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Universidade Federal do Rio de Janeiro Museu Nacional Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social AGENCIAMENTOS COLETIVOS, TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS E CAPTURAS UMA ETNOGRAFIA DE MOVIMENTOS NEGROS EM ILHÉUS Ana Claudia Cruz da Silva Rio de Janeiro, 2004

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Universidade Federal do Rio de JaneiroMuseu Nacional

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

AGENCIAMENTOS COLETIVOS,TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS E CAPTURAS

UMA ETNOGRAFIA DE MOVIMENTOS NEGROS EM ILHÉUS

Ana Claudia Cruz da Silva

Rio de Janeiro, 2004

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Universidade Federal do Rio de JaneiroMuseu Nacional

Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social

AGENCIAMENTOS COLETIVOS,TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS E CAPTURAS

UMA ETNOGRAFIA DE MOVIMENTOS NEGROS EM ILHÉUS

Ana Claudia Cruz da Silva

Tese de Doutorado apresentada aoPrograma de Pós-Graduação emAntropologia Social do Museu Nacional daUniversidade Federal do Rio de Janeiro

Marcio GoldmanOrientador

Rio de Janeiro, 2004

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FOLHA DE APROVAÇÃO

ANA CLAUDIA CRUZ DA SILVA

AGENCIAMENTOS COLETIVOS,TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS E CAPTURAS

UMA ETNOGRAFIA DE MOVIMENTOS NEGROS EM ILHÉUS

Tese de Doutorado em Antropologia Social apresentadaao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Socialdo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio deJaneiro

Rio de Janeiro, 20 de dezembro de 2004.

_________________________________________________Marcio Goldman

(Doutor, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu NacionalUniversidade Federal do Rio de Janeiro)

_________________________________________________Giralda Seyferth

(Doutora, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu NacionalUniversidade Federal do Rio de Janeiro)

__________________________________________________Antonádia Borges

(Doutora, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – Museu NacionalUniversidade Federal do Rio de Janeiro)

__________________________________________________Olívia Maria Gomes da Cunha

(Doutora, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - Universidade Federal do Rio de Janeiro)

__________________________________________________Miriam Furtado Hartung

(Doutora, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social –Universidade Federal de Santa Catarina)

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Resumo

A partir da premissa de que tudo o que existe é feito de "encontros", o objetivo principaldeste trabalho é descrever os encontros que constituíram e constituem os blocos afro da cidadede Ilhéus, no sul da Bahia. Estes blocos são definidos por seus membros a partir do fato dedesfilarem no carnaval utilizando elementos oriundos do que é por eles vivido como "culturanegra", e da finalidade de preservar e divulgar esta última. Desde o surgimento do primeiro blocoafro nos anos 70 na cidade de Salvador, a literatura especializada tem tratado o temaconcentrando a atenção e a análise no caráter étnico desses grupos. O principal resultado daintensa pesquisa etnográfica junto aos blocos afro de Ilhéus, que serviu de base para estetrabalho, indicou, entretanto que, além dos desejos de afirmação e diferenciação, quecorresponderiam a investimentos no que em geral é considerado étnico, os mais diferentesencontros estão articulados a desejos conectados a outras concepções de vida e do que possamser blocos afro – desejos igualmente constitutivos das experiências dos que deles participam.

Abstract

This dissertation is based on the premise that everything that exists is the result ofencounters. The main goal of this work is to describe the encounters that have been constitutingthe Afro-Brazilian carnival parade groups (blocos) in the city of Ilheus (Southern Bahia, Brazil).The participation of these blocos in the carnival parade is connected to what their membersexperience as “black culture”. Thus, the necessity to preserve and publicize “black culture” playsan important role in the definition of the blocos, according to their members. Since the first blocoin the city of Salvador was created in the 1970s, the specialized bibliography about this subjecthas emphasized the ethnic aspect of the blocos. However, the intensive ethnographic research onwhich this dissertation is based has indicated that there are other relevant aspects in addition tothe desire for affirmation and differentiation that is generally associated with ethnicity. Differentencounters are related to desires connected to various definitions of life in general and of theblocos in particular. These desires are constitutive dimensions of participants’ experiences in theblocos.

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Agradecimentos

“E é tão bonito quando a gente entendeque a gente é tanta gente onde quer que a gente vá.”

(Gonzaguinha, “Caminhos do Coração (Pessoa=Pessoas)”)

Uma tese é fundamentalmente o resultado de diversos encontros felizes com

pessoas que participaram em momentos e com intensidades diferentes do processo, desde o

primeiro desejo de realizá-la. Quero agradecer aqui aos responsáveis por alguns desses

encontros.

Agradeço muito aos meus pais o apoio incondicional e permanente que sempre me

deram. Se não foi fácil concluir este trabalho, certamente foi muito mais difícil para eles

criar as condições para que eu chegasse ao seu final. Tenho muito orgulho de ser sua filha.

Também agradeço aos meus irmãos pelo carinho, pela amizade e pelo apoio.

É claro que todo o conteúdo deste trabalho é de minha inteira responsabilidade,

principalmente os erros. No entanto, depois de acompanhar meu processo de formação

durante tanto tempo, já que foi meu professor ainda na graduação, orientou minha

monografia de conclusão de curso, minha dissertação de mestrado e esta tese, não posso

deixar de responsabilizar Marcio Goldman por ter feito da antropologia minha profissão e

um prazer. Agradeço por sua sempre competente e dedicada orientação – inteligência e

solidariedade são algumas de suas qualidades –, pelo apoio das mais diferentes formas,

pelas trocas de idéias e pela amizade.

Aos professores Giralda Seyferth e José Sérgio Leite Lopes agradeço pelo

acompanhamento do trabalho como membros das bancas de qualificação ao longo do curso

e também pelas críticas e sugestões. Agradeço também aos demais professores do PPGAS

e aos funcionários da Secretaria, sempre muito prestativos. A Isabel, a Carla e a Cristina,

da biblioteca, meu agradecimento especial pela disponibilidade e pelos sorrisos. Também

agradeço ao PPGAS os financiamentos concedidos para a pesquisa de campo.

Agradeço aos professores Giralda Seyferth, Antonádia Borges, Olívia Maria Gomes

da Cunha e Miriam Furtado Hartung, membros da banca examinadora, por sua disposição

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em participar dela e pelos comentários, críticas e sugestões ao trabalho, os quais espero

saber aproveitar da melhor maneira possível. Também agradeço aos professores José

Sérgio Leite Lopes e Osmundo Araújo Pinho por aceitarem o convite para suplentes da

banca.

Agradeço ao Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq) a concessão da bolsa de

doutorado por todo o período do curso, o que permitiu dedicar-me exclusivamente a ele.

Sou especialmente grata a todos os membros dos blocos afro de Ilhéus, tanto aos

que ainda hoje estão presentes na luta quanto aos que já passaram por ela. Agradeço,

especialmente, aos seus dirigentes. Durante a pesquisa, tive mais contato com alguns do

que com outros, mas todos foram importantes e contribuíram muito para a realização deste

trabalho. As informações prestadas, sua disponibilidade para a pesquisa e, sobretudo, seu

empenho em levar cada um dos grupos adiante, apesar de todas as dificuldades, merecem

minha gratidão e minha admiração.

Além dos membros dos grupos afro-culturais, várias outras pessoas dispuseram-se a

me ajudar durante a pesquisa, concedendo-me entrevistas, informações ou materiais –

nesse último item, cito especialmente Dino Rocha. Agradeço também aos responsáveis

pelo Centro de Documentação e pela biblioteca da Universidade Estadual de Santa Cruz.

Agradeço também a outras pessoas que foram de grande importância para a

pesquisa, tanto pelas informações que prestaram como membros e/ou simpatizantes do

Movimento Negro Unificado de Ilhéus, quanto pela amizade, pelas conversas e pelos bons

momentos que passamos juntos. Muito obrigada a Moacir Pinho e Bernadete, Edson

Vieira, Eduardo (Morcegão) e Alexandre. Ainda no item “bons momentos”, quero deixar

registrado o prazer gerado pelos encontros muito felizes com os grupos Viola de Bolso

(Eunápolis), ArteManha (Caravelas) e CEL (Alcobaça).

Ao meu amigo Jamilton Santana, agradeço pelas informações, pela “assistência de

pesquisa”, pelo apoio, pelas conversas... Agradeço, enfim, por ter estado por perto e por ter

me dado sua amizade e seu carinho, aos quais quero retribuir sempre.

Sou muito grata à “família Dilazenze” pelo amparo, pelo carinho e pelo que me foi

ensinado, e não só para pesquisa, mas, principalmente, pelo que aprendi para a vida. Como

não posso nomear a cada um, agradeço a todos através de Ilza Rodrigues: suporte dessa

família e do Dilazenze. O título religioso de “Mãe” Ilza revela o que é para quem tem a

honra de conviver com ela.

As crianças são um componente especial da fórmula que faz ser tão bom estar no

Dilazenze. Refiro-me não só às crianças da família, mas também àquelas do Projeto

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Batukerê. Agradeço especialmente a Indira Santos e a Pâmela Rodrigues pelos deliciosos

momentos que elas, seus primos e amigos me proporcionaram.

Na grande família Dilazenze, há duas pessoas a quem quero agradecer de maneira

muito especial. A Sonilda Santos, muito obrigada por sua amizade, mas também pelos

maravilhosos almoços (sua comida é espetacular!), pelas boas risadas e por todo o carinho.

A Marinho Rodrigues é difícil agradecer... Parte desta tese é fruto do diálogo com ele e de

seu saber, o qual compartilhou comigo com tanta generosidade. Agradeço sua confiança e

sua disponibilidade, assim como sua perseverança no trabalho, a dedicação ao movimento

que lhe permitiu ter um fantástico acervo em casa, e acima de tudo, sua amizade. A ambos,

toda a minha gratidão e amizade. Sempre.

Aos amigos do PPGAS; aos amigos antigos e aos mais recentes; àqueles que

acompanharam de longe e aos que viveram de perto o início, o final, uma pequena parte ou

todo esse processo, meu muito obrigada. Obrigada pela torcida e pelos muitos encontros

felizes, nos quais partilhamos alegrias, esperanças, prazeres, mas também tristezas,

frustrações, angústias (mesmo esses são felizes simplesmente porque foi possível partilhá-

los). A Almir Barbio, Ana Cláudia Marques, Ana Paula Rogers, André Bernardo, Cecília

Mello, Cristiane Bernardo, David Rogers, Eduardo Oliveira, Eliza Costa, Fernanda Pinto,

Fernando Rabossi, Francisco Vieira, Geisa Souza (difícil agradecer por tanto), Gilberto

Estrela, João Ribeiro, Jorge Villela, Kátia Tracy, Marilene Mizumoto, Marta Lago, Tomas

Martin Ossowicki, Paulo Fraga, Ricardo Costa, Antônio Rafael, Rogéria Martins, Sérgio

Oliveira, Sílvia Nogueira (e César), Waldéris Alves (que tão gentilmente ajudou na

revisão) Vincenzo Cambria e Vinícius Claro, meu carinho e amizade.

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Aos meus pais,com amor e gratidão

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Índice

Introdução ......................................................................................................................... 09

Encontros 1 - Movimentos Negros e a Invenção do Bloco Afro ..................................... 28Por que ‘re-africanização’? ........................................................................................ 32Ventos de lá ................................................................................................................. 36

Os movimentos de independência africanos .......................................................... 40Os movimentos negros norte-americanos .............................................................. 46O reggae e o rastafarianismo .................................................................................. 50A contracultura ....................................................................................................... 55

Ventos de cá ................................................................................................................ 61Os afoxés ................................................................................................................ 61O candomblé ........................................................................................................... 64Os ‘blocos de índio’ ................................................................................................ 68A economia ............................................................................................................. 77Movimentos negros políticos e intelectuais ........................................................... 82Os espaços negros ................................................................................................... 85

Os blocos afro de Salvador .......................................................................................... 87Ilê Aiyê .................................................................................................................. 88Malê Debalê .......................................................................................................... 91Olodum .................................................................................................................. 92Ara Ketu ................................................................................................................ 93Muzenza ..................................................................... .......................................... 94

Encontros 2 - Sobre Histórias, Números, Cores e Gente de Ilhéus .............................. 97Histórias de Ilhéus .................................................................................................... 102

Histórias de Ilhéus – economia cacaueira .......................................................... 114Histórias de Ilhéus – população e cor ................................................................ 119

Números .................................................................................................................... 133Cor e território .......................................................................................................... 137

Encontros 3 - Movimentos Negros em Ilhéus ................................................................ 155O Movimento Afro-Cultural de Ilhéus ....................................................................... 158O início ...................................................................................................................... 168

O Lê-guê Depá .................................................................................................... 169O Miny Kongo .................................................................................................... 173Lê-guê Depá ou Miny Kongo? ............................................................................ 177

Um pouco do Carnaval em Ilhéus ............................................................................. 180Mário Gusmão ........................................................................................................... 188África e black power também em Ilhéus .................................................................... 196

Encontros 4 - Singularização, Territórios Existenciais, Territórios Negros ................ 200Bloco afro como território negro .............................................................................. 207Blocos afro e religiosidade ........................................................................................ 212

Bloco afro e candomblé ...................................................................................... 212Bloco afro e outras religiões ............................................................................... 224

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Bloco afro e subjetividade negra ............................................................................... 238A dança afro ........................................................................................................ 239A roupa afro ........................................................................................................ 248A Noite da Beleza Negra ..................................................................................... 262Músicas e temas .................................................................................................. 271Nomes ................................................................................................................. 278

Carnaval .................................................................................................................... 279Blocos afro e blocos de trio ................................................................................. 287Horário de desfile dos blocos .............................................................................. 292

Bloco afro e racismo .................................................................................................. 296Os “bons tempos” da USINA .............................................................................. 303A Caminhada Cultural ......................................................................................... 306O Caso John ........................................................................................................ 320

O Conselho de Entidades Afro-Culturais .................................................................. 326O Memorial ......................................................................................................... 340

Encontros 5 - Bloco Afro: Capturas ............................................................................... 350Bloco afro: “forma associativa”................................................................................ 353

Bloco afro e família ............................................................................................. 356Bloco afro e trabalhos sociais ............................................................................. 362Os “trabalhos sociais” do Dilazenze ................................................................... 366

O Projeto Batukerê .................................................................................................... 375Batukerê e governo municipal ............................................................................ 384Concepções do Batukerê ..................................................................................... 394O Projeto Batukerê na mídia ............................................................................... 399O Batukerê para o Dilazenze ............................................................................... 401

Bloco afro: ‘forma’ grupo artístico e ‘forma’ empresa ............................................ 406Bloco afro como ‘trabalho’ ....................................................................................... 408

Conclusão ........................................................................................................................ 421

Anexos ............................................................................................................................. 446

Bibliografia ...................................................................................................................... 463

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Introdução

“É preciso saber fazer os encontros que lhe convêm.”1

(Deleuze 1978)

“A vida é a arte do encontro”2. Mais do que isso, a vida, o mundo e tudo o que

existe nele se constituem no encontro. Como diz Rolnik, “(...) o mundo (...) [é] uma

construção permanente, efeito exatamente do encontro, que não é neutro, pois neste

encontro ambos se constituem, é no encontro que se produz a realidade (...).” (1992b:03).

No encontro não existe aquele que afeta e o que é afetado: alguma coisa acontece em

ambos (ou nos vários) elementos envolvidos. Esta é a idéia que guia este trabalho: o que há

são encontros, o que constitui um ser é seu encontro com outro ser, que também está aí se

constituindo.

Assim, a proposta deste trabalho é descrever o que Guattari chama de

“heterogênese constitutiva”3 ou “heterogênese de componentes existenciais” (Rolnik

1992b) do “movimento afro-cultural” de Ilhéus, cidade situada no litoral sul do Estado da

Bahia. Trata-se de apresentar como se dá a construção de sua existência através dos

diferentes encontros, que também podem ser definidos como agenciamentos de fluxos, que

constituíram e continuam a constituir esse movimento, o qual passo a descrever

sumariamente como objeto empírico desta pesquisa.

1 Todas as citações oriundas de publicações estrangeiras que constam deste trabalho foram traduzidas pormim a fim de facilitar a leitura.2 Vinícius de Moraes e Baden Powell, em “Samba da Bênção”.3 Agradeço à Cecília Mello a ‘inspiração’ para o uso do conceito, presente em Mello 2003.

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objeto empírico de pesquisa: o movimento afro-cultural
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O que é definido emicamente por “movimento afro-cultural de Ilhéus” é o conjunto

de entidades que têm por objetivo a “preservação da cultura negra”, como consta da quase

totalidade de seus estatutos, sendo sua principal atividade desfilar no carnaval utilizando

elementos oriundos do que se denomina “cultura afro-brasileira”. Esse conjunto de

entidades é formado atualmente por doze “blocos afro”, um “afoxé”, um grupo de

maculelê e um grupo de capoeira que desfila como “levada”4, organizados numa entidade

de representação chamada Conselho das Entidades Afro-Culturais de Ilhéus (CEAC).

Ainda que haja outros grupos na cidade constituídos segundo o mesmo objetivo, a

participação no CEAC e, conseqüentemente, no desfile do carnaval (somente os blocos

afro filiados ao Conselho recebem recursos e participam do desfile), garante que apenas

esses grupos sejam concebidos como parte do movimento afro-cultural. Este é considerado

o setor mais expressivo e abrangente do movimento negro da cidade, também integrado

por grupos auto-definidos como de atuação mais “política”, como o Movimento Negro

Unificado e o UNEGRO; por grupos religiosos, como a pastoral afro e a ALUFÁ-GÊ,

ambas da Igreja Católica, representantes do Candomblé e de Igrejas Protestantes; por

representantes de grupos de capoeira e por ex-membros de blocos afro que continuam a ser

percebidos (e a se perceber) na cidade como membros do movimento.

Embora o afoxé e os grupos de maculelê e de capoeira sejam integrantes do

movimento afro-cultural, sua participação costuma ser bastante pontual: no carnaval e nas

eleições para a diretoria do CEAC. O dia-a-dia do movimento é produzido pelos blocos

afro, que constituem, portanto, o interesse central desta pesquisa.

Em comparação a outros grupos culturais percebidos como de origem afro-

brasileira, como os afoxés e os grupos de capoeira, os blocos afro são um fenômeno

relativamente recente, o primeiro tendo sido ‘inventado’ em meados da década de 70, num

4 Os significados desses termos serão apresentados no primeiro capítulo.

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eu posso dizer que a definição de teatro negro êmica é aquela no projeto de pesquisa.
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bairro periférico e majoritariamente negro da cidade de Salvador. Não obstante sua

semelhança aos afoxés, donde vieram alguns dos elementos inicialmente utilizados – tais

como a maioria dos instrumentos e o ritmo ijexá –, o primeiro bloco afro, o Ilê Aiyê do

bairro da Liberdade, foi concebido como algo inteiramente novo: “um bloco original”,

como consta de seu primeiro cartaz de divulgação (Agier 2000:72). Descrevê-lo como um

bloco de carnaval com motivos africanos pode parecer banal atualmente, mas o primeiro

desfile do ‘Ilê’ provocou uma pequena revolução no carnaval soteropolitano de 1975, o

que foi constatado por Gomes (1989) em sua pesquisa com jornais da época. A cidade já

experimentava um clima de ‘afirmação de negritude’ com grupos de dança inspirados no

candomblé ou na black music, com estilos musicais como o reggae fazendo sucesso em

bares alternativos da periferia. Porém, o desfile do Ilê Aiyê impunha uma diferença que

não passava só por uma forma de música, ou por uma forma de se vestir ou de dançar, mas

por tudo isso e pela afirmação de que haveria uma outra maneira de viver o mundo, a qual

seria específica da população negra. Diferenciar a ‘população negra’ da ‘população’ já foi,

em si, uma revolução no país da ‘democracia racial’, do ‘povo brasileiro’. Além disso,

diversos grupos de pessoas acompanharam a proposta do Ilê e fundaram muitos outros

blocos afro.

Para Antônio Risério, a criação do Ilê Aiyê foi responsável, ao lado da reativação

do Afoxé Filhos de Gandhi e da criação dos novos afoxés, por uma pequena revolução na

própria cidade de Salvador, ao menos em suas periferias e para a população negra mais

jovem, que viveu o momento que foi consagrado por esse autor como o de

“reafricanização” do carnaval e da vida (1981:19).

O trabalho de Risério é pioneiro na análise da especificidade daquele momento e da

importância das novas entidades no processo de “reafricanização”. Porém, grande parte de

seu mérito está na bem sucedida tentativa de apontar as variáveis, os caminhos, ou para

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falar a partir da proposta deste trabalho, os encontros que produziram a emergência do Ilê

Aiyê, dos demais blocos afro e afoxés então existentes e de uma nova visão de mundo que

surgia. A partir de seu trabalho, muitos outros autores, de diferentes áreas do

conhecimento, têm se dedicado ao estudo dos blocos afro, de alguns de seus elementos,

como a música, ou de pensá-los como exemplos de teorias sobre racismo e combate ao

racismo, de identidade, de etnicidade, ou de tudo ao mesmo tempo.

Como seria de se esperar, a literatura a respeito dos blocos afro tem na cidade de

Salvador seu foco principal5. Além de ser o berço do movimento, ainda hoje é na capital

baiana que os blocos apresentam maior importância e visibilidade. Contudo, apesar do

número bastante expressivo de entidades existente na cidade, a quase totalidade dos

trabalhos refere-se aos chamados “cinco maiores” – Ilê Aiyê, Olodum, Ara Ketu, Muzenza

e Malê Debalê – e, dentre eles, o Ilê Aiyê e o Olodum, sem dúvida alguma, são os que

recebem mais atenção dos pesquisadores. Frank Ribard (1999) apresenta, assim, um

diferencial interessante por trabalhar com depoimentos e informações de grupos bem

menos conhecidos, mas suas principais conclusões têm os grupos maiores como

referências da argumentação.

As implicações da quase exclusividade dos investimentos em pesquisa junto aos

grandes blocos são, entre outras, a generalização e, como conseqüência, uma certa

distorção de várias das características atribuídas aos blocos afro. Os discursos dos mais

destacados dirigentes de blocos afro, como Vovô – do Ilê Aiyê – e João Jorge – do Olodum

– são usados em referência a quaisquer blocos, na verdade, ao bloco afro como ‘categoria

sociológica’. O que se sabe sobre blocos afro é o que foi escrito sobre esses blocos. É

evidente que não se trata de dizer que os discursos em si mesmos sejam falsos, mas que há

diferentes realidades que não podem ser recobertas pelas experiências das duas mais

5 O trabalho de Machado (1996) sobre o primeiro bloco afro da cidade do Rio de Janeiro, o Agbara Dudu, éuma exceção.

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importantes entidades do país. A partir dessa constatação, a realização de minha pesquisa

na cidade de Ilhéus, no interior baiano, oferece uma perspectiva diferente. A ‘novidade’ de

um trabalho assim reside, em primeiro lugar, na conclusão de que há outras motivações

para a fundação de um bloco afro e que este pode apresentar características diversas

daquelas atribuídas aos grandes blocos no discurso de seus dirigentes ou de pesquisadores;

em segundo lugar, a comparação entre trabalhos realizados com os grupos afro mais

famosos de Salvador e aquele realizado com blocos pequenos e distantes da capital baiana

e da mídia, como é o caso de Ilhéus, permite relativizar afirmações a respeito dos primeiros

a partir das práticas dos segundos, nesse caso, mostrando mais semelhanças do que as que

se deixam notar nos discursos de dirigentes e pesquisadores.

Há alguns temas recorrentes em torno dos quais gira a maior parte dos trabalhos

sobre blocos afro. Talvez porque um ritmo novo, o ‘samba-reggae’, tenha sido inventado

pelos blocos afro; ou porque sua música – é claro que me refiro aos grandes blocos – tenha

ultrapassado a função de ser tocada somente nos ensaios e no desfile e tenha se tornado

‘comercial’; ou porque a ‘letra’ da música seja uma forma de discurso que fornece

definições a respeito dos blocos afro, o fato é que a música é um desses temas. Alguns

trabalhos são propriamente de teoria musical e enfocam o ritmo ‘samba-reggae’, em geral

buscando suas origens; outros mostram a trajetória dos blocos sob a perspectiva de seu

sucesso comercial, gravação de discos, shows, principais cantores e compositores etc.; há

também aqueles que privilegiam a música dos blocos afro no contexto da diáspora e da

globalização e, finalmente, aqueles que trabalham a música, enquanto melodia, mas

sobretudo a partir de suas letras, como discurso étnico. Na verdade, esta última

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a novidade do trabalho da autora: há outras motiva- ções para a funda- ção de um bloco afro.
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característica está presente na quase totalidade das obras, mesmo naquelas cujos interesses

estão voltados para aspectos técnicos ou históricos da música dos blocos afro6.

Um outro tema bastante trabalhado em relação aos blocos afro é a prática educativa

destes, seja como educação formal ou informal. Alguns poucos blocos afro possuem ou

possuíram projetos de educação formal, como a Escola Criativa do Olodum (que não mais

atua dessa forma) e a Escola Mãe Hilda, do Ilê Aiyê, entretanto, as oficinas oferecidas

pelos blocos às crianças de suas comunidades e o trabalho cotidiano dessas entidades

através de projetos sociais também são percebidos como práticas educativas. A

especificidade dessas práticas não está contida apenas no conteúdo e na forma de

transmissão do conhecimento, mas em objetivos mais amplos que estão relacionados com

‘formação de identidade’, ‘consciência negra’, ‘afirmação de negritude’ etc. 7.

A abordagem que concebe os blocos afro como ‘empresas’ ou enfoca seu poder de

gerar recursos e renda não apresenta uma quantidade tão grande de estudos quanto as

anteriores, mas seu impacto sobre a literatura especializada é substantivo. Os trabalhos de

Dantas (1994 e 1996)8 e de Fischer (1993) são bastante citados para caracterizar o Olodum

que, além de ser seu objeto de pesquisa, sem sombra de dúvida é o bloco afro que melhor

pode ser pensado sob essa perspectiva. Nunes (1997) e Schaeber (1999), entre outros,

também são exemplos desse enfoque, que não deixa de estar vinculado à afirmação de

negritude e de identidade negra.

Esses diferentes enfoques têm em comum a concepção de que o motivo de

constituição de um bloco afro, assim como dos caminhos que ele segue, necessariamente

passa pelo desejo de ‘afirmar’ ou ‘produzir’ uma ‘identidade negra’. Na verdade, além de

6 Sobre música e blocos afro, ver, entre outros: Agier 1997; Armstrong 2001; Béhague 2000; Cambria 2002;Carvalho 1993; Crook 1993; Dunn 2001; Godi 1997, 1999 e 2001; Guerreiro 1998, 1999 e 2000; Lima 1997,1998 e 2001; Moura 1987; Nunes 1998; Pinho 1997; Schaeber 1998 e Stokes 1997.7 Sobre educação e blocos afro, ver Andrade 1997; Carvalho 1994; Galiza 1995; Guimarães 1995; Silva 1991e 1995; Silva 1997; Siqueira 1996 e Vários 1998.

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estar nas abordagens acima resumidas, este tema, em si mesmo, é discutido, praticamente,

na totalidade dos trabalhos sobre blocos afro, sendo a ênfase no caráter étnico o que acaba

por definir a categoria9. Ainda que esses estudos apontem elementos de

constituição/definição do bloco que poderiam ser qualificados, entre outros termos, como

de caráter econômico, político, associativo, lúdico etc., o que é denominado étnico, sem

dúvida alguma, sobrepõe-se aos demais, sobrecodificando-os, ou seja, fazendo com que os

desejos, as percepções, assim como os movimentos dos grupos afro sejam observados

exclusivamente por esse prisma.

É claro que há um conteúdo étnico presente na fala do dirigente ou membro do

bloco ou na crítica de outros setores do movimento negro ou de qualquer outro ator social

que interaja com o grupo afro. Contudo, o fato do caráter étnico sobrepor-se

freqüentemente enquanto discurso a outros aspectos, não significa que ele seja sempre a

principal motivação dos agentes sociais para as práticas que constituem o movimento em

seu cotidiano. E essa sobreposição do “étnico”, ou da “identidade étnica” ou da

“etnicidade” está presente principalmente na concepção dos pesquisadores, que acabam

por superdimensionar esse aspecto em detrimento dos demais.

O problema do tipo de abordagem que concebe a vida de um grupo ou das pessoas

unicamente ou principalmente a partir do viés étnico está nas análises resultantes dele, ou

seja, na ‘explicação’ que, em geral, se segue à etnografia. Em primeiro lugar, nem sempre

o destaque dado ao aspecto étnico é positivo, pois várias análises encaminham-se no

sentido de reclamar sua ausência em determinado grupo ou de considerar incongruência do

grupo/movimento quando suas ações apontam em outras direções. Em segundo lugar, ao

reconhecer mas desprezar outros elementos e planos de uma dada relação em favor do

8 Ver também Vários 1999 – trata-se de um debate sobre o carnaval de Salvador que conta com as presençasde Dantas e de João Jorge Rodrigues, presidente do Olodum, entre outros.

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sobreposição do caráter etnico nas análises sobre os blocos afro.
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étnico, a análise perde em capacidade explicativa, dado que a questão a ser colocada será

sempre a respeito de “maior” ou “menor” “consciência negra”, ou seja, maior ou menor

semelhança em relação a um determinado modelo de ação social, o que torna as ações que

fogem ao ‘padrão’ – que pretende determinar como os blocos afro deveriam ser –,

ininteligíveis.

Dar inteligibilidade às ‘relações raciais’ no Brasil tem sido a grande preocupação

dos estudiosos, tanto brasileiros quanto estrangeiros, que têm se dedicado ao tema desde o

início do século passado. A partir do momento que se toma como ‘dado’ que as relações

raciais no Brasil são distintas de outras também tomadas como ‘dados’ – e está-se falando

especificamente dos Estados Unidos e, anteriormente ao apartheid, da África do Sul –, e

estas são concebidas como o que deveria ser, o que ocorre no Brasil parece ‘estranho’,

ininteligível e precisa ser explicado. É o que buscaram fazer Gilberto Freyre e sua tese de

‘democracia racial’ em função da formação do povo brasileiro; os pesquisadores do Projeto

Unesco e a argumentação de que a discriminação seria antes social do que racial; e até

pesquisadores mais recentes como Michael Hanchard e sua ‘constatação’ da “inabilidade

dos militantes afro-brasileiros para mobilizar as pessoas sobre a base da identidade racial”,

assim como da “inabilidade dos brasileiros de identificarem modelos de violência e

discriminação que são racialmente específicos” (1994:06), conseqüências de desigualdades

políticas e culturais brasileiras que “têm impedido o desenvolvimento de modos afro-

brasileiros racialmente específicos de consciência e mobilização.” (:05).

Embora não faça parte da proposta deste trabalho aprofundar as discussões

presentes na literatura sobre relações raciais no Brasil, não é possível pensar sobre grupos

constituídos a partir de uma organização concebida também como racial, como é o caso

dos blocos afro, sem tocar nessas questões. Assim, ainda que indiretamente, a contribuição

9 Entre os muitos trabalhos sobre o assunto, estão Agier 1992, 2000 e 2001; Almeida 2000; Godi 1991;Guerreiro 1994 e 1998; Morales 1990 e 1991; Moura e Agier 2000; Nascimento 1994; Olivieri-Godet 2001;

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ficar apenas no carater etnico, acaba por definir maior e menor consciência negra.
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que esta pesquisa pretende dar à discussão passa, primeiramente, por dar inteligibilidade às

ações dos grupos afro, apresentando motivações e desejos que não estão vinculados à

questão étnica, que não estão relacionados a ter ou não ter ‘consciência negra’. Em

segundo lugar, uma das conclusões deste trabalho reside na idéia de que o racismo

praticado no Brasil e aquele existente em outros lugares têm mais semelhanças do que

diferenças. Esta afirmação baseia-se na concepção de racismo como um mecanismo de

“inclusão diferenciada” (Hardt e Negri 2001:213) próprio do capitalismo e não como uma

relação de alteridade.

Voltando aos temas abordados nos trabalhos sobre blocos afro, há de se destacar as

monografias sobre o assunto. Dissertações de mestrado, teses de doutorado e trabalhos

extensos de pesquisa, geralmente restritos a um único bloco10, são as principais fontes que

fornecem elementos para pensar os grupos afro sob perspectivas não exclusivamente

étnicas. Descrições do cotidiano dos grupos ou reconstruções de suas histórias de fundação

diminuem a importância da ‘identidade étnica’ como razão de ser dos blocos afro. No

entanto, na maioria desses trabalhos, introduções e conclusões cuidam de reintroduzir a

temática e ‘reverenciá-la’.

Os trabalhos de Agier (2000) e Ribard (1999) são alguns dos mais importantes

como produtos de extensas e profundas pesquisas11. O primeiro apresenta um grande

investimento etnográfico junto ao Ilê Aiyê, mostrando-o sob diferentes dimensões,

enquanto o segundo constitui um trabalho de caráter sociológico que pretende entender o

“carnaval afro-baiano” a partir da articulação de seu lado ‘festivo’ com os contextos

econômicos, sociais e políticos que regem as relações sociais. Do ponto de vista do objeto

de pesquisa, o presente trabalho inclui-se nesse mesmo grupo ao buscar descrever o

Ribard 1999; Santos 2000; Siqueira 1993 e 1996; Souza 2001; Veiga 1991 e 1997.10 Como já observado antes, o trabalho de Ribard (1999) é uma exceção, pois oferece um panorama de todo omovimento dos blocos afro na cidade de Salvador, embora seja nítida sua maior aproximação de blocosconsiderados grandes, como o Ilê Aiyê.

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PARA PENSAR: racismo como um mecanismo de "inclusão diferen- ciada" próprio do capitalismo e não como uma relação de alteridade. Isso me lembra Anjos no livro "ter- ritorio da linha cruzada".
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objeto de estudo.
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movimento afro-cultural de Ilhéus sob diferentes aspectos, aproximando-se de Agier a

partir do investimento etnográfico e de Ribard na proposta de abarcar a totalidade do

movimento, apesar de ter um dos blocos afro ilheenses como objeto privilegiado da

investigação12.

Porém, de uma perspectiva teórico-metodológica, uma distinção fundamental se

coloca entre o meu trabalho e a grande maioria dos outros sobre o mesmo tema: trata-se da

recusa do conceito de ‘identidade’ – seja ‘étnica’, ‘negra’ ou ‘cultural’ – como categoria

analítica. Pensar o mundo e tudo o que existe como produção de encontros que não cessam

de acontecer, em permanente construção, tal como afirmo nas primeiras linhas deste

trabalho, impede o uso do conceito de identidade, pois este sempre vai necessitar, ainda

que sejam feitas todas as ressalvas, de uma realidade anteriormente dada que provoque

uma ‘identificação’, mesmo que momentânea13. Não se trata de negar que o termo é

largamente utilizado nos meios militante e cultural. Por isso mesmo, é preciso pensá-lo

como mais um elemento da etnografia, quando for o caso, e não como algo capaz de tornar

inteligível uma realidade. Pelo contrário, categorias como identidade e etnicidade

“obscurece[m] mais do que revela[m]”, pois “sobrecodifica[m] multiplicidades”

(Ossowicki 2003), isto é, fazem a vida, produzida permanentemente nos mais variados

encontros, ser percebida pelo olhar do buraco de uma fechadura14.

11 Destaque-se também Nunes 1997; Santos 2000 e Veiga 1991.12 O investimento aprofundado junto ao Grupo Cultural Dilazenze foi uma opção interessante e necessária:primeiramente, trata-se do bloco afro de Ilhéus de melhor estrutura organizacional, o que o torna mais ativodo que os demais; em segundo lugar, seu presidente possui um excelente conhecimento sobre toda a trajetóriado movimento, além do melhor (mesmo único) acervo de documentos, inclusive a respeito de outros blocos;por fim, por ter sido o Dilazenze também o foco da minha pesquisa de mestrado, muitas das questõespresentes neste trabalho nasceram daquele momento de observação e do diálogo com seus membros.13 Mesmo “em situação”, segundo defendem autores como Cunha (1986) e Okamura (1981), os conceitos deetnicidade e de identidade não deixam de produzir reificação de posições, fronteiras e rotulações, pois elesserão sempre o resultado de um movimento de privilégio de uma identificação em detrimento de outra e,portanto, de sua exclusão. Como bem lembra Malik (1996), a etnicidade (o que vale também para aidentidade) é pré-determinada por uma conjuntura dada histórica, espacial e socialmente. Assim, utilizar oconceito de etnicidade em relação a um grupo social significa, de imediato, promover sua identificação e,conseqüentemente, seu controle a partir de um quadro referencial de relações de poder já dado.14 Discutir os conceitos de identidade e etnicidade não é o objetivo deste trabalho, que mereceria, como temacontecido, páginas e páginas de reflexão, tamanha é a importância dessas categorias para a antropologia e,

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recusa do concei- to de identidade em prol do concei- to de encontros.
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É claro que o adjetivo ‘afro’ que acompanha e qualifica o termo ‘bloco’ não é à toa.

Ele indica que sua constituição tem por objetivo uma diferenciação baseada em elementos

que são concebidos, percebidos e experimentados como oriundos de uma ‘cultura’ de

origem africana. Contudo, a atribuição de uma ‘identidade negra’ a um desses grupos – e

de tudo o que vem a ela vinculado, como formas de ser, de pensar e de sentir – impede a

percepção do que constitui essa diferenciação e de que elementos importam para construí-

la. Além disso, uma vez que o bloco afro é assim definido, suas outras características ou

dimensões são ignoradas ou adequadas à formulação identitária, seja para corroborá-la ou

para ‘denunciá-la’ ausente. Vê-se, assim, que o conceito apresenta-se insuficiente para

descrever este fenômeno social.

À

Este trabalho apresenta uma continuidade com minha dissertação de mestrado

(Silva 1998)15, cujo objeto empírico também é o movimento afro-cultural de Ilhéus.

Porém, no início da pesquisa, meu interesse no movimento era indireto: os blocos afro de

Ilhéus ocupavam um lugar que poderia ser de outros grupos em situação semelhante, pois

meu objetivo era refletir sobre o uso do conceito de cidadania, tão em voga em obras

acadêmicas assim como na mídia, em discursos políticos, entre agências internacionais e

organizações não-governamentais, governo etc. Especificamente o Grupo Cultural

Dilazenze apresentava um perfil bastante interessante para a pesquisa em função dos

trabalhos comunitários que desenvolvia e de ter, ao contrário dos grandes grupos afro de

Salvador, pouco contato com o discurso dominante sobre o conceito que seria investigado.

especificamente, para formulações a respeito dos blocos afro. A literatura sobre o assunto é muito extensa ehá inúmeras correntes teóricas. Para uma visão geral das teorias de etnicidade, ver, por exemplo, Banks 1996;Jenkins 1996 e 1997 e Poutignat e Streiff-Fenart 1998. Para críticas às noções de identidade e/ou etnicidade,ver, entre outros, Handler 1994; Herzfeld 1996; Ossowicki 2003 e Viveiros de Castro 1999.15 Note-se que naquela ocasião, optei por usar nomes fictícios a fim de evitar possíveis constrangimentosentre as pessoas com as quais trabalhei. Neste novo trabalho, o uso de nomes próprios é restrito, mas aspessoas são facilmente identificadas a partir de cargos ou relações junto aos grupos afro. Assim, os leitores

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No entanto, a pesquisa de campo fez perceber que seria mais profícuo tratar o

conceito de cidadania indiretamente, não o movimento. Logo ficou claro que o termo não

estava presente no discurso dos membros do Dilazenze, mas o que era entendido como

‘cidadania’ era perceptível em suas práticas. Assim, ao invés de investigar como ele era

concebido, melhor seria saber como era vivido. Isso foi possível porque o conceito de

cidadania está em constante interação com os atores sociais, dando significado a práticas

distintas que, no caso do movimento afro-cultural de Ilhéus, podiam ser identificadas com

outras categorias, como “trabalho social”, “trabalho comunitário”, “militância” etc. (Silva

1998)16.

