma cobra sucuri (HATOUM, 2008, p. 34). A atmosfera mstica em torno dessa personagem reforada com as figuras que o autor cria: Vi os olhos de espanto no rosto fora do mundo (p. 34) e Ela no vai ser tua mulher. Nunca vai ser amada quem no de ningum. (HATOUM, 2008, p. 37). Nesse sentido Lvi-Strauss afirma na abertura de O cru e o cozido (2004), que h no mito uma situao paradoxal:deve-se relao irracional que prevalece entre as circunstncias da criao, que so coletivas, e o regime individual do consumo. Os mitos no tm autor; a partir do momento em que so vistos como mitos, e qualquer que tenha sido sua origem real s existem encarnados numa tradio. (p. 37)

O silncio de Dinaura acentua o mistrio em torno de suas origens e desorienta Arminto (...) essa mudez crescia e parecia uma faca que me ameaava, cortando o meu sossego (HATOUM, 2008, p. 92). Ele acaba sendo perseguido pelos rumores que buscavam nas lendas a justificativa para o sumio de Dinaura:Uns diziam que Dinaura havia me abandonado por um sapo, um peixe grande, um boto ou uma cobra sucuri; outros sussurravam que ela aparecia meia-noite num barco iluminado e dizia aos pescadores que no suportava viver na solido no fundo do rio. (HATOUM, 2008, p. 64-63)

O nome de Arminto sugere (ar-) algo sem consistncia que flutua levemente no tempo e no espao. O personagem com uma leveza sutil se movimenta e ocupa ambientes antagnicos devido s imposies circunstanciais no decorrer da narrativa e essa predestinao a mudanas contnuas nos remete a prpria obra de Milton Hatoum que impossibilita o leitor, ao final da leitura, delinear39

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tempo e espao. Esses elementos que so estruturantes e essenciais da narrativa so dissolvidos na obra, gerando reaes no leitor com certo teor nostlgico, sentimento que acentuado no personagem Arminto, filho de um colonizador branco que tem o destino marcado pela morte da me no seu nascimento. A leveza de Arminto e a dissoluo de tempo e espao nos remetem s reflexes de Octavio Ianni em O prncipe eletrnico. Ele afirma que, embora no mundo da ps-modernidade parea predominar a multiplicidade, descontinuidade, fragmentao, simulacro, desconstruo; como numa festa bablica permanente,(...) ele est amplamente articulado em moldes sistmicos. Ele se sustenta no ar desenraizado, volante, virtual, e sideral, em toda uma vasta, complexa e eficaz rede sistmica, por meio da qual se articulam mercados e mercadorias, capitais