Uma das motivações para dar prosseguimento ao trabalho no doutorado junto ao

mesmo objeto empírico da pesquisa anterior foi a possibilidade de um aprofundamento

etnográfico que seria difícil num novo campo. Além disso, aquele primeiro contato com o

movimento afro-cultural de Ilhéus e com a literatura especializada sobre o assunto mostrou

que haveria coisas diferentes a dizer a partir de uma pesquisa etnográfica relativamente

intensa. Assim, elementos encontrados no campo naquela ocasião e não aproveitados na

dissertação de mestrado foram retomados, aprofundados e reelaborados neste novo

trabalho. Isso permite, então, contabilizar como parte deste os cerca de três meses

dedicados ao campo durante o mestrado, somando quase dezoito meses de investigação

etnográfica entre os anos de 1997 e 200117.

especialmente interessados que forem buscar na dissertação de mestrado as referências feitas aqui vão sedefrontar com outros nomes, mas, como geralmente acontece, não será nada difícil descobrir quem são.16 A continuidade da pesquisa ao longo dos anos seguintes mostrou que a relação existente hoje entre osgrupos afro – e não apenas o Dilazenze – e o uso do termo cidadania sofreu mudanças: o conceito estápresente nos discursos de seus dirigentes e em seus projetos. Naquele primeiro momento da pesquisa, estamudança estaria tendo início através do que chamei de “processo de cidadanização”, conforme se verá noquarto capítulo deste trabalho.17 E, graças ao uso da telefonia e por ter feito amigos no campo, mantive contato e, evidentemente, recebiinformações sobre o movimento afro-cultural de Ilhéus ao longo de todo este período e mesmo depois dele.Além disso, é preciso dizer, tive o privilégio – e para muitos, e algumas vezes para mim mesma, o problema– de dividir o campo com meu próprio orientador. Embora abordando temas diferentes, nossas pesquisas emmomentos alternados no campo proporcionaram a troca de informações e idéias que permitiu umacompanhamento do movimento por todo o período da pesquisa, ainda quando longe de Ilhéus. Essa situação

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ué.. isso não é imposição?
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A pesquisa foi realizada, quase que totalmente, junto aos dirigentes dos blocos afro.

E esta foi antes uma imposição empírica do que uma questão de opção metodológica,

sendo, assim, parte da própria etnografia. Ao contrário do que se costuma imaginar, é

restrito o número de componentes que vive o bloco afro ao longo do ano. Apesar de sua

capacidade de aglutinar uma grande quantidade de pessoas em torno de objetivos comuns,

estes se constituem em eventos, os quais são organizados por quem dirige o bloco afro e

freqüentados por vizinhos, simpatizantes, amigos de amigos... Ao menos em Ilhéus18, a

idéia de ‘pertencimento’ a um bloco afro só costuma ser manifesta no carnaval,

especialmente em caso de vitória do bloco, ou nos casos de críticas internas, quando há

alguém que não está “se comportando” como membro daquele bloco. Ao longo do ano,

quem pensa sobre os blocos afro são seus dirigentes, são eles que os fazem funcionar, os

produzem. E foi nesse funcionamento que a pesquisa esteve interessada.

À

A leitura do índice deste trabalho já o revela algo diferente. Ao invés de capítulos, o

termo adotado para denominar cada uma de suas partes é encontros. É evidente que se trata

de um ‘floreio’, mas que tem por objetivo realçar e ser coerente com a proposta deste

trabalho de descrever os encontros que produziram e produzem o movimento afro-cultural

de Ilhéus. Assim, cada uma dessas partes corresponde a apresentações desses encontros,

agrupados a partir de grandes recortes, os quais descreverei sucintamente. Antes, porém, é

preciso explicitar melhor o que significa a opção pelo uso de termos como encontros ou

agenciamentos de fluxos, como consta do início desta apresentação, e quais são suas

implicações para a análise.

sui generis, por estar baseada em solidariedade e em cumplicidade, certamente contribuiu para oenriquecimento da pesquisa e a melhor compreensão de alguns aspectos que se apresentaram no campo.18 Agier (2000) ressalta a identificação dos moradores do Curuzu, no bairro da Liberdade, com o Ilê Aiyê,afirmando que há um sentimento de fazer parte de uma mesma “família simbólica”, de que existe aí uma“identidade coletiva” (:87).

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Em “Carta a Réda Bensmaïa, sobre Espinosa”, Deleuze (1992) diz que Espinosa

escreve a “Ética” nas três formas de conhecimento: como conceito (segundo gênero do

conhecimento e diz respeito a “novas maneiras de pensar”), como afecto (primeiro gênero

do conhecimento e refere-se a “novas maneiras de sentir”) e também como percepto

(terceiro gênero do conhecimento e provoca “novas maneiras de ver e ouvir”) (:203-4).

Segundo o autor, “é por essa razão que rigorosamente todo mundo é capaz de ler Espinosa,

e de extrair dele grandes emoções, ou de renovar completamente sua percepção, mesmo

entendendo mal os conceitos espinosianos” (205). Apropriar-me da idéia de encontros

como orientação metodológica deste trabalho é como usar a ‘licença’ que Deleuze dá para

o entendimento que não-filósofos possam ter de Espinosa em relação a ele mesmo. Isso

significa que certamente não compreendo com precisão o que Deleuze expõe a respeito do

conceito de ‘encontros’ – que é de Espinosa – no curso que deu sobre este autor, onde

encontrei a idéia (ver Deleuze 1978). O conceito é muito mais complexo do que o uso que

proponho dele. Mas posso dizer que descobri-lo provocou emoções e, principalmente, deu-

me a sensação, mais do que a certeza, de que ele seria útil para pensar e organizar o

material resultante das pesquisas de campo e bibliográfica. O simples entendimento de que

tudo o que existe se constitui a partir do encontro, de que cada encontro transforma os

corpos, compõe ou decompõe, e até mesmo produz um novo corpo19, parecia encaixar-se

com Antônio Risério e a idéia de que o que ele chamou de reafricanização do carnaval –

tema do primeiro dos próximos Encontros – é resultado da ‘mistura’, de “coisas [que] vão

se mesclando (...) da qual um terceiro sentido ou elemento deve ser extraído.” (1981:32-3).

A organização desta tese nasce, assim, de encontros entre mim, o movimento afro-cultural

19 “Então, num amor feliz, num amor de alegria, o que se passa? Você compõe um máximo de relações comum máximo de relações do outro, corporal, perceptivo, todos os tipos de natureza. Certamente corporal, sim,por que não; mas perceptivo também: ah bom... escuta-se a música! De uma certa maneira, não se pára deinventar. Quando eu falo do terceiro indivíduo que os outros dois não são mais do que partes, isso não querdizer que esse terceiro indivíduo pré-existisse, é sempre ao compor minhas relações com outras relações, e é

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sobre o conceito de ENCONTROS!!!
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de Ilhéus, Antônio Risério, o carnaval de Salvador da década de 70 descrito por ele,

Deleuze, Espinosa, meu orientador que me apresentou o texto de Deleuze... e muitos outros

elementos, pois cada um desses ‘corpos’ também é resultado de muitos e diferentes

agenciamentos.

Em muitos momentos deste trabalho, o termo ‘encontros’ será substituído pelo de

agenciamentos, tal como no parágrafo acima. Trata-se de um conceito amplamente

empregado por Deleuze e Guattari que também diz respeito à idéia de composição e

decomposição dos seres. Diz Guattari em seu “Glossário de Esquizoanálise” (1986), que

agenciamento é uma “noção mais ampla do que aquela de estrutura, sistema, forma,

processo etc. Um agenciamento comporta componentes heterogêneos, tanto quanto de

ordem biológica, social, maquínica, gnoseológica, imaginária.” (:287). Ou seja, uma coisa,

qualquer coisa, é produzida pelo e no entrecruzamento de componentes muito diversos, aí

incluídos sujeitos, matérias, idéias, climas, representações, linguagens, semióticas... tudo o

que entra em jogo na composição de algo. Agenciamentos são as conexões entre os

elementos que participam da constituição de alguma coisa20.

Ao defender que a noção de agenciamentos coletivos deveria ser utilizada para falar

sobre processos políticos, Guattari deseja, através dela, recusar a oposição bipolar entre

classes sociais em favor da multiplicidade (“os agenciamentos coletivos não são ambíguos:

eles são múltiplos”) dos grupos sociais. E, mais do que isso, mostrar que eles não cabem

em definições que seguem apenas parâmetros sexuais, políticos, etários, nacionalistas etc.

sob tal modelo, sob tal aspecto que eu invento esse terceiro indivíduo que o outro e eu mesmo não seremosmais do que partes, sub-indivíduos.” (Deleuze 1981).20 Talvez a seguinte passagem de Deleuze e Guattari torne a noção mais clara: “Uma menina tem um faz-pipi? O menino diz sim, e não é por analogia, nem para conjurar o medo da castração. As meninas têmevidentemente um faz-pipi, pois elas fazem pipi efetivamente: funcionamento maquínico mais do que funçãoorgânica. Simplesmente, o mesmo material não tem as mesmas conexões, as mesmas relações de movimentoe repouso, não entra no mesmo agenciamento no menino e na menina (uma menina não faz pipi de pé nempara longe). Uma locomotiva tem um faz-pipi? Sim, num outro agenciamento maquínico ainda. As cadeirasnão o têm: mas é porque os elementos da cadeira não puderam tomar esse material em suas relações, oudecompuseram a relação o bastante para que ela desse uma coisa totalmente diferente, um bastão de cadeirapor exemplo.” (1996:41).

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sobre o conceito de agenciamentos
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Como agenciamentos que são, “eles podem surgir de um prazer muito imediato, por

exemplo aquele de estar junto, e também de preocupações mais políticas, sociais, (...).”

(1986:149). O uso dos conceitos de agenciamentos e de encontros neste trabalho tem esse

mesmo propósito: mostrar que os blocos afro, sendo agenciamentos coletivos, não podem

ser definidos por critérios apenas étnicos; que seus desejos, produtos ou produtores de seus

encontros, inventam diferentes maneiras de ser. Alguns desses desejos, desses encontros,

dessas ‘maneiras de ser’ dos blocos afro de Ilhéus é o que este trabalho pretende

apresentar.

Os três primeiros capítulos, ou Encontros, formam uma primeira parte da tese,

concebida a partir da descrição dos elementos que em agenciamento produziram o

surgimento do movimento afro-cultural de Ilhéus, ou mais exatamente dos primeiros

blocos afro da cidade.

A descrição do surgimento do movimento afro-cultural de Ilhéus deve,

necessariamente, começar por apresentar como nasceu o primeiro bloco afro, o Ilê Aiyê.

Encontros 1 é, então, dedicado a mostrar como se deram os encontros em Salvador que vão

provocar outros encontros em Ilhéus, os quais constituirão seu movimento afro-cultural. O

Ilê Aiyê é resultado e constituinte dos agenciamentos que promoveram o (res)surgimento

de uma série de fenômenos que acabaram por configurar a estética, o comportamento, a

música, as idéias que compuseram o que veio a ser chamado de reafricanização do

carnaval, de Salvador e da vida de parcela da juventude negra.

Os fluxos gerados em Salvador e que produziram tantas mudanças também

atingiram Ilhéus e, a partir das conexões com fluxos que passavam pela cidade, produziram

seu movimento afro-cultural. Encontros 2 e 3 têm por objetivo ‘relatar’ como se

processaram esses encontros de fluxos. A divisão entre os capítulos é meramente uma

questão de organização da apresentação, pois não se trata de pensá-los isoladamente.

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encontros e agen- ciamentos tem a mesma finalidade: propor que há outras maneiras de ser que nao fecha- das no caráter étni- co.
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Assim, a Encontros 2 cabe a descrição de fluxos de economia, de história, de números e

outros que entraram em agenciamento com tantos outros que participaram do surgimento

dos primeiros blocos afro e continuam a produzir o movimento, compõem sua concepção

de mundo. O capítulo seguinte apresenta, então, fluxos que costumam ser mais diretamente

relacionados aos agenciamentos que geraram os primeiros blocos afro ilheenses. Eles

podem ser chamados de culturais, religiosos, midiáticos, musicais; alguns já passavam por

Ilhéus, enquanto outros foram ‘levados’ para lá por pessoas que viveram o que acontecia

em Salvador. Partindo da configuração que tem o movimento hoje chega-se aos primeiros

blocos afro e deles à capital baiana. A própria exposição desta genealogia já permite

perceber que elementos, que conexões foram importantes para a constituição dos blocos

afro em Ilhéus.

Os dois outros capítulos compõem a segunda parte deste trabalho, cujo objetivo

pode ser definido como o de descrever o funcionamento do movimento dos blocos afro em

Ilhéus a partir dos desejos de diferir, incluir e ser incluído e dos agenciamentos produzidos

por eles, que geram modos de existência, concepções de mundo correspondentes.

O objetivo do quarto capítulo é descrever o bloco afro como ‘território negro’,

entendido como território existencial, onde são produzidos modos de vida singulares,

desejos de diferir do mundo tal como ele existe – com suas relações de opressão – através

de elementos remetidos ao que se denomina ‘cultura negra’ e das diversas atividades

promovidas pelo bloco, especialmente aquelas que objetivam a preparação para o carnaval

e o próprio desfile, no qual mais se expressa seu desejo de singularizar-se. Parte de

Encontros 4 é, então, constituído pela apresentação dos agenciamentos de fluxos que

promovem essa singularização, que possibilitam a invenção de um outro modo de

existência, chamado de ‘negro’; porém, é justamente a partir do que o singulariza, sua

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ISSO!! É isso, talvez, a minha saída... território negro... singulari- zação.
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condição de grupo racialmente organizado, que torna possível a ação da maioria sobre o

bloco afro através da prática do racismo – questão também abordada no capítulo.

Contudo, ao mesmo tempo em que experimenta processos de singularização,

desejos de diferir, os blocos afro encontram-se com o capitalismo, que também constitui

um modo de existência que gera desejos de incluir e de ser incluído em seu sistema, desejo

de ser igual. A partir de tais desejos, o capitalismo transforma as atividades de

singularização dos blocos afro em algo facilmente reconhecível por ele: trabalho, que pode

ser ‘social’ ou ‘artístico’.

Se o processo de singularização do bloco afro representa sua entrada numa linha de

fuga, isto é, numa forma de escapar do modo de existência atual produzido pelo

capitalismo produzindo um território existencial distinto, a transformação de suas

atividades em trabalho, elemento próprio do sistema capitalista, trata-se, do meu ponto de

vista, de sua captura. O objetivo de Encontros 5 é descrever, então, como se dá essa

captura, que ocorre através de agenciamentos produzidos tanto pela ‘forma-ong’, a partir

do desejo de incluir através dos trabalhos sociais, quanto pela ‘forma-empresa’ e o desejo

de ser incluído através de trabalhos artísticos.

Porém, é preciso observar que a adequação do bloco afro à forma-ong através do

desejo de incluir é atualmente uma das maneiras mais usuais de defini-lo, ainda que seja

pela ausência de tal adequação. Isso ocorre porque tanto os blocos quanto os demais atores

sociais estão sendo afetados pela onguização, que aqui significa uma determinada

concepção de mundo, a qual tem a idéia de ‘inclusão’ como fundamento. Por outro lado,

inclusão também é o melhor mecanismo de expansão e de realização do capitalismo, que

dá forma ao mundo em que vivemos. Se o desejo de singularização que criou o bloco afro

relaciona-se com a proposta da invenção de um outro mundo, o desejo de ‘incluir’

relaciona-se com a idéia de aceitação do mundo tal como ele existe. Refletir sobre as

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desejo de ser igual de se enquadrar nas idéias de "teatro".
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implicações resultantes da afetação do bloco afro pela forma-ong em relação com seu

desejo de singularidade é o tema da conclusão deste trabalho.

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Encontros 1

MOVIMENTOS NEGROSE A INVENÇÃO DO BLOCO AFRO

“Um batuque mais que um bloco é o nosso estilo de vida.”(Reyzinho, “Bodas de Prata”).

“— Era negão prá cá, negão prá lá, todo mundo queria sernegão”.

“— A gente começou a ver todo mundo se vestir estilo afro:cabelo, bata, gorro”.

“— Um virava para o outro e cantava: ‘Eu sou negão, eu sounegão. Meu coração é a Liberdade’”.

“— Essa música virou febre aqui na Bahia”.

O diálogo acima é parte de uma conversa na casa do presidente do Grupo Cultural

Dilazenze, bloco afro de Ilhéus. Ele e um colaborador do bloco estavam me apresentando

a famosa música de Gerônimo, de título obscuro: “Macuxi Muita Onda”, mais conhecida

como “Eu sou Negão”, gravada em 1986 (Guerreiro 2000:21). Enquanto ouvíamos a

música repetidamente – o LP não estava nas melhores condições, além do mais, parte da

letra é indecifrável, tal como o título, e parte é falada –, eles me contavam que Gerônimo

teria composto a música enquanto presenciava um dos encontros mais famosos e mais

comuns do carnaval baiano, o encontro do bloco afro – no caso, o Ilê Aiyê – com o trio

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elétrico. A parte falada reproduz um diálogo hipotético entre os cantores dessas entidades.

Toda a narração do encontro enfatiza a postura de assumir-se como ‘negro’ e elogia a

‘resistência’ pela ‘cultura’. É o ‘negro’ do bloco afro enfrentando o ‘branco’ do trio

elétrico. Guerreiro reproduz uma declaração de Gerônimo sobre a música, na qual ele diz

que “o que estava em jogo naquele momento era a luta pelo respeito às manifestações

negras. E a gente não queria isso só no carnaval, não” (2000:22).

A composição de “Eu sou Negão” e sua repercussão junto à juventude negra

baiana são, ao lado da explosão midiática do Grupo Cultural Olodum em 1987, uma

espécie de auge, resultado, mas também parte constituinte de um momento muito especial,

cujo início costuma ser datado em meados da década de 70, com o surgimento do primeiro

bloco afro, o Ilê Aiyê. A partir de então, organizações formadas por motivações de caráter

racial foram ganhando cada vez mais visibilidade e o movimento negro começou a se

fortalecer em Salvador: ao mesmo tempo em que a seção baiana do Movimento Negro

Unificado Contra a Discriminação Racial, o atual MNU, era fundada em 1978, acontecia

também o que Risério (1981) chamou de reafricanização do carnaval de Salvador, com o

surgimento dos blocos afro e dos novos afoxés. Esse também foi o grande momento de

divulgação do reggae e do aparecimento de grupos seguidores do rastafarianismo, sem

falar dos grupos de teatro, de dança e grupos de estudo que tinham a questão negra como

temática motivadora para sua constituição.

A idéia de movimento negro, ou melhor, de movimentos negros presente neste

trabalho é a de pessoas – sujeitos – que se organizam a partir do desejo de mover-se, de

sair de uma determinada situação em busca de outra, enfim, de desterritorializar-se por

uma linha de fuga sobretudo, mas não exclusivamente, étnica. Sendo assim, ao falar de

movimentos negros não se está falando de algo estático, mas de alguma coisa que se

constitui pela e na movimentação – ou, para usar uma palavra cara aos movimentos

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definição de movi- mentos negros: pessoas que se or- ganizam a partir do desejo de mo- ver-se. desterrito- rializar-se por uma linha de fuga sobre- tudo étnica.
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políticos de modo geral, na mobilização, em seu sentido pleno: ‘fazer mover-se’ em

função de um objetivo. Tratam-se de subjetividades que vão sendo afetadas por outras

subjetividades em movimentos constantes. Parece-me que a maneira mais interessante,

porque mais clara, de visualizar, de perceber o que se passa é através da idéia de fluxos,

que é palavra-movimento. Fluxos que passam, que afetam, que geram novas

subjetividades, que geram outros fluxos, que passam, que afetam e assim por diante.

A partir do argumento acima, pode-se dizer que o surgimento dos novos

movimentos negros em Salvador se deu no encontro de fluxos produzidos pelos mais

diferentes movimentos, fossem em Salvador, no Brasil ou no mundo. Eram fluxos gerados

pelos movimentos produzidos pelo candomblé, pelo samba, pelos antigos afoxés e pelos

blocos de índio ou pelas organizações de jovens buscando formas alternativas de lazer na

periferia. Fluxos gerados pelos movimentos de subjetividades afetadas pelas condições

socioeconômicas e de discriminação racial que agiam sobre a população negra da cidade.

Havia outros fluxos que, como pólens, foram levados para a capital baiana pelos ventos

que vinham de centros urbanos que experimentavam um tempo de intensa efervescência

‘política’ e ‘cultural’1, com ênfase para os bailes de soul music do Rio de Janeiro e dos

grupos políticos negros de São Paulo. Fluxos que atravessaram o Atlântico, cuja origem

está nas lutas de independência dos países africanos, e que favoreceram um reforço na

divulgação do Pan-Africanismo naquele momento; ou que passaram pelos movimentos de

‘libertação’ dos ‘negros’ e de ‘poder negro’ (black power) que ocorriam nos Estados

Unidos, na produção e divulgação internacional do reggae jamaicano e de seus ídolos,

como Bob Marley, Jimmy Cliff, Peter Tosh...

Ventos de lá que traziam consigo uma multiplicidade de idéias, de símbolos, de

desejos... fluxos que se encontraram com ventos de cá que sopravam outros fluxos, novos

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FLUXOS
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SIM! Fluxos! En- contro entre fluxos aqiu entra Gilroy e toda a retomada do Pan-Africanismo Aqui entra os pós- colonias, no senti- do de práticas pós- coloniais.
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tipos de desejos. Alguns originados no, então recente, processo de industrialização e de

urbanização de Salvador, incluída aí a região do Recôncavo Baiano2; outros desejos

vinham de um clima diferente que se instalava no país no momento em que se dava o

início da abertura democrática; e, na mesma esteira, novos desejos – desejos de diferença

– que propiciaram o surgimento de organizações que ficaram conhecidas como os novos

movimentos sociais, entre eles, os movimentos negros.

O primeiro autor a relacionar as origens, as influências, os encontros que poderiam

explicar o que estava acontecendo com o carnaval e com a vida em geral de uma parcela

significativa da juventude negra de Salvador no final dos anos 70 e início dos 80 foi

Antônio Risério com seu Carnaval Ijexá: notas sobre afoxés e blocos do novo carnaval

afrobaiano, de 1981. Sua obra é tão fundamental que não há trabalho sobre o mesmo tema

que não parta de suas premissas, de suas informações – mesmo quando elas são apenas

‘opinativas’, pois Risério, como ele mesmo explica, nunca teve “a intenção de ser

sistemático, rigoroso, objetivo, compreensivo, abrangente ou definitivo” (:11) – e que não

siga suas indicações, suas pistas, que alguns autores chegam mesmo a dar status de ‘dados

sociológicos’.

Dado que este trabalho pretende descrever os encontros que tornaram possível o

movimento dos blocos afro em Ilhéus, que têm conexões diretas com o movimento de

Salvador, o qual foi primeiramente analisado por Risério, cujas informações e pistas são

muito valiosas para a compreensão daquele momento e do movimento, este autor será

também a base para a minha empreitada. É preciso, porém, deixar bem claro o que

significa o estatuto de ‘base’ aqui concedido a Risério: trata-se de trabalhar sua obra como

1 As aspas simples indicam que esses termos não têm um sentido único, já dado. Eles serão alvo de reflexãoem vários momentos deste trabalho.2 Diversos autores iniciam sua descrição do período que virá a ser o auge do movimento negro em Salvadora partir da grande mudança econômica vivida pela cidade nos anos 50 e 60 com a industrialização e,principalmente, com a implantação do Pólo Petroquímico de Camaçari, atribuindo a esta mudança uma

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desejos da diferen- ça. Hip hop não é só etnico, teatro negro também não.
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‘guia’, como ‘fonte de inspiração’, mas com a possibilidade de acrescentar novos

elementos ou de discordar daqueles indicados por ele. A proposta deste primeiro ‘relato de

encontros’ é, então, a partir das informações e sugestões de Risério3, complementadas

pelas de outros autores, mostrar como se deram os encontros em Salvador que vão

provocar outros encontros em Ilhéus, os quais constituirão seu movimento afro-cultural.

Para tanto, este Encontros 1 está dividido em quatro partes. Na primeira, o objetivo é

entender o que Risério denomina ‘reafricanização’, do que se está falando ao usar o termo;

nas segunda e terceira partes, a idéia é apresentar quais foram esses fluxos que se

encontraram e deram origem ao processo de reafricanização e ao movimento negro dos

blocos afro em Salvador. Na história do movimento, são cinco aqueles considerados os

maiores blocos da capital baiana, cujas influências são claramente percebidas nos blocos

afro de Ilhéus. Por isso, a última parte consiste de um resumo sobre cada um deles.

Por que ‘re-africanização’?

O próprio título de Carnaval Ijexá: notas sobre afoxés e blocos do novo carnaval

afrobaiano traz algumas questões: por que novo carnaval? Ele se diferencia de outros em

quê? Por que afrobaiano? E, logo na apresentação do livro, aparece o termo

“reafricanização” referindo-se ao processo durante o qual surgiram os blocos afro e os

novos afoxés. Para um leigo em ‘carnaval baiano’ vem a pergunta: se o período

constituído entre o fim dos anos 70 e início dos 80 foi de ‘re-africanização’, quando e

como o carnaval foi africanizado pela primeira vez?

É o próprio Risério quem explica: a presença maciça dos afoxés e dos blocos afro

nas ruas de Salvador no carnaval o fez “lembrar uma antiga afirmação de Nina Rodrigues,

expectativa de mobilidade social até então inexistente entre os negros pobres e, até mesmo, a criação de umaclasse média negra em Salvador. Este tema será objeto de discussão ainda neste capítulo.3 Haja vista que a única obra de Antônio Risério sobre o assunto é Carnaval Ijexá... , de 1981, doravante ascitações a ele serão feitas apenas com seu nome e o número da página referida.

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de que ‘a festa brasileira é ocasião de verdadeiras práticas africanas’” (:16). Nina

Rodrigues, em Os Africanos no Brasil, de 1905, está se referindo aos carnavais da última

década do século XIX e dos primeiros anos do XX, quando “clubes carnavalescos

organizados por alguns africanos, negros e crioulos ou mestiços” (apud Risério:17)

desfilavam pelas ruas de Salvador como os préstitos da elite branca. As primeiras notícias

sobre estes últimos são de meados da década de 80, enquanto os préstitos organizados por

‘afro-brasileiros’ só aparecem na imprensa a partir de 1895 (Vieira Filho 1997:41-2).

Além de Risério, vários outros autores comentam sobre os famosos clubes africanos, tais

como o Embaixada Africana, o Pândegos d’África, o Chegada Africana e o Filhos de

África, entre outros, que se apresentavam como cortejos reais, luxuosamente trajados e

faziam referência direta à África, não apenas através da ‘realeza’, mas também com

pessoas fantasiadas de ‘Guerreiros Zulu’, armas e trajes ‘tribais’4.

Fry et alli (1988) recorrem a Nina Rodrigues para mostrar que esses clubes

expressavam diferentes ‘Áfricas’: uns exibiam uma “África nobre, com seus faraós e reis

abissínios”, era a África “apenas como ‘tradição’ ou ‘lembrança’”; outros, como o

Pândegos d’África, utilizavam danças e cantigas do candomblé, ou seja, “práticas

africanas” que eram ‘atualizadas’ no Brasil (:261). Segundo Nina Rodrigues, estes últimos

seriam representantes da “África inculta que veio ao Brasil escravizada” (apud Fry et alli

1988:261). Vieira Filho argumenta que a apresentação de uma “África civilizada e culta”

seria uma “estratégia” dos clubes negros para “reforçar a auto-estima e o valor positivo

das raízes africanas (...) conhecida hoje como auto-afirmação”. Em nota de rodapé, ele diz

que “essa estratégia foi reutilizada nas décadas de 1970 e 80 pelos movimenos negros”

4 Ver, entre outros, Fry et alli (1988:251), onde há a descrição de um préstito do Pândegos d’Áfricareproduzida de Manoel Querino 1955; Moura (2001:165) relata o conteúdo de um ‘manifesto’ enviado peloclube Embaixada Africana à polícia de Salvador; o mesmo manifesto está transcrito em Vieira Filho(1997:45-6), onde também há uma descrição jornalística do carnaval de 1899 do mesmo clube, cujo tema foi

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(1997:50). Sem dúvida alguma, ‘auto-estima’, valorização das ‘raízes africanas’ e ‘auto-

afirmação’ fazem parte do vocabulário e das práticas dos movimentos negros recentes.

Contudo, ainda que sem “perder a dimensão da africanidade”, o próprio autor ressalta o

desejo desses grupos de fazerem uso de “uma nova forma de expressão, aceita pela

sociedade” (:54). E neste ponto eles estão bem mais próximos da Frente Negra Brasileira,

movimento negro dos anos 30, do que dos movimentos negros das décadas de 70 e 80:

enquanto a primeira valorizava o ‘ser negro’, mostrando-o capaz de adaptar-se às

exigências da sociedade, de tornar-se um ‘igual’, os últimos buscavam a igualdade pela

valorização da diferença. Mas este assunto será retomado adiante.

Além dos clubes negros, havia também os batuques, cuja ocorrência era mais

visível na periferia da cidade. Nas reproduções de notícias jornalísticas dos primeiros anos

do século XX, retiradas de Nina Rodrigues (1905) e que constam do artigo de Fry et alli

(1988:253-255), o termo “batuque” sempre vem adjetivado de “africanizado” ou

“africano” e está relacionado com o candomblé. Os batuques e o uso de “costumes

africanos” foram proibidos em 1905, e, a cada carnaval, os editais de proibição eram

publicados, até 1913 (:256). É claro que a proibição não significou a extinção dos

batuques, mas a retirada dos grandes clubes africanos da cena principal do carnaval baiano

deu ‘fim’ ao primeiro período de africanização do carnaval.

Por volta de 1920, segundo Guerreiro (2000:71), os afoxés, que já existiam desde o

século XIX mas que também enfrentaram a proibição das ‘manifestações africanas’,

voltaram a aparecer – embora nunca tenham desaparecido por completo – no cenário do

carnaval, porém agora incorporando novos elementos e assemelhando-se, na estrutura do

desfile, aos préstitos dos clubes negros proibidos na década anterior. Conhecidos como

“candomblés de rua”, os afoxés resistiram por todo o século XX, com momentos de

o Egito (:49-50); Guerreiro (2000:69-70) dedica um pequeno capítulo ao tema (“Os Clubes Negros”) e

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expansão e de retração, ou de “fluxo” e “refluxo”, como diz Risério (:17). Apesar da

presença dos afoxés no carnaval, é preciso ressaltar que a prática de “costumes africanos”

permaneceu proibida e só em 1938 as casas de candomblé puderam voltar a realizar

cerimônias públicas, desde que pedissem autorização à polícia. A licença só deixou de ser

obrigatória em 1976 (Morales 1988:268).

No capítulo que dedica ao Afoxé Filhos de Gandhi, Risério (:52-54) reproduz uma

informação de Raul Giovanni Lody retirada da coleção ‘Cadernos de Folclore’ sobre o

quase desaparecimento dos afoxés a partir de 1929. O surgimento do Filhos de Gandhi em

1949, teria ocorrido, então, num momento de revitalização dos afoxés, que vieram a sofrer

um novo período de esmorecimento até o “renascimento” do próprio Filhos de Gandhi,

cujo resgate é atribuído a Gilberto Gil na segunda metade da década de 70. Risério

considera o “renascimento” desse afoxé como o “segundo momento-chave de

reafricanização do carnaval baiano” (:53). O primeiro seria a fundação do Bloco Afro Ilê

Aiyê (:38) e o terceiro, a fundação do Afoxé Badauê (:63), chamado por ele de ‘novo’

afoxé5. Assim, a presença de “verdadeiras tribos afrobaianas” desfilando pelo circuito

carnavalesco, com “pessoas exibindo trancinhas variadas e caprichosas, vestindo panos e

batas, torsos e turbantes, colares e búzios, ao som dos atabaques e de cantigas bainagôs”

fez Risério (:16) aproximar esse momento daquele descrito por Nina Rodrigues em 1905.

Depois da ausência de grupos carnavalescos mais identificados com a questão negra

durante vários anos, a emergência dos blocos afro e dos novos afoxés, além da presença

marcante do Filhos de Gandhi nas ruas, vieram modificar o carnaval, torná-lo outro,

reafricanizado, por isso “novo carnaval afrobaiano”, como consta do subtítulo.

A percepção de Risério de que o nascimento ou o re-nascimento dessas entidades

foram “momentos-chave” desse período que ele chamou de reafricanização do carnaval,

Santos 1997, sobre ‘batuques’ e ‘sambas’ do carnaval baiano do séc. XIX.

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não deve deixar perder de vista que os [res]surgimentos desses grupos tanto são produtos

quanto produtores de novos desejos, de novas formas de perceber o mundo que não se

restringem aos dias da festa carnavalesca, como tão bem o diz Risério:

“Desse modo, a ‘reafricanização’ de que falo não é simplesmentecarnavalesca. Trata-se de um processo bem mais geral: o da‘reafricanização’ da vida baiana (e brasileira, evidentemente; aparticularização vai por conta da perspectiva regional aqui adotada).‘Reafricanização’ que está tendo, no carnaval, seu clímax, suaexpressão mais densa e colorida, mas que de modo algum se resumeaí” (:19).

Seguem-se, então, alguns dos movimentos produtores dos fluxos que, ao se

encontrarem, reafricanizaram a vida do país, de Salvador e, conseqüentemente, de Ilhéus.

Ventos de lá

O título acima refere-se a movimentos externos ao Brasil, ocorridos entre as

décadas de 60 e 70, que produziram fluxos que, em maior ou menor grau, entraram em

agenciamentos com outros produzidos aqui e ajudaram a transformar desejos e práticas de

uma parcela da população negra brasileira, especialmente na cidade de Salvador. Tendo-se

em mente que a percepção da importância desses movimentos é a posteriori e dada em

função dos produtos dos encontros, não é rentável tratá-los isoladamente, como

acontecimentos em si. Contudo, com o objetivo de apresentar melhor a argumentação, a

opção foi por destacá-los dos movimentos internos – os ‘ventos de cá’, título

absolutamente previsível da próxima seção – sem deixar de observar as relações cabíveis.

Nos anos 70, a influência africana sobre os movimentos negros brasileiros foi

intensa. Tal afirmação soa de modo estranho a partir da ótica de que, no limite, qualquer

manifestação negra nas Américas é de origem africana, nascida da diáspora. Como ‘raiz’,

ainda que de práticas culturais consideradas americanas, como o samba, o reggae ou o

jazz, ou como ‘tradição’, ‘lembrança’, o continente africano sempre esteve presente, mas

5 A emergência dos blocos afro e dos ‘novos’ afoxés será descrita adiante.

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sempre enquanto passado (perdão pelo trocadilho), seja como passado longínquo, na

origem de tudo, ou como passado mítico. Em relação ao primeiro caso, observe-se, por

exemplo, a construção do mito de formação do povo brasileiro a partir das ‘três raças’: o

‘índio’ estava aqui, era o ‘dono da terra’; o branco veio da Europa ‘civilizada’ para

‘desenvolver’ o lugar; e o ‘negro’ veio da África para ‘contribuir’ com seu trabalho e seus

costumes6. Já o ‘passado mítico’ aparece nas referências do candomblé e de outros

símbolos de religiões afro-brasileiras.

Mesmo para ser negada, a África estava lá, quando, por exemplo, nos elogios da

imprensa baiana aos préstitos dos clubes negros nos carnavais do final do século XIX e do

início do XX, que se distanciavam dos ‘batuques africanos’, como já observado na seção

anterior, para falar de uma África de reis e rainhas, uma ‘África nobre’ (Nina Rodrigues,

1905). Segundo Pinto (1995), a postura do movimento negro antes da década de 70 era a

de valorizar a África e seus habitantes como ancestrais do povo brasileiro, mas criticando

suas guerras, sua não aceitação do modo de vida ocidental. O colonialismo também não

era alvo de críticas e parecia “ser encarado como algo natural” (:118). Dessa forma, a

África ‘primitiva’ e idealizada era valorizada, enquanto a África vivida era depreciada.

Porém, na década de 70, a influência africana sobre os movimentos negros

brasileiros vem das notícias que chegam de uma África real, do presente. O interesse dos

movimentos negros pelo continente africano ‘contemporâneo’ é fruto de uma conjunção

de fatores, melhor dizendo, de encontros de fluxos que mudaram o foco através do qual

esse era visto: fluxos da popularização e do avanço tecnológico dos meios de

comunicação, especialmente da TV; fluxos da Guerra Fria; fluxos dos movimentos negros

norte-americanos; fluxos da soul music e do reggae; fluxos dos interesses comerciais do

6 Versão bastante simplificada e resumida de um senso comum construído ao longo do século XX porgoverno e intelectuais, mas ainda presente em livros didáticos e mais ou menos reproduzida nascomemorações dos 500 anos do ‘Descobrimento do Brasil’, em 2000.

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passado longínquo e passado mítico: A África!
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Estado Brasileiro e, principalmente, mas sem esgotar todas as possibilidades, fluxos

produzidos pela própria mudança de definição dos movimentos nesse período.

Nos anos 70, como já observado anteriormente, diferentes grupos sociais que não

podiam ser contemplados pelas lutas travadas na esfera das relações de produção nem pela

política stricto senso – já que eram excluídos delas –, organizaram-se com base em suas

especificidades. Esses grupos caracterizavam-se por um modo de atuação distinto dos

sindicatos, justificado pela identificação de formas de opressão – “a guerra, a poluição, o

machismo, o racismo” (Santos 1997:258) – que não passavam pelas questões trabalhistas e

foram chamados pela sociologia de novos movimentos sociais (o movimento sindical era o

‘velho’ movimento social). Entre as novas organizações estavam aquelas formadas a partir

do objetivo comum de promover uma melhor qualidade de vida para a população negra,

embora pudessem diferir radicalmente nas concepções e estratégias de atuação7. Contra a

proposta integracionista da maior parte dos movimentos negros conhecidos até então, era

preciso investir na diferença para mostrar que o problema do ‘negro’ era diferente do

problema do ‘operário’, ou seja, que não se tratava de uma questão de classe, mas de

racismo; que não bastaria ‘educar’ ‘o negro’ para inseri-lo na ‘sociedade brasileira’, tal

como defendiam a Frente Negra Brasileira, os chamados ‘clubes de negros’ ou até mesmo

o Teatro Experimental do Negro8, embora este último tivesse um discurso bastante

combativo contra o racismo e Abdias Nascimento, seu idealizador, tenha se tornado um

dos maiores nomes na luta contra a discriminação racial no Brasil. Assim, para denunciar

que a ‘democracia racial’ era um ‘mito’, que a condição de ser negro – assim como de ser

7 Refiro-me às entidades chamadas ‘culturalistas’ e as ditas ‘políticas’, sendo ambos os termos usados comodefinição ou como acusação por militantes e estudiosos.8 “Esse movimento [Frente Negra Brasileira], transformado em partido político em 1936 e interditado no anoseguinte, como todos os outros partidos políticos do país pela ditadura de Getúlio Vargas, e todos os demaismovimentos negros que apareceram e desapareceram entre 1945 e 1970 (por ex.: Primeira ConvençãoNacional do Negro, Teatro Experimental do Negro) estavam preocupados em dar ao negro uma novaimagem, semelhante àquela proposta pela ideologia de ‘democracia racial’. Todos escolheram a escola e a

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TEN - pensava que a educação pudes- se terminar com o racismo.
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mulher, índio, homossexual, deficiente físico ou mental... – trazia problemas muito

específicos e, portanto, exigia também direitos específicos, dever-se-ia dar visibilidade à

população negra, encoberta pela idéia de mestiçagem e pela política de formação de um

‘povo brasileiro’9. Tal visibilidade só poderia ser estabelecida através da noção de

diferença da população negra frente à população brasileira.

Fazendo uma síntese das leituras de intelectuais e militantes negros a respeito dos

rumos da luta anti-racista no Brasil nos anos 70, Cunha (2000) explica a argumentação de

Lélia González – antropóloga, intelectual e militante negra das mais ativas – de que a

noção de “cultura negra”, justamente porque se contrapondo à de “cultura popular”, seria

o melhor lugar para marcar essa diferença e abrigar a tamanha diversidade de

organizações e movimentos negros no Brasil, pois

“Nesse momento, a idéia de ‘diferença’ tem um status ontológico, aoser explicada como um conjunto diversificado de elementos cultural ehistoricamente determinados pela origem e pelas vicissitudes dapresença negra nas Américas. E se há um lugar que lhe éprivilegiado, é no plano da cultura” (Cunha 2000:339).

Assim, tomando a ‘cultura negra’ como “referencial coletivo” (:339) cujos

‘elementos’ são dados por uma ‘origem’ comum e pelas experiências de um povo – o

africano – pelas ‘Américas’ a partir de um mesmo processo – a diáspora forçada pela

escravidão –, fica fácil entender porque o interesse pela África e pelo que pudesse ser

entendido como de origem africana se fez tão presente nos movimentos negros brasileiros

nos anos 70 e 80. Nesse contexto, a “cultura negra” era “resistência contra a opressão”

(:339) e estratégia de “mobilização negra” (:340). Esse mesmo movimento de valorização

da África e da experiência comum da diáspora teve como corolário ou como inspiração,

educação como campo de batalha. Pensavam eles que o racismo, filho da ignorância, terminaria graças àtolerância proporcionada pela educação” (Munanga 1999:97).9 Ver, entre outros, Munanga (1999), especialmente o Capítulo V, em que o autor discute a tese de DarcyRibeiro sobre a formação de uma ‘etnia nacional’. Note-se ainda que, embora trinta anos tenham se passadodesde o início desse processo, a maior parte dos argumentos contra a adoção de políticas de cotas atualmente

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talvez tudo ao mesmo tempo, o reforço de uma idéia pan-africanista e as influências dos

movimentos negros norte-americanos, do reggae jamaicano e das lutas pela independência

dos países africanos.

Os movimentos de independência africanos

Tal como anunciado páginas atrás, a obra de Risério é o principal ‘guia’ de

apresentação desses primeiros encontros. Para ele, os movimentos e as conquistas de

independência dos países africanos, especialmente das ex-colônias portuguesas da África

Negra – Guiné-Bissau (1974), Moçambique e Angola (1975) – tiveram um lugar

importantíssimo no processo de reafricanização da juventude negra de Salvador. A vitória

dos movimentos guerrilheiros para a população negra brasileira era motivo de orgulho e

provocou “um verdadeiro boom (...) de entidades e grupos voltados para a celebração da

África Negra” (:37), o que é refletido nas fantasias, nas músicas, nos temas apresentados

pelos blocos afro nos desfiles de carnaval. Nas quatro páginas que dedica ao assunto,

Risério aponta diferentes elementos que ajudaram a produzir a enorme repercussão que

esses movimentos de independência africanos tiveram junto aos movimentos negros

brasileiros: o pan-africanismo, a política externa do governo brasileiro, os movimentos de

esquerda...

O movimento pan-africanista não era exatamente uma novidade. Em 1900, Du

Bois, americano conhecido como o “pai do pan-africanismo contemporâneo”, foi

secretário do Primeiro Congresso Pan-africano, realizado em Londres (Munanga 1988:36).

Dos anos 20 aos 60, organizou cinco congressos pan-africanos na França, na Inglaterra e

nos Estados Unidos (Silva 2001:20). Enquanto movimento que pretendia aglutinar as

nações do continente africano contra o poder colonial ocidental, ele não foi bem sucedido.

continua baseada na invisibilidade da população negra, ou seja, na alegada dificuldade de se definir ‘quem énegro’ no Brasil.

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No entanto, sua importância não pode ser menosprezada, principalmente no que diz

respeito a formulações de conceitos como ‘negritude’ – sobre o qual Munanga diz que o

pan-africanismo é seu predecessor (1988:35) – e ‘consciência negra’, ambos fundamentais

para a constituição dos movimentos negros contemporâneos. Seu legado foi o de colocar a

‘cultura africana’ como centro de convergência, posto que é origem, dos povos da

diáspora, promovendo a solidariedade entre eles e a descoberta de uma história comum.

Como diz Silva, “da relação entre consciência negra e pan-africanismo poderíamos

ressaltar a importância dada à cultura africana como forma de promover o auto-

conhecimento e a auto-estima” (2001:36). E é a esse ‘pan-africanismo’ que Risério se

refere. Trata-se de um sentimento, por parte da população negra de Salvador, de relação

com a África como origem, como “raiz-afro-mãe” – expressão que ele toma emprestada

do Afoxé Badauê (:37) – e de solidariedade entre ‘os negros’ do mundo. Este sentimento

fez com que fosse muito importante para os ‘negros’ brasileiros tanto a luta por

independência dos ‘negros’ africanos quanto a luta contra a discriminação racial dos

‘negros’ norte-americanos.

É preciso atentar que o sentimento de solidariedade que mudava o olhar dos

movimentos negros brasileiros em relação à África, afetando a subjetividade de parte da

população negra soteropolitana (e brasileira) e favorecendo o processo de reafricanização

do carnaval e da vida em geral, era fruto do trabalho desses movimentos em torno da

noção de cultura negra enquanto estratégia de mobilização, tal como exposto acima, mas

também de uma série de outros fatores que, por sua vez, também provocavam maior

atenção ao continente africano, promoviam a solidariedade da população negra às questões

africanas e contribuíam para o desejo das pessoas de se mobilizarem para viver sua

‘cultura negra’.

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Um desses outros fatores foi a política externa brasileira, especialmente do

Governo Geisel (1974-1979): “seja como for, a política externa brasileira permitiu que

fosse mais intensa e mais ampla, entre nós, a repercussão das revoluções africanas”

(Risério:36). Na página anterior a essa colocação, o autor comenta sobre sua satisfação em

relação à postura do governo brasileiro de reconhecimento das declarações de

independência dos países africanos de imediato, além de haver condenado a política do

apartheid na África do Sul e rejeitado “a interferência das potências imperialistas nos

assuntos internos das novas nações socialistas africanas” (:35).

Segundo Santos (2000), já no Governo Jânio Quadros o país começou a estabelecer

uma relação intensa com os países africanos, quando alguns ainda eram colônias

portuguesas mas já estavam em curso as lutas por independência. O Brasil colocava-se

como liderança desses frente às grandes potências com o argumento de ser “o maior

exemplo de integração e coexistência racial ‘conhecido através da História’” (:27). Risério

também observou que “a política externa de Geisel está[va] mais próxima da política

externa de Jânio Quadros, que condecorou Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul,

e do projeto de João Goulart, do que da política externa de Castelo Branco” (:35)10. Como

comprovação dessa tendência do governo Geisel, observe-se que em 1974 foi criado um

“Programa de Cooperação Cultural entre o Brasil e os países africanos visando o

‘desenvolvimento dos estudos afro-brasileiros’”, a partir de um convênio estabelecido

entre o Ministério das Relações Exteriores, o Ministério da Educação, o Governo do

10 Com o intuito de situar o leitor que ignore história do Brasil em relação às colocações de Santos e deRisério, eis um pequeno resumo: Jânio Quadros foi eleito presidente do país em 1960, com o apoio dadireita, e teve João Goulart como seu vice, apoiado pelo PTB e pelo PSB, então partidos representantes daesquerda. O governo de Jânio durou apenas sete meses, mas nesse período ele reatou relações com a UniãoSoviética (‘desobedecendo’ as orientações dos Estados Unidos) e, como já observou Risério, condecorouChe Guevara, um dos líderes da Revolução Socialista de Cuba. Com a renúncia de Jânio, João Goulartassumiu o governo em 1961 e aí permaneceu até 1964, quando as Forças Armadas tomaram o poder egovernaram sob um regime de ditadura militar até 1985. O marechal Castelo Branco foi o primeiropresidente militar (1964-1967) e o general João Figueiredo, o último (1979-1985). O período do governo

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Estado da Bahia, a Universidade Federal da Bahia e a Prefeitura Municipal de Salvador

(Santos 2000:128).

Menos entusiasmado do que Risério – que critica a “esquerda brasileira” por sua

desconfiança nas intenções economicamente desinteressadas do governo militar, embora

admitindo que o comércio poderia ser uma motivação (:35) –, Santos mostra que a relação

do governo com os países africanos recém-independentes estava inserida num projeto

mais amplo, de forma alguma exclusiva do governo Geisel, de investimento na imagem do

Brasil como uma democracia racial. Longe de pretender estabelecer uma relação de

subordinação, é preciso não esquecer que questões econômicas, especialmente com o

continente africano, passavam pela afirmação de tal imagem: “apresentar a si mesmo

como uma nação racialmente misturada [“mixed-race”] facilitou os esforços do Brasil para

forjar laços políticos e econômicos com países africanos recentemente independentes”

(1998:120).

As observações de Santos sobre a imagem de nação racialmente democrática que o

governo brasileiro fazia questão de transmitir remetem a um outro desses elementos, ou

fluxos, que nos encontros entre si e com outros produziram novas subjetividades, que

geraram um maior interesse pela África e o sentimento de solidariedade com os povos

africanos em luta, assim como o desencadeamento do processo que Risério denominou

reafricanização. Trata-se da própria postura do governo brasileiro, assim como do governo

baiano, que desde os anos 50, e ainda mais explicitamente nos 60 e 70, investem esforços

na produção de uma ‘cultura afro-brasileira’ que, desde que abrigada no domínio do

folclore, é importante na produção de uma ‘cultura nacional’, de uma ‘cultura brasileira’,

Ernesto Geisel (1974-1979) ficou conhecido como de ‘distensão’ do regime militar. Já o seguinte, deFigueiredo, foi o da ‘abertura democrática’.

Luiza
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que reflita a nação ‘misturada’ e sem ‘preconceitos raciais’11. Em função da organização

proposta para este capítulo que divide os ‘ventos de lá’ e os ‘ventos de cá’, este tema será

melhor trabalhado na próxima seção. No momento, importa registrar que o interesse de

diferentes governos na construção de uma ‘cultura afro-brasileira’ contribuiu para dar um

novo lugar à África de maneira semelhante aos movimentos negros brasileiros e sua

aposta de mobilização em torno da ‘cultura negra’. Além disso, seguindo o espírito deste

trabalho e observando os grupos ‘afro-culturais’ do período posterior aos anos 70, é

plausível imaginar que uns e outros investimentos tenham se afetado mutuamente, ainda

que os resultados esperados fossem opostos.

Se, como ressalta Risério, a postura do governo Geisel de reconhecer as

declarações de independência das ex-colônias portuguesas contribuiu para que a

repercussão desses acontecimentos fosse “mais intensa e mais ampla entre nós” (:36),

pode-se dizer o mesmo dos movimentos de esquerda brasileiros. Voltando a Santos (1998)

e à política externa brasileira em relação à África, o autor diz que as mudanças do governo

Castelo Branco em comparação ao de João Goulart “podem ser vistas na restauração do

tratamento privilegiado dado a Portugal e na leitura do governo militar de que acontecia

uma infiltração do comunismo internacional no continente africano” (:52). De fato esta

leitura estava correta. Os movimentos guerrilheiros das ex-colônias tinham uma orientação

socialista: em meados da década de 60, Cuba chegou a enviar soldados para o Congo,

tendo Che Guevara à frente e, após a independência, Angola e Moçambique contaram com

a ajuda de países do bloco socialista para resistirem aos grupos contra-revolucionários,

tanto internos aos países quanto organizados pela África do Sul e que eram apoiados pelos

Estados Unidos (Silva 2001:27) – era a Guerra Fria em curso. Baseados no ideal do

11 As elites brasileiras pregam a ausência de racismo no país desde a independência, como argumenta Flory(1977), cuja tese será explicitada no próximo capítulo. Na verdade, negar qualquer tipo de ‘problema racial’,

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socialismo internacional, no “combate planetário contra os imperialismos” (Jean Ziégler

apud Risério:36), os movimentos de esquerda brasileiros acompanhavam de perto os

movimentos revolucionários africanos. E a partir dos objetivos de ‘conscientização’, de

‘mobilização’, de ‘politização’ dos grupos culturais negros12, militantes e intelectuais

buscavam inserir-se neles e levavam informações e leituras sobre os movimentos

africanos. Os movimentos ‘culturais’, por sua vez, trabalhavam essas informações,

transformavam-nas em nomes de entidades, em cores dos blocos afro, em temas de desfile,

em seminários, em comemorações13, em músicas e ‘africanizavam’, ou ‘re-africanizavam’,

para seguir Risério, a cidade de Salvador. Mais uma vez, tal como foi dito acima a respeito

das construções das noções de ‘cultura afro-brasileira’ e ‘cultura negra’, tem-se governo e

movimentos negros (‘culturais’ e ‘políticos’) com objetivos opostos e resultados

semelhantes, além de influências mútuas.

Como diz Silva: “Ao seguir uma linha que dava respostas à radicalização colonial,

alguns países acabaram por se tornar referências importantes, não só no processo de

descolonização africana, como também para a organização política dos negros da

diáspora.” (2001:26). Tal referência é bastante explícita na fala de João Jorge, líder do

Olodum, que diz que os movimentos negros culturais não buscavam uma África mítica,

imaginada, nem originada em apenas uma parte do continente:

“nós viemos de diferentes lugares e, então, absorvemos as idéias deKwame Nkrumah [líder na independência de Gana], Sekou Toure[presidente da Guiné], Amílcar Cabral [poeta e líder daindependência de Guiné-Bissau], Agostinho Neto [também líder na

conceber a nação como ‘misturada’, foi um recurso utilizado pelas elites latino-americanas de modo geral(ver, p. ex., Cunha 1991:14 sobre a Jamaica).12 Mas não exclusivamente destes, como observa Cunha (2000:337-8): “É importante ressaltar que as críticasdo que se concebia como ‘culturalismo’, ao lado do que se imaginava caracterizar a cultura política dasrelações entre as classes dominantes e as classes populares – a cooptação –, não penetraram exclusivamentenos domínios da militância negra. Ao contrário, fizeram parte de uma espécie de ethos político que percorriavários movimentos sociais e grupos de esquerda no mesmo período. A ‘politização’, por exemplo, que sedava num momento de distensão do regime militar, era vista como objetivo principal num momento dereorganização popular, diante da dispersão provocada pela censura e pelo terror”.13 Agier (2000:123-4) informa, por exemplo, que o Ilê Aiyê, ainda que não regularmente, costumacomemorar a Independência de Angola em 11 de novembro.

Luiza
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luta pela independência de Angola], Samora Machel [revolucionário eprimeiro presidente de Moçambique independente], Cheikh AntaDiop [historiador que defendia a tese da origem negra dos egípcios], eFranz Fanon [um dos principais formuladores das teoriasanticolonialistas e contra o racismo], e nós tentamos tirar essas idéiasdas salas de aula e das bibliotecas e compartilhá-las com quem temsido abusado pela polícia muitas vezes” (citado por Armstrong2001:187-8).

Os movimentos negros norte-americanos

Tal como influenciaram os movimentos negros brasileiros, as lutas por

independência que resultaram nas revoluções das ex-colônias portuguesas da década de

70, assim como a luta contra o apartheid na África do Sul, também agiram sobre os

movimentos por direitos civis nos Estados Unidos que, por sua vez, tiveram uma forte

influência sobre a juventude negra brasileira. O desenvolvimento dos meios de

comunicação, especialmente a popularização da TV nos anos 60, permitiu que as notícias

sobre as lutas dos movimentos negros norte-americanos chegassem à população negra

brasileira nas grandes cidades. Risério diz que

“As notícias sobre a movimentação da juventude negra norte-americana chegavam de forma distorcida e fragmentada na Bahia.Mas não pode haver dúvida alguma de que era grande a curiosidade emaior ainda o fascínio em relação ao fato dos negros estarem seorganizando nos EUA, chegando mesmo a extremoscinematográficos, digamos assim, com os panteras negrasatravessando guetos em tiroteio com a polícia” (:34).

Assim, o assassinato de Malcom X, em 1965, e de Martin Luther King em 1968; a

organização do grupo guerrilheiro Panteras Negras, no final da década de 60 e início de

70, e especialmente o movimento que ficou conhecido como Black Power – menos uma

organização do que uma postura diante da ‘sociedade’ norte-americana –, repercutiram

sobremaneira no Brasil. Foi pela TV que o Brasil viu dois atletas negros americanos

erguerem os pulsos cerrados cobertos por luvas pretas – símbolo do Black Power – quando

eram condecorados nas Olimpíadas do México, em 1968 (Silva 2001:32 e Risério:23).

Também foi através da TV que chegou ao Brasil uma ‘imagem’ de como se vestia e se

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comportava, de qual era a música do ‘negro’ adepto do Black Power: Risério comenta

sobre a “intensa influência” dos Jackson Five sobre o “comportamento da juventude negra

baiana” através de seu seriado semanal (:28). O grupo Jackson Five era só mais um

representante da soul music, que Risério define como “música feita por negros, dentro da

tradição musical negra norte-americana, comentando aspectos da vida negra e celebrando

o ser negro e a beleza negra, dirigida a um público essencialmente negro” (:29). Mas a

soul music chegava ao Brasil também por outras vias, sendo James Brown seu maior

ídolo.

Invariavelmente, a entrada da soul music no Brasil no início dos anos 70,

inicialmente no Rio de Janeiro, depois outras grandes cidades como São Paulo, Campinas

e Salvador, é incluída como um momento importante na ‘história’ do movimento negro

brasileiro. Sua importância na argumentação varia se a discussão subjacente à ‘introdução’

for direcionada aos movimentos de caráter ‘mais’ político ou ‘mais’ cultural e também

quanto ao lugar do objeto a ser discutido – Rio/São Paulo ou Salvador, mas a descrição do

movimento black, como se costuma dizer, não muda muito de enfoque de um autor para

outro: a música, a estética e o caráter comercial são os aspectos ressaltados.

A soul music chegou ao Brasil pelos bairros do subúrbio da Zona Norte do Rio de

Janeiro. Os grandes bailes de ‘disco soul club’ eram organizados por ‘equipes’ e reuniam

milhares de jovens negros nos ginásios de clubes sociais ou esportivos – Risério fala de 5

a 10 mil (:30) e Hanchard cita de 3 a 10 mil pessoas (2001:136). O movimento de

realização desses bailes ficou conhecido como Black Rio e provocou uma grande polêmica

entre intelectuais e militantes do movimento negro da época. Risério, por exemplo, cita a

antropóloga Lélia Gonzalez como sendo uma dessas pessoas que condenavam o

movimento por sua “alienação” e por ser uma “imitação terceiromundista da juventude

negra dos EUA” (:30). Crítica esperada de uma esquerda que vivia sob uma ditadura

Luiza
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talvez nada a ver com o texto, mas lembrei agora sobre a impor- tancia dada pelo gru- po ao fato de serem um grupo negro no RS, onde supostamente nao tem negros.
Luiza
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militar apoiada pelos Estados Unidos em plena Guerra Fria, além de ter por orientação

política a concepção de ‘vanguarda’, muito presente nos movimentos e partidos de

esquerda, que consistia – ou infelizmente ainda consiste – na auto-atribuição do dever e da

capacidade de ‘guiar’ a ‘massa’. Assim, um movimento de massa que, como frisa Mitchell

(1985:108), “tem tons políticos, embora não o seja exatamente”, que não fosse coordenado

pela vanguarda de esquerda, só poderia mesmo ser criticado por ela. O movimento Black

Rio era acusado de ser muito ‘comercial’, principalmente em função da participação de

alguns de seus precursores na produção de discos comerciais e na organização de shows,

quanto mais se estes acontecessem na Zona Sul do Rio de Janeiro e estivessem

direcionados a uma classe média branca, o que fez o movimento ser incorporado à

indústria do entretenimento e do turismo (Hanchard 2001:140).

A ‘falta de autenticidade’ do Black Soul era uma outra acusação contra o

movimento. Como já referido acima, era comum tratá-lo como ‘imitação’ do movimento

negro norte-americano, em bastante evidência no início dos anos 70, e isso ocorria por

parte da esquerda e da direita brasileiras. Além de não ter o movimento sob seu controle, a

primeira o criticava porque estava empenhada em unir os diversos movimentos negros

brasileiros emergentes a partir de uma origem comum, baseada na ‘cultura afro-brasileira’;

a segunda continuava preocupada em solidificar a idéia de uma ‘cultura brasileira’, de uma

‘nação’ – esforço muito acentuado durante a ditadura militar – para o que era necessário

reforçar a imagem do Brasil como democracia racial. Por sua importância na formulação

desse ‘mito’, é bastante emblemático um artigo de Gilberto Freyre ‘alertando’ para o

perigo que um movimento como esse provocava, a saber: “introduzir, num Brasil que

cresce plena e fraternalmente moreno – o que parece provocar ciúmes nas nações que

também são birraciais ou trirraciais –, o mito da negritude, (...) que às vezes traz a ‘luta de

Luiza
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classes’ como instrumento da guerra civil”14. Hanchard informa que, embora não seja

possível comprovar, os primeiros organizadores de bailes de soul music no Rio contam

que eram vigiados pelo SNI (Serviço Nacional de Inteligência) (:139).

Apesar das críticas, era preciso reconhecer a importância do movimento, ainda que

esta fosse dada por sua possível conseqüência: os bailes possibilitavam a reunião de

pessoas negras que propunham uma estética negra, uma dança negra, uma música negra, o

que poderia vir a se transformar em ‘consciência negra’. Em artigo de 1982, Lélia

Gonzalez admite a relevância do movimento por sua “aglutinação de negros” (:32), que

também é destacada por Mitchell: “[o Black Soul] é um sinal de conflitos raciais trazidos à

superfície. Além disso, sua visibilidade tem ajudado a formar o desenvolvimento da

consciência política de outros. (...) Expressa sentimentos de assertividade racial de forma

difusa.” (:109). Hanchard segue esta mesma linha afirmando que o melhor do movimento

Black Soul foi provocar a reação das elites brancas e a “valorização de formas de auto-

expressão e identificação que eram anteriormente reprimidas ou negadas tanto por brancos

quanto por não-brancos no Brasil” (2001:142).

Apesar de estar quase sempre em oposição aos críticos do movimento, Risério

parece concordar que se tratava de um “modismo imposto pelos meios eletrônicos de

comunicação de massa, veiculando conteúdos ideológicos caros ao imperialismo norte-

americano”. Contudo, assim como para os autores citados acima, também para Risério o

importante foi que, num primeiro momento, o movimento permitiu “a identificação do

preto brasileiro com o preto norte-americano (...) no terreno da negritude”. Foi uma

maneira do “preto brasileiro” tornar-se “mais negro” (:31). Mas, a partir daí, Risério

diferencia-se dos demais, pois ele destaca o que seria a conseqüência boa do movimento

black soul: o que era de ‘fora’, mas era ‘negro’, fez a passagem para o que era ‘negro’ de

14 Artigo publicado em 15 de maio de 1977, no jornal Diário de Pernambuco citado por Hanchard 2001:138.

Luiza
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‘dentro’, ou seja, o interesse pela negritude norte-americana fez com que a população

negra brasileira também viesse a se interessar pela cultura afro-brasileira, especialmente

na Bahia, onde se deu “a passagem do soul ao ijexá, do black ao afro” (:31). Os dançarinos

de destaque dos blocos afro e afoxés começaram nos salões de soul music. A palavra de

ordem black is beautiful e a extrema valorização de uma estética black foram de suma

importância para outras transformações estéticas de auto-afirmação negra que ocorreriam

a partir do reggae e dos blocos afro. Aliás, na primeira música apresentada pelo Ilê Aiyê,

em seu primeiro desfile, essa influência pôde ser muito bem percebida: “somos crioulo

doido, somos bem legal / temos cabelo duro, somos black pau”15.

O reggae e o rastafarianismo

Além da soul music associada ao black power, também o reggae produziu

agenciamentos com tudo o mais que estava acontecendo em Salvador e teve uma

participação efetiva no processo de reafricanização. O reggae, de ‘origem’ jamaicana, tem

de ser entendido como um movimento que é mais do que musical porque também é

associado a uma estética, a uma imagem, a um comportamento, a uma visão de mundo, a

uma postura política, a uma religião.

O rastafarianismo, movimento étnico-político-religioso fundamentado numa leitura

étnica da Bíblia e que tem o reggae como principal forma de divulgação, prega o retorno à

África, utiliza símbolos de origem africana – como a bandeira da Etiópia – e protesta

15 “Que bloco é esse?”, de Paulinho Camafeu. Aproveito o ensejo para fazer duas observações. A primeira éque a expressão ‘cabelo duro’, que nesta composição é símbolo de ‘negritude’, também foi utilizada pelocompositor em um outro grande sucesso seu, a música “Fricote”, mais conhecida como “Nega do CabeloDuro” e que indignou o movimento negro na ocasião, “que via ali uma manifestação de racismo” (Guerreiro2000:141). A outra observação diz respeito a especulações sobre a expressão ‘black pau’, grafada destaforma no encarte do disco. Não há dúvidas de que se trata de uma corruptela da expressão ‘black power’.Risério reproduz a música com a grafia “bleque pau” (:134). E Agier (2000:121), o segue, mas propõe uma‘explicação’: o autor informa em nota que a expressão Black Power é escrita em português como épronunciada, ou seja, “bleque pau”, porém, de acordo com suas conclusões, esta ‘transformação” lingüística

Luiza
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Luiza
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"fora" e "negro" para o "negro" e "dentro"
Luiza
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Luiza
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fala sobre a influencia norte-americana, sobre o movimento black power, soul music, panteras negras, etc.
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contra as condições de opressão em que vivem as populações negras da diáspora, lutando

pela sua libertação através da destruição da ‘Babilônia’ – “termo usado como referência

aos instrumentos de dominação através do qual o “branco” impede a consciência dos

povos negros dominados” (Cunha 1993:23), ‘o sistema’ capitalista16. Como sintetiza

Cunha:

“Ainda que buscando valores na África, a ‘cultura negra’ expressa nafala do rasta também é produto de uma multiplicidade de expressõesculturais oriunda dos guetos e das ruas dos grandes centros urbanos.É a expressão político-cultural de um exílio” [pois] “a Jamaica, e porextensão o Ocidente, não são vistos como pátria, mas exílio”(1993:09;25) 17.

Segundo Godi (2001:212), o desenvolvimento dos meios de comunicação e de um

“mercado cultural eletrônico” foram fundamentais para o surgimento do reggae. O

processo pode ser sucintamente descrito da seguinte forma: as novas tecnologias de

comunicação promoveram a chegada da programação de rádio do sul dos Estados Unidos,

mais especificamente da “música popular afro-americana”, a soul music, à Jamaica. Da

sua fusão com o rock steady, que por sua vez já era uma fusão de ritmos ‘afro-caribenhos’

com música afro-americana (Pinho 1997), nasceu o reggae, apropriado pelo movimento

rastafari como sua principal forma de divulgação18. Até 1962, a Jamaica era uma colônia

inglesa, o que favoreceu a entrada do reggae e do rastafarianismo em Londres,

considerado o ponto de partida para a sua difusão, especialmente pelos países da ‘diáspora

negra’.

seria proposital, pois a palavra ‘pau’ introduziria “uma ambigüidade sobre o sentido da expressão: ‘pau’ étanto o ‘pênis’ (em português) quanto o ‘poder’ (power)”.16 “A redenção dizia respeito à interpretação da África como sendo a ‘pátria mãe’ e a Etiópia como ‘paraísoancestral’ às quais se referiam os textos bíblicos. Sob este prisma havia a negação da cidadania americanaem troca de um reconhecimento religioso e histórico da ancestralidade africana. Identificar-se como‘africano’ era reconhecer essa filiação e rejeitar os conceitos de ‘inferioridade’ e ‘atraso mental’ imputadosaos escravos e seus descendentes” (Cunha 1991:18, sobre as idéias de Marcos Garvey, líder negro precursorda doutrina rastafari).17 Sobre rastafarianismo e reggae no Brasil, especialmente em Salvador, ver principalmente Cunha (1991 e1993), também Godi (2001) e Pinho (2001), entre outros; e Silva (1995) sobre São Luís/MA, considerada acapital do reggae no Brasil.18 Para uma versão bem mais aprofundada, ver Cunha 1991, capítulo I.

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“Ainda que se misturando às realidades culturais, políticas ereligiosas desses novos contextos, o reggae e os temas rastafari serãoveiculados através de formas de comunicação visual e um discursoétnico, ambos reforçando a idéia de uma unidade histórica, política ecultural de toda a diáspora em torno da África e da Etiópia” (Cunha1993:11).

Dessa forma, o movimento rastafari e o reggae compunham o cenário do qual também

faziam parte as lutas pela descolonização no continente africano e pelos direitos civis nos

Estados Unidos. Esses movimentos geraram fluxos que produziram novas visões de

mundo e solidariedade entre as populações negras, sem perder de vista que eles próprios

foram se constituindo no encontro desses fluxos. Cunha assinala essas interferências

mútuas, esse entrecruzamento de fluxos:

“A influência dos movimentos pelos direitos civis e a luta contra oracismo repercutiu na Jamaica. Entre eles, principalmente apropaganda em torno da reafirmação de novos padrões de beleza e asreivindicações em torno da liberdade de organização e poder político.O movimento Black Power jamaicano começava a dar os seusprimeiros passos tentando resgatar, ao mesmo tempo, as experiênciasde Garvey. (...) A África e tudo que a simboliza deixa de fazer parteapenas do imaginário rastafari e garveyista. Não só na dimensãoestética, com os “penteados afros” e as roupas com estamparias emotivos africanos, como também há um crescente interesse pelahistória e os acontecimentos políticos do continente africano. De certaforma, a exaltação da África e as principais bandeiras levantadas porGarvey são retomadas, só que ao invés de sustentadas por umalinguagem bíblica, é o marxismo que dá o tom” (1991:34-5).

É importante notar também que o rastafarianismo e o reggae não chegam,

necessariamente, ‘em pacote’. Cunha (1991:31) atribui à “potencialidade estética” do

movimento rastafari a adoção deste ou daquele elemento: cabelos dreadlocks, roupas nas

cores vermelho, verde, amarelo e preto19, objetos que simbolizem a África, a Bandeira da

Etiópia, e, principalmente após sua morte, a foto de Bob Marley. E, obviamente, a

apropriação apenas do reggae, exclusivamente ou combinado com cabelos, cores, fotos.

Tudo depende do encontro.

19 “O uso dessas cores tem como inspiração a bandeira da Unidade Africana, idealizada por Marcus Garvey:o vermelho representa o sangue dos ‘mártires negros’, o preto a ‘cor da pele do povo africano’ e o verde avegetação e as ‘obras da criação’. Assim como, o uso das cores verde, vermelha e amarela representam as

Luiza
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Risério refere-se ao reggae por seu “parentesco estrutural” (este é o agenciamento

que ele privilegia) com o ijexá, ritmo originado no candomblé e utilizado, principalmente,

pelos afoxés (:115). Essa relação, existente ou não em termos de teoria musical, será

objeto de análise de vários trabalhos, especialmente quando o assunto em questão for o

‘samba-reggae’ – termo ainda inexistente quando Risério escreveu Carnaval Ijexá...

(1981) e consagrado anos depois como o ritmo próprio dos blocos afro20. Naquela ocasião,

Risério denominou essa ‘mistura’ como “afro-reggae ou reggae-ijexá” (:115). Contudo,

dado que se trata de um movimento, não foi apenas musicalmente que o reggae entrou no

mundo ‘afro’ das décadas de 70 e 80 em Salvador. Como diz ainda Risério:

“Também os compositores dos novos afoxés e blocos afro sentiramesse nexo existente entre o reggae e o ijexá, para além do fato dereconhecerem, nos crioulos jamaicanos à la Bob Marley e Peter Tosh,com suas tranças enormes e seus não menores morrões de maconha,as imagens vivas da emergência geral de uma nova negritude” (:115).

Aliás, vale lembrar que o reggae não participou dessa “emergência geral de uma

nova negritude” como ‘coadjuvante’. A denúncia do racismo sofrido pela população negra

e a valorização do continente africano eram propostas muito semelhantes às de outros

movimentos que participaram da composição daquele momento de reafricanização do

carnaval e da cidade. E elas começaram a chegar antes mesmo da fundação do Ilê Aiyê. A

primeira gravação de reggae no Brasil foi de Caetano Veloso ainda em 1972 (Pinho

2001:195). Neste mesmo ano, um primeiro disco foi gravado inteiramente com músicas no

estilo21. Além disso, segundo Godi (2001:215), Jimmy Cliff esteve pela primeira vez no

país em 1968. Nas décadas de 70 e 80, o reggae afirma-se na composição dessa

‘negritude’: a circulação cada vez maior de discos ou fitas cassete, a inauguração do

‘primeiro bar de reggae’, o Bar do Reggae em Salvador, mais precisamente no Pelourinho,

cores da bandeira da Etiópia (Barret1977:143 apud Cunha 1991:32).20 Ver, principalmente, Guerreiro (2000) e a resenha crítica deste trabalho de Luedy seguida da réplica deGuerreiro (Luedy e Guerreiro, 2000); ver também Cambria (2002), Godi (1997 e 2001).21 Segundo Pinho, foi o disco Reggae da Saudade, de Jorge Alfredo e Chico Evangelista (2001:195).

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em 1978 (Pinho 1997:182-3), a vinda de Bob Marley em 1980 ao Rio de Janeiro e sua

declaração de que “samba e reggae são a mesma coisa, eles têm o mesmo sentimento de

raízes africanas” (Vidigal 1996 apud Pinho 2001:195) e seu retorno a Salvador em 1981;

ainda em 1980, Jimmy Cliff e Peter Tosh no Brasil; a fundação do Bloco Afro Muzenza,

em 1981, conhecido como o bloco do reggae... São fluxos se encontrando e criando planos

de consistência de onde ‘emerge’ essa ‘nova negritude’ de que fala Risério.

O rastafarianismo é aparentemente paradoxal: baseado no cristianismo, religião

símbolo da posição hegemônica de um mundo branco e capitalista, ele gerou a si mesmo e

a seus elementos, em conjunto ou separadamente, como símbolos ‘anti-ocidentais’, ou

‘anti-imperialistas’, como linhas de fuga da opressão racial, política e econômica, capazes

de, num determinado agenciamento, criar novas possibilidades de movimentos. Cunha

chama a atenção para esse aparente paradoxo ao assinalar que se trata de “um movimento

que surge a partir da inversão de símbolos religiosos que são concebidos como artifícios

de dominação política, de submissão racial e de omissão histórica”. A luta não consiste na

invenção de novos símbolos, mas na “reinvenção” destes; não se recusa a Bíblia, mas sua

leitura é outra; é preciso voltar à África, especialmente à Etiópia, mas para isso não há

outra forma senão usando os “instrumentos privilegiados pelo Sistema como eficazes

propagadores de suas idéias”. O objetivo é a “destruição” da Babilônia, o que só é possível

através da ‘conscientização’ dos ‘negros’ com as armas que ela mesma utiliza: as

inovações tecnológicas de comunicação, a “mass-media” (1991:13).

Desse mesmo ponto de vista, ou seja, de construção de uma perspectiva alternativa

à “modernidade ocidental” produzida por dentro, Pinho entende o reggae como um

elemento da ‘contracultura’ criada pela experiência da diáspora africana (2001:197). Seu

argumento baseia-se na idéia de “Atlântico Negro” de Paul Gilroy (2001). Segundo a

síntese formulada por Pinho (1997:195), o Atlântico Negro seria um “espaço formado

Luiza
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Luiza
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Ela usa a expressão planos de consistên- cia que é do Deleu- ze. Mas eu nao sei o que é... rever isso!
Luiza
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Luiza
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teatro negro é uma linha de fuga que pretende novas pos- sibilidades de mo- vimentos.
Luiza
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pelos fluxos culturais e econômicos entre África, Caribe, América e Europa, como uma

entidade analítica complexa e dinâmica”. Gilroy sugere a imagem do navio em movimento

pelo Atlântico para o entendimento de sua proposta:

“A imagem do navio – um sistema vivo, microcultural emicropolítico em movimento – é particularmente importante porrazões históricas (...). Os navios imediatamente concentram a atençãona Middle Passage [passagem do meio], nos vários projetos deretorno redentor para uma terra natal africana, na circulação de idéiase ativistas, bem como no movimento de artefatos culturais e políticoschaves: panfletos, livros, registros fonográficos e coros” (2001:38).

Em sua argumentação, os fluxos ‘levados’ pelo ‘navio’ são produtos da escravidão

e das demandas dos descendentes de escravos por ela geradas, uma e outras imanentes à

‘modernidade’, pois essas demandas nascem da própria nova condição de cidadãos, e não

mais de escravos, produzindo uma leitura crítica da ‘modernidade’ e buscando alternativas

que gerem “melhores formas possíveis de existência social e política” (:99). A expressão

artística em geral, mas a música especificamente, é a forma por excelência de fazer essa

crítica, pois recusa a separação entre cultura e política estabelecida pelo ‘Ocidente’ e

carrega os “desejos utópicos” de novas relações sociais entre os descendentes da diáspora

e o mundo que a produziu. Pinho argumenta, então, que o reggae seria um ponto de

“articulação simbólica desta contracultura”, atravessando o Atlântico e propondo, em

conjunção com elementos locais, novas relações entre o “Ocidente e seus outros”, os

“afro-descendentes”, que ocupam “um lugar privilegiado entre as alteridades construídas

pela modernidade” (2001:197).

A contracultura

Como produto da diáspora africana e com capacidade de subverter a ordem

imposta pela ‘cultura ocidental’, Pinho (1997 e 2001) e Gilroy (2001) concebem o reggae

como contracultura. Porém, há também de se pensar sobre o encontro do reggae e de

parcela da juventude negra baiana com a ‘contracultura hegemônica’, se é possível usar o

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termo para designar os movimentos de parcelas de juventude americana e européia que

promoveram o que ficou conhecido como ‘revolução cultural’ nos anos 60.

O movimento hippie, o maior representante da contracultura, guardaria

similaridades com o rastafarianismo na sua recusa ao capitalismo e no uso da música

associada à rebelião social (Godi 2001:209-10). O rock, no primeiro caso, e o reggae no

segundo, não nasceram atrelados a esses movimentos, mas foram associados a eles. E não

é difícil perceber a idéia de contestação contra o sistema capitalista, da “recusa

contracultural, utopia jovem underground, aos padrões da vida ocidental-tecnocrática”,

como diz Risério (:23), como um forte elemento de aproximação e de influência mútua

entre eles, sendo a música eletrônica também um fator fundamental na relação. Como

ressalta Godi (1997:93), Eric Clapton gravou Bob Marley e os Rolling Stones estavam nos

LPs de Peter Tosh.

No meio desses encontros, estava também a juventude negra baiana. Na visão de

Risério, o movimento de contracultura levou a “juventude brancomestiça”

economicamente privilegiada a buscar junto à “juventude negromestiça” pobre discursos e

costumes de oposição à ordem social vigente. E é claro que o encontro produziu mudanças

também na juventude negra, especialmente através de informações às quais ela não tinha

acesso (: 23).

Em Salvador, o candomblé acabou por exercer um papel importante nesse

movimento. A religião ‘exótica’ afro-brasileira atraía “colunáveis”, como ressalta Silveira

(1988:195), mas uma matéria jornalística de 1971, em parte reproduzida por Santos

(2000:172), afirma que a mesma busca por alternativas ao modelo de vida concebido

como ‘ocidental’ que levava “americanos e europeus” à “Índia, chamados pela concepção

oriental do mundo”, fazia com que brasileiros procurassem pelo candomblé, “religião de

origem africana, a qual oferece um universo primitivo e fantástico” (Revista Veja, n.161,

Page 59: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

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06/10/1971). Música, estética, linguagem, informação, drogas... produtos novos a cada

novo encontro.

À

A próxima seção de descrição desses ‘primeiros encontros’ terá por conteúdo,

conforme anunciado, os fluxos que circulavam por aqui e que a partir de seus encontros

com outros fluxos produziram o movimento negro na capital baiana nas décadas de 70 e

80. Antes de prosseguir, entretanto, é preciso reiterar que ‘vir de lá’ ou ‘estar por aqui’ são

qualificações superficiais que visam exclusivamente propor uma forma de organização da

exposição, a qual poderia vir a adquirir diversas outras orientações.

Como espero já ter demonstrado, a concepção epistemológica deste trabalho – que

consiste na idéia de que o que há é produção de fluxos que entram em agenciamento e

produzem novos fluxos e assim a vida social se produz – não admite um ‘antes’ e um

‘depois’, um ‘de fora’ e um ‘de dentro’, um ‘global’ e um ‘local’. Nesse sentido, citar o

reggae ou a soul music como fenômenos culturais/musicais/políticos originados na

Jamaica ou nos Estados Unidos – portanto, lá – e trazidos para o Brasil como se fossem

‘peças’ que pudessem ser modificadas, retrabalhadas, influenciadas por fluxos produzidos

aqui, não conseguiria expressar o processo de mistura22, a idéia do encontro. Ainda que

fosse possível – o que não é – determinar o primeiro disco de reggae ou de soul que entrou

no país ou a primeira pessoa que ouviu o estilo fora do país – no caso do reggae, alguns

autores sustentam que ele foi trazido por Gilberto Gil e Caetano Veloso que o teriam

ouvido enquanto estavam no exílio, em Londres –, não se poderia garantir que a ‘vida’

desses movimentos começou no Brasil nesse instante. Um cabelo diferente, uma camiseta

de tal cor, um toque de improviso num instrumento, uma especulação, uma notícia... Antes

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mesmo do que seria o primeiro contato, um disco ou uma música ou uma idéia ‘de fora’

poderiam estar conectados com esse suposto ‘de dentro’, produzido com e por outros ‘de

fora’ e ‘de dentro’.

Assim, embora separando os fluxos trazidos pelos ‘ventos de lá’ dos ‘ventos de

cá’, a proposta deste trabalho se distingue muito da de Sansone (1997). Analisando o funk

nas cidades do Rio de Janeiro e de Salvador, ele pretende mostrar que fenômenos musicais

de origem anglo-saxônica, aí incluídos o reggae e a soul music – da qual o funk é uma

espécie de sucessor –, não são simplesmente reproduzidos e sofrem influências de

aspectos locais (:221). Sansone entende que nos “países do terceiro mundo”, na “periferia

da cultura juvenil globalizada”, essas manifestações culturais entendidas como a

“realidade juvenil e musical anglo-saxônica” (:219) são reconstruções locais de fenômenos

globais. Eles têm uma origem – anglo-saxônica – e são reinterpretados pelas culturas

locais, sendo um dos fatores importantes dessas ‘reinterpretações’ as possibilidades

econômicas de cada lugar. Assim, Sansone afirma que as cidades do Rio e de Salvador,

por não poderem consumir, por exemplo, reggae e hip-hop da mesma forma que Nova

Iorque, Londres ou Amsterdam, “mantêm uma posição periférica também com relação ao

‘Atlântico Negro’ e ao centro emissor da maioria dos símbolos e mercadorias dentro dos

fluxos globais associados à cultura negra internacional”, ou seja, “o mundo anglófono”

(:236). O autor ainda aponta, com base nos mesmos argumentos, que haveria, também,

uma hierarquização entre Rio de Janeiro e Salvador: a primeira cidade, por ter um maior

poder aquisitivo e maior contato com os centros produtores, teria uma “subcultura juvenil”

“menos local” do que a segunda (:237).

22 Segundo a Química, mistura não seria o melhor termo, sendo mais apropriado falar de reação química:quando uma substância entra em contato com outra e afinidades existentes entre si fazem com que esteencontro as transforme num novo produto.

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O processo de ‘globalização’ no que diz respeito ao seu aspecto ‘cultural’ é tido

como inegável. No mesmo artigo trabalhado acima, Sansone, por exemplo, refere-se a

“uma indubitável globalização do universo da cultura juvenil” (:221), e ele está longe de

ser o único a defender essa concepção. Pinho (2001) também valoriza o aspecto cultural

entendendo a globalização como uma “complexificação das relações entre o Ocidente e

seus Outros” (:197)23. Abordar com profundidade a questão, comparando as perspectivas

existentes em torno do conceito de globalização, poderia ser um exercício interessante,

mas exaustivo e que, em minha proposta, já teria um final dado antecipadamente: a

refutação do conceito, pois este pressupõe sempre dicotomias que não se sustentam, como

local/global, ocidente/outros, centro/periferia etc. Pinho, por exemplo, diz que os “afro-

descendentes ocupam um lugar privilegiado entre as alteridades construídas pela

modernidade” na relação entre o “Ocidente e seus Outros” (:197). Mas, seriam mesmo os

afro-descendentes de Londres os ‘outros’ do Ocidente24? Já Sansone diria que eles são os

produtores do ‘global’, que ocupam o ‘centro’, enquanto os afro-descendentes baianos, por

exemplo, seriam os produtores do ‘local’, na ‘periferia’. Sansone explica essa ‘diferença’

de ‘outros’ pela hierarquização do ‘Atlântico Negro’, como já assinalado. Além disso, sua

‘unidade de análise’ também é diversa: a música negra da juventude anglo-saxônica é um

todo em relação a diversos outros – no Brasil, ele analisa ‘baianos’ e ‘cariocas’ como

‘outros’ distintos, o que faz pensar que haveria, então, vários ‘outros’. Por outro lado, ele

mesmo diz que “ser rastafari hoje não é a mesma coisa em Kingston, Londres ou

Salvador” (:237), mas, pensando em rastafarianismo e Kingston e Londres, qual das

cidades é o centro e qual é a periferia?

23 Apenas como um exemplo a mais entre tantos possíveis, ver Perrone e Dunn (2001), uma coletânea deartigos sobre música no Brasil e sua relação com o que seria um contexto global, da qual o artigo citado dePinho é parte.24 Dicotomias como ocidente/oriente, tradicional/moderno e tantas outras são recusadas da mesma forma.

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refuta o conceito de globalização.
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A dicotomia local/global, ou qualquer outra que lhe faça as vezes, é falsa porque

para que ela exista é necessário imaginar um lugar que produza uma homogeneização que,

por sua vez, atingirá um outro lugar, natural e anteriormente heterogêneo àquele. Negri e

Hardt chamam a atenção para o fato de que

“as diferenças de localidade não são preexistentes nem naturais, masefeitos de um regime de produção. Da mesma forma, a globalidadenão deveria ser entendida em termos de homogeneização cultural,política ou econômica. A globalização, assim como a ‘localização’,deve ser entendida, em vez disso, como regime de produção deidentidade e diferença, ou de homogeneização e heterogeneização”(2001:64).

Então, globalidade ou localidade são produzidas de acordo com o momento, com o que é

privilegiado.

O que está sendo defendido aqui é que o agenciamento de fluxos sempre provoca

novas configurações. É claro que por razões econômicas, políticas e, principalmente,

históricas – que possibilitam as anteriores – há fluxos hegemônicos que podem

sobrecodificar outros, mas há aqueles que escapam da sobrecodificação, fazendo com que

saia algo realmente novo daí. Parece possível especular que o reggae que chegou a

Londres por imigrantes jamaicanos e que daí foi difundido para outras cidades tenha

sofrido ‘modificações locais’ mesmo em Nova Iorque; assim como o hip-hop

novaiorquino não deve funcionar da mesma forma em Londres – as apropriações são

sempre diferentes.

No capítulo que relaciona o movimento Black Rio com os blocos afro e os novos

afoxés, Risério termina ressaltando que não se trata de um antes e um depois, que “essas

coisas vão se mesclando, se superpondo, numa mistura total”. O último trecho desse

capítulo é também a idéia que guia este trabalho, pois, como ele diz: “Primeiro o fubá,

depois o dendê, mas sem esquecer a nega baiana que sabe mexer. E que não pára de mexer

que é para não embolar” (:33).

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Ventos de cá

Tal como já foi mais do que frisado, a separação entre fluxos de lá e fluxos de cá

tem apenas a intenção de facilitar a exposição, pois cada um dos fluxos apresentados já é

em si mesmo uma mistura de vários outros que não respeitaram separação alguma. Além

disso, a própria apresentação da seção anterior mostrou que, mesmo quando o elemento é

considerado ‘de fora’, ele só tem sentido neste trabalho pelas conexões que foi capaz de

fazer e que geraram outros fluxos cujos encontros produziram os blocos afro e a

reafricanização do carnaval de Salvador. Dessa forma, os movimentos de independência

dos países africanos ou a soul music foram expostos como ‘vindos de fora’, mas já na sua

apresentação foi preciso dizer o que foi gerado a partir de sua chegada, melhor dizendo, de

seus primeiros encontros. Cabe fazer a mesma advertência para esta seção, haja vista que

os fluxos daqui, que se referem àqueles produzidos no Brasil ou em Salvador ou no Rio de

Janeiro... também foram gerados por outros vindos de fora, cujas conexões serão

explicitadas à medida que se fizerem necessárias.

Os afoxés

Logo na introdução de Carnaval Ijexá..., Risério explica que a palavra ‘afoxé’

significa “enunciação que faz (alguma coisa) acontecer”, “a fala que faz”,

“encantamento”, “palavra eficaz, operante”. Ele diz, a partir da conclusão de um outro

autor, que a palavra passou a designar os grupos “afrocarnavalescos” porque, por

rivalidade, eles trocavam “afoxês (no sentido de fórmula mágica) entre si” (:12). Vieira

Filho diz que as informações sobre o significado do termo são muito distintas, no entanto,

o que parece ser consenso entre vários estudiosos é que os afoxés teriam origem comum

aos maracatus de Recife/PE, sendo ambas as manifestações derivadas dos antigos desfiles

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dos Reis Congos, uma mistura de elementos ‘africanos’ e ‘católicos’ (1997:51-2; ver

também Risério:55).

Em seu estudo sobre o carnaval baiano no período de 1880 a 1930, Vieira Filho

chama a atenção para o pouco valor atribuído ao afoxé, pois nem a imprensa fazia

registros de seus desfiles (1997:50). Os clubes uniformizados negros, como já observado

no início deste capítulo, foram bastante registrados pelos jornais. Outra diferença entre os

clubes e os afoxés é que enquanto os primeiros agregavam um grande número de pessoas

em seus préstitos, os afoxés não desfilavam com mais de cem (:53). Há diferenças também

em “seus temas e suas intenções”. Para Vieira Filho, os clubes uniformizados negros

procuravam combater o “racismo científico” mostrando sua “capacidade para a

civilização”, através da apresentação de temas e personagens africanos. Tratava-se de

mostrar uma África ‘civilizada’, que tinha uma ‘história’, enquanto os afoxés queriam

“levar ao público as festas do candomblé” (:55).

Apesar da perseguição aos cultos e práticas afro-brasileiros, os afoxés, assim como

os terreiros de candomblé, resistiram por todo o século XX, com momentos de maior e de

menor visibilidade, sendo o Filhos de Gandhi o protagonista de dois desses momentos de

maior evidência dos afoxés no carnaval de Salvador. Fundado em 1949 por um grupo de

cerca de 40 estivadores, alguns ligados ao candomblé, o Filhos de Gandhi tornou-se o

mais famoso afoxé da cidade. A adoção do nome ‘Gandhi’ reflete tanto a posição

privilegiada naquela época dos trabalhadores do porto em relação a informações sobre o

que acontecia no mundo – o líder indiano Mahatma Gandhi fora assassinado em 1948 –

quanto sua situação desfavorável na sociedade baiana (e brasileira), pois, segundo

depoimentos de alguns dos organizadores, a idéia era mostrar que se tratava de um grupo

pacífico para evitar a repressão policial, afinal, eram estivadores, ligados ao movimento

sindical – vistos como ‘comunistas’ –, negros e, muitos deles, adeptos do candomblé. Para

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ffilhos de Gandhi
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tanto, fizeram de Gandhi, o “precursor da paz”, seu símbolo; adotaram o uso exclusivo de

roupas brancas (cor de Oxalá, mas também cor da paz); e proibiram mulheres e bebida no

desfile (Guerreiro 2000:73; Morales 1988:269). Vê-se novamente em ação o encontro

inimaginável entre fluxos tão díspares quanto aqueles gerados pelo candomblé e aqueles

gerados pela luta de um pacifista hindu contra a dominação britânica imposta sobre a

Índia.

Segundo Morales (1991), o Filhos de Gandhi não surgiu como um afoxé. Era um

bloco de estivadores, assim como havia blocos carnavalescos ligados a outras categorias

profissionais, como o Filhos do Mar, formado por marinheiros, o Filhos do Porto, por

doqueiros, e o Filhos do Fogo, da corporação de bombeiros (:77). Mas, dado o grande

número de homens vinculados ao candomblé, a associação com a religião e a conseqüente

adoção do formato de afoxé não demorou a acontecer. Michel Agier, antropólogo francês

que realizou anos de pesquisa junto ao bloco afro Ilê Aiyê25, também assume o termo

‘reafricanização’ para qualificar o carnaval dos anos 70 e 80, porém, diferentemente de

Risério, ele propõe outros três momentos-chaves para o processo. O primeiro é justamente

o surgimento do Filhos de Gandhi (2000:49). Tanto Agier quanto Morales destacam a

postura do grupo de aversão ao conflito, social ou racial, e de valorização da população

negra, de suas ‘práticas’, de sua religião, mas em tom extremamente pacífico. E isso num

momento em que o discurso da ‘democracia racial’ e da ‘integração’ do ‘negro’ à ‘nação

brasileira’ estava em evidência.

Quase nada é dito sobre afoxés no período entre o nascimento do Filhos de Gandhi

e sua revitalização em 1976. Outros afoxés são citados, mas não se estabelece quando nem

por quanto tempo eles estiveram em atividade. Na ‘história do carnaval baiano’

reproduzida pela maior parte dos autores, a década de 60 é dedicada aos blocos de índio,

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assunto que também será tratado adiante. O que consta desses trabalhos é que no final dos

anos 60 havia poucos afoxés desfilando e que o Filhos de Gandhi já quase não existia.

Morales chega a dizer que ele passou por um período de recesso entre 1972 e 1976

(1988:270), ano em que voltou a desfilar e que foi para Risério o segundo momento-chave

do processo de reafricanização do carnaval. Além do próprio sucesso vivido novamente

pelo Filhos de Gandhi, que contou com a presença altamente midiática de Gilberto Gil por

seis anos, outros afoxés surgiram a partir de então. Risério denomina-os ‘novos afoxés’,

sendo o Badauê, fundado em 1978, o mais famoso deles. Sua emergência representou para

Risério o terceiro momento-chave do processo de reafricanização: “A criação do Badauê,

depois do nascimento do Ilê Aiyê e do renascimento do Filhos de Gandhi, tornou

irreversível o processo de reafricanização do carnaval da Bahia” (1981:63). A diferença

desses ‘novos afoxés’ para os antigos está principalmente na relação de seus componentes

com os terreiros de candomblé. Embora sempre haja uma mãe ou pai-de-santo para

‘proteger’ o grupo e realizar os ‘trabalhos’ necessários, ele não pertence a uma casa de

candomblé, tampouco seus componentes são necessariamente adeptos da religião, o que

gera outras diferenças nos cânticos, que não são de candomblé, nas danças e na

indumentária (:65). Nesse novo formato, afoxés e blocos afro se confundem.

O candomblé

A relação do candomblé com o processo de reafricanização do carnaval de

Salvador ultrapassa em muito a ‘re-existência’ dos afoxés ou o surgimento dos ‘novos

afoxés’. Além de fornecer o ritmo – o ijexá é um dos mais executados pelos blocos afro –

e um bom número dos percussionistas, também temas, coreografias e indumentárias

utilizados pelos blocos são inspirados na religião. E, mesmo que o vínculo a um terreiro de

25 Vários artigos resultaram deste trabalho, alguns dos quais serão utilizados aqui. Sua obra de maior fôlegosobre o tema é Anthropologie du Carnaval. La ville, la fête et l’Afrique à Bahia, de 2000.

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candomblé não seja percebido como absolutamente necessário, como constituinte da

definição de bloco afro, uma grande parcela deles mantém uma proximidade com algum

terreiro. E isso certamente se deve, entre outras coisas, à relação estreita do Ilê Aiyê –

considerado o primeiro bloco afro de Salvador e que, num certo sentido, definiu o que

seria um ‘bloco afro’ – com uma casa de candomblé, o Ilê Axé Jitolu, cuja mãe-de-santo é

mãe carnal de um dos fundadores e presidente do bloco. Essa ‘relação estreita’ não se

resume ao ‘parentesco’; é muito mais profunda e tem implicações diretas sobre a

existência do Ilê Aiyê26. Outros blocos observam uma postura mais distanciada em relação

ao candomblé, mas nunca é indiferente. Em geral, cada grupo tem devoção a um orixá

especial, às vezes concebido como seu patrono, seu protetor, ou é o orixá da mãe-de-santo

ou do presidente do bloco. Só para citar os principais blocos de Salvador, no Ilê Aiyê,

homenageia-se Omolu, orixá maior do terreiro de Mãe Hilda (Agier 2000:143); Olodum é

“termo diminutivo de Olodumaré” (Guerreiro 2000:43); o Ara Ketu tem Oxóssi por

protetor (:33); o Malê Debalê é devotado a Oxum (:40)27.

Em seu livro A Trama dos Tambores (2000), Goli Guerreiro tem por objeto a

música afro-baiana, passando por suas influências e chegando até o cenário atual. Nesse

percurso, a autora apresenta diferentes personagens que participaram da composição dessa

história, contando um pouco da trajetória de alguns deles. Entre os percussionistas, o

relato do aprendizado através do candomblé é uma constante, seja por experiência própria,

seja por um mestre vinculado à religião. A título de ilustração, o depoimento de Bira Reis,

fundador da primeira escola de percussão de Salvador, é exemplar: “Eu mesmo sou

autodidata. Berimbau eu aprendi olhando o jogo de capoeira; atabaque eu ia pro

26 Assunto que será abordado mais detalhadamente adiante.27 Em entrevista a Ribard, o presidente do Malê Debalê diz que “Nós estamos situados numa área onde hágrandes terreiros, como Oba Falomi que é o terreiro que a entidade freqüenta e Oxum que está ao lado doMalê, nas águas da Lagoa de Abaeté. Ela é a grande protetora do bloco com outros orixás que velam pornós” (1999:407).

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candomblé olhar ou então conhecia um cara que era do candomblé. Em Salvador, a coisa é

assim” (Guerreiro 2000:113).

A coreografia dos blocos afro em seus desfiles é muito inspirada nas danças dos

orixás. Não são imitações destas, mas há muitos elementos das danças praticadas no

interior dos terreiros compondo as apresentações dos blocos. Guerreiro informa que o

Malê Debalê “estiliza todo ano um ritual de candomblé” (:251) na avenida. Na mesma

conversa que deu início a este ‘relato de encontros’, na casa do presidente do Dilazenze,

de Ilhéus, ele informou que as famosas coreografias que viraram uma espécie de ‘marca

registrada’ das bandas de axé music nasceram nos ensaios nas quadras dos blocos afro. De

fato, não é difícil perceber traços das danças dos orixás nas coreografias das músicas

‘afro-pop’ baianas mais badaladas. Definindo a axé music como “o encontro da música

dos blocos de trio com a música dos blocos afro”, como um “estilo mestiço”, Guerreiro

também informa que as coreografias das bandas de axé são resultado dessa mistura

(2000:133-4).

Como diz Risério, o processo de reafricanização não se restringiu ao carnaval e

tomou conta da cidade de Salvador nos anos 70 e 80. Nesse período, ou mesmo anterior a

ele, surgiram inúmeros grupos de teatro, de dança ou grupos folclóricos cuja temática

principal era o candomblé. Estes grupos eram reflexo da força e representatividade

adquirida por essa religião depois de décadas de perseguição. Risério faz referência ao

reconhecimento no país inteiro da importância de terreiros como o Casa Branca do

Engenho Velho e o Axé Opô Afonjá, além de ialorixás como Mãe Menininha do Gantois e

Olga de Alaketu (:20), que têm, nesse momento, projeção nacional e até internacional:

Mãe Menininha posa para uma propaganda de máquina de escrever e Olga de Alaketu é a

presidente de honra da delegação brasileira no Festival de Arte Negra de Lagos, na

Nigéria (Silveira 1988:195).

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Para além de sua ampla disseminação na capital baiana (Risério diz que “a Bahia

tem três vezes mais terreiros de candomblé do que igrejas católicas” (:22) e Silveira

informa que no final dos anos 80 havia cerca de 1.500 terreiros registrados na Federação

do Culto Afro-Brasileiro contra 100 existentes na década de 40 (1988:194)), o candomblé

ultrapassou os limites do religioso e passou a ocupar um espaço muito maior na vida da

cidade, chegando mesmo a fazer parte da composição de sua estética e assumindo o

estatuto de signo de ‘baianidade’. A mudança de ‘prática de origem africana perseguida

pela polícia’ para ‘símbolo da Bahia’ foi fruto de um grande investimento estatal que teve

início nos anos 50, como demonstra Santos (2000). Nesse momento de industrialização do

estado baiano, a aposta no turismo cultural passou a fazer parte da estratégia de

desenvolvimento: “O candomblé (...) passava a se constituir em um símbolo, por

excelência, da baianidade. Junto com a capoeira e a culinária, ele foi incorporado pela

mídia, por órgãos públicos, empresas privadas como uma das marcas registradas da

Bahia” (:78). O governo federal, com o intuito de construir uma ‘cultura nacional’, como

já observado, também investia na cultura ‘negra’. Em 1952, por exemplo, representantes

do então presidente Juscelino Kubitschek compareceram ao Ilê Axé Opô Afonjá pelas

comemorações do cinqüentenário de Mãe Senhora (:68).

Entre os anos 60 e 70, a indústria de turismo da Bahia apresentava o estado como

uma ‘nação’ em ‘aspectos culturais’, tendo o candomblé um lugar central nessa

concepção: cartazes, filmes, folhetos usavam imagens de filhas-de-santo incorporadas por

seus orixás, além da distribuição ao turista do calendário litúrgico dos terreiros. Mas é

importante destacar que toda essa mistura de candomblé, culinária, capoeira, “herança

africana”... tudo isso deveria resultar em um “jeito baiano” (:96-7), não em ‘negritude’ ou

‘africanidade’. O enfoque é sempre na mistura, o que seria ‘negro’ é concebido como

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jeito baiano, nao negritude ou africanidade
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‘afro-brasileiro’, pois a proposta é a ‘construção’ de uma ‘nação’, de um ‘povo’, o que faz

com que o elemento ‘afro’ só possa ser visto como herança misturada a outras heranças.

A visibilidade alcançada pelo candomblé nos anos 70 em Salvador é tão

expressiva, que Santos (2000) dedica todo um capítulo de sua tese de doutoramento à

análise da relação entre esta religião e o poder público na Bahia (“O Candomblé como

‘imagem-força’ do estado”). Ele informa, por exemplo, que em 1972, o então governador

Antônio Carlos Magalhães criou a Bahiatursa, órgão de turismo do estado, que incentivava

a transformação do candomblé em atração turística (:147-8) e, segundo Silveira, a empresa

estatal chegou “a financiar certos candomblés para tornar suas cerimônias mais

espetaculares” (1988:195). Segundo Risério, à Bahiatursa, vinculada à Secretaria de

Indústria e Comércio, cabia promover “a faixa lucrativa da cultura”, “aquelas

manifestações de cultura (dos folguedos tradicionais ao artesanato) que podem gerar

dividendos”, enquanto a “cultura elitista” ficava a cargo da Fundação Cultural, pertencente

à Secretaria de Educação e Cultura (:91).

Outro exemplo é um fato ocorrido em 1975, quando cerca de 80 filhas e mães-de-

santo foram ao Palácio de Ondina agradecer a Antônio Carlos Magalhães o “apoio à

preservação das religiões de origem africana” (Santos 2000:166). ACM conserva até hoje

uma relação estreita com as principais lideranças dos terreiros de candomblé da Bahia, o

que em muitas situações – especialmente nos anos 70, mas não exclusivamente – foi/é

motivo de conflito entre representantes da religião e o movimento negro chamado político.

Os ‘blocos de índio’

Na maior parte das narrativas que se propõem a contar uma história do carnaval

‘afro-baiano’, os blocos de índio desempenham um papel de suma importância. Surgidos

na década de 60, eles são considerados os antecessores dos blocos afro. Tal relação, quase

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filiativa desses últimos para com os primeiros, advém de três fatores que, penso, são de

diferentes níveis. O primeiro deles refere-se ao público que ambos atingiam: jovens pobres

negros moradores da periferia de Salvador. O segundo fator diz respeito à sucessão

cronológica que é dita existir entre eles, já que os blocos de índio surgiram na década de

60 e os blocos afro são da década seguinte, ocorrendo, então, uma relação inversamente

proporcional: à medida que os últimos crescem, os primeiros tendem a desaparecer, o que

faz com que, aparentemente, haja uma migração dos participantes dos blocos de índio para

os blocos afro. De fato, a trajetória de algumas lideranças dos primeiros blocos afro passa

pelos blocos de índio e corrobora ambos os fatores descritos acima. Contudo, o terceiro

fator que identifico na literatura sobre o carnaval afro-baiano que relaciona esses

movimentos está situado num nível diferente dos anteriores. Enquanto estes referem-se a

constatações observadas nas formações desses grupos, o terceiro fator está condicionado a

uma conclusão daí advinda, a de que os blocos de índio teriam uma intenção de

organização ‘étnica’, assim como os blocos afro, o que permite que logo surja entre uns e

outros uma linha de filiação. “De índio a negro, ou o reverso” é o título eloqüente de uma

artigo de Antônio Godi (1991), o qual expressa uma espécie de síntese da proposta

interpretativa de vários autores, a saber: ao revestir-se de ‘índio’, os negros pobres de

Salvador buscavam uma diferenciação, uma singularidade étnica, que posteriormente

serviria de base para a afirmação da ‘identidade’ propriamente negra nos blocos afro, a

partir de uma ‘tomada de consciência’. Para ele, enquanto nos blocos de índio haveria uma

“assunção travestida” de “uma singularidade étnica”, nos blocos afro, ela seria “explícita”

(:51).

Risério localiza os blocos de índio de Salvador num momento anterior ao processo

de reafricanização do carnaval. Antes dos blocos afro e dos novos afoxés, era aí que “as

pessoas pobres de Salvador, quase que exclusivamente de ascendência negroafricana,

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brincavam seus carnavais com fantasias e motivos inspirados nos índios norte-

americanos”. Que se trata da apropriação de um produto “da chamada cultura de massa”,

Risério não tem dúvidas. Mas sua crônica encaminha-se no sentido de responder “por que,

entre a enxurrada de elementos culturais estrangeiros aqui aportados, a escolha foi recair

justamente sobre os índios da América do Norte”, “os eternos derrotados do imaginário

hollywoodiano”. Identificação do negro pobre baiano com o índio conquistado do oeste

americano a partir do reconhecimento de realidades de marginalização “econômica, social,

política e culturalmente” (:67) semelhantes é sua resposta. E essa identificação não estaria

presente apenas na indumentária e nos nomes adotados pelos grupos, mas também no

comportamento, na postura diante da sociedade ‘branca’. Assim, a ‘violência’ atribuída

aos blocos de índio28 – que Risério considera “sociologizável” pois representaria “rebeldia

social” de “caráter classista” (:68) – seria inspirada, para não dizer espelhada, na reação

dos índios aos brancos ‘desbravadores’ do oeste americano. Contudo, tanto a violência

quanto os próprios blocos de índio eram reduzidos à medida que crescia “o processo de

autoconscientização dos negros” (:69). Este é o conteúdo básico utilizado pela maior parte

dos autores que abordam o tema.

Para Agier (2000:51), o surgimento dos blocos de índio constitui a segunda etapa

do processo de reafricanização do carnaval que se consolidará na década de 70, sendo a

primeira etapa a fundação do Filhos de Gandhi em 1949 e a terceira e última, a criação dos

blocos afro, em 1974. A importância dos blocos de índio para esse processo reside no fato

de ter aí sido formado um espaço ocupado por jovens negros em busca de uma

diferenciação frente à sociedade nacional. Em seu trabalho conjunto com a antropóloga

Maria Rosário de Carvalho (1994) a idéia fica mais clara. A partir de uma nova conjuntura

28 Sobre os blocos de índio, diz Gomes (1989:177): “Eles serão os personagens mais constantes a figurar nascolunas policiais relacionadas ao carnaval durante toda a década de 70, nas quais se exige a ação imediatados poderes públicos e de órgãos de segurança.”

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sócio-política estabelecida nos anos 60 e 70, trabalhada também aqui páginas atrás, tanto

‘índios’ quanto ‘negros’ passariam a buscar a obtenção de direitos que lhes eram negados

enquanto cidadãos brasileiros através da afirmação de sua diferença. Os autores defendem

que os “índios (...) têm uma certa vantagem sobre os negros” (:114) porque “encarnaram

muito cedo e perfeitamente a figura do outro étnico” (:110), ao passo que os ‘negros’

foram ‘integrados’ à sociedade brasileira e colocados numa posição inferior, fazendo com

que fosse necessário “dar um novo sentido a uma diferença racial já construída pela

história nacional” através da produção de “uma diferença cultural” (:110-1). O

“empréstimo” da imagem do ‘índio’, o “outro étnico” por excelência, permitiria ao jovem

negro em meados dos anos 60 “impor um espaço próprio e uma diferença evidente no

cenário do carnaval” (:115). Mais tarde, já com a formação dos blocos afro, a juventude

negra vai “progressivamente recusar aos blocos de índio (...) a representação de uma

alteridade étnica” (Agier 2000:51).

Ribard (1999) segue pelo mesmo caminho considerando que a apropriação que os

jovens negros fazem da imagem do ‘índio’ ocorreria pela ‘identificação’ dos primeiros

com o segundo por sua condição compartilhada de minorias étnicas buscando alcançar

reconhecimento diante da sociedade nacional, tal como também afirmam Agier e Carvalho

(1994). Nesse sentido, o autor pensa o ‘índio’ como uma “figura de transição na dinâmica

mais ampla da africanização (ou de reafricanização) do carnaval” (:187-8). E o fato do

modelo de inspiração ser o índio norte-americano dar-se-ia porque “ambos têm em comum

a resistência e a luta de um povo contra o opressor” (:188) e o índio representaria ainda a

“coragem e mesmo a não submissão que lhe conduz ao sacrifício de sua vida pela

liberdade de seu povo” (:190). Seguindo a ‘fórmula’, Ribard conclui que os blocos de

índio seriam uma “etapa, um tempo ‘pré-político’ da constituição do movimento afro-

baiano, anterior a toda formulação de um projeto claro de mobilização étnica”, que

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afirmação de sua diferença nos anos 60 e 70
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naquele momento ainda era “inconsciente”, “instintivo” (:191). O posterior declínio dos

blocos de índio – em 1995, ano em que realizou sua pesquisa, Ribard encontrou apenas

dois blocos desfilando no carnaval de Salvador – é explicado, então, em função da

transferência de componentes para os blocos afro, pois esses movimentos constituiriam

“dois momentos diferentes e sucessivos da tomada de consciência identitária e étnica do

movimento afro-baiano” (:257).

Guerreiro (2000:83) recorre à idéia do carnaval como o “mundo da metáfora”, para

também afirmar, como Risério, que os jovens negros buscavam na representação por

“outro grupo étnico também oprimido, porém temido” inverter, metaforicamente, a

situação de exclusão vivida por eles no dia-a-dia, “ou seja, o negro se disfarça de índio

para manifestar sua força no espaço do carnaval”. Discurso semelhante é assumido por

Morales, para quem os blocos de índio dos anos 60 eram um “movimento de reação à

discriminação (...) nos quais a questão étnica se apresentava simbolicamente através da

identificação do negro com o índio colonizado em luta com seus dominadores” (1991:76).

Os primeiros blocos de índio de Salvador da década de 60 nasceram no interior de

escolas de samba, utilizando o samba como ritmo e a formação das baterias das escolas.

Guerreiro considera-os uma reatualização dos blocos de índio que desfilavam na capital

baiana em fins do século XIX e início do XX, porém, segundo a autora, naquela época as

inspirações eram “os aborígenes do Brasil” e os “índios do México” (2000:85). Tal como

os clubes negros e os afoxés, esses blocos também foram proibidos em 1905. Já Godi

(1991) apresenta uma versão que, embora não seja excludente em relação à de Guerreiro29,

29 A autora não fornece referências para sua versão, que não é abordada por nenhum dos outros autoresconsultados. Quando afirmo que as versões não são excludentes é porque, apesar da origem diferente, épossível que houvesse uma memória dos antigos blocos que fez com que a qualificação ‘bloco de índio’pudesse codificar um outro modelo. Além disso, é sabido que grupos carnavalescos chamados de ‘blocos deíndio’, ainda que muito diferentes daqueles conhecidos em Salvador, são comuns em municípios do interiordo estado da Bahia, o que pode ter feito o termo permanecer de alguma forma presente por todo o tempo.

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parece mais plausível e dá pistas interessantes para refletir sobre a ‘identificação étnica’

atribuída aos blocos de índio.

O Bloco Carnavalesco Caciques do Garcia foi o primeiro bloco de índio de

Salvador, fundado entre 1966 e 1967 por membros da Escola de Samba Juventude do

Garcia. Seu primeiro presidente, que também pertencia à diretoria da escola de samba na

ocasião, contou a Godi que o bloco nasceu “baseado” no bloco Cacique de Ramos, da

cidade do Rio de Janeiro (1991:53), que alguns componentes da escola haviam conhecido.

Inicialmente, a proposta de formação do bloco tinha um caráter de lazer em relação à

escola, vista como trabalho, responsabilidade. Isso é o que pode ser deduzido do

depoimento do ex-presidente do bloco, reproduzido por Godi: “a finalidade nossa era

compensar aquele dinheiro que se gastava na escola, porque na escola de samba o

camarada gastava para desfilar e não brincava muito”. Ele conta ainda que em 1969, ano

em que o bloco foi oficializado, a fantasia foi mesmo copiada do Cacique de Ramos e que

a proposta de oficialização do bloco se deu em decorrência de a Juventude do Garcia ter se

tornado hors concurs e ter, por isso, ficado de fora da competição daquele ano (:53-4).

O segundo bloco de índio de Salvador foi o Bloco Carnavalesco Apaches do

Tororó, fundado por ex-diretores da Escola de Samba Filhos do Tororó em 1969. O

Apaches acabou se tornando o mais famoso bloco de índio da cidade e, segundo Godi, a

intenção era “fazer frente ao Caciques do Garcia, celebrando uma rivalidade entre os

bairros vizinhos, Tororó e Garcia, que existia desde as batucadas e que persistira ainda no

mundo das escolas de samba” (1991:54). Se a motivação para a fundação do Apaches era

rivalizar com o Caciques do Garcia, então, aquele deveria poder ser comparável a este, o

que implicava produzir semelhanças e, é claro, ser melhor do que o rival nelas. Assim, o

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nome ‘Apaches’ nasce da necessidade de ser ‘nome de índio’30 e este era, sem dúvida, o

grupo indígena mais conhecido, fosse pela TV, embora ainda não tão popularizada na

década de 60, fosse pelo cinema – onde predominavam os ‘faraoestes americanos’ – ou

pelas revistas em quadrinhos.

Apesar das explicações do fundador do Caciques do Garcia de que a idéia do bloco

em Salvador foi inspirada no Cacique de Ramos do Rio de Janeiro e do fundador do

Apaches de que este nasceu como uma reação ao anterior, Godi não parece satisfeito e

pergunta “por que bloco de índio?”, não sem primeiro mostrar um certo espanto, assim

como Risério, com o fato de que jovens negros de Salvador tenham se “identificado

exatamente com aqueles que eram sempre colocados como os vilões, os selvagens e que

sempre acabavam vencidos pela gloriosa cavalaria americana.” (:57). De fato, se a

conclusão é de que há ‘identificação’ e, mais do que isso, ‘identificação étnica’, então é

mesmo necessário buscar explicações para além do que é dito pelos fundadores dos blocos

a fim de que se entenda por que alguém se identificaria com aqueles que eram vistos muito

mais como ‘vilões’, como ‘maus’, até como ‘fracos’ ou ‘perdedores’ do que como

‘injustiçados’, ‘oprimidos’ ou ‘heróis’.

Inicialmente, Godi chama a atenção para a presença marcante que a temática

indígena sempre teve nas manifestações negras no Brasil, com ênfase na figura do

caboclo. Além disso, “as fantasias de índio [brasileiro ou norte-americano] têm sido parte

da tradição do carnaval” (1991:60). Em seguida, o autor passa a mostrar como a imagem

do índio norte-americano era fortemente representada na Bahia dos anos 60 através dos

filmes de faraoeste e que “as camadas negras do final da década de sessenta se fascinavam

por estes dramas épicos, em que o Bem e o Mal se defrontavam e as injustiças eram

30 Depoimento de Agildo Oliveira, um dos fundadores do Apaches: “o nome surgiu espontaneamente, semligação nenhuma com tribo americana ou outro indígena qualquer, não houve isso, e sim, se tinha oCaciques, então pensamos em Apaches, que são figuras fortes entre os indígenas (...)” (Godi 1991:56).

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sempre resolvidas a bala e sangue.” (:61). Mas por que as “camadas negras (...) se

fascinavam” com esses filmes, e não também as ‘brancas’? Afinal, dada a desigualdade

econômica existente entre populações negra e branca, ainda que os cinemas na década de

60 fossem mais populares do que são hoje, certamente eram mais freqüentados pelas

‘camadas brancas’, que também eram as principais consumidoras de TV e de gibis.

Por fim, Godi relaciona a forma como os jovens negros dos blocos de índio eram

tratados pela polícia com o tratamento dispensado aos índios norte-americanos pelas

“tropas da cavalaria americana”, ou seja, ambos os grupos recebiam a mesma violência,

pois seriam vistos como “estrangeiros” (:64), índios tanto lá como aqui. Não seria

necessária a experiência de campo junto ao movimento negro de Ilhéus para saber que, via

de regra, o tratamento que alguns policiais conferem a jovens negros, seja nessa cidade,

em Salvador, no Rio de Janeiro ou em tantas outras cidades brasileiras, é de muita

violência, com ou sem trajes imitando índios norte-americanos.

Aliás, a violência é uma das características mais ressaltadas quando o assunto é

bloco de índio. Risério diz que a palavra “índio” passou a ser usada como gíria de classe

média para ser referir à periferia da cidade – “terra de índio” – tanto quanto para definir o

praticante de “arruaça e violência” (:68). Já Bacelar (2003:230) e Ordep Serra (2000)

localizam a gíria num momento anterior, quando os rapazes das áreas ricas de Salvador

chamavam de “índios” aqueles das áreas pobres, o que significava chamá-los de

“primitivos, rudes, bárbaros, incivilizados”. Para Serra, a formação dos blocos de índio

permitiu dar um novo significado à palavra porque “o pessoal assim chamado assumiu e

tornou positivo o rótulo, relacionando-o com ‘raça’, isto é, com a coragem dos peles-

vermelhas, seu vigor, sua bizarria...” (: 62)31.

31 Experiências pessoais como moradora de um município pobre da região metropolitana do Rio de Janeiro ecomo professora das primeiras séries do ensino fundamental há anos atrás, me permitem afirmar que apalavra “índio” como forma de ofensa e associada à violência e à baderna não é exclusividade de Salvador.

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É claro que em muitos momentos, especialmente aqueles de violência ou de

perseguição da imprensa contra os blocos de índio, estes se percebessem racialmente

discriminados, pois, como diz um de seus fundadores em entrevista a Godi, eles eram

“negros e pobres” (1991:63). E é possível que esta percepção tenha se tornado mais clara à

medida que a década de 70 foi se tornando ‘reafricanizada’, conforme tentei mostrar até

aqui. É certo também que o movimento de formação dos blocos de índio no fim dos anos

60 e início dos 70 deu um caráter absolutamente novo ao carnaval, especialmente àquele

dos jovens negros das periferias que, em menos de 10 anos, criaram 13 entidades desse

tipo, que congregavam milhares de pessoas, a ponto de ter sido decretada a proibição de

desfiles de blocos com mais de mil componentes. Além disso, as experiências de futuros

membros de blocos afro nos blocos de índio, como as de Apolônio e Vovô, ambos

fundadores do Ilê Aiyê, sendo o primeiro no Apaches e o segundo no Viu Não Vá (Agier

2000:69), sem dúvida foram importantes para a constituição do movimento negro, mas

também o foram as experiências nos afoxés e nas escolas de samba, tanto pelo desejo de

se fazer carnaval, quanto pelo ensino da percussão, pois esses espaços, assim como os

terreiros de candomblé, foram escolas para os grandes percussionistas dos blocos afro, do

samba-reggae e, conseqüentemente, da axé music.

No entanto, toda essa argumentação em favor de uma identificação étnica entre

‘negros baianos’ com ‘índios norte-americanos’ pode ser percebida como uma digressão

de Risério excessivamente levada a sério por outros analistas, especialmente quando,

ainda que superficialmente, tem-se conhecimento de que nenhuma identificação existia na

‘origem’ do formato de bloco de índio no Cacique de Ramos, a partir do qual o

movimento foi levado para Salvador. Formado por rapazes de uma família ligada à

Meu município era chamado de “terra de índio” por moradores e não moradores para defini-lo como lugarsem ordem e, em alguns casos, violento; quando crianças faziam muita algazarra ao subir escadas, porexemplo, era comum ouvir alunos e professores dizerem: “parecem uns índios”.

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umbanda, cujos nomes, em função dessa relação religiosa, eram de origem indígena em

homenagem às entidades caboclas (Ubiratan, Ubirajara...), resolveram auto-denominar-se

‘caciques’ de Ramos, bairro onde moravam (Pereira 2002). A indumentária, também

característica do modelo, foi concebida a partir do nome proposto para o bloco, baseada na

imagem indígena presente no cotidiano, a do índio norte-americano dos filmes, dos gibis,

dos brinquedos infantis, das representações escolares e, é claro, das fantasias de carnaval.

A economia

Além dos agenciamentos produzidos por fluxos que podem ser chamados de

‘culturais’ como o candomblé, os afoxés e os blocos de índio, fluxos de economia também

entram na composição das novas configurações assumidas tanto pelo carnaval baiano

quanto pelos movimentos negros nos anos 70. A instalação do Pólo Petroquímico de

Camaçari nos anos 50, o posterior avanço na industrialização do Estado, o “milagre

econômico” nos anos 60 e a desilusão provocada por ele nos 70, assim como o aumento

do nível de escolarização da população negra32 são aspectos da conjuntura

socioeconômica que costumam ser evocados por vários autores como elementos

importantes para as mudanças sociais que promoveram o surgimento dos blocos afro.

Risério define os anos 70 como aqueles em que

“Salvador deixou de ser uma cidade relativamente tranqüila, comcerca de 600 mil habitantes, para ingressar (...) na vida caótica ecolorida da cidade grande, metrópole nordestina, com mais de ummilhão e meio de habitantes (...). Pelo menos 70% dos edifícios hojeexistentes em Salvador foram construídos na década de 70, em meio àproliferação de cinemas, lanchonetes, butiques, shopping centers, etc(...). Enfim, foi nesse período que o “milagre brasileiro” chegou aorecôncavo baiano, e a tecnologia industrial, petroquímica, seimplantou no massapê dos velhos canaviais escravistas” (:24).

32 A política de universalização do ensino nos anos 70 está sendo entendida aqui como ‘fluxo de economia’por sua implementação ser fundamental, apesar de não ter se realizado plenamente, para as metas deindustrialização e desenvolvimento do país, ‘prioridades’ dos governos militares. O mais famoso eabrangente programa de alfabetização de adultos conhecido no Brasil, o MOBRAL, é dessa época.

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Para compreender o alcance dessas mudanças na economia e no espaço urbano de

Salvador, é preciso lembrar o que o senso comum historiográfico costuma dizer sobre a

cidade. Durante quase todo o período colonial, a capital baiana era também a capital do

Brasil, condição perdida para o Rio de Janeiro na segunda metade do século XVIII. Rica

em função do acúmulo de capital proporcionado pela economia açucareira e pelo comércio

de escravos, Salvador perdeu ambos no século XIX com o declínio da cana-de-açúcar e

com a proibição do tráfico de escravos em meados em 1850, momento em que a produção

de riqueza do país foi transferida para o sul com o início das plantações de café. A partir

daí, é dito que a cidade permaneceu economicamente estagnada até a década de 50.

A partir da fundação da Petrobras em 1953, novas indústrias vieram a se instalar na

região, entre as principais estão as indústrias siderúrgica e alimentar, além do Pólo

Petroquímico de Camaçari, já na década de 70 (Ribard 1999:179). Segundo Agier

(2000:18), no período de 1960 a 1980, o nível de emprego industrial da população

economicamente ativa na região metropolitana subiu de 16,4% para 32,2%. Houve

também no período um incremento da atividade comercial em bairros antes considerados

periféricos, como a Liberdade, assim como a expulsão da população pobre do centro da

cidade, mais moderno, urbanizado e comercial e, conseqüentemente, a criação de novos

bairros distantes do centro (Ribard 1999:179-80). Agier ressalta que essas mudanças

econômicas tiveram dois efeitos secundários para a população negra e pobre de Salvador.

O primeiro foi que passou a haver uma expectativa de mobilidade social através do

emprego, da carreira, antes inexistente, já que a melhoria das condições de vida dependia

da origem familiar, do clientelismo ou da escolarização (2000:18), aos quais a população

negra e pobre não tinha acesso. Por outro lado, a possibilidade do emprego, da mobilidade

através da carreira e de sua freqüente negação, tornaram mais clara a discriminação racial

sofrida pela população negra, que ocupava sempre os cargos de menor qualificação,

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recebia os salários mais baixos e, em grande parte, continuou excluída dos benefícios

sociais, destinando-se aos trabalhos domésticos e à economia informal. Na concepção de

Agier, “essas evoluções sociais favoreceram uma modificação da ideologia racial na

Bahia. Elas criaram situações onde as diferentes trajetórias sócio-profissionais, as

desigualdades de tratamento e as discriminações individuais em relação aos locais de

trabalho apresentavam-se de maneira ‘racial’” (:19). Seu argumento baseia-se no fato,

ainda hoje verificado no país33, de que quanto maior a qualificação profissional, maior é

também a diferença salarial entre brancos e negros. Isso explicaria por que “os

movimentos negros de caráter social e político foram mais desenvolvidos” no sul do país

no período pós-abolicionista (:22) e por que os anos 70 foram especialmente profícuos

para o seu surgimento em Salvador. A mesma reflexão envolve o aumento do nível de

escolaridade. Ele tanto proporciona acesso ao mercado de trabalho e competitividade entre

trabalhadores negros e brancos, o que gera situações mais explícitas de discriminação

racial, quanto qualifica o movimento negro, que tem nos meios universitários um ambiente

propício para a criação de grupos de estudos, políticos e artísticos (:26).

Em seu trabalho sobre os movimentos negros do Rio de Janeiro e de São Paulo,

Hanchard (2001) chega à mesma conclusão de Agier. Ele diz que “ao lhes serem negadas

oportunidades de cargos para os quais estavam qualificados, muitos dos entrevistados

desenvolveram uma consciência racial que até então não tinham”. É interessante notar que

nas trajetórias individuais de militantes dos movimentos negros, a retórica de um

momento-chave de discriminação e posterior tomada de consciência é uma constante,

principalmente nas relações profissionais.

33 Ver, por exemplo, as seguintes matérias: “Desigualdade por cor no Brasil é maior do que por sexo”,Jornal do Brasil on line, 12/06/03; “Brancos ganham 50% mais que negros”, Jornal do Brasil, 13/06/03;“Abismo Racial”, Folha de São Paulo, 08/01/02; “Racismo: desigualdade não mudou, diz estudo”, Folha deSão Paulo, 30/01/02.

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Assim, o ‘milagre econômico’ dos anos 70 produz dois efeitos que se

complementam: se por um lado, ele possibilitou, como comemora Risério, a ‘imposição’

do negro “em número maior, na vida do país” (:74) a partir de sua crescente escolarização

e intelectualização, por outro ele ajudou a criar uma nova visão de mundo, mais sensível

às desigualdades raciais. Além disso, em meados da década de 70 há a “explosão do

milagre”. Como não existia mais o respaldo do sucesso econômico para garantir o apoio

popular à ditadura, diversos setores levantaram a voz contra o regime e a organização dos

movimentos sociais ganhou impulso, inclusive os movimentos negros, o que levou o

governo Geisel a iniciar o processo de ‘distensão’ (Gonzalez 1985:125), já abordado

anteriormente. Vê-se assim que tanto no apogeu quanto em seu declínio, os fluxos de

economia gerados pelo momento conhecido como ‘milagre econômico’ produziram

efeitos de movimento em seu encontro com parcelas da população negra.

A industrialização de Salvador e a formação de uma classe média negra resultante

desse processo, ainda que pequena, têm uma relação direta com a narrativa que poderia ser

chamada de mito de origem do Ilê Aiyê. A maior parte dos autores apenas aponta que os

fundadores do Ilê eram trabalhadores da indústria petroquímica, o que significava ter boas

condições financeiras, especialmente quando comparados à grande maioria da população

negra. Num estudo mais detalhado, Agier (2000) mostra que, de fato, por serem filhos e

netos de trabalhadores do porto, os dois primeiros líderes do grupo, Vovô e Apolônio,

tiveram mais acesso à escola e chegaram ao ensino de segundo grau profissionalizante,

mas apenas Apolônio o concluiu (:89-92). Um nível de ensino mais elevado do que a

maioria da população negra e pobre de Salvador e empregos que, provavelmente, podiam

ser considerados bons, associados a uma postura de ‘orgulho negro’, criaram uma imagem

de seus líderes como pertencentes à ‘elite’, imagem esta que se estende ao grupo. Para

Agier, a concepção do Ilê Aiyê como uma elite não está baseada no perfil socioeconômico

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de seus componentes, dos quais 95% foram considerados ‘pobres’ pelo autor na pesquisa

realizada em 1992 (: 94). Esta imagem de elite seria, então, formada no âmbito do ritual e

o sucesso do Ilê seria “fazer todo mundo crer que seus convidados eram mesmo de uma

elite social negra!” (Moura e Agier 2000:376). Isto é dito como resposta ao

questionamento de Moura (Moura e Agier 2000) quanto ao significado que Agier dá à

palavra ‘elite’: segundo este autor, ora Agier refere-se a uma elite imaginária, ora a uma

elite real, ou seja, econômica. E o próprio Moura classificaria o grupo com a segunda

opção utilizando-se do senso comum de que seus fundadores foram trabalhadores do Pólo

Petroquímico (:370). É preciso observar, primeiramente, que o grupo não pode ser

considerado “elite de fato”, como diz Moura, apenas porque dois de seus fundadores eram

funcionários da indústria petroquímica. Por outro lado, o próprio Agier afirma que os

componentes do Ilê “se situam maciçamente no meio dos grupos de prestígio médio”

(Moura e Agier 2000:375). Ora, diante da pobreza que assola a maioria esmagadora da

população negra baiana, a condição de ‘prestígio médio’ já é destacada. Além disso, Agier

mostra em seu trabalho que as fantasias do grupo, ao menos no período de sua pesquisa,

eram consideradas caras, as mais caras entre os blocos afro e mesmo entre alguns blocos

de trio. Acrescento ainda uma idéia que será desenvolvida em outro momento, mas que

relaciona o fato do Ilê Aiyê estar diretamente ligado a uma casa de candomblé com o

reforço dessa imagem de elite. Os terreiros de candomblé costumam ser percebidos como

centro de referência para a prática da caridade, do assistencialismo... Assim, a mãe ou o

pai-de-santo e seus familiares são vistos como elite, desde que bem entendida enquanto

comparação frente a uma população muito carente.

Movimentos negros políticos e intelectuais

Risério define o Ilê Aiyê e o Badauê – bloco afro e afoxé – como “entidades negras

de feição predominantemente estético-recreativo-culturais” e o Movimento Negro

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(naquele momento ainda MNUCDR – Movimento Negro Unificado Contra a

Discriminação Racial, ‘apelidado’ de MN) como “organização francamente política”

(:76). Vê-se que em 1981, quando Risério escreveu Carnaval Ijexá..., a distinção e a

acusação mútua entre movimentos políticos e movimentos culturais estava a pleno vapor.

Na verdade, trata-se de um discussão que ganhou força já no início dos anos 70 e que

permanece ainda muito atual, pelo menos em Ilhéus, como será apresentado no Encontros

5. Mas isso não significa dizer que os movimentos políticos e culturais permaneçam

distantes e isolados uns dos outros. Desde seus primeiros momentos de formação, eles

interagem e se influenciam, embora nem sempre com muita cordialidade.

Como já foi observado, os blocos afro surgiram num momento em que vários

outros grupos de estudos, de teatro, de dança, todos ligados à temática ‘afro’, também

eram formados. A literatura sobre o movimento negro baiano concentra-se na história dos

blocos afro e na formação do MNUCDR, em 1978, havendo uma carência de informações

sobre outros grupos. Silva (1988) cita alguns “grupos culturais preocupados com a questão

política do negro” surgidos em meados da década de 70, entre eles, o Malê Cultura e Arte

Negra, o Núcleo Cultural Afro-Brasileiro34, o Grupo de Teatro Palmares Iñaron (:281).

Não se pode esquecer que além desses grupos, ainda havia aqueles grupos folclóricos,

criados a partir do investimento do estado na ‘afro-baianidade’. A transcrição de um

trecho do jornal do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro feita por Bacelar (2003) explicita a

diferença entre as propostas dos “grupos preocupados com a questão política do negro”,

como os denominou Silva (1988) e os grupos culturais folclóricos:

“(...) vinculado ao departamento de Arte tem um grupo de dança (...)que ao contrário dos grupos de dança negra, simples manifestaçõesfolclóricas para turista ver, o grupo desenvolve pesquisas, inclusivesobre a situação da cultura negra no Brasil.” (:243).

34 O ator e dançarino Mário Gusmão, importante personagem da história do movimento afro-cultural emIlhéus, fez parte do grupo de dança do Núcleo Cultural Afro-Brasileiro, assunto do Encontros 3. SobreMário Gusmão, ver Bacelar 2003.

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foi mais ou menos nesses termos que o Jessé definiu sua relação com o movimento negro
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IMPORTANTE! VOU PESQUISAR SOBRE!
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Havia também grupos de estudos formados por intelectuais, como o SECNEB – Sociedade

de Estudos da Cultura Negra no Brasil, fundado pela antropóloga Juana Elbein dos Santos

e por Mestre Didi em 1974 (Bacelar 2003:244), e o Centro de Estudos Afro-Orientais –

CEAO da UFBa, criado bem antes, em 1959 (Santos 2000:25). Entre os grupos que

poderiam ser considerados mais estritamente ‘políticos’, estava o Grupo NEGO – Estudos

sobre a problemática do negro brasileiro, que viria a ser a base do futuro MNU de

Salvador (Silva 1988:286).

Grupos políticos anti-racistas começavam a se organizar no período de distensão

gradual da ditadura militar, às vezes formados no interior de outras organizações, como no

caso do movimento estudantil ou de organizações políticas ainda clandestinas. Hanchard

(2001:146) fornece um bom exemplo, ainda que esteja se referindo a São Paulo. Ele conta

que um dos grupos que inicialmente integraram o Movimento Negro Unificado, no fim

dos anos 70, tinha origem na Convergência Socialista, organização clandestina baseada no

‘trotskismo’. Segundo Hanchard, Trotski manteve relações com C. L. R. James, intelectual

e ativista negro de Trinidad enquanto esteve exilado no México, nos anos 30. As

correspondências trocadas entre eles acabou chegando às mãos da esquerda européia e,

mais tarde, na Convergência Socialista, subsidiando as discussões de militantes negros que

atuavam na organização. Assim como em outras grandes cidades do país, em Salvador

esses grupos ‘políticos’ eram formados, sobretudo, no meio universitário, longe dos

grupos de amigos e vizinhos de bairros pobres que gostavam de carnaval, saíam em afoxés

e em blocos de índio, organizavam torneios de futebol, faziam excursões e festas, e

acabaram por fundar o primeiro bloco afro, o que já colocava uma boa distância entre eles.

É preciso, como sempre, relativizar essa distância entre, de um lado, os grupos

chamados políticos e os intelectuais, e de outro, aqueles chamados culturais, ou

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Encontros entre os politicos e culturalistas!!! SIM SIM SIM!
Page 86: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

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‘culturalistas’. Pelo fato de ocuparem a mesma cidade, por exemplo, pode-se supor que

uns e outros poderiam ser afetados pelos mais diferentes encontros, fosse com uma notícia

na imprensa ou com um panfleto convidando para uma reunião ou para um festa; fosse

com um grupo se apresentando na rua ou com um familiar ou amigo que morasse perto de

um grupo afro... Mas é claro que havia também contatos mais diretos.

A antropóloga e militante negra Lélia Gonzalez, já articulando o lançamento do

MNUCDR em São Paulo, foi a Salvador convidada pela prefeitura municipal para um

debate. Ela conta que sua discussão envolveu diversos grupos, inclusive blocos e afoxés, e

que daí surgiu um “novo grupo”, cuja “novidade” foi, segundo Gonzalez, “articular de

maneira explicitamente política a questão racial” (1982:47), embora na fundação do

MNUCDR, organizado meses depois, os blocos afro não sejam citados. Risério também

comenta sobre uma conversa que aponta para esta aproximação. Membros do Ilê Aiyê,

sendo alguns fundadores, ‘reclamam’ do assédio do Movimento Negro, pois “[as pessoas

do MN] ficam querendo consertar a diretoria do Ilê”, segundo Macalé, um dos

entrevistados (:85). Já referindo-se a um momento posterior, o início da década de 80,

Cunha informa que a aproximação de intelectuais e militantes junto aos blocos afro se

dava por meio dos “núcleos de apoio” ou “assessorias”, que “visavam, sobretudo,

preencher uma constante lacuna entre uma proposta estritamente voltada para o carnaval e

um trabalho comunitário e cultural” (1991:161). Nesse sentido, como destacam tanto

Cunha quanto Risério35, o Bloco Afro Malê Debalê esteve por algum tempo muito mais

próximo do movimento negro através do Níger Okhan, grupo constituído inicialmente

como núcleo de apoio do bloco, com o qual rompeu após três anos e tornou-se um grupo

autônomo (Cunha 1991:162).

35 Risério escreveu Carnaval Ijexá... durante esse momento.

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Page 87: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

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Este ainda não é o lugar para uma discussão mais aprofundada sobre a questão

política versus cultura, que ficará para adiante e será retomada a partir da etnografia dos

grupos afro em Ilhéus. No momento, cabem apenas algumas observações. A primeira, já

mencionada, diz respeito às influências mútuas exercidas entre os grupos chamados

políticos e aqueles chamados culturais. Essas influências, combinadas com tantas outras,

como a política stricto senso ou partidária, a mídia, as agências de financiamento etc.,

podem provocar um estreitamento ou um distanciamento das relações. E isso se dá porque

a cada momento da relação há diferentes concepções de política e de cultura em ato,

promovendo a convergência ou a divergência de práticas e discursos.

Os espaços negros

A africanização, ou reafricanização, da cidade de Salvador foi gerada a partir dos

agenciamentos de fluxos de política, de economia, de religião, de música... Corpos e

cabelos foram africanizados: desfilavam pela cidade cabelos trançados, boinas, sandálias e

roupas inspiradas no candomblé e, principalmente, nas imagens que se tinha acesso dos

países africanos. Fluxos que se formaram desses encontros e se espalharam pela cidade,

africanizando outros espaços, outros domínios sociais...

As quadras ou ruas onde os blocos afro ensaiam, obviamente, tornaram-se espaços

privilegiados de ‘negritude’. Agier os denomina “espaços sociais negros”. Além de

quadras e ruas, também os bairros onde estão situados os blocos afro ganharam outras

referências à medida em que os grupos cresciam. O bairro da Liberdade, por exemplo, já

era habitado por uma imensa maioria negra muito antes do Ilê Aiyê, mas o nascimento do

grupo reatualiza a sua origem como ‘quilombo’, tornando-o o “novo quilombo” (Agier

2000:63). O mesmo pode ser dito para o Pelourinho em função da relação estabelecida

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PERFEITO!!!!
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Encontro entre os culturais e politicos que se encontram, se influenciam e se divergem pois tem concepções de politicas e cultura diferentes.
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como o lugar do Olodum36. A partir do mesmo movimento, até os bares podem ser

africanizados. Risério rende homenagem ao Zanzibar, bar de propriedade de Vovô e Ana

Célia, ambos fundadores do Ilê Aiyê, situado no Garcia e inicialmente só freqüentado por

“pretos e mulatos” (:106). Aos poucos, a freqüência se diversificou, mas Risério faz uma

minuciosa descrição para mostrar que o bar apresenta uma série de objetos que deixam

clara sua condição de “bar criado por pretos ligados ao Ilê Aiyê e enraizado na cultura

negra” (:109). O ‘Bar do Reggae’, fundado em 1978, no Pelourinho, é um outro

exemplo37, assim como o ‘Bar do Cravo’, citado por Cunha como sede do Movimento

Rastafari Brasileiro (1991:161). Os bares são pontos de encontro por excelência, por onde

passam os mais diferentes fluxos que geram outros e traçam novas composições. Nas

narrativas de origem dos blocos afro, a cerveja e a mesa de bar estão presentes com

freqüência nas conversas nas quais surgem as idéias para um novo grupo. Esse é o caso do

Ilê Aiyê, primeiro bloco afro de Salvador, e é também o caso do Lê-guê Depá, um dos

primeiros blocos afro de Ilhéus.

À

“São os anos da contracultura, da recuperação do exótico, dodiferente, do original (...) Valoriza-se a cultura do outro. (...) Asociedade sai em busca de suas raízes. (...) O inconformismo e odesprezo pela cultura racional, essa mudança de rumos, estão nasclasses médias. Não obstante, vale lembrar que o movimento semostra de forma generalizada através da mídia, que já é eletrônica eprovoca novos gostos, traz novas informações. A intelectualidadebrasileira de maior legitimidade nos anos 60 participará ativamente deum projeto de recuperação das origens que vai remeter muitodiretamente à Bahia.(...) Da Bossa Nova à Tropicália os baianos estão na ponta darenovação da música popular brasileira... Tudo leva à Bahia (...) oCinema Novo, as artes cênicas... (...) Essa enorme publicidade que aBahia e a cultura negro-baiana vão alcançando, através também da

36 A relação dos blocos com sua comunidade, concebida também como território, abre caminhos para umleque de considerações, que deverão ser realizadas no Encontros 5.37 Uma pequena etnografia do Bar do Reggae pode ser encontrada em Pinho 1997.

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literatura de Jorge Amado, de peças de teatro como Zumbi (...) nosapresenta[m] às veneráveis mães-de-santo dos candomblés deSalvador (...) Pela música popular aprendemos os nomes dos santos,que também são os da umbanda, mas agora é preciso ir até a Bahiapara pedir a bênção de Menininha, para jogar os búzios e ler a sorte,para experimentar o sabor do feitiço, o verdadeiro” (Prandi 1991:71-73 apud Serra 2000).

O processo de reafricanização gerado em Salvador nos anos 70 não pode ser

dissociado dessa nova Bahia apresentada, mais do que nunca, como ‘afro-brasileira’ já nos

anos 60. Foi observado anteriormente como as políticas governamentais, tanto no que diz

respeito aos países africanos, quanto em relação ao turismo, colaboraram no sentido de

forjar uma nova imagem da cidade de Salvador. Havia já aí um clima africanizado que

permeava toda a cidade e que fez, por exemplo, com que em 1973 cinco mil turistas

negros americanos viessem a Salvador “para conhecer as tradições do culto afro-brasileiro,

capoeira e samba de roda, entre outros oriundos da África”38 ou a Polícia Militar baiana

adotar a capoeira em seus quartéis em 1974 (Santos 2000:136).

Assim, foi nesse clima, mais ou menos como descrito até aqui, que bares, cabelos,

músicas, políticas, lutas, dinheiro, religião, escola etc., entraram em agenciamento e

geraram o processo que ‘reafricanizou’ o carnaval de Salvador e a criação do Ilê Aiyê e

dos blocos afro.

Os blocos afro de Salvador

O trabalho desenvolvido até aqui teve o propósito de fornecer uma visão geral dos

elementos que são considerados importantes pela literatura especializada no processo de

formação dos blocos afro, tomando a obra de Antônio Risério como referência básica. Ao

longo do texto, muito já foi dito a respeito dos blocos, especialmente do Ilê Aiyê,

38 Jornal A Tarde, de 23/03/73 apud Santos 2000:131.

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consagrado pela grande maioria dos autores como o primeiro bloco afro39. Não obstante, é

necessário sistematizar um pouco as informações que se encontram espalhadas e

complementar com outras, incluindo outros grupos. Nesse sentido, a última parte desta

primeira descrição de encontros consiste na apresentação de um resumo, a partir dos

autores consultados, da formação dos principais blocos afro da capital baiana.

Para Risério, o surgimento do Ilê Aiyê, primeiro bloco afro, representa o primeiro

momento do processo de reafricanização do carnaval de Salvador40; é quando se dá “a

passagem do lance black para o lance afro” ou “do carnaval indígena para o carnaval afro-

brasileiro” (:38). Já Agier, considera o fato como a terceira etapa do mesmo processo41,

quando a “identidade racial” é ‘alinhada’ sobre o “africanismo cultural” (2000:51). Ribard

defende que os blocos afro significam a “maturidade de uma consciência étnica, de um

projeto político e cultural” (1999:193). Haveria ainda muitos outros autores a citar que

estabelecem relações muito diretas entre o surgimento dos blocos afro e ‘identidade’ ou

‘consciência étnica’, o que faz com que essas idéias estejam sempre juntas em seus

trabalhos. A proposta aqui é, nesse momento, separá-las, deixando que as análises a

respeito de questões como etnicidade ou identidade sejam tratadas no Encontros 4.

Ilê Aiyê

Antes de ter acesso a qualquer trabalho sobre o Ilê Aiyê e antes mesmo de

imaginar que faria um trabalho sobre blocos afro, eu tinha conhecimento, pela imprensa

talvez, que o Ilê era um bloco afro no qual só podiam desfilar pessoas negras. Ele teria

sido fundado como reação a uma atitude racista de um bloco carnavalesco de elite, que

39 Moura (Moura e Agier 2000) é o único autor, entre os consultados, que faz uma objeção nesse sentido emsua resenha à obra de Agier sobre o Ilê Aiyê, de 2000.40 Lembrando que os seguintes são o ressurgimento do Afoxé Filhos de Gandhi e a criação do ‘novo afoxé’Badauê.

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teria vetado a entrada de Vovô e de outras pessoas. Diante disso, pensou-se em criar um

bloco só para ‘negros’. Não encontrei essa história reproduzida em local algum, no

entanto, é certo que há blocos ‘de brancos’ que não permitem a participação ‘de negros’42.

E ainda que não tenha ocorrido um ato de discriminação direta contra qualquer fundador

do grupo, fazia todo sentido criar um bloco exclusivo para pessoas negras diante do

racismo existente em todos os âmbitos sociais, inclusive e principalmente no carnaval.

A história de fundação do Ilê começa com um grupo de amigos que estavam

sempre se reunindo para bater papo, promover festas, ir à praia e fazer excursões.

Especificamente para este último fim, organizaram-se sob o nome de “A Zorra”, que

Agier denominou “empresa de lazer” (2000:68). Vovô e Apolônio, dois dos principais

fundadores, haviam estudado na mesma escola, faziam parte de uma banda e jogavam

futebol juntos (:66). Apolônio desfilava no bloco de índio Apaches do Tororó, Vovô

desfilou no Viu Não Vá (:69) e Jailson, um outro fundador, desfilava no Apaches e no

afoxé Filhos de Gandhi, conta Risério (:39). Ele conta também que Vovô lhe disse que a

idéia surgiu de uma conversa entre esses amigos: “A gente tava conversando, batendo

papo, começou a beber... Tava na época daquele negócio de poder negro, black power,

então a gente pensou em fazer um bloco só de motivos africanos” (:38), embora Agier

acrescente que Apolônio, também um dos fundadores e primeiro presidente do grupo, já

participasse de reuniões que discutiam a organização de blocos de carnaval unicamente

para negros (2000:71).

O Ilê Aiyê foi fundado no dia 1o de novembro de 1974, no Curuzu, bairro da

Liberdade e, segundo Agier (2000:73), foram oitenta os sócios fundadores, mas o primeiro

41 Iniciado em 1949, com o Filhos de Gandhi, tendo como segundo momento os blocos de índio na décadade 60.42 Guerreiro (2000:127-129) cita a CEI (Comissão Especial de Inquérito) do racismo instalada na CâmaraMunicipal de Salvador em 1999 “para investigar o processo de seleção de associados dos blocoscarnavalescos Eva, Nú Outro Eva, A Barca, Pinel e Beijo, denunciados formalmente à Justiça por

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desfile, no carnaval do ano seguinte, contou com cerca de cem a cento e cinqüenta

componentes; os primeiros instrumentos foram comprados com recursos próprios e houve

cobrança de taxa de inscrição. No carnaval seguinte, já eram trezentos componentes e, a

cada ano, o crescimento era considerável, chegando ao número de dois mil em 1983 (:75).

Sobre a história do Ilê, nesse momento importa registrar que seu primeiro disco foi

gravado em 1984, com financiamento da empresa Oldebrecht, que também financiaria a

construção de sua sede em 1994 em um terreno comprado com verbas doadas pelo

governo do estado no ano anterior. Em 1987, foi inaugurada a primeira escola ‘primária’

comunitária do grupo (:80). Guerreiro (2000:32) diz que atualmente “as escolas atendem a

até 4 mil crianças” e ainda há as oficinas de profissionalização. Por fim, ainda é preciso

dizer que em 1981 Apolônio deixou o Ilê Aiyê e fundou o Orunmilá, outro bloco afro

de Salvador (Agier 2000:79).

À

Segundo Agier, o segundo bloco afro teria surgido em 1978 e chamava-se Alufã

Tendé (2000:77). Depois dele, viriam, apenas citando os mais famosos, Malê Debalê e

Olodum em 1979; Araketu em 1980 e Muzenza em 1981. Com exceção do bloco surgido

em 1978, os demais, junto com o Ilê Aiyê, são considerados os cinco grandes blocos afro

de Salvador, dedução sugerida por Guerreiro (2000) ao dedicar um capítulo para cada um

deles e por Ribard (1999)43, que apresenta essa divisão entre “os cinco maiores” e “os

outros” como uma “dicotomia” comum no “mundo afro”, que costuma qualificar os

discriminação”. Ela informa ainda que Antônio Risério e outro “intelectual”, Paulo Miguez, elaboraram aprimeira versão do relatório da CPI, na qual afirmaram a existência de discriminação no carnaval baiano.43 Sua obra de quase quinhentas páginas tem o mérito de oferecer uma visão mais ampla do que os demaistrabalhos sobre os blocos afro de Salvador por fazer uso de dados e entrevistas que abrangem também ospequenos blocos.

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primeiros como blocos de “primeira categoria” ou por sua “antigüidade” (:345). A

organização de entidades de representação desses blocos também indica que a tal divisão é

‘nativa’: no início dos anos 90, os ‘outros’ criaram a Associação dos Blocos Afro da Bahia

– ABAB; meses depois44, os ‘cinco’ criaram a Federação dos Blocos Afro do Brasil –

FBAB (:356-7). Embora não seja possível tirar conclusões da informação a seguir, é

interessante saber que ao menos um bloco afro de Ilhéus foi informado por documento da

criação da FEBAB e convidado a participar do I Encontro Nacional de Dirigentes de

Blocos Afro do Brasil, nos dias 25, 26 e 27 de novembro de 1993. O documento é

assinado pelo presidente da entidade, João Jorge, do Olodum, e por quatro vice-

presidentes, representando cada uma das demais entidades. A programação do encontro

ocorrido em novembro de 1993 também não deixa dúvidas quanto à não participação de

outras entidades de Salvador, ao menos no que diz respeito à organização do evento: todas

as atividades culturais promovidas após os debates são ensaios dos cinco grandes blocos.

Malê Debalê

O Bloco Afro Malê Debalê foi fundado em 1979, no bairro de Itapoã, próximo à

famosa Lagoa de Abaeté e desfilou pela primeira vez no ano seguinte. Risério refere-se ao

Malê Debalê por sua proximidade ao Movimento Negro político. Nos três primeiros anos,

o grupo contava com um ‘núcleo de apoio’ formado por militantes e intelectuais, o Niger

Okhan, que se desligou do grupo e tornou-se uma entidade unicamente de caráter político

(cf. Cunha 1991 e Guerreiro 2000).

Dos cinco grandes grupos, o Malê Debalê é o que menos recebe atenção da mídia.

Como o Ilê Aiyê e diferentemente dos outros três, o grupo se recusa a incorporar

44 Ribard não fornece o ano de criação das entidades, mas um documento a que tive acesso através de umdirigente de bloco afro de Ilhéus informa que a FEBAB, aqui grafada tal como consta do documento, foifundada em junho de 1993.

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instrumentos eletrônicos à sua banda e nunca gravou um disco (Guerreiro 2000:149).

Mesmo sem a presença do Níger Okhan, o grupo continuou a ser considerado como o mais

politizado entre os maiores. Falando sobre diretorias e eleições, assunto que será abordado

no último dos Encontros deste trabalho, Ribard ressalta que no Malê Debalê a estrutura

organizativa é mais participativa do que nos demais blocos. Há eleições de fato para a

diretoria, inclusive para a presidência (1999:337).

Olodum

Tanto ou mais do que o Ilê Aiyê, o Olodum recebe atenção de um grande número

de pesquisadores, de diferentes áreas. Em geral, o enfoque principal recai sobre seu

sucesso na mídia, sobre sua capacidade de ter se tornado uma empresa de fato, um

holding45, para ser mais exata.

O Olodum foi fundado em 1979 na área do Maciel/Pelourinho, sendo seu primeiro

desfile no ano seguinte. Já em 1981, há o primeiro racha que gerará a criação do Muzenza

nesse mesmo ano. De acordo com Guerreiro (2000:41), o Olodum nem desfilou em 1983,

tamanha era sua desmobilização. Nesse momento, João Jorge e Neguinho do Samba,

fundador e mestre de bateria do Ilê Aiyê por vários anos, além de outros ex-componentes

do primeiro bloco afro, aproximaram-se do Olodum e promoveram sua reestruturação.

Em 1987, ano em que tematizou o Egito em seu desfile com a música “Deuses,

Cultura Egípcia, Olodum” ou “Faraó”, como ficou conhecida, o Olodum entrou

verdadeiramente na mídia. A música ganhou o status de símbolo do samba-reggae, ritmo

que teria sido criado por Neguinho do Samba, na época, mestre de bateria do Olodum e

esse ano passou a ser o que Guerreiro chamou de “momento-marco em que o samba-

45 Sobre o trabalho do Olodum como empresa, ver Dantas 1994, no qual a definição de holding culturalaparece já no título, e 1996; também Fischer et alli. 1993.

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reggae vai além dos espaços musicais afro-baianos e a estética negra torna-se visível no

cenário da mídia” (2000:24).

Em 1990, o Olodum gravou com Paul Simon, artista pop americano mundialmente

famoso e conquistou espaço no mercado internacional. Em 1996, foi a vez do super astro

pop Michael Jackson gravar um clip com o Olodum, no Pelourinho (Nunes 1997).

Depois de retornar de sua primeira turnê internacional, o Olodum fundou a Escola

Criativa do Olodum, instituição que além de percussão e outras oficinas ligadas à arte,

também oferece o ensino de primeiro grau (Guerreiro 2000:111). Além da Escola Criativa,

o Olodum também possui a Fábrica de Carnaval e a Boutique do Olodum no Pelourinho.

O sucesso do Olodum na mídia, a mudança do estilo, o investimento na imagem de

empresa... tudo isso fez com que o grupo gerasse uma grande polêmica em torno dos

limites de mudança de um bloco afro, ou mais do que isso, na própria concepção de bloco

afro, assunto a ser tratado adiante.

Ara Ketu

O Bloco Afro Ara Ketu é do bairro de Periperi e foi fundado em 1980 por Vera

Lacerda, presidente do bloco, e outras pessoas da família, que saíam em blocos separados.

A partir do desejo de formar um bloco de carnaval que unisse a família e os amigos, foi

sugerido que formassem um bloco afro.

Antes e com mais ênfase do que o Olodum, o Ara Ketu foi o primeiro bloco afro a

‘eletrificar’ seu som, formando uma banda em 1991 e entrando no mercado da axé music.

Segundo Guerreiro, “no decorrer dos anos 90, o Ara Ketu se afastou cada vez mais de seu

formato original e acabou por se descaracterizar enquanto bloco afro” (2000:37). Não

obstante, o grupo participa do carnaval como bloco afro, integra o grupo dos cinco

maiores e realiza trabalhos sociais, que têm sido uma das marcas mais características dos

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blocos afro. Em 1997, o Ara Ketu fundou sua escola de percussão, que também oferece

cursos de dança e de teatro... (Guerreiro 2000:113). Porém, o trabalho de Guimarães

(1995) informa que antes mesmo da fundação da instituição educativa, já eram realizados

trabalhos que visavam ao desenvolvimento de práticas sócio-educativas.

Muzenza

Fruto de uma primeira cisão do Olodum, o Bloco Afro Muzenza foi fundado em

1981, no bairro da Liberdade, meses antes da morte de Bob Marley, maior ídolo do reggae

e da religião rastafari, com os quais o bloco se identificou e passou a ser conhecido como

o ‘Muzenza do Reggae’ (Guerreiro 2000:48). Antes de se fixar na Liberdade, onde nasceu,

o Muzenza ensaiou em diversos lugares onde houvesse uma grande aglomeração de

pessoas negras (cf. Veiga 1997:131-2 e Guerreiro 2000:47). Por essa razão, tanto Veiga

quanto Guerreiro destacam seu constante deslocamento e o primeiro o chama de ‘bloco

errante’. Desde alguns anos na Liberdade, o grupo promoveu um abaixo-assinado e

conseguiu mudar o nome da rua para Avenida Kingston (:48), em homenagem à capital da

Jamaica, país de Bob Marley e do reggae.

Haveria muito mais a dizer sobre cada um desses grupos e sobre a história do

movimento negro protagonizado pelos blocos afro em Salvador. Contudo, em primeiro

lugar, esta não é a intenção deste trabalho; em segundo lugar, os blocos afro de Salvador

terão lugar em outras situações ao longo do texto, através das quais será possível

promover um diálogo entre eles e os blocos afro de Ilhéus.

À

Este primeiro relato de encontros teve por objetivo descrever os agenciamentos de

fluxos que produziram o surgimento dos blocos afro de Salvador como parte e produto do

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processo que Risério denominou de reafricanização do carnaval. Foi possível observar

que os mais diferentes elementos, percepções, subjetividades compuseram tais

agenciamentos. Como tais, eles geraram fluxos que se encontraram com outros e logo

produziram novas conexões. Algumas se fizeram em Ilhéus, gerando novos movimentos

também aí. Os dois próximos capítulos têm a intenção de descrever esses fluxos e permitir

o entendimento do que ficou conhecido como movimento afro-cultural de Ilhéus.

Encontros 2 apresentará fluxos e agenciamentos percebidos a partir de um olhar sobre as

histórias, as economias, as estatísticas, especialmente em relação à população negra da

cidade, pela qual fundamentalmente passou o surgimento dos blocos afro. O capítulo

seguinte deverá ser uma apresentação desses e dos agenciamentos mais diretamente

envolvidos em sua produção.

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Encontros 2

SOBRE HISTÓRIAS, NÚMEROS,CORES E GENTE DE ILHÉUS

“(...) canção que o negro Florindo canta,enquanto colhe cacau (...):

‘Quem planta cacau sou eu,Sou eu que colhe ligeiro,Mas ai! Mulata, mas ai!

Só eu não vejo dinheiro...Do cacau que se vendeu...’”

(Amado 1944 [1972]:106-7).

Por que uma coisa é isso e não aquilo? Tudo depende dos agenciamentos entre os

elementos, da composição ou decomposição entre fluxos totalmente heterogêneos. O

capítulo anterior teve o propósito de apontar alguns desses fluxos que, em agenciamento,

produziram o que Risério (1981) chamou de reafricanização do carnaval de Salvador e do

surgimento do movimento dos blocos afro na capital baiana. Guattari (1986) diz que “um

agenciamento comporta componentes heterogêneos, de ordem biológica, social, maquínica,

gnoseológica, imaginária” (:287) e que é uma noção “relativa ao mesmo tempo às

representações imaginárias, às cadeias de linguagem, às semióticas econômicas, políticas,

estéticas, microssociais, etc.” (:155-6). Pode-se dizer que o que está em agenciamento é

tudo o que ‘está em jogo’ na produção de determinada coisa. E tudo está em jogo: o clima,

Luiza
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Luiza
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Luiza
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Agenciamentos para Guattari
Luiza
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o ar, a hora, os números... “coleções de objetos técnicos, de fluxos materiais e energéticos,

de entidades incorporais, de idealidades matemáticas, estéticas, etc.” (:289).

E é a concepção de que as coisas se passam deste modo que faz com que este

Encontros 2 e o próximo capítulo sejam tentativas de fazer para o movimento dos blocos

afro de Ilhéus o que foi feito para o de Salvador: descrever fluxos e agenciamentos que

produziram o surgimento dos primeiros blocos, ou de desejos de formação destes, em

Ilhéus. Note-se que dizer que são ‘tentativas’ de descrição e não utilizar o artigo definido

‘os’ antes dos termos ‘fluxos e agenciamentos’ acima visa frisar que não é possível

apreender todos os elementos que compõem um agenciamento. Assim, serão descritos

aqueles que mais me afetaram, aqueles que mais fui capaz de perceber como importantes

na conjugação de fluxos que deu origem ao movimento afro-cultural de Ilhéus.

A separação entre os encontros de fluxos que serão descritos aqui e no próximo

capítulo é meramente uma questão de tornar mais clara a apresentação e, assim, o

entendimento da proposta, tal como foi argumentado na apresentação da diagramação do

Encontros 1. O objetivo deste capítulo é expor fluxos de economia, de história, de números

e outros que entram em agenciamento com tantos outros e geram subjetividades, visões de

mundo que vão participar da produção do movimento negro de Ilhéus. No próximo

capítulo, o Encontros 3, dar-se-á uma continuação deste, apresentando outros fluxos

gerados pelos antigos carnavais de Ilhéus, pelo candomblé, pelo teatro e pela dança e,

principalmente, pelo movimento dos blocos afro de Salvador, cujos fluxos foram levados

para a cidade pela TV, pelo rádio, pelos jornais, mas, acima de tudo, por pessoas que

viveram o que acontecia em Salvador e foram importantes na fundação dos primeiros

grupos afro ilheenses.

À

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99

A apresentação de dados socioeconômicos e informações políticas e históricas

sobre a cidade de Ilhéus, conforme já foi observado, não está sendo proposta neste trabalho

apenas como cenário no qual uma ação se passa – no caso, o surgimento dos blocos afro.

Mais do que isso, as condições socioeconômicas; o local e a forma de moradia, assim

como as relações estabelecidas com este local por moradores e não moradores; as versões

de história local que ‘explicam’ situações, papéis assumidos, hierarquias sociais baseadas

na cor e em aspectos econômicos; o desemprego... Tudo isso ao mesmo tempo compõe e é

resultado de formas de subjetivação específicas. Assim, tais informações proporcionam um

melhor entendimento das relações sociais experimentadas pelos grupos do movimento

afro-cultural do município e de suas concepções de mundo.

Também é necessário frisar que a cidade de Ilhéus não está sendo concebida como

uma totalidade social ou cultural fechada. O recorte é feito em função da constituição dos

dados quantitativos, cuja unidade é o município, e porque este recorte – o município –

realmente orienta as formulações e ações dos grupos, assim como dos demais setores com

os quais eles se relacionam.

Ilhéus e Itabuna constituem as cidades centrais da região denominada pelo Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de Microrregião Ilhéus-Itabuna, que abrange

quase todos os municípios produtores de cacau do sul da Bahia. A idéia de “região

cacaueira” é muito presente na cidade, assim como também nos demais municípios. Talvez

a monocultura do cacau seja uma das razões para que isso ocorra em função dos

organismos governamentais de atuação regional por ela produzidos, tais como o Instituto

de Cacau da Bahia (ICB), a Comissão Executiva do Plano de Recuperação Econômica

Rural da Lavoura Cacaueira (CEPLAC) e a Associação dos Municípios da Região

Cacaueira (AMURC). Assim, informações que abranjam a região ou o Estado da Bahia

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serão fornecidas à medida em que forem pertinentes para a compreensão das questões

levantadas1.

Não se pretende que esses dados forneçam qualquer idéia de uma “realidade

objetiva”. Assim como os dados etnográficos propriamente ditos, ou seja, aqueles obtidos a

partir da observação, dados quantitativos e históricos também precisam ser interpretados e

relacionados. Uns e outros são formas de olhar. A intenção de reproduzi-los neste trabalho

é dar pistas de como foi formado meu olhar e aquele das pessoas com as quais trabalhei.

É preciso dizer ainda que não se trata da história de Ilhéus, mas das histórias dos

historiadores. Estes não são neutros e, conseqüentemente, suas produções também não.

Mahony (1996), também historiadora produzindo sua versão sobre Ilhéus, mostra que a

versão dominante da historiografia local consolidou-se principalmente porque não sofreu

contestação do grupo de oposição ao grupo produtor dessa versão e que, posteriormente,

também o grupo opositor se apropriou dela segundo seus próprios interesses. A produção

ou a apropriação de dados históricos são práticas de lutas discursivas de poder. Foucault

diz que “não há exercício de poder sem uma certa economia dos discursos de verdade que

funcionam nesse poder; a partir e através dele” (1999:28). O discurso histórico faz parte

dessa economia.

Ainda seguindo Foucault, é preciso levar em conta que o poder tem um caráter

relacional, ou seja, ele não é propriedade de alguém ou mesmo de um grupo – “não se dá,

nem se troca, nem se retoma” (1999:21) – e só existe em ato, em relação, onde não há o

lado do “poder infinito” nem o lado do “poder zero” (:200). Então, eventualmente, os

grupos subjugados apropriam-se do discurso histórico dominante para explicar práticas e

relações, e também para ser ponto de resistência a esse poder. As versões históricas

dominantes em Ilhéus são utilizadas pelos grupos afro-culturais em seu dia-a-dia, entre

1 Ver localização do município de Ilhéus no mapa do Estado da Bahia em Anexo 1.

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outras coisas, para explicar a forma como são tratados pela elite política e econômica da

cidade, assim como para reivindicar mudanças nesse tratamento. Além disso, não há

versões históricas de oposição, mas análises críticas dessas versões, como a tese de

doutoramento de Mary Ann Mahony (1996) que será muito utilizada neste trabalho2.

Assim, não se pretende reproduzir aqui o que é chamado de história de Ilhéus. Para

isso, há uma vasta produção historiográfica3. Tanto os dados históricos como os

socioeconômicos e políticos serão expostos conjuntamente quando uns forem

complemento dos outros e à medida em que forem importantes para a análise.

Os índices socioeconômicos de Ilhéus mostram que sua população enfrenta

problemas sociais graves que afetam sobretudo os moradores dos bairros periféricos do

município, majoritariamente negros. No entanto, as conseqüências desses problemas

sociais atingem também as demais camadas econômicas. A crescente violência e o

aumento do número de crianças na rua, especialmente na época de alta temporada de

turismo, são exemplos dessas conseqüências: fluxos de violência e fluxos de crianças

também entram em agenciamento e geram preconceitos, medos, assim como orientações

nas formas de agir tanto por parte dos grupos quanto de seus interlocutores. Apenas a título

de exemplo, existe quase que um consenso entre governo, militantes do movimento negro

chamado de político e dos grupos afro de que bloco afro deve realizar “trabalhos sociais”

com crianças “em situação de risco social” para “tirá-las das ruas”, “afastá-las das drogas,

do tráfico”. Essa ‘definição’ é resultado de um agenciamento de fluxos de violência e de

crianças nas ruas em conjugação com vários outros, entre os quais, aqueles gerados por um

processo de onguização da sociedade4.

2 Agradeço a Mary Ann Mahony, professora doutora em História da Universidade de ??? pelosesclarecimentos prestados em suas palestras no Rio de Janeiro em junho de 2002.3 Ver, por exemplo, Adonias Filho 1976, Andrade 1996; Asmar 1983; Barbosa 1994; Campos 1981; Falcón1995; Garcez e Freitas 1979; Gasparetto 1986; Mahony 1996; 1998; Vinháes 2001.4 Toda essa discussão será aprofundada em Encontros 5.

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Antes de concluir esta introdução ao capítulo, é preciso frisar que não se trata

apenas de apresentar o ‘contexto’ da pesquisa em seu sentido mais clássico, ou seja, como

termo que engloba a exposição de dados históricos, sociológicos, estatísticos etc. e que

costuma preceder a etnografia propriamente dita. Não bastasse o fato de que todos esses

dados são uma das formas possíveis de apresentar elementos que se encontram e produzem

subjetividades, sua exposição neste trabalho tem também a função de mostrar a conexão

sempre existente entre a situação socioeconômica, a cor, o lugar de moradia e a “história”

das pessoas, o que é imprescindível no debate sobre relações raciais no Brasil, seja no

campo dito acadêmico ou no dito político, na verdade, totalmente imbricados um no outro.

Ainda se pode ler e ouvir declarações que desvinculam cor e desigualdade, que negam a

existência de racismo na ‘sociedade brasileira’, ou até que o admitem, mas como atitude

individual, que parte deste e atinge somente aquele ou aquele outro, e não como um

problema sofrido/enfrentado por um contingente enorme da população brasileira. Assim, a

última parte deste capítulo pretende, a partir de registros etnográficos, reforçar a idéia de

que esses dados têm cor e endereço e que eles afetam a existência e as ações dos blocos

afro.

Histórias de Ilhéus

O município de Ilhéus possui atualmente uma área de 1.847,70 km2, distribuída

entre dez distritos, sendo o distrito-sede urbano e os demais distritos rurais. Em 1535, na

carta de doação do rei de Portugal a seu donatário, a capitania hereditária de Ilhéus possuía

50 léguas, indo do Morro de São Paulo, situado hoje no município de Valença, à barra do

Rio Jequitinhonha, no município de Belmonte. Esses eram os limites da capitania de Ilhéus

com as capitanias de Salvador, ao norte, e de Porto Seguro, ao sul. Em direção ao interior,

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o limite seria o Tratado de Tordesilhas5. Ao longo dos séculos, áreas que pertenciam à

capitania foram sendo doadas como sesmarias e transformadas em municípios. Em 1536,

foi fundada a Vila de São Jorge dos Ilhéus, no Morro de São Sebastião6. A vila só foi

elevada à categoria de cidade em 1881 (Castro 1981).

Com exceção de trabalhos críticos e recentes, as versões produzidas pelos

historiadores locais dão esse mesmo salto cronológico: da fundação da capitania

hereditária, no século XVI, passam ao século XIX, com a implantação da lavoura

cacaueira. Em geral, começa-se a história com os grupos indígenas que habitavam a região.

A forma como Vinháes (2001) e Castro (1981) expõem o tema pode ser vista como

exemplo de uma espécie de senso comum historiográfico local: Vinháes afirma que a

região da capitania de Ilhéus era habitada pelos “Tupiniquim (...), índios dóceis e de fácil

convívio, habitantes do litoral, e [pel]os Tapuia ou Jê (os temíveis Aimoré), que viviam no

interior” (2001:37). E, segundo Castro, os principais motivos do pouco desenvolvimento

da capitania, após a “prosperidade (...) nos primeiros anos” (1981: 28), foram os ataques do

“aimoré feroz e vingativo” (: 15) e da negligência de seus administradores. A partir daí, a

maior parte dos historiadores informa que a região sul da Bahia permaneceu praticamente

inabitada até meados do século XIX, quando levas de migrantes “humildes”, especialmente

vindos das regiões de Sergipe e do sertão baiano fugindo da seca, chegaram a Ilhéus,

derrubaram as matas e começaram a produzir riqueza e crescimento econômico para a

cidade com a implantação do cacau, ainda que dispusessem de poucos recursos e apenas de

seu próprio trabalho, isto é, não tinham condições econômicas para usar a mão-de-obra

escrava. Em linhas gerais, este é o mito de origem do cacau na região e sobre o qual não há

5 O Tratado de Tordesilhas foi assinado em 1494 na cidade espanhola de mesmo nome. Trata-se de umacordo estabelecido entre Espanha e Portugal que dividia as terras já conhecidas ou que viessem a serencontradas situadas a oeste da Europa entre esses dois países. Pelo acordo, uma linha imaginária situada a370 léguas a oeste de Cabo Verde seria o marco divisório. No Brasil, essa linha passava no que hoje é oEstado de Goiás.

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divergências significativas: Jorge Amado, Adonias Filho7 e historiadores repetem-no. Vê-

se, assim, que o mito de origem do cacau é também o mito de origem do “progresso”, da

“civilização” e de uma “identidade”8 de Ilhéus e de toda a região, cuja expansão ocorreu a

partir da derrubada da mata para o plantio do cacau. Como nas cidades fundadas por

imigrantes no sul do país a partir dos assentamentos de colonização, a imagem do

“desbravador” da mata, do “pioneiro” é a imagem de um herói9.

Segundo Mahony (1996), Antônio Pessoa da Costa e Silva, intendente de Ilhéus

entre 1912 e 1915 e importante líder de oposição às famílias tradicionais (no início do

século XX, a política em Ilhéus era dividida entre ‘pessoístas’ e ‘adamistas’, partidários de

Domingos Adami de Sá), descendente de migrantes que conseguiram se estabelecer como

cacauicultores, contratou um historiador para escrever a história de Ilhéus. Sua obra

(Barros 1915) – que já nasceu com dimensão de história oficial – ajuda a entender porque a

história de Ilhéus é repetida tal como resumida acima, ou seja, abordando praticamente

apenas o início da colonização e daí saltando para o final do século XIX e para o século

XX. Mahony argumenta que foi intenção de Pessoa deixar a elite açucareira à margem da

história; para isso, era necessário mostrar a cacauicultura como um fenômeno recente e que

nada tinha a ver com a elite oligárquica e escravocrata dos engenhos de açúcar – que estava

sendo acusada de ser responsável pelo atraso do país naquele momento – mas sim com

homens que enriqueceram por si mesmos, que eram “produtos de seus próprios esforços”,

“self-made men” (1996:495). Por isso, na obra de Barros, vê-se que

“metade do livro é dedicada à história colonial de Ilhéus e o restante

6 No Oiteiro de São Sebastião encontra-se o “marco de fundação” da cidade, inaugurado na comemoraçãodos 450 anos de fundação da Vila de São Jorge dos Ilhéus (Heine 1996:52).7 Ver Amado 1933; 1943; 1944; 1958; 1981; 1984 e 1991. Ver também Adonias Filho 1946; 1952, 1962;1968; 1971; 1975 e 1976, sendo esta última uma obra de caráter sociológico, não ficcional como as outras.8 Por ser um termo caro à antropologia, é preciso ressaltar que a palavra identidade está entre aspas porquepossui, nesse contexto, o mesmo estatuto das palavras progresso e civilização: são termos êmicos, ou seja,são utilizados tanto por historiadores quanto pelos atores sociais para exprimir uma determinada imagem desi. A palavra identidade enquanto instrumento analítico será debatida no quarto capítulo deste trabalho.9 Sobre “pioneirismo” como símbolo de “identidade” de grupos teuto-brasileiros, ver Seyferth 1999.

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endereçado às questões do século XX. (...) Pessoa queria mostrar queIlhéus tinha uma história tão antiga quanto Salvador e que pessoas deIlhéus tinham contribuído para a formação de um Brasilindependente” (1996:495-6).

Mahony continua sua argumentação mostrando que a primeira grande crise da

lavoura cacaueira, ocorrida no final da década de 20, e o domínio da economia regional

pelos exportadores, principalmente a partir de 1926, quando o cacau passou a ser

exportado pelo porto de Ilhéus (até então era levado para Salvador), uniam tanto pessoístas

quanto a elite tradicional na condição de produtores. Não era, pois, interessante que

estivessem divididos e nenhum esforço foi feito por parte dessa elite para negar a versão da

origem do cacau popularizada na época de Pessoa. Além disso, os primeiros dados oficiais

sobre a produção cacaueira legitimam tal versão: o Instituto de Cacau da Bahia, criado em

1931 por Getúlio Vargas para salvar os grandes produtores dando-lhes crédito, divulga

dados estatísticos a partir de 1890, fazendo parecer que não havia produção de cacau antes

dessa data, assim como latifúndios e riqueza (1996:499-503). Mahony aponta algumas

outras razões para a predominância do “mito pessoísta”: as evidências físicas dos grandes

engenhos de açúcar desapareceram; as famílias nobres do açúcar costumavam ostentar

riqueza em Salvador, ao contrário dos “novos ricos” do cacau que precisavam demonstrar

seu poderio econômico na cidade a fim de aspirar ao poder político10; e, por fim, as

grandes fazendas encontravam-se em regiões mais interiorizadas, ficando as pequenas

propriedades em lugares mais visíveis (:523).

A produção de uma história oficial da economia cacaueira em seu auge e que

valorizava o grupo que estava ocupando o poder naquele momento juntamente com a

ausência de uma contra-história, fosse anterior ou posterior, trouxe conseqüências

histórico-políticas que perduram até hoje. A “verdade da história”, o “saber histórico”, que

10 São desse período áureo da economia cacaueira os mais importantes prédios históricos da cidade, entreeles: Palácio Paranaguá, de 1907; Associação Comercial, de 1912; Palacete Misael Tavares, de 1922.

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“não é simplesmente um analisador ou um decifrador das forças, é um modificador”

(Foucault 1999:204), permanece influenciando as relações de força na cidade. Ainda que a

elite cacaueira (produtores e comerciantes) não tenha mais a mesma importância

econômica, ela ainda ocupa lugar de destaque no cenário político. Isso acontece porque o

cacau continua sendo o principal produto econômico do município, mesmo da região, e

fundamentalmente porque esse saber histórico continua sendo produzido e reproduzido.

Até mesmo quando se trata de buscar alternativas econômicas, como no caso do turismo,

esse “discurso de verdade” alimenta e é alimentado continuamente, como será

demonstrado adiante.

Para Mahony (1996), o mito de origem do cacau não é uma “mentira”, mas dá uma

“falsa impressão do passado” por focalizar uma “limitada porção da história pela exclusão

de outras” (:23). Ao contar o que seria a parte excluída da história pelo mito, a autora

pretende mostrar que antes da implantação da lavoura cacaueira como monocultura na

região, havia famílias ricas, proprietárias de latifúndios, que possuíam escravos, que

trabalhavam com o açúcar e com a madeira e, posteriormente, com o cacau. Essas famílias

começaram a investir no cacau antes de 1890 – Mahony afirma que por volta de 1860

quase todos os proprietários cultivavam cacau, ainda que não fosse muito (1996:271-2) – e

continuaram a dominar o cenário político, mesmo perdendo um pouco de sua força com a

entrada de novos atores, inicialmente com os “novos ricos” (como eram chamadas as

famílias de migrantes que se tornaram cacauicultores) (:485) e depois com os exportadores

de cacau no início do século XX.

Adonias Filhos (1976) concebe a existência de uma “civilização” ou de uma

“cultura” da região cacaueira que tem como uma de suas principais características ser

essencialmente democrática: democracia racial e democracia fundiária. Sobre a primeira,

que será melhor tratada adiante, o mito afirma que qualquer pessoa que tivesse seu pedaço

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de terra poderia vir a enriquecer e isso seria possível mesmo a escravos, ex-escravos e

mulatos vindos do interior nordestino. A lavoura cacaueira ofereceria, então, uma real

possibilidade de mobilidade social, mesmo para negros, fossem livres ou escravos. Essa

facilidade na aquisição da terra teria proporcionado a pulverização de pequenas

propriedades, daí advém a idéia de democracia fundiária. De acordo com os estudos de

Mahony (1998:98-101), ela pode mesmo ter ocorrido, mas apenas num primeiro momento.

A autora diz que a lei de terras estadual baiana, de 1897, transformava terras devolutas –

que em Ilhéus constituíam mais da metade das terras existentes no município – em

pequenas e médias propriedades, proibindo a formação de latifúndios. Mas já nos anos 10,

a maior parte dos pequenos produtores havia perdido suas terras, tanto em função das

dívidas contraídas junto a comerciantes e a grandes proprietários quanto porque não

tiveram recursos para obter o título da terra. Os custos muito altos para obtenção do título

de propriedade e a dificuldade de acompanhar o processo, que precisava ser remetido a

Salvador e podia acabar se perdendo11 no caminho, praticamente condenavam os pequenos

proprietários à perda da terra. A obtenção de créditos junto aos bancos oficiais só era

possível para quem tivesse o título da terra, o que excluía os pequenos proprietários. Estes,

por sua vez, não tinham outra saída senão tomar dinheiro emprestado aos grandes

proprietários e comerciantes, a juros exorbitantes. Então, não sendo possível pagar o

empréstimo, terminavam por perder a terra, única garantia de que podiam dispor (ou até

mesmo a vida, segundo um certo senso comum histórico sobre os tempos “áureos” do

cacau). Como ressaltam Garcez e Freitas, “esse foi, inclusive, um dos processos mais

eficazes de concentração das terras do cacau.” (1977:26). Mahony (1998) apresenta dados

do Censo de 1920 que mostram menos donos do que propriedades, o que faz constatar que,

11 Mahony (1998) conta, por exemplo, que em 1912 vários processos de requisição de propriedade foramqueimados no Palácio do Governo da Bahia, em Salvador, mas a grande maioria dos pequenos proprietários,em geral analfabetos, não foram avisados que deveriam requerer novamente seus títulos (:102).

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embora ainda não houvesse muitos latifúndios, uma mesma pessoa poderia possuir várias

pequenas e médias propriedades (:101).

A tese da democracia fundiária como característica do tipo de economia produzida

pelo cacau acaba por ser defendida, pelo menos nesse primeiro período de implantação da

lavoura cacaueira, até mesmo por autores que se colocam em oposição no campo

intelectual. Adonias Filho e Jorge Amado, só para citar os mais famosos escritores da

região e os mais representativos de cada um dos lados, compartilham do senso comum

sobre a história local de que os primeiros cacauicultores eram de “origem humilde”

(expressão muito utilizada por autores, mas também por moradores de Ilhéus) e que os

latifúndios começaram a se formar somente depois de 1890. Sua diferença está no que

seria o momento seguinte à implantação do cacau, sobre que “tipo de sociedade” resultou

daí.

Adonias Filho defende que a “civilização do cacau”12 é essencialmente democrática

e, conseqüentemente, progressista (Mahony 1996:5-6). Nas poucas páginas de um capítulo

bastante revelador de suas teses intitulado “O Democratismo” (1976:77-80), o autor nega a

violência atribuída aos coronéis do cacau, assim como nega a prática da grilagem. Ele

distingue o “coronel do cacau” do “coronel do sertão nordestino” – este é violento e

desrespeita as leis. Adonias Filho insiste que o fazendeiro de cacau luta por terras no

interior do sistema judiciário, não com violência. Por isso, o advogado “é o grande e

indispensável colaborador” do cacauicultor13. A violência é, na verdade, praticada pelo

jagunço, “um subtipo social”, “mercenário”; “é um tipo secundário e obscuro no conjunto

de seus [do coronel] empregados” (:79). Para Adonias Filho, o coronel contratava o

12 Para Adonias Filho, essa “civilização do cacau” existe em função de uma “uniformidade ecológica” daregião, de uma estrutura social e de uma organização econômica próprias que fornecem “normas,convivências, identidades e fins que asseguram regionalmente a integração” (1976:17).13 Garcez e Freitas (1977:77) comentam sobre a influência dos “coronéis” no poder judiciário através dosadvogados, que constituíam uma espécie de “acessório esclarecido ao lado da força armada”, a “jagunçada”.

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jagunço para cuidar de questões morais, referentes a um “código de honra”, que não

possuíam relação com a terra (:78).

Já para Jorge Amado, o ‘tipo de sociedade’ forjado pela economia cacaueira em seu

momento posterior à implantação da cultura não tem nada de democrático. Essa economia

criou uma elite de homens rudes, humildes, mas também violentos e exploradores; que

tratavam os trabalhadores das fazendas como escravos e tomavam terras dos pequenos

agricultores, fosse pela violência direta ou pela corrupção do governo e do sistema

judiciário. Em suas obras sobre a região cacaueira, o autor afirma que antes de chegarem

os exportadores – os capitalistas estrangeiros –, a economia do cacau era baseada no

sistema feudal. Seus livros mostram vários aspectos dessa versão da história de Ilhéus: as

lutas violentas pela terra e a expropriação dos pequenos agricultores; a exploração dos

trabalhadores; a perda de terras dos produtores para os exportadores; a relação dos

fazendeiros com o poder político; a prepotência da elite local que se julga descendente da

aristocracia...

Para Mahony (1996:518), a versão de Adonias Filho predomina sobre a de Jorge

Amado. Certamente isso ocorre entre os historiadores mais tradicionais e nas versões da

elite local, que ainda hoje é atuante política e economicamente e continua reproduzindo sua

visão sobre a cidade de Ilhéus. Dois exemplos um tanto exóticos dessa visão de mundo da

elite (ou de seus descendentes) ocorreram durante uma mesa-redonda intitulada “A

escravidão em Ilhéus: do açúcar ao cacau”. Essa atividade era parte do “Seminário novas

dimensões da história de Ilhéus”, realizado na semana de comemorações dos 466 anos da

cidade em 200014. Da mesa-redonda participaram os historiadores Mary Ann Mahony e

André Rosa Ribeiro, professor da UESC, e ambos tinham o mesmo propósito: mostrar a

14 O seminário foi realizado nos dias 30/06 e 01/07 no Centro de Convenções Luiz Eduardo Magalhães, comoparte das atividades de inauguração do espaço. A título de ilustração, convém informar que o auditório onde

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ocorrência de escravidão no início da economia cacaueira. Para tal, um dos recursos

utilizados por Mahony em sua exposição foi a apresentação de documentos sobre a morte

de escravos em cativeiro. Ao final da palestra, uma senhora disse que “nem todos os donos

de escravos eram tão perversos” e que sabia que seus antepassados “eram bons, eram

amigos de seus escravos”. O outro exemplo também foi gerado a partir da fala de Mahony.

Além de vasto material de arquivo, a historiadora recorreu a Jorge Amado para provar que

havia escravos e citou uma passagem em que o autor conta que a filha de um “coronel” do

cacau com uma escrava vivia na sede da fazenda, embora não fosse tratada como filha,

mas como “agregada”. Se Mahony recorreu a Jorge Amado por julgar que seus relatos,

embora fictícios, possuem a qualidade de informar sobre uma possível realidade dos

acontecimentos na época, uma senhora que estava na audiência, misturando ficção e

realidade, identificou-se como neta do coronel citado e perguntou se “um livro de Jorge

Amado pode ser considerado verdadeiro”; negou que seu avô tivesse feito tal coisa [ter

uma filha ilegítima com uma escrava] e, dirigindo-se à platéia, disse: “Jorge Amado tinha

que escrever essas coisas para que vocês comprassem os livros dele”. Para completar a

situação de mistura entre ficção e realidade, estava na platéia o Sr. Sá Barreto15, chamado

em Ilhéus como “o último dos coronéis”, também amigo e personagem de Jorge Amado.

Apesar da visão de Adonias Filho predominar entre os intelectuais mais antigos e a

elite, há outros setores que explicam a conjuntura político-socioeconômica atual usando

argumentos semelhantes àqueles de Jorge Amado – adotados pela esquerda já nos anos 40

e 50 (Mahony 1996:512-3), na qual o autor militava.

Membros de movimentos de trabalhadores rurais associam o retardo do

movimento de luta pela reforma agrária nessa região, quando comparada com outras, à

o evento foi realizado chama-se “Nacib”; há também as salas “Gabriela”, “Tonico Bastos” e novamente“Nacib”, todos personagens de Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado.15 Falecido em 2003.

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lavoura cacaueira em função do baixo índice de concentração fundiária que ela gerou,

também quando comparado com índices de outras regiões. O grande número de pequenas e

médias propriedades, ainda que várias delas pertencentes a um mesmo proprietário, e a não

regularização fundiária de boa parte do território (que permitia aos grandes proprietários

tomarem posse das terras dos pequenos, mas não permitia a configuração legal dessa

situação), faz com que o índice de concentração fundiária seja baixo ainda hoje. Além

disso, militantes de esquerda costumam dizer que a dificuldade de forjar alternativas

econômicas para o cacau é conseqüência da “cultura” da “exploração” e do “trabalho

fácil”, originada na relação de expropriação que a elite cacaueira sempre teve com a terra:

uma vez implantado, o cacaual não requer muitos cuidados, o que fazia, segundo diz o

senso comum na região, com que os proprietários – filhos e netos dos primeiros produtores

– fossem morar nos grandes centros urbanos e deixassem o cacau produzindo nas mãos de

empregados. Essa “cultura”, ainda de acordo com o que pode ser chamado de senso

comum crítico, haja vista que é largamente repetido, também seria responsável pelo

tratamento qualificado como “preconceituoso”, “explorador”, “humilhante” que a elite

costuma dispensar aos seus empregados e à população em geral.

É comum na região ouvir relatos de pessoas mais idosas, especialmente daquelas

que trabalharam em roças de cacau, sobre as péssimas condições de trabalho, até mesmo a

existência de trabalho escravo já no século XX, e mortes de trabalhadores e pequenos

proprietários. Costuma-se dizer que a atual crise do cacau é uma “resposta da terra” ou “da

natureza”, dependendo da versão, à “exploração” e a “todo o sangue derramado” nos

tempos áureos da economia cacaueira.

Esses relatos de ex-trabalhadores que apresentam o outro lado da mesma ‘realidade

histórica’, cada vez mais recolhidos e trabalhados em função da presença de uma

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112

universidade pública na região16, assim como a popularização ainda maior da literatura de

Jorge Amado na cidade, alimentam essa versão contrária à da elite. Assim, vê-se que as

retóricas sobre o passado estão em disputa constante. Em Ilhéus, o turismo tem um papel

central nessa disputa, pois, como diz Menezes (1998):

“A definição do que é ou não uma atração turística na cidade, passaentre outras coisas por lutas pela demarcação do passado oficial deIlhéus, onde o turismo vem somar-se a retóricas cumulativas(produção intelectual local, literatura, telenovelas) pautadas naconstrução da objetificação de uma versão do passado da cidadeestreitamente ligada à atribuição dada a certas famílias de agentescentrais na construção da ‘história de Ilhéus’” (:80).

Sobre essa disputa de versões, cabem três observações. A primeira é que a obra de

Adonias Filho mais utilizada é Sul da Bahia: Chão de Cacau, de 1976, ou seja,

relativamente recente e que teria sido escrita como uma resposta à telenovela Gabriela17,

exibida em 1975.

As segunda e terceira observações dizem respeito a quem produz turismo em

Ilhéus. Por um lado há os proprietários ou descendentes de proprietários de fazendas de

cacau que investem no setor de turismo em Ilhéus – de acordo com informações obtidas

por Menezes junto a funcionários da Ilheustur (empresa pública municipal de turismo),

eles constituem cerca de 50% do empresariado desse setor (1998:79). Por outro lado, há a

atual política de turismo da prefeitura que, especialmente nos últimos anos, vem

concentrando sua estratégia de promoção da cidade na pessoa e nas obras de Jorge Amado.

A pesquisa realizada por Menezes ocorreu em 1997, primeiro ano de governo do

segundo mandato (1997-2000) do atual prefeito, agora em sua terceira gestão (2001-2004).

O uso do nome de Jorge Amado como principal atração turística de Ilhéus estava só

16 A UESC – Universidade Estadual de Santa Cruz –, situada na Rodovia Ilhéus-Itabuna, investe grandesesforços no estudo da região cacaueira. Os departamentos de História e de Letras, por exemplo, possuemdisciplinas na graduação e cursos de pós-graduação voltados para o estudo regional.17 Baseada na obra Gabriela Cravo e Canela, de Jorge Amado (1958).

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113

começando18. Naquele ano, houve a inauguração da Casa de Jorge Amado e sua última

visita a Ilhéus, justamente nessa ocasião. Porém, ao longo dos anos seguintes, muitos

outros investimentos foram realizados19. Se, por um lado, o nome de Jorge Amado ajuda a

fortalecer o turismo nas fazendas de cacau por ser a economia cacaueira o maior mote de

sua literatura para essa região, por outro essa retórica turística participa da disputa de

versões históricas observada anteriormente e municia os demais setores sociais. É possível

supor que, para além de motivações de ordem técnica, há dois fatores que, de certa forma,

permitem o investimento do governo municipal nessa estratégia. O primeiro é que alguns

dos mais importantes produtores de políticas de turismo dos últimos anos são pessoas de

fora da cidade, não envolvidas, portanto, com as famílias tradicionais ilheenses. O segundo

fator refere-se à imagem do atual prefeito, formada a partir da idéia de oposição à chamada

política tradicional de Ilhéus.

Goldman (2001) mostra com números o que já foi dito aqui sobre a influência

política dos produtores de cacau na cidade: “até 1976, dos 24 intendentes e prefeitos de

Ilhéus dezenove podem ser encontrados entre os principais fazendeiros e comerciantes

locais” (:60). Esse foi o ano em que Jabes Ribeiro, atual prefeito de Ilhéus, foi candidato a

vice-prefeito com apenas 23 anos. Sua chapa não foi eleita (o governo municipal foi

assumido por Antônio Olímpio), mas ele ocupou a Secretaria de Educação. Candidatou-se

novamente em 1982 e venceu as eleições. Goldman chama a atenção para o fato de que

18 Isso não significa que Jorge Amado não fosse importante para Ilhéus anteriormente. É provável que sua“presença” na cidade tenha se intensificado a partir da gravação da telenovela Gabriela, em 1975. Já em1983, primeiro ano do primeiro mandato de Jabes Ribeiro, foi fundado o “Circo Folias da Gabriela”, umalona para a apresentação de espetáculos populares. Foi também em 1988, último ano da primeira gestão deJabes, que Ilhéus comemorou o aniversário de 30 anos do romance Gabriela, Cravo e Canela com várioseventos.19 Entre outros exemplos, podemos citar a fachada do Bataclan, famoso bordel de Gabriela... que foireconstruída (mas o resto do prédio não existe); o bar Vesúvio que foi reformado tal como era na épocaretratada no romance; e o “circuito turístico cultural” chamado “Quarteirão Jorge Amado”, criado pelaIlheustur e pela Fundação Cultural. Segundo consta de seu folheto de propaganda, ele é dividido em doisroteiros, o “Cravo” e o “Canela”, onde se pode “fazer uma viagem ao tempo dos coronéis, revivendo ashistórias e as fantasias de personagens e lugares”. Por fim, o slogan da Ilheustur em todos os eventosturísticos na cidade no ano de 2001 era “Vejo você na terra de Jorge Amado”.

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Jabes é filho de um motorista, portanto, “não se adequava ao perfil histórico dos principais

políticos locais”, não estando vinculado às famílias e aos líderes políticos tradicionais da

economia cacaueira. Além disso, sua campanha visou mostrar seu afastamento em relação

à política que era realizada em Ilhéus através de termos como “mudança”, “renovação”,

“povo” (:61). A relação que Jabes tem com a política hoje é certamente bem diferente

daquela de 82. No início de sua carreira política, ele foi membro do chamado “MDB

autêntico”, partido que agregava parte da esquerda ainda durante a ditadura e que se

transformou posteriormente no PMDB, onde Jabes permaneceu por algum tempo, até

transferir-se para o PSDB (Partido Social Democrata Brasileiro), partido pelo qual se

elegeu em 1996 e se reelegeu em 2000, e hoje é filiado ao PFL (Partido da Frente Liberal),

partido de Antônio Carlos Magalhães, maior liderança política da direita no Estado da

Bahia. Jabes Ribeiro tornou-se uma importante liderança regional, é presidente da

AMURC (Associação dos Municípios da Região Cacaueira) e agrega em seu grupo

político representantes das famílias do cacau. No entanto, ainda hoje a imagem cultivada

em torno do nome de Jabes é a de alguém que tem “origem humilde” e que “deu certo”;

alguém “de fora” em relação à elite dos coronéis do cacau que conseguiu “vencer na

política” como oposição a ela.

Histórias de Ilhéus – economia cacaueira

Os historiadores apresentam dados muito diferentes sobre a data da implantação do

cacau na região de Ilhéus. Só Vinháes (2001:213-214) cita quatro versões: na primeira, o

primeiro pé de cacau teria sido plantado “na margem direita do Rio Pardo”, hoje município

de Canavieiras, em 1746; na segunda, citando Campos (1981), ele diz que os primeiros

cacaueiros também podem ter sido plantados em 1789; numa terceira versão, a economia

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115

do cacau teria sido implantada por volta de 1780 e, por fim, na quarta, cita os anos de 1755

a 1760 como provável período de início da plantação.

Mahony (1996) não cita uma data, mas apresenta indícios de que a lavoura

cacaueira já tinha alguma importância na primeira metade do século XIX. Ela cita, por

exemplo, uma obra de 1838 que fazia uma descrição do melhor método para o plantio do

cacau (:218). Ribeiro (2001:61) é mais contundente e afirma que “a partir de 1835, o cacau

tomou parte regular nas exportações anuais da província e as exportações dobraram ou

triplicaram a cada década entre 1830 e 1890”. Garcez e Freitas informam que em 1834 o

cacau já aparecia como produto de exportação, embora ainda com crescimento bastante

moderado, e chegam a dizer que naquele ano foram exportadas 26,5 toneladas de cacau

(1979:21). De qualquer forma, o que importa registrar é que o cacau já era o principal

produto econômico da região no fim do século XIX, sendo cultivado em, praticamente,

todas as fazendas (Mahony 1996:272-275).

A explosão da lavoura cacaueira ocorreu na última década do século XIX e na

primeira do XX. Segundo Mahony, é possível dizer que quase todas as fazendas, mesmo as

menores, possuíam no mínimo mil pés de cacau enquanto as maiores poderiam chegar a ter

duzentos mil pés (1996:275-6). Em 1910, Ilhéus já era o segundo maior produtor de cacau

do mundo (Vinháes 2001:214).

Em 1920, havia mais de trezentos mil hectares de propriedades agrícolas nos

municípios de Ilhéus e Itabuna (emancipado em 1912) cobertos com pés de cacau (Mahony

1998:94). O cacau teve sua cotação mais elevada em 1926. Porém, no final da década de

20, tem lugar a primeira grande crise da economia cacaueira: entre 1928 e 1931, os preços

despencaram, assim como a taxa de emprego na região. Atendendo aos apelos dos

fazendeiros, em 1931, o presidente Getúlio Vargas criou o Instituto de Cacau da Bahia

(ICB) para perdoar dívidas e dar mais crédito aos grandes produtores, pois só era permitida

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116

a participação no programa de crédito a quem possuía o título de propriedade (Mahony

1996:499-502) que, como já foi dito, custava caro e só os grandes adquiriam.

A segunda grande crise do cacau aconteceu na metade da década de 50, fazendo o

presidente Juscelino Kubitschek criar a Comissão Executiva do Plano de Recuperação

Econômico-Rural da Lavoura Cacaueira (CEPLAC), com objetivos práticos, chamados de

‘emergenciais’ (cf. Garcez e Freitas 1979:44), semelhantes aos do ICB: perdoar dívidas e

dar financiamento aos cacauicultores. A CEPLAC, que em sua criação tinha um caráter

transitório – note-se que se tratava de uma ‘Comissão Executiva’ para implantar um ‘Plano

de Recuperação...’ – em 1963, passou a fornecer também assistência técnica aos

produtores, objetivando o aprimoramento das áreas plantadas, bem como a instalação de

infra-estrutura apropriada ao transporte, beneficiamento e estocagem do cacau. O órgão

passou também a atuar na área de pesquisa e na década de 90 criou e implementou a

biofábrica de clones de cacau: tratam-se de plantas modificadas geneticamente e que se

tornam capazes de resistir ao ataque da vassoura-de-bruxa, fungo que provocou a última e

mais forte crise da lavoura cacaueira, iniciada na década de 80 e que perdura até o

momento.

Desde a década de 30 do século passado, portanto, a lavoura cacaueira vem

sofrendo sucessivas crises e retomadas de crescimento. É importante observar que o cacau

sempre foi uma “atividade econômica monocultora de exportação”, ou seja, sempre esteve,

e permanece assim, vulnerável ao mercado externo, seja ele consumidor (o emprego de

uma quantidade cada vez menor de cacau na produção do chocolate provocou a diminuição

da demanda) ou produtor (a entrada dos países africanos na concorrência foi motivo de

grande desestabilização na economia cacaueira brasileira) e até mesmo em relação ao

câmbio (flutuação da cotação do dólar).

Page 118: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

117

Na década de 80, quando teve início a última crise com o advento da vassoura-de-

bruxa, o cacau ainda era a cultura mais lucrativa da região. Nessa época a produção era

subsidiada pelo governo federal, o que fazia com que, de acordo com o depoimento de um

técnico da CEPLAC, o cacau fosse plantado “até em cima de pedra”, empregando cerca de

trezentos mil trabalhadores assalariados. Este é o mesmo número de desempregados na

região cacaueira segundo uma nota do jornal O Globo de 08/03/99 (Vinháes 2001:232). O

depoimento do mesmo técnico dá um outro dado revelador: grandes fazendas produtoras

de até vinte mil arrobas de cacau por ano no início da década de 80, hoje20 produzem

apenas mil arrobas e, em alguns casos extremos, as fazendas foram abandonadas por seus

proprietários que mantêm somente um ou alguns poucos trabalhadores para “tomar conta”.

Esse depoimento é reforçado pelos números: em 1990, foram exportadas 211.979

toneladas de cacau e produtos derivados21; em 2000, foram 61.454, mas o pior ano foi o de

1997, com apenas 53.855 toneladas exportadas22.

É preciso ressaltar que os desempregados da crise não se restringem aos

trabalhadores das fazendas, pois a maior parte das atividades econômicas dos centros

urbanos está diretamente relacionada à produção do cacau. O depoimento de um dirigente

de um bloco afro-cultural é bastante ilustrativo da importância da lavoura cacaueira na vida

da grande maioria dos ilheenses:

“Eu nunca tive um pé de cacau plantado em terreno algum, massempre dependi do cacau. Porque a gente vivia da lavoura. Era porcausa da lavoura que o fazendeiro gastava, empregava, construía. Anossa mão-de-obra era utilizada”.

Apesar de haver uma espécie de senso comum no município que condena que a

economia continue baseada na monocultura, já que “não se pode confiar no cacau”, ele

20 Depoimento concedido no ano 2000.21 Em seu trabalho de 1979, portanto anterior à disseminação da praga, Garcez e Freitas informam que,naquele momento, a política do governo com relação ao cacau visava expandir muito a produção nacional eprevia que esta seria de setecentas mil toneladas em 1990 (:100).

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ainda é o principal produto econômico. De acordo com os dados da Produção Agrícola

Municipal 1999 do IBGE, em termos de lavoura permanente, no ano de 1997 (ano de

referência para o dado) o cacau tinha a maior quantidade de área plantada, com 60.952

hectares; o segundo produto era a borracha, com apenas 1.528 hectares e, em terceiro

lugar, ficava o coco-da-baía, com 148 hectares. Em 2000, segundo dados apresentados no

site do governo da Bahia, a área plantada de cacau em todo o Estado foi de 608 mil

hectares, tendo Ilhéus a maior participação, com cerca de 70 mil hectares e sendo também

o maior produtor, com 10.137 toneladas23. Um outro dado relevante é quanto à mão-de-

obra empregada na lavoura. No ano de 2000, o cacau foi o terceiro produto da Bahia em

emprego de trabalhadores (128.581,88), ficando atrás apenas do feijão (225.889,15) e da

mandioca (134.923,23)24. Considerando que estes dois últimos produtos são cultivados em

todo o Estado, diferentemente do cacau que é plantado apenas nessa região, pode-se ter

uma idéia do que representa seu declínio para os municípios que sempre o tiveram como

única fonte de renda. Do ano de 1999 para 2000, o cacau empregou cerca de dez mil

pessoas a menos25, o que significa dizer, grosso modo, que foram mais dez mil

desempregados produzidos num curtíssimo espaço de tempo e localizados numa única

região, aumentando substancialmente o caos social já existente principalmente em

municípios como Ilhéus e Itabuna, que recebem esse contingente de pessoas em busca de

oportunidades de sobrevivência.

Desde 1995, o governo federal criou o Programa de Recuperação da Lavoura

Cacaueira para financiar o investimento dos produtores na substituição dos cacaueiros

22 Dados retirados da tabela “Quantidade das exportações de cacau e derivados, Bahia – 1989-2000”. Fonte:SECEX/MINIFAZ/PROMO (www.sei.ba.gov.br).23 Dados da tabela “Área plantada e colhida, quantidade produzida, rendimento médio e valor das principaisculturas permanentes, segundo os municípios, Bahia – 2000”. Fonte: PAM/IBGE (www.sei.ba.gov.br).Interessante notar que o segundo município maior produtor de cacau foi Itamaraju, com metade da produçãode Ilhéus plantada numa área equivalente a menos de um quarto da utilizada nesse município.24 Dados retirados da tabela “Ocupação da mão-de-obra agrícola em Equivalentes-Homens-Ano (EHA),segundo as culturas pesquisadas – Bahia”. Fonte: SEI/EBDA/SEADE (www.sei.ba.gov.br).

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atacados pela vassoura-de-bruxa pelas plantas clonadas. Poucos fazendeiros receberam

esse auxílio e a maior parte tornou-se inadimplente em função dos juros altos e dos prazos

muito curtos, de acordo com recorrentes manifestos, editoriais e matérias dos jornais

locais. No ano de 2001, o então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso,

esteve em Ilhéus para visitar a CEPLAC e anunciar uma nova liberação de recursos da

ordem de quinhentos milhões de reais pelos próximos três anos, sendo que cerca de cento

e quarenta milhões seriam liberados imediatamente26. Este novo auxílio, a perspectiva da

melhor safra de cacau desde o agravamento da crise em meados da década de 90

(“Produtores comemoram aumento na produção de cacau” – Jornal Agora, 28/07 a

03/08/01) e uma mostra da representatividade da cidade de Ilhéus no mercado

internacional sediando a 64a Assembléia Geral da Aliança dos Países Produtores de Cacau

(Jornal Agora, 29/09 a 05/10/01), fizeram com que ressurgisse um clima de “esperança” na

economia cacaueira. Ela ainda é apontada como o “futuro” da cidade (“Jabes: o futuro de

Ilhéus é cacau, turismo e informática” – Jornal Agora, 22 a 28/09/01). Além de sua

importância econômica (com movimento anual de cerca de 1,5 bilhão de dólares27), o

apelo do cacau é também ecológico, pois por necessitar de sombra em seu cultivo, ele é

plantado sob a mata. Alguns ambientalistas atribuem a esse fator que 8% de Mata Atlântica

estejam sendo preservados na região. Eles acreditam que o declínio do cacau e o

crescimento da cafeicultura e da pecuária, culturas que chegaram a ser apontadas como

alternativas ao cacau, poderiam fazer o desmatamento ganhar proporções gigantescas,

passando a ameaçar as reservas e os muitos mananciais existentes na região.

25 Foram 138.068,42 empregados segundo tabela citada na nota anterior.26 Jornal A Região, 26/08/01 (“Fernando Henrique Cardoso cria Conselho do Agronegócio do Cacau”);23/09/01 (“Representação da lavoura é ampliada no Agronegócio do Cacau”). Jornal Agora, 14 a 20/07/01(“Lançamento do novo programa do cacau termina com pancadaria na Uesc”); 25 a 31/08/01 (“FHC anuncianovo plano para o cacau e faz discurso conciliatório”); Jornal do Brasil, 25/08/01 (“FH: ‘Engoli muitos saposna Bahia’ – Presidente dá alfinetada em ACM ao anunciar diante de senadores carlistas plano de recuperaçãoda lavoura de cacau”).27 Jornal Agora, 28/07 a 03/08/01.

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120

Histórias de Ilhéus – população e cor

O último Censo Demográfico do IBGE, realizado em 2000, revela que habitam

222.127 pessoas em Ilhéus, cerca de vinte mil habitantes a menos do que mostrou a

Contagem Populacional de 1996, também do IBGE. Os números condizem com a situação

da crise econômica na região: entre os censos de 1980 e 1991, percebe-se um aumento

expressivo da população de Ilhéus (cerca de 59%). Considerando-se que a crise da lavoura

cacaueira tem início na década de 80, é possível supor que esse crescimento populacional

já seja reflexo do desemprego provocado pela crise, o que fez com que a população dos

municípios vizinhos fosse buscar em Ilhéus e em Itabuna alguma alternativa de

sobrevivência. Entre 1980 e 1991, Itabuna também teve um aumento substantivo no

número de habitantes, embora não tão grande quanto o de Ilhéus. A Contagem

Populacional de 1996 permite observar que o movimento de crescimento populacional

perdurou até meados da década e que, posteriormente, houve um movimento de retração.

Não fosse isso, poder-se-ia pensar que a população ficou estabilizada nesse período pelo

número bastante próximo que o Censo de 2000 apresenta em relação ao de 1991. A

variação é de apenas –0,09%.

Observando-se os números referentes ao total da população de Ilhéus por situação

de domicílio, percebe-se que houve entre os censos de 1980 e 1991 um movimento de

crescimento da população rural em torno de 50%. Dos doze municípios com mais de cem

mil habitantes existentes no Estado da Bahia atualmente, Ilhéus é o que apresenta o menor

grau de urbanização (72,99%), possuindo, ainda, uma zona rural bastante expressiva. A

observação dos números de habitantes dos censos em municípios vizinhos sugere que

houve uma migração de sua população para Ilhéus, até mais do que para Itabuna, em

busca, primeiramente, de trabalho ainda nas roças de cacau – daí o aumento da população

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rural – e depois na cidade. O decréscimo de população também de Ilhéus entre 1996 e

2000 aponta para a ausência de alternativas econômicas e o crescimento que se verifica no

município de Itabuna28 sugere que as pessoas foram buscar emprego no comércio, já que a

zona rural desse município é praticamente inexistente (o grau de urbanização em Itabuna é

de 97,21%). Deve-se observar ainda que das quinze regiões econômicas do Estado, apenas

duas tiveram decréscimo populacional entre 1991 e 2000, sendo uma delas a região

denominada “Litoral Sul”29, que coincide em parte com o que é chamado pelo IBGE de

Microrregião Ilhéus-Itabuna e com o que é entendido como região cacaueira. A taxa de

crescimento populacional da região Litoral Sul é de - 0,18 e ela é formada por 53

municípios, dos quais 33 perderam população nesse período30.

Os números disponíveis sobre cor/raça para Ilhéus ainda são do Censo

Demográfico de 199131. Segundo os critérios utilizados pelo próprio instituto (“cor ou

raça” “branca”, “preta”, “parda”, “amarela” e “indígena”), a soma das pessoas que se

declararam de “cor ou raça” “parda” ou “preta” em Ilhéus corresponde a 85% da

população, o que faz dela uma cidade majoritariamente negra. Embora este seja um

procedimento comum, adotado inclusive oficialmente pelo IBGE, pelo menos na década de

80, para análise e publicação de índices socioeconômicos (Andrews 1998:382-3), poder-se-

ia argumentar que o recurso à soma desses critérios falseia a realidade uma vez que é

sabido que o termo “parda” abriga as mais variadas designações de cor/raça, que poderiam,

inclusive, tender a ser agrupadas na categoria “branca” mais do que na categoria “preta”,

caso “parda” fosse extinta do censo. Essa hipótese é derivada da constatação de Harris et

28 Número de habitantes em Itabuna: 1980: 153.342; 1991: 185.277; 1996: 183.403; 2000: 196.675. Fonte:Censo Demográfico – IBGE, 2000.29 Esta é uma forma de divisão geográfica empregada pelo site do governo da Bahia (www.sei.ba.gov.br). Aoutra região a perder população é Piemonte da Diamantina.30 Dados retirados da tabela “Taxa de Crescimento Populacional – 1991-2000”. Fonte: Censos Demográficos1991 e 2000, IBGE in www.sei.ba.gov.br.31 Os números produzidos pelo Censo Demográfico 2000 ainda não foram disponibilizados para consultapública em seu site.

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122

alli (1993), a partir da análise de uma pesquisa realizada pelo próprio Marvin Harris na

década de 60, de que as pessoas que se autoclassificam como morenas quando a opção é

livre, preferem ser abrigadas sob a categoria “branca” no questionário fechado formado

somente pelas opções oferecidas pelo IBGE. Telles diz o mesmo: “(...) a pessoa próxima a

uma fronteira cromática tende a ‘passar’ para a categoria mais clara” (1993:6). Assim,

somar os números referentes às categorias “parda” e “preta” para mostrar que a grande

maioria da população ilheense é negra ou afrodescendente poderia não ser considerado

legítimo.

Saber onde passa a “linha de cor” – ou dizer se ela existe ou não – no Brasil é

problema antigo nos estudos sobre relações raciais32, assim como determinar quem é negro

e a discussão a respeito dos critérios censitários – questões relacionadas entre si e

absolutamente atuais, principalmente em função da recente adoção de políticas de ação

afirmativa por algumas instituições universitárias e da polêmica então gerada. Estes são

problemas muito complexos e não é objetivo deste trabalho tratá-los profundamente,

contudo, dado que a composição racial é um aspecto importante da configuração

sociológica de Ilhéus, o assunto merece algumas rápidas considerações.

Os problemas referentes ao uso dos critérios censitários já foram amplamente

discutidos. Inúmeros trabalhos acadêmicos33 e matérias jornalísticas34 apontam que o

sistema brasileiro de classificação da população segundo cor/raça é extremamente

polêmico. É famoso o resultado de uma experiência realizada pelo próprio IBGE na

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) em 1976: a partir da pergunta “Qual

32 Para uma descrição sucinta da questão, ver Andrews 1998:379-392 (Apêndice B: “Terminologia RacialBrasileira”).33 Ver, entre outros, Byrne e Forline 1997; Harris 1990; 1993; Maggie 1996; Posada 1989; Silva 1996; Telles1995.34 Por exemplo: “Racismo Cordial” – Suplemento Especial da Folha de São Paulo, 25/06/95; “Cores e nomes– IBGE testa este ano novas categorias de cor seguindo onda politicamente correta” – Folha de São Paulo,02/11/97; “A invisibilidade no Censo – Movimento Negro contesta contagem do censo, que registra 45% de‘pardos’ e 50% de brancos no caldeirão racial brasileiro” – Jornal do Brasil, 17/05/98.

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123

a cor do(a) senhor(a)?”, sem a apresentação prévia de opções, foram registradas 135

“cores” diferentes35. O trabalho de Marvin Harris citado acima também é importante e já

foi analisado diversas vezes: através da apresentação de fotos de pessoas com diferentes

características físicas para cem ‘respondentes’, ele conseguiu detectar 492 termos para

designar “raça-cor”36 no Brasil.

É comum o argumento de que essa “confusão” em relação à classificação racial

ocorre no Brasil em função de não haver aqui um sistema de classificação baseado na

ancestralidade, na regra de hipodescendência, como nos Estados Unidos, que é sempre o

outro modelo da comparação. Um argumento complementar ao anterior refere-se à

utilização de uma forma de abordagem simultaneamente êmica e ética nos censos

demográficos do IBGE, qual seja: é aceita a autodeclaração do respondente, mas esta é

feita a partir da escolha de um dos itens preestabelecidos. Assim, a pessoa deve se

enquadrar numa das cores/raças propostas. A novidade da pesquisa do PNAD de 1976 foi

o uso, primeiramente, de uma abordagem exclusivamente êmica – que gerou as 135

“cores” – e, em seguida, o pedido para que essas mesmas pessoas optassem por um dos

termos de classificação, tal qual a abordagem do IBGE nos censos. Como no modelo

americano a abordagem é somente ética – a ascendência determina a “raça” –, é

supostamente mais objetivo designar alguém como negro ou não, aliás, como branco ou

não-branco, já que o que determina a ancestralidade africana é “qualquer grau visível”

dela, mesmo quando há evidências de ancestralidade européia também (Andrews

1998:379).

35 Essas “cores” estão reproduzidas no suplemento especial da Folha de São Paulo, já citado, eposteriormente em Turra e Ventura 1995.36 No original “race-color”. Em nota, Harris et alli esclarecem que preferem o termo usado desta formaporque nem raça nem cor designam exatamente o que se pensa no Brasil: características fenotípicasdiferentes são utilizadas como determinantes, como a cor da pele, mas também o tipo de cabelo, o nariz ou oslábios (Harris et alli 1993:460).

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124

Sabe-se, entretanto, que mesmo nos Estados Unidos, essa suposta objetividade só

funciona em relação a instrumentos – também eles tidos por objetivos – como o censo.

Pétonnet (1986), por exemplo, complexifica a questão ao mostrar que a classificação

dicotômica negro/branco não dá conta da realidade de um grupo de professores de classe

média onde a existência de ‘mestiçagens’ no que tange à cor da pele assim como a gostos e

hábitos culturais torna a relação entre cor da pele e cultura muito menos óbvia do que a

antropologia ou a sociologia costumam afirmar, o que faz com que ser negro ou ser branco

– já que são as categorias disponíveis – seja muito mais uma escolha a partir de histórias

individuais do que por dados objetivos.

O conhecimento gerado pelo censo, instrumento metodológico da demografia é,

essencialmente, de reificação. É possível entender melhor sua natureza reificadora

pensando a demografia como fruto da biopolítica, nome pelo qual Foucault designa a nova

tecnologia de poder instalada no século XVIII, que, por sua vez, pode ser melhor

compreendida se comparada à “técnica disciplinar” ou “disciplina”, também tecnologia de

poder instalada anteriormente e incorporada pela biopolítica:

“Mais precisamente, eu diria isto: a disciplina tenta reger amultiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidadepode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados,treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a novatecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não namedida em que eles se resumem em corpos, mas na medida em queela forma, ao contrário, uma massa global, afetada por processos deconjunto que são próprios da vida, que são processos como onascimento, a morte, a produção, a doença, etc. Logo, depois de umaprimeira tomada de poder sobre o corpo que se fez consoante o mododa individualização, temos uma segunda tomada de poder que, por suavez, não é individualizante mas que é massificante, se vocês quiserem,que se faz em direção não do homem-corpo, mas do homem-espécie.Depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada no decorrerdo século XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo quejá não é uma anátomo-política do corpo humano, mas que eu chamariade uma “biopolítica” da espécie humana” (1999:289).

A demografia é, então, uma forma de produção de saber da biopolítica, que terá como

objeto a “população”, noção que se constitui como uma novidade também introduzida por

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125

essa nova tecnologia de poder. Na biopolítica, os mecanismos de intervenção são globais

para que os resultados sejam de equilíbrio global, pois o que importa não é o indivíduo,

mas a média, a estatística, enfim, a espécie humana (:294). Assim, seus instrumentos de

produção de conhecimento são, necessariamente, reificadores. E o censo demográfico é um

dos principais deles.

Herzfeld chama a atenção para esse poder de reificação do censo quando trata dos

perigos da literalização e da metaforização dos discursos de identidade para a hegemonia

pretendida pelos estados-nação (1996). Ele utiliza o caso grego para mostrar que o censo é

“o catalisador de processos de reificação que só ele pode registrar acuradamente” (:82) a

partir da demanda de “precisão demográfica” exigida pelo estado (:77), como, por

exemplo, a categoria que identifica a minoria “macedônia” no interior do estado grego: “o

censo grego (...) pode ter feito mais para criar aquela categoria do que qualquer

propaganda de Skopje ou Thessaloniki.” (:82). Com isso, Herzfeld mostra que a

literalização do discurso de identidade localista que, necessariamente, deve estar elaborado

num discurso de metáfora nacional – caso contrário o nacionalismo simplesmente não

existe –, é “potencialmente secessionista” (:75).

Partindo do raciocínio de Herzfeld, pode-se considerar que no Brasil o censo

cumpre, evidentemente, sua função essencializadora, mas o estado brasileiro tem sido

habilidoso para manter sua hegemonia e evitar a explicitação de conflitos raciais, um dos

principais “perigos” apontados por Herzfeld. Um pequeno artigo de Thomaz Flory (1977)

mostra essa preocupação por parte do império brasileiro desde o período pós-

independência, em função de três fatores principais. O primeiro dizia respeito à conjuntura

provocada pela independência que estabeleceu a oposição “brasileiros” versus

“portugueses”, fazendo com que nativismo, miscigenação e patriotismo se confundissem

com o objetivo de separar o Brasil de Portugal (:206-7); o segundo referia-se à imensa

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126

população negra que habitava o país naquele momento – em Minas Gerais e em

Pernambuco, por exemplo, a população de “negros” e “pardos” livres era maior do que a

de “brancos” e de escravos (:201) – e, conseqüentemente, o terceiro fator foi a preocupação

do estado com um discurso racial ainda incipiente – mas já com uma certa força, até

porque era também utilizado pelos conservadores (neste caso, ficou conhecido como a

“imprensa mulata”). A fim de cuidar para que esses fatores não se potencializassem, a

opção do estado foi por legislar com restrições sociais e não raciais, o que mantinha a elite

branca no poder e evitava o discurso de discriminação racial que poderia levar a revoltas

da população livre e da escrava (:222)37.

A forma como o tema “cor/raça” vem sendo tratado ao longo dos censos

demográficos no Brasil mostra essa mesma preocupação. Ele não foi incluído nos censos

de 1900, 1920 e 1970, “atendendo a pareceres de ‘especialistas’ em várias áreas”, diz

Posada (1989:223). Sendo um pouco mais irônico, Hasenbalg diz, especialmente sobre o

censo de 1970, realizado durante a ditadura militar, que isso ocorreu por “motivos

técnicos” – as aspas são do autor (1996:239). Os censos de 1872 e 1890 têm em comum o

fato de que os termos “mulato” ou “pardo” agregavam pessoas que não se enquadravam

nos tipos considerados racialmente originários: “brancos”, “pretos” e “caboclos”

(ameríndios). Também em 1940, o termo “pardo” foi utilizado para classificar aqueles que

não eram “brancos”, “pretos” ou “amarelos”. Somente no censo de 1950 ele fez parte da

opção de classificação. Em 1960 e em 1980, índios foram agregados a pardos (:223-5). E

somente em 1990 a categoria censitária “indígena” fez parte das opções. Além da ausência

do item cor já citada nos censos de 1900, 1920 e 1970, nota-se que os termos “pardo” e

37 É claro que o estado nem sempre foi tão sutil em sua proposta de evitar conflitos raciais. Agier (1992:61) eHasenbalg (1996:239) comentam sobre a preocupação da ditadura militar com denúncias de racismo noBrasil. Este último diz que o tema foi transformado em “questão de ‘segurança nacional’” e que “em 1969, asaposentadorias compulsórias atingiram os mais destacados representantes da escola paulista de relaçõesraciais”.

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127

“mulato”, quando estiveram presentes nos censos tanto como opção de classificação

quanto como forma de abrigar o que seriam os outros, não refletem uma identificação

racial – agregam os racialmente misturados e sugerem uma identificação por cor, já que

“indígenas” também eram assim classificados.

A categoria “pardo” é, então, um problema tanto para estudiosos quanto para a

militância negra, pois impede que as pessoas aí classificadas percebam-se como

afrodescendentes, ou seja, a categoria “pardo” faz com que a idéia de “identidade negra”,

concebida como necessária para a “tomada de consciência” e, conseqüentemente, para o

fortalecimento da luta contra o racismo no Brasil, fique restrita a uma minoria da

população, a que se autodeclara “preta” no censo, e reforce a idéia do Brasil miscigenado,

sem “raças” muito bem distintas e, portanto, sem conflitos raciais. No entanto, embora não

agrade a gregos nem a troianos, o termo “pardo” foi mantido no censo de 2000 e a

experiência realizada pelo PNAD de 1976 continua importante como justificativa para isso.

Apesar das famosas “135 cores”, a maior parte dos entrevistados no PNAD de 1976

identificou-se com as opções clássicas do censo, com exceção dos 37,2% que se

identificaram com o termo “morena”, que não é critério censitário. Na segunda etapa da

pesquisa, quando as pessoas deveriam utilizar os termos do censo, daquelas que na

primeira etapa se autodeclararam “morenas”, 62,9% identificaram-se como “pardas”, o que

garantiu, para os responsáveis pelo censo, a necessidade da manutenção do termo. Diante

desse dado, parece óbvio concluir que o termo “pardo” é próprio dos registros oficiais,

tanto por parte dos pesquisadores oficiais quanto das pessoas diante de uma situação

oficial, como o censo é considerado. Sobre isso, é preciso lembrar também que o termo não

está restrito ao censo, sendo ele uma categoria utilizada na certidão de nascimento,

primeiro documento oficial da vida de uma pessoa e que faz dela membro do estado-nação

e, portanto, também ela instrumento de reificação por excelência.

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128

Voltando a Ilhéus, a agregação dos percentuais de respondentes de “cor ou raça”

“parda” e “preta” justifica-se, em primeiro lugar, porque a consideração apenas do

percentual de autoclassificação “preta”, que é de 8%, seria um falseamento ainda maior da

realidade: basta percorrer as ruas da cidade para perceber isto; em segundo lugar,

considerando a argumentação de Harris et alli (1993) de que a existência da opção “parda”

e a carga semântica pejorativa atribuída a ela faz com que muitas das pessoas que se

autoclassificariam como “morenas”, se este fosse um critério censitário, optem pelo

critério “branca”, seria possível supor que o percentual de “brancos” em Ilhéus, que é de

14%, seria ainda menor38; em terceiro lugar, como argumentam Andrews (1998:391) e

Telles (1993:6), dados estatísticos sobre mobilidade social e renda podem até apontar para

diferenças nas condições de vida entre “pardos” e “pretos”, mas elas são muito pequenas e

atingem apenas uma pequena parte da população “parda”; em quarto lugar, seria muito

difícil fazer uma tal distinção levando-se em conta que filhos de um mesmo casal podem

ter sido registrados como “pardos” e “pretos”, situação comum em Ilhéus e, penso, na

maioria das famílias brasileiras; e, por fim, os dados históricos revelam uma grande

presença de população negra desde o início da ocupação de Ilhéus.

Como ocorria em toda a colônia, também em Ilhéus havia latifúndios que

produziam açúcar e madeira utilizando mão-de-obra escrava. Não há muitos dados sobre a

população de escravos anterior ao século XIX. As poucas informações existentes referem-

se, sobretudo, ao Engenho de Santana, onde ocorreu um dos mais famosos episódios da

história de Ilhéus, a Revolta do Engenho de Santana.

Erguido por Mem de Sá ainda na primeira metade do século XVI, o Engenho de

Santana foi o maior da região por séculos, até que em 1724 era o único (Marcis 2000:22).

Desde o início utilizou mão-de-obra escrava de índios e negros. O inventário feito após a

38 Os demais valores percentuais são: “pardas”: 77%; “amarelas”: 0,05%; “indígenas”: 0,1%; “sem

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129

morte de Mem de Sá registrava 130 escravos em 1573. Entre 1618 e 1759, o Engenho foi

administrado pelos jesuítas. Consta que no ano de 1730, havia 178 escravos na propriedade

(Schwartz 1988).

Em 1759, os jesuítas foram expulsos do Brasil e seus bens confiscados. “O engenho

é posteriormente arrematado em leilão público pelo Provedor da Casa da Moeda da Bahia,

Manuel da Silva Ferreira” (Marcis 2000:66). Durante sua administração ocorre a Revolta

do Engenho de Santana, cuja importância histórica reside no fato de que não se tratou de

rebelião e fuga de escravos, mas de uma negociação em que, em carta dirigida ao

proprietário, um “Tratado de Paz” (Reis e Silva 1989:20), os escravos reivindicavam

melhores condições de vida (direito ao descanso e ao lazer), de trabalho (limitação da

quantidade de feixe de cana; aumento do número de trabalhadores e roupas apropriadas

para a realização de determinadas tarefas) e direito ao cultivo e à venda de produtos, entre

outras reivindicações39. A Revolta do Engenho de Santana é constantemente evocada pelo

movimento negro de maneira geral em Ilhéus, tanto em seus discursos de auto-

representação (os “negros” de Ilhéus descenderiam dos escravos do Engenho, portanto,

teriam sua mesma “garra” e “coragem”) quanto como tema dos desfiles de diferentes

blocos afro no carnaval.

Em 1821, quando era proprietário o Marquês de Barbacena, houve uma nova

rebelião no mesmo engenho que perdurou por três anos, até que tropas de Ilhéus, Valença e

Santarém conseguissem dissipar a rebelião, com os escravos indo refugiar-se em

quilombos já existentes na mata. Na “Carta de João Dias Pereira Guimarães ao Visconde

de Camamu”, de 14 de julho de 1828, há relatos de diligências feitas pela milícia de Ilhéus

a quilombos muito bem estruturados nas imediações da vila (Reis e Silva 1989:124-7).

declaração”: 0,2%. Fonte: Censo Demográfico – IBGE, 1991.39 Reproduções desse documento encontram-se, entre outros, em Schwartz 1977 (onde foi divulgado pelaprimeira vez, segundo Reis e Silva 1989:20); Reis e Silva 1989 e Marcis 2000.

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130

Em 1834, o Engenho passa a ser de propriedade do Brigadeiro José de Sá

Bittencourt e Câmara, com 183 escravos. A família Sá tornar-se-ia uma das maiores

produtoras de cacau de Ilhéus e, segundo Mahony (1996:279), chegou a possuir trezentos

escravos em 1860, além de dominar o poder político municipal durante quase todo o século

XIX e parte do XX (Ribeiro 2001:62).

Mahony informa que 40% das propriedades de Ilhéus possuíam escravos na

segunda metade do século XIX, mesmo após a proibição do tráfico em 1850 (1996:279).

Aliás, é interessante notar que diferentemente do que aconteceu no restante do Estado da

Bahia, o número de escravos em Ilhéus cresceu após o fechamento da importação. Mahony

(:331) ressalta que a curva demográfica para a população escrava em Ilhéus é semelhante à

das regiões de café no sul e no sudeste do país, cujo crescimento vai até 1872 e só então

começa a cair, lembrando que a abolição é decretada dezesseis anos depois, quando o

número de escravos no Brasil já estava bastante reduzido. Essa peculiaridade de Ilhéus em

relação ao Estado se deveu ao contrabando e ao cacau. Por estar distante de Salvador e,

conseqüentemente da vigilância que havia em todo o Recôncavo Baiano, houve

contrabando de escravos em Ilhéus por mais de 20 anos após a proibição do tráfico (:250-

1). O censo de 1872 registra a presença de 226 estrangeiros em Ilhéus, sendo 56 europeus e

170 escravos africanos (:236).

A rápida expansão da lavoura cacaueira na segunda metade do século XIX evitou

que Ilhéus experimentasse o mesmo movimento vivido pelo Recôncavo de vender escravos

para o sul do país. Além de necessitar da permanência dos escravos que já trabalhavam nas

lavouras da cana e da mandioca e no corte da madeira – principais atividades econômicas

antes do cacau –, Ilhéus ainda atraiu um grande número de pequenos produtores que

traziam consigo seus poucos escravos (:253). Segundo dados apresentados por Mahony

(1998:92), a população de Ilhéus em 1818 era de 2.400 habitantes, sendo um quarto dela

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131

formado por escravos; em 1870, os proprietários de escravos tiveram de registrá-los

oficialmente e foram contabilizados 1.034 escravos, número este que representava 18% da

população (1996:328); em 1881, havia dez mil pessoas habitando Ilhéus, sendo escravas

cerca de 10% delas (1998:92). Esses números confirmam que a lavoura cacaueira foi

desenvolvida também com mão-de-obra escrava, fato negado pelo mito de origem do

cacau pelas razões já expostas anteriormente.

Por outro lado, o cacau também teve seu desenvolvimento favorecido em função da

dificuldade de comercializar escravos a partir da proibição da importação de 1850, o que

prejudicou significativamente a produção do açúcar. A lavoura cacaueira demanda

pequena mão-de-obra e essa foi uma razão para a facilidade de sua implantação e expansão

num momento em que a Bahia teve seu número de escravos reduzido em função da

proibição da importação e da venda de muitos deles para as plantações de café do sul do

país. Mas o crescimento muito rápido das plantações de cacau requereu um grande número

de trabalhadores, o que fez com que o maior número possível de escravos permanecesse na

região (1996:317-8) e propiciou aos grandes fazendeiros (só eles possuíam numerosos

escravos) a ocupação de grandes extensões de terra, o quanto fosse possível cultivar. Na

verdade, a escravidão foi fundamental para a expansão da lavoura cacaueira: como a maior

parte do território de Ilhéus era formado por terras devolutas, ou seja, que pertenciam ao

Estado (de domínio público) (1998: 98), era mais fácil para os trabalhadores pobres

conseguir terras para eles mesmos do que trabalhar para alguém, o que fazia com que

trabalhador fosse uma “mercadoria escassa”. Essa situação perdurou até o final do século

XIX, quando já era grande a concentração fundiária (pequenos proprietários foram

perdendo suas terras, em função das dívidas e da grilagem dos grandes fazendeiros) e

houve o crescimento explosivo da população. Nesse momento, trabalhador tornou-se uma

‘mercadoria’ abundante (1996:332).

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Evidentemente, no Brasil do século XIX, a população negra não era formada

somente por escravos. E em Ilhéus não era diferente. “De acordo com o Censo de 1872,

71% da população, incluindo escravos e livres, eram pardos ou negros” (Mahony 1998:93).

Entre os livres, 65% eram pardos ou negros. Em 1890, eles constituíam 75% da população.

“Por volta de 1880, milhares de pessoas estavam chegando a Ilhéus, particularmente das

comunidades do nordeste da Bahia e do sul de Sergipe (...) Tantos vieram, que a população

de Ilhéus explodiria, atingindo 105.259 habitantes no Censo de 1920...” (1996:266).

Desses milhares de migrantes que buscaram a região cacaueira entre o fim do século XIX e

o início do XX, a maior parte era de ‘negros’ e ‘pardos’ e muitos eram ex-escravos.

Mahony informa que o governo da província da Bahia incentivou a migração já na metade

do século XIX, a fim de resolver a escassez de mão-de-obra para a agricultura no sul do

Estado e o problema da seca no nordeste da Bahia: “O que fazer com milhares de

camponeses sem casa e sem terra criados pela seca tornou-se um objeto de grande

preocupação para os oficiais da província tanto quanto para as elites, que temiam a

potencial agitação social” (1996:256).

A chegada desses milhares de pessoas ‘negras’ e ‘pardas’ em Ilhéus e o acesso à

terra e, em alguns poucos casos, ao sucesso com o cacau, sustenta a tese de que a economia

cacaueira é racialmente democrática, característica da “civilização do cacau” que participa

da composição do mito. Adonias Filho afirma que:

“Certo foi que, penetrando, explorando a terra, consolidando alavoura, na base das interrelações entre baianos, sergipanos, europeus,negros, índios, sírios e libaneses, colaboraram – no instante mesmoem que se conformava culturalmente a civilização do cacau – numtipo singular de sociedade preferencialmente rural (...) Nas bases,resultado das fundações sociais e da mistura racial, um democratismoque não tardaria a se manifestar – inclusive politicamente – nos filhosdoutores que, após 1930, assumem as posições econômicas eadministrativas” (1976:77-8).

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Em um de seus trabalhos, Mahony trata da “questão da mobilidade social dos afro-

brasileiros na área do cacau” (1998:92) e afirma que no fim do século XIX havia alguns

fazendeiros de cacau que tinham sido escravos e muitos que eram “afro-brasileiros.” (:96).

Sua conclusão é de que nem o “legado da escravidão” nem o racismo impediram que

“afro-brasileiros” tivessem acesso à terra. A dificuldade estava na manutenção da

propriedade. Além dos problemas que atingiam a todos os pequenos fazendeiros, tais como

técnicas agrícolas impróprias; falta de recursos para legalizar a propriedade; juros altos;

legislação que favorecia os credores e flutuação dos preços do cacau no mercado externo

(:102), ela acredita que o analfabetismo, comum à grande maioria dos fazendeiros “afro-

brasileiros”, e o sistema social hierárquico brasileiro criaram uma “distância social” entre

os fazendeiros afro-brasileiros e os comerciantes (exportadores), políticos, burocratas e

grandes proprietários, o que tornou “mais difícil para a maioria dos afro-brasileiros

transformar oportunidade em mobilidade social estável.” (:112).

Mahony não chega a afirmar que a diferença racial tenha determinado o sucesso ou

o fracasso de fazendeiros negros. Contudo, é fato que eles eram, em sua quase totalidade,

pequenos proprietários. E é fato também que “pequenas fazendas independentes40

desapareceram por volta de 1910” (:100). Acrescentem-se a essas informações outras

referentes à situação socioeconômica da população de Ilhéus hoje, lembrando que ‘pretos’

e ‘pardos’ constituem 85% dela, e estará claro que o racismo e a escravidão

desempenharam/desempenham um papel importante na economia cacaueira e que a

propalada democracia racial gerada por ela só existe enquanto mito.

Números

40 Entendam-se por independentes aqueles pequenos proprietários que não se aliaram a algum grandefazendeiro e, portanto, não tiveram sua proteção.

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Como já foi exposto anteriormente, a última crise da lavoura cacaueira, iniciada no

final da década de 80, vem provocando um efeito devastador sobre a região. Seria

ingenuidade supor que a vassoura-de-bruxa é a única responsável pelo processo de

pauperização desses municípios, como se as conjunturas econômicas nacional e

internacional não tivessem sua participação. Entretanto, é inegável que a velocidade e a

força desse processo se devem à estrutura econômica baseada na monocultura do cacau

existente desde o século XIX.

Embora os índices de desenvolvimento econômico e de desenvolvimento social do

município de Ilhéus, uma das duas principais cidades da região cacaueira, estejam entre os

melhores do Estado, isso não quer dizer que sua população não passe por sérios problemas

sociais. De acordo com os dados apresentados pela Superintendência de Estudos

Econômicos e Sociais da Bahia (SEI), no ano de 1998, quando houve a última atualização

das informações, Ilhéus tinha o nono melhor índice de desenvolvimento econômico

(IDE)41 entre os 415 municípios do Estado até então. O índice de desenvolvimento social

(IDS)42 já não era tão bom, ficando Ilhéus com o 16o lugar. No ranking do Estado, a

situação da cidade pode ser considerada regular, mas é preciso lembrar que a Bahia é um

estado pobre. A cidade de Salvador, que ocupa o primeiro lugar em ambos os índices

acima, tem o sexto melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)43 entre as doze

maiores cidades brasileiras, segundo estudo da ONU (Organização das Nações Unidas)

realizado com dados recolhidos entre 1995 e 199944. A divulgação desse dado foi feita no

41 O IDE é dado por uma média entre os índices de Infra-estrutura (INF), de Qualificação de Mão-de-obra(IQM) e do Produto Municipal (IPM), nos quais Ilhéus ocupa os 8o, 9o e 13o lugares, respectivamente(www.sei.ba.gov.br).42 O IDS é dado por uma média entre os índices de Nível de Saúde (INS), de Nível de Educação (INE), deServiços Básicos (ISB) e de Renda Média dos Chefes de Família (IRMCH), nos quais Ilhéus ocupa asseguintes posições: 112o em saúde, 5o em educação, 37o em serviços básicos e 27o em renda dos chefes defamília (www.sei.ba.gov.br).43 IDH: criado pela ONU em 1990, ele varia entre 0 e 1 e é baseado em três indicadores: acesso aoconhecimento, ao trabalho e aos recursos monetários (Jornal do Brasil, 24/03/01).44 Jornal do Brasil, 24/03/01.

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mesmo relatório45 que apresentou os resultados de um estudo inédito da ONU realizado na

cidade do Rio de Janeiro. Pela primeira vez no mundo, foi mensurado o IDH de bairros e o

interesse desse estudo para este trabalho está na coincidência do relatório ter utilizado a

cidade de Ilhéus como termo de comparação. Entre os 161 bairros do Rio de Janeiro

considerados pela ONU, Acari, no subúrbio, ocupa o penúltimo lugar, com IDH de 0,53,

índice semelhante ao atribuído a Ilhéus. Na comparação com um estado, os IDHs de Acari,

e também de Ilhéus, seriam próximos ao da Bahia; em relação a países, estes seriam

Bolívia e Gabão. O relatório diz ainda que seriam necessários 101 anos, mantendo o atual

ritmo de desenvolvimento, para que a zona rural de Santa Cruz, pior IDH (0,51) da cidade

do Rio de Janeiro – e é preciso lembrar, próximo ao de Ilhéus – , alcançasse o índice do

bairro da Lagoa (0,90), que é o mais alto46.

Um estudo mais recente47 fornece o ranking dos municípios brasileiros em relação

ao Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDH-M). Elaborado a partir dos dados

levantados pelo Censo Demográfico 2000, ele utiliza variáveis diferentes daquelas do

estudo citado no parágrafo anterior48. O IDH-M de Ilhéus é de 0,703. Entre os municípios

baianos, a cidade ocupa o 22o lugar; já no ranking nacional, Ilhéus é o município de

número 2.935. A comparação com os índices de Salvador e de Itabuna torna mais clara a

situação de Ilhéus: a capital baiana ocupa o primeiro lugar no Estado, mas o 471o no país; o

município vizinho ocupa o terceiro lugar no Estado e o 1.940o nacionalmente. Isso

significa que o 22o lugar de Ilhéus no Estado indica problemas sociais graves.

A proposta desta parte do trabalho não é apresentar um relatório socioeconômico de

Ilhéus, mas oferecer ao leitor alguns dados disponíveis sobre o município que

45 Relatório de Desenvolvimento Humano do Rio de Janeiro (ONU/Ipea/Prefeitura do Rio).46 Jornal do Brasil, idem.47 Realizado pelo IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, pela Fundação João Pinheiro – Governode Minas Gerais e pela Nações Unidas, divulgado no site do IPEA (www.ipea.gov.br)

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proporcionem uma melhor visualização das condições de vida da grande maioria das

pessoas que vivem nas comunidades dos blocos afro49.

A pauperização que o município de Ilhéus vem sofrendo nas duas últimas décadas é

bem visível nos processos de ocupação e de favelização da maioria de seus morros. Muitos

deles são de ocupação antiga, mas eram, até recentemente, áreas pouco habitadas, onde

hoje estão aglomeradas várias famílias. A área onde está localizado o Grupo Afro Cultural

Dilazenze é um bom exemplo desse processo: uma parte significativa do que hoje constitui

a Av. Brasil era, até a década de setenta, a chácara de “Dona” Roxa e de “Seu” Valentim,

avós do presidente do grupo. O terreno foi cortado pela Av. Brasil e o Censo Demográfico

de 2000 dividiu-o em dois setores censitários diferentes, nos quais habitam,

aproximadamente, três mil pessoas50. Os setores censitários são muito mais abrangentes do

que a área que corresponde ao que era a chácara, mas a informação é relevante para dar

uma idéia da velocidade do processo de ocupação da região, provocado tanto pela

impossibilidade financeira dos descendentes dos primeiros proprietários de habitarem

novas áreas, sendo necessário construir no terreno da família, quanto pela chegada de

famílias vindas da zona rural em busca de emprego na cidade51.

48 As variáveis e os respectivos índices para Ilhéus são: 1- esperança de vida ao nascer: 66,128 anos; 2- taxade alfabetização de adultos: 0,794; 3- taxa bruta de freqüência escolar: 0,796; 4- renda per capita: R$170,219; 5- índice de longevidade: 0, 685; 6- índice de educação: 0,795; 7- índice de renda: 0,630.49 Teria sido interessante fazer um levantamento socioeconômico dos integrantes dos blocos, tal qual Agier(2000) realizou em sua pesquisa sobre o Ilê Aiyê, bloco afro de Salvador (:93-95 e tabelas em anexo – pp.237-241). No entanto, isso não foi possível devido a três fatores: (i) embora o Ilê seja um dos maiores blocosde Salvador, a pesquisa de Agier concentrou-se apenas nele, diferente desta que trabalhou com treze gruposem Ilhéus; (ii) a estrutura dos blocos afro de Ilhéus é bastante distinta daquela dos blocos de Salvador e a nãoexistência de um cadastro de filiados – fonte utilizada por Agier – é uma das diferenças; (iii) umlevantamento específico das comunidades abrangidas pelos blocos afro também teria sido importante, masdemandaria recursos financeiros e humanos não disponíveis durante a pesquisa.50 Campos (1937:474) informa que em 1934 havia 2.000 habitantes em todo o Alto da Conquista.51 Ver como Anexo 2 o mapa de evolução da expansão populacional urbana de Ilhéus, que mostra comclareza o quão este é um processo recente e intenso. A ocupação populacional dos Carilos, subregião dobairro da Conquista onde se localiza o Dilazenze, teria ocorrido entre os anos 70 e 80. As invasões domanguezal que formam bairros como o Teotônio Vilela são ainda mais recentes, já, provavelmente, fruto dacrise do cacau nos anos 80.

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137

Em 1998, ano da última atualização do cadastro de “favelas ou assemelhados”,

Ilhéus tinha dezessete mil domicílios nessa situação52. Este número corresponde a 31% dos

domicílios do município, tomando-se por base de comparação o número de domicílios

particulares permanentes do Censo Demográfico de 2000. Os números referentes à infra-

estrutura dos domicílios de Ilhéus também não são bons53. Em relação ao abastecimento

das residências urbanas por rede de água, a cidade é uma das duzentas que se encontram

abaixo da média do Estado, ocupando o 69o lugar entre estas, com 84,7% dos domicílios

urbanos atendidos. Já em relação ao abastecimento dos domicílios com rede de esgoto,

Ilhéus ocupa a 71a posição do Estado, entre os 118 municípios que se encontram acima da

média, abastecendo 71,2% das residências urbanas. O IBGE informa também que 17,7%

dos domicílios ilheenses não têm banheiro nem sanitário e que, nesse quesito, há 55

municípios no Estado em posição melhor do que a de Ilhéus. Em relação à coleta de lixo,

Ilhéus ocupa a 29a posição entre os municípios abaixo da média da Bahia, atendendo a

82,8% dos domicílios urbanos.

Um outro problema social grave em Ilhéus é a taxa de analfabetismo. Os números

apontam que o analfabetismo no município diminuiu substantivamente entre os censos de

1991 e de 2000, mas ele ainda é muito alto. Em 1991, a taxa de analfabetismo era de

34,72%; no censo de 2000, é de 19,71%, pouco menor do que a média do Estado e dá a

Ilhéus o 39o melhor índice de alfabetização da Bahia54.

Cor e território

Embora não haja dados que desagreguem os números acima em função de “raça”

ou “cor”, é legítimo supor que os problemas sociais que eles refletem atinjam em cheio a

52 Pesquisa de Informações Básicas Municipais, IBGE 1999.53 Os dados que se seguem foram todos obtidos no Censo Demográfico 2000 (IBGE 2000).

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138

população negra55, seja porque os índices nacionais – estes sim desagregados – mostrem

esta mesma relação56, seja porque a simples observação a olho nu dos bairros situados na

periferia de Ilhéus permita perceber que eles são ocupados quase que totalmente por essa

população e que desemprego, analfabetismo, falta de saneamento etc., estão concentrados

neles. O bairro da Conquista, onde estão situados atualmente quatro blocos afro, é um bom

exemplo disso pois, poder-se-ia, no mínimo, estabelecer para este bairro a mesma

proporção entre “pretos” e “pardos” em relação ao quantitativo de “brancos” que existe

para o município, ou seja, é possível afirmar que, pelo menos, 85% dos seus moradores são

“negros”. E os problemas socioeconômicos, especialmente em algumas subregiões do

bairro – que é muito grande e uma estimativa razoável é de que ele abrigue 10% da

população do município –, são bem visíveis.

A partir da década de 70, alguns trabalhos acadêmicos têm buscado mostrar a

existência de racismo no Brasil. Muitos deles pretenderam apresentar visões alternativas ao

mais representativo investimento de pesquisa sobre o tema das relações raciais no país, o

conhecido projeto UNESCO da década de 50, formado por pesquisadores da “escola

paulista de relações raciais” – tal como Hasenbalg os denominou (1996:239). As

conclusões dos pesquisadores do projeto UNESCO garantiram, de certa forma, que o país

mantivesse sua ‘fama’ em relação ao “mito da democracia racial”, já que as teses

defendiam, com mais ou menos veemência, que o racismo no Brasil é mais social do que

racial e que a discriminação racial é causada, principalmente, pela situação de desigualdade

54 Tabela “Classificação dos municípios, segundo a taxa de analfabetismo da população residente de 10 anosou mais de idade, em relação à média do Estado, Bahia – 1991-2000” – Censos Demográficos 1991 e 2000 –IBGE.55 Doravante referir-me-ei assim à soma das pessoas que se declararam de “cor” ou “raça” “preta” ou“parda”, já que no que tange aos índices sociais e econômicos, não há razão nem modo de distinguir essesgrupos.56 A título de exemplo, vale a informação de que, de acordo com a “Síntese de Indicadores Sociais 2002” doIBGE, divulgada no dia 12/06/03, a diferença de rendimentos entre brancos e negros ou pardos no Brasil é de50%. Os dados informam também que o 1% mais rico da população é formado por 88% de brancos e que os10% mais pobres são constituídos por 68% de negros ou pardos (Jornal do Brasil, 13/06/03).

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econômica, herança do passado escravista da população afro-brasileira, responsável por

sua posição na ‘base da pirâmide’. Assim, se o bairro da Conquista em Ilhéus é constituído

majoritariamente por uma população negra e se ele apresenta sérios problemas sociais,

segundo a tese de que a desigualdade econômica é a fundamental, e não a racial, não há

entre essas proposições uma relação causal; elas admitem apenas uma relação conectiva,

ou seja, há uma maioria populacional negra e há problemas socioeconômicos57. Tal

situação seria conseqüência de uma dada ordem histórico-econômica.

No entanto, dizer que há quatro blocos afro no bairro da Conquista porque a

população negra é predominante neste lugar não parece nenhum absurdo, pelo menos de

acordo com uma espécie de senso comum compartilhado por alguns estudiosos do tema

que estabelece uma relação, só aparentemente óbvia, entre cultura afro-brasileira e

população afro-descendente, tomando esses termos tal como eles são utilizados no âmbito

dessa visão. Essa situação seria fruto de uma dada ordem cultural. “Separar a análise

sociológica dos negros na sociedade urbana e industrial da análise antropológica das

práticas culturais afro-brasileiras” era, segundo Agier (1992:53), um dos procedimentos de

análise característicos dos pesquisadores do projeto UNESCO. Este raciocínio reflete ele

mesmo uma idéia de hierarquização racial que atribui uma ‘cultura’ a um grupo

minoritário em função de sua cor/raça sem estabelecer uma relação entre este grupo e o

fato de que ele só se encontra nessa condição – de minoria – como conseqüência do que

poderia ser visto também como ‘cultura’ do grupo dominante, nesse caso, o racismo.

A atribuição de uma “identidade cultural” a grupos minoritários constitui

atualmente uma das formas mais eficazes de manutenção da desigualdade social/racial por

57 Há uma terceira relação possível de ser encontrada, cuja formulação não se explicita como tese acadêmica,mas é muito presente no senso comum: trata-se de pensar a condição de ser pobre como conseqüência da corda pele: ‘é negro, logo, é pobre’. Essa visão vem acompanhada de estereótipos raciais – e racistas,evidentemente – que implicam ‘incapacidade’, ‘deficiência moral’ etc. da população negra. Um doscorolários desse tipo de formulação é o de que ‘progredir’, ‘vencer na vida’, ‘ser alguém’ é uma questão de‘vontade’ e ‘esforço’, qualidades que diferenciariam alguns da maioria.

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140

parte de grupos majoritários. Malik (1996) mostra como a associação de uma ‘cultura’ a

grupos que podem ser definidos racial ou nacionalmente, permite e explica a manutenção

de desigualdades sociais sem que seja necessário o uso da politicamente incorreta teoria

racial, banida dos meios acadêmicos já nas primeiras décadas do século XX. A exaltação

da diversidade cultural, em geral colada na de diversidade étnica, tem a mesma

conseqüência do discurso de raça: provocar e garantir, através da naturalização, a exclusão

social.

Antes de prosseguir, porém, são necessárias algumas observações que apenas

anunciam futuros esclarecimentos. Em primeiro lugar, termos como ‘maioria’, ‘minoria’,

‘grupo minoritário’, ‘grupo dominante’, que serão melhor definidos adiante, não estão

sendo adotados como descrições quantitativas, obviamente. Tais noções passam pela

posição de um determinado grupo numa relação de poder assim como pelo tipo de

subjetividade que o atravessa.

Dado que a palavra cultura abriga conceitos muito diferentes, torna-se necessário

precisar o sentido aqui empregado, que se refere a práticas e a determinadas formas de ver

e de viver o mundo que são, necessariamente, muito diversas daquelas da maioria58. Desse

ponto de vista, cultura é algo que uma maioria atribui a minorias: ‘o negro’, ‘o índio’

(assim mesmo, no singular), ‘os descendentes de imigrantes’ ‘têm’, ‘preservam’,

‘mostram’, ‘perdem’, ‘resgatam’ sua ‘cultura’. Nesse caso, a ‘maioria’ só ‘tem cultura’,

58 Assim colocado, o conceito fica muito próximo da forma usualmente trabalhada pela Antropologia. Etalvez não haja mesmo diferença se concordarmos que o conhecimento antropológico é produzido pelamaioria – onde está situado o antropólogo – e atribuído a minorias, isto é, independente da concepção detrabalho de campo ou de narrativa etnográfica que se tenha, é certo que o antropólogo diz o que os grupossociais fazem, pensam, vivem. Como diz Guattari (1996:18): “as sociedades primitivas descobrem que“fazem cultura”; elas são informadas, por exemplo, de que fazem música, dança, atividades de culto, demitologia etc. E descobrem isso sobretudo no momento em que pessoas vêm lhes tomar a produção paraexpô-la em museus ou vendê-la no mercado de arte ou para inseri-la nas teorias antropológicas científicas emcirculação”.

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141

tomada nesse mesmo sentido, quando se trata ‘d’o brasileiro’, da ‘cultura nacional’59. Não

quero dizer que não seja legítima a apropriação por parte de grupos minoritários do termo

“cultura” entendido como uma forma singular de produção de subjetividade em sua luta

política, mas toda essa discussão será melhor tratada adiante.

Retomando a reflexão sobre a relação entre os índices socioeconômicos que

indicam graves problemas sociais e sua concentração em locais de maioria negra, é preciso

dizer que certamente o bairro da Conquista em Ilhéus não é um gueto no sentido que em

geral é atribuído aos locais de segregação racial nos Estados Unidos. Buscando evitar que

o pesquisador naturalize distinções estabelecidas pelo senso comum e/ou pelo grupo

majoritário e, pelas mais variadas razões, adotadas por quem é o alvo da distinção, a

seguinte ‘advertência’ de Wacquant é bastante pertinente. Dirigindo-se a pesquisadores dos

guetos afro-norte-americano dos anos 90, ou o “hipergueto”60, ele diz que:

“os habitantes do gueto não são um ramo distinto de homens emulheres necessitados de uma denominação especial. São pessoascomuns tentando ganhar a vida e melhorar a sorte o mais que podemsob as condições incomumente opressivas e depressivas a elasimpostas” (1994:104).

No entanto, no presente estudo, a literatura que faz uso do conceito de gueto pode

ajudar a pensar a situação do bairro da Conquista de maneira diferente, retirando dela um

viés unicamente econômico para dar-lhe também61 uma conotação racial: se há aí quatro

blocos afro porque a população que habita o bairro é majoritariamente negra, a situação

59 Sobre o uso, no Brasil, de símbolos relacionados às ‘culturas’ de minorias, “símbolos étnicos”, como“símbolos nacionais”, ver o famoso artigo de Peter Fry (1977) e a reflexão de Goldman (2001:83), feita apartir de Fry, de que a questão passa pelos “níveis segmentares considerados”.60 Wacquant opõe o “gueto comunitário” dos anos seguintes ao pós-guerra ao “hipergueto”, característico dosanos 90, que o autor resumidamente define como “uma nova formação sócio-espacial que conjuga a exclusãode classe e de raça sob a pressão da retração do mercado ao abandono do Estado, levando assim a uma‘desurbanização’ de grandes áreas do centro da cidade” (1998:214).61 Não se trata de negar a relação entre a história da população negra no Brasil e sua atual situaçãosocioeconômica. Os dados apresentados sobre a população negra em Ilhéus e sua posição na economiacacaueira tiveram esse propósito neste trabalho. Tomando novamente emprestada a argumentação deWacquant sobre o gueto americano, também penso que “é nesse espaço objetivo de posições e recursosmateriais e simbólicos que se radicam as estratégias empregadas pelos moradores do gueto para imaginarquem eles são e quem podem ser” (1994:103).

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econômica experimentada por essa população também deve ser pensada pelo mesmo

prisma. Uma observação de Hasenbalg estimula a reflexão sobre a questão da segregação

racial. Ele diz que “a ausência, no Brasil, de guetos raciais nitidamente delineados tem

levado com freqüência à idéia de que existe nos espaços urbanos uma segregação

residencial das classes sociais, mas não dos grupos raciais” (1996:240). Além do trabalho

considerado pioneiro de Raquel Rolnik sobre a existência de “territórios negros” nas

cidades de Rio de Janeiro e São Paulo (1989)62, uma outra referência obrigatória sobre a

questão no Brasil é o estudo de Telles (1993). Ele mostra com dados estatísticos que no

Brasil há o que ele chama de “segregação residencial moderada por cor” que não pode ser

explicada só por questões econômicas pois, segundo este autor, ela ocorre entre membros

de uma mesma faixa de renda (:16), embora “o isolamento residencial dos brancos [seja] é

praticamente assegurado pela ausência de uma classe média não-branca significativa”

(:12).

Em um outro artigo, Wacquant (1995) define o gueto negro americano como um

“universo racial e culturalmente homogêneo, caracterizado pela baixa densidade

organizacional e pela pequena penetração do Estado” (:67). Não é possível caracterizar o

bairro da Conquista como um lugar “racial e culturalmente homogêneo”. Entretanto, ele

estaria mais próximo, segundo a descrição de Wacquant, do outro local que ele utiliza para

comparar com o gueto americano: os bairros proletários de imigrantes em Paris, as cités63.

62 A definição desta autora para “territórios negros” não passa simplesmente por um lugar de altaconcentração de população negra. A forma como Rolnik se refere às favelas como ‘território negro’ explicitabem sua proposta: as favelas são “os espaços mais caracterizadamente negros da cidade” porque “para aliafluiu uma mistura peculiar de histórias, um caminho singular que passou pela África, pela experiência dasenzala e pelo deslocamento e marginalização operados pela abolição e a República.” (1989:35). É a partirdessa perspectiva, a ser melhor trabalhada em Encontros 4, que o conceito poderá ser aplicado aos blocosafro.63 A literatura sobre guetos raciais é vasta e os trabalhos estão remetidos, sobretudo, aos guetos negrosamericanos, embora o conceito também seja trabalhado e, conseqüentemente, relativizado para darcompreensão ao fenômeno de segregação espacial de imigrados que vem ocorrendo na Europa nas últimasdécadas – e a França tem sido um campo privilegiado para tal investigação. Tanto para guetos negrosamericanos quanto para bairros de imigrados na França, ver, entre outros, Gutwirth 1987; Peralva 1995;Pétonnet 1982 e 1986; Taguieff 1987; Wacquant 1992, 1994 e 1995; Wilkinson 1992.

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“O mundo das cités é dominado pelo sentimento de exclusão que,antes de mais nada, se manifesta em referência aos temas da reputaçãoe do desprezo. As diversas cités são hierarquizadas numa escala da máfama que afeta todos os seus aspectos (...) e cada um de seusmoradores. As cités sofrem de um verdadeiro estigma” (FrançoisDubet e Didier Lapeyronnie 1992:114 apud Wacquant 1995:68).

O próprio autor ressalta que, dessa perspectiva, as cités parisienses não seriam guetos – não

são uma “formação sócio-espacial que é racial e culturalmente homogênea, baseada na

relegação forçada, a um território específico, de uma população destacada em termos

negativos” (:80). Mas é a estigmatização o que afeta todos esses lugares. Ainda segundo

Wacquant, “o estigma é a característica mais saliente da experiência vivida por aqueles que

se encontram encurralados nestas áreas” (:68). E ainda que não seja bem esse o caso da

Conquista, isso – sentir-se estigmatizado em função do local de moradia ou perceber a

atribuição de estigmas a ele – acontece em determinados momentos. E, em alguns deles, a

questão racial salta aos olhos. Rolnik (1989) mostra como, no Brasil, a estigmatização

sempre acompanhou os “territórios negros”, fossem eles a senzala, o cortiço ou favela, para

usar seus exemplos:

“A história da comunidade negra é marcada pela estigmatização deseus territórios na cidade: se, no mundo escravocrata, devir negro erasinônimo de subumanidade e barbárie, na República do trabalho livre,negro virou marca de marginalidade. O estigma foi formulado a partirde um discurso etnocêntrico e de uma prática repressiva: do olharvigilante do senhor na senzala ao pânico do sanitarista em visita aocortiço; do registro esquadrinhador do planejador urbano à violênciadas viaturas policiais nas vilas e favelas” (:39).

Desde minha primeira visita a Ilhéus, ainda em 1997, eu já era alertada pelos

funcionários e donos das pousadas em que fiquei hospedada sobre os riscos de ir à

Conquista por ser um bairro “violento”. Em 2000 e 2001, alguns eventos envolvendo

adolescentes da região onde está situado o Dilazenze aumentaram a conexão entre

‘violência’ e ‘Conquista’: assaltos e disparos de arma de fogo, em algumas poucas

situações seguidos de morte, passaram a fazer parte da ‘rotina’ das pessoas por algum

tempo. Eles não eram diários, mas eram entendidos dessa forma pelas pessoas que, ao

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144

menos idealmente, diziam mudar seus hábitos em função disso: evitavam ficar até mais

tarde nas calçadas conversando, evitavam deixar as crianças brincando na rua à noite,

evitavam passar por locais ditos mais perigosos... Assim, tanto na Conquista quanto no

gueto americano estudado por Wacquant (1994), a violência é cometida por moradores

contra moradores. A descrição deste autor para as condições de promoção da violência no

gueto bem poderia ser apropriada para a Conquista: “a disponibilidade combinada de

armas, prolongada exclusão do trabalho assalariado e difusão do tráfico de drogas

modificou as regras do confronto masculino nas ruas, de forma que fornecem combustível

à escalada dos crimes de morte” (:107).

Antes desses eventos, a subregião do Dilazenze não era listada entre as mais

violentas do bairro e, quando algum furto ou assalto ocorria lá, era dito ser provocado por

rapazes de outras subregiões consideradas mais pobres. Mas já em 2000 e, ainda mais

fortemente em 2001, a Av. Brasil, endereço do grupo, passou a ser um local a ser evitado

por entregadores de bebida, de pizza e de gás, além de taxistas e outros. Durante um certo

período, dois adolescentes cobravam “pedágio” dos entregadores e quando estes se

recusavam a dar, eram assaltados. Eu mesma passei a ter um horário para ir embora pois,

além da escassez do transporte coletivo, taxistas se recusavam a ir até o local. Somente os

“conhecidos” aceitavam fazer esse percurso e, obviamente, valorizavam ainda mais seu

trabalho por isso, o que só reforça o estigma.

Embora o bairro da Conquista não possa ser chamado de gueto, é possível percebê-

lo como um local também racialmente segregado. As “subclassificações” do bairro, como

ocorre na Conquista, são característica do gueto: “[os moradores do lugar] lançam mão de

taxonomias próprias para organizar o cotidiano, diferenciando diversas subunidades no

interior do conjunto como um todo que, com efeito, possui um significado apenas

administrativo e simbólico – ainda que com conseqüências palpáveis” (Wacquant 1995:68-

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9). Nesse mesmo movimento de diferenciação interna, as pessoas “exageram seu valor

moral como indivíduos (ou como membros da família)” (:75) e acabam por assumir o

discurso de fora que reforça o estigma do local. No caso do Dilazenze, eram comuns os

comentários de reprovação, especialmente de rapazes, a respeito da abordagem da polícia

nas ruas da Conquista, até mesmo “em frente de nossas próprias casas”, diziam. Mas, ao

mesmo tempo que havia um sentimento de “injustiça” e de “discriminação” – nunca

explicitamente racial, embora também não fosse qualificada de nenhuma outra forma – em

relação à ação da polícia, essa era, às vezes, justificada pelas atitudes de outros moradores

– no caso dos adolescentes e daqueles que os acobertavam: “É por causa desse tipo de

pessoa que a gente passa por isso”.

Mas um tal investimento na diferenciação interna pode ter como corolário o

desprezo e a acusação de “querer ser o que não é”. Wacquant coloca que no caso do gueto

negro americano, quem tenta “avançar na estrutura de classes” e sair do gueto é acusado de

“querer tornar-se branco” (:77). Na Conquista, dizer que uma pessoa é um “um negro

metido a besta” tem o mesmo significado e diz respeito a alguém que quer distanciar-se de

“sua origem”. Referindo-se a um conhecido que se destaca na política local, uma das

pessoas do grupo disse que “ele sempre se vestiu diferente, (...) sempre trabalhou com a

elite, sempre se comportou como tal, embora sua família sempre tenha sido pobre,

moradora da Conquista...”.

No Dilazenze, essa diferenciação interna é necessária também em função do fato de

que o grupo, assim como o terreiro ao qual ele está diretamente vinculado, tem uma

relação para fora do bairro e sua sobrevivência enquanto grupo depende dela –

contratações para apresentações em hotéis e em eventos turísticos da cidade, por exemplo.

Assim, o presidente do Dilazenze busca valorizar moralmente o grupo, ressaltando sempre

que pode que este não tem nenhuma relação com os elementos que considera serem parte

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do estigma atribuído aos jovens da Conquista: “drogas”, “indisciplina”, “marginalidade”64.

Dois dos adolescentes responsáveis por aquele momento de violência dos anos de 2000 e

2001 eram filhos da mestre de bateria mirim e um deles já havia sido assistente do mestre

de bateria principal. Tendo se afastado do grupo por conta própria, numa tentativa de

retorno, ele foi “desaconselhado” a isso pelos dirigentes do Dilazenze.

Entretanto, investir na diferenciação em relação ao espaço não basta, pois o estigma

imputado à subregião do Dilazenze atinge diretamente as atividades do grupo e do terreiro,

provocando o esvaziamento dos eventos promovidos por eles. No período de violência

mais intensa, era notória a pequena quantidade de pessoas assistindo às festas do terreiro;

quanto ao grupo, seu presidente pensava que era melhor não promover nada, “pois

ninguém compareceria”. O bar existente na quadra da sede do Dilazenze, que poderia

render recursos para o grupo assim como para quem o administrasse, permanecia fechado.

É claro que havia outros motivos para isso, mas naquele momento, o motivo mais

fortemente alegado era o perigo que o funcionamento do bar poderia representar para os

moradores, por ser um local de aglutinação de pessoas, além da expectativa de que haveria

pouco movimento. Esta também é uma característica comum ao gueto, como diz

Wacquant: “acima de um certo limiar, a onda de crimes violentos torna impossível a

operacionalização de uma atividade comercial no gueto e assim contribui para o

esvanecimento da economia baseada no trabalho assalariado” (1998:216). Mas este, sem

dúvida, não é um problema que atinge apenas o Dilazenze. É possível afirmar que todos os

blocos afro da cidade sofrem com a violência local e com o estigma atribuído a seus

bairros. E o mesmo ocorria com o Olodum, um dos mais famosos blocos afro do país e

conhecido internacionalmente, antes da revitalização urbana do Pelourinho, em Salvador.

64 Este é um discurso importante para a própria constituição do bloco afro em sua relação com a comunidadee será melhor trabalhado adiante, em Encontros 5.

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147

Outras características do gueto apresentadas por Wacquant (1995:115) são

observáveis na Conquista, como a predominância da economia informal e a dependência

da rede de parentesco e de benefícios sociais, como a previdência65, ou filantrópicos, como

a cessão de cestas básicas por parte do governo municipal ou de “ajuda” de igrejas e/ou

outras organizações. Na Conquista, uma vez por semana, à noite, a igreja católica do bairro

distribui um “sopão”. A distribuição acontece na Av. Brasil próximo à sede do Dilazenze.

Os adultos da família dizem que não são eles nem seus vizinhos mais próximos que fazem

uso dessa ajuda, mas conhecem “muita gente que precisa mesmo que mora ali perto”66.

Uma outra observação de Wacquant diz respeito à impossibilidade das pessoas de

saírem do gueto devido à falta de investimento do Estado em moradias populares fora dele

(1995:122-3). No Brasil, pode-se dizer o mesmo em função das poucas políticas de

habitação voltadas para a população de renda mais baixa, o que faz com que as pessoas

tenham de construir suas casas nos terrenos da própria família (em geral, constróem-se

sobrados ou ocupa-se todo o terreno disponível).

Relegando os conjuntos habitacionais ao abandono tanto em relação ao seu estado

físico quanto à presença e à eficiência das instituições públicas, o Estado perpetua as

condições que promovem a segregação, como a violência, a informalização da economia, a

falta de acesso à saúde e à educação, o desemprego. É o que Wacquant chama de “efeito

multiplicador” da segregação, que reforça tudo o que a provoca (1995:120). Ao mostrar

que o gueto é o produto de determinadas ações políticas que envolvem raça, classe e

espaço urbano (:102), ele quer ressaltar que o “isolamento [racial] (...) não é uma expressão

de afinidade e escolhas étnicas” (:120). Não se trata, de forma alguma, de ‘desracializar’ o

65 É muito comum em todo o país, especialmente em regiões de maior desemprego, que um grande númerode pessoas dependa da única renda “certa” mensal que é a aposentadoria ou a pensão de um ou maismembros da família.66 Mas não se pode negar que a distribuição da sopa consiste num ‘programa’ para as crianças da família,pois nos dias marcados para a distribuição, as crianças esperam com ansiedade o momento de pegar a sopa etomam-na com um apetite que, dizem seus pais, não costumam ter para “a comida de casa”.

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148

gueto, mas pensá-lo como se fosse uma ‘opção’, retira de cena o processo histórico que o

constituiu, naturalizando-o:

“encobre-se assim o fato de os negros serem o único grupo que passoupela experiência da “guetização” na sociedade norte-americana, isto é,uma separação residencial total, permanente e involuntária, fundadana casta como base para o desenvolvimento de uma estrutura socialparalela (e inferior)” (1996:147).

À

A adoção do ponto de vista de que um local de população predominantemente

negra constitui um ‘território negro’, segundo Rolnik (1989)67 – entendido enquanto auto-

representação e identificação de uma história e de práticas culturais comuns – pode se

transformar num instrumento de luta e de mobilização política. É claro que para isso

acontecer é necessário que esse local tenha o estigma racial mediando sua relação com um

fora que é acionado em determinados momentos.

Agier (1992) trabalha com a idéia de que ocorreu em Salvador o surgimento de um

“movimento social e identitário” (:56) novo a partir de mudanças políticas, econômicas e

culturais no fim dos anos 70, como foi visto no capítulo anterior. A fim de dar

compreensão ao que chama de “atual movimento de identidade afro-baiana”, este autor

defende que os blocos afro e afoxés são “espaços sociais negros”, ou seja, instituições e

espaços marcados mesmo fisicamente que seriam percebidos como locais de refúgio pela

população negra, onde é “bom assumir a negritude”, onde é possível sentir-se respeitado

(1992:64)68. A imagem do gueto apresenta-se também aqui, mas de uma maneira

positivada do ponto de vista da luta contra o racismo. Para Agier, a constituição desses

“espaços urbanos próprios, reapropriados ou liderados por negros” (:109) são uma forma

de olhar e de se situar diante da “sociedade global” e expressam uma “identidade política”

67 Ver nota 61deste trabalho.68 O tema dos blocos afro como ‘espaços sociais negros’ será retomado em Encontros 4.

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149

que atua através de uma “perspectiva de gueto” frente ao racismo de integração/dominação

da elite baiana69. Como diz Agier:

“Essa perspectiva pode ser verificada nas tendências mais recentes domovimento negro político no Brasil. Nelas se desenvolvem, em vez deum discurso favorável à assimilação (era o lema da Frente Negra nosanos trinta) ou simplesmente contra a discriminação (tema do MNU –dos anos setenta), diversas tentativas para destacar, na sociedade, umespaço próprio para os negros: busca de territórios próprios, apoio aexperiências educacionais autônomas, além da inclusão, nas fronteirasdo ‘movimento negro’, dos grupos culturais e religiosos afro-brasileiros. O diálogo com a sociedade global se torna aparentementemenos importante do que o inventário de práticas e instituiçõesrotuladas como ‘negras’” (1992:113).

As formulações de Wacquant para o gueto norte-americano assim como para as

cités parisienses ajudaram a pensar as condições de vida da população residente dos bairros

periféricos de Ilhéus em relação com o fato da maioria dessa população ser negra, tomando

a Conquista como um caso privilegiado, sem que fosse preciso pensar esses bairros como

guetos. Da mesma forma, tomando emprestada a Agier a idéia de atuação dos blocos afro a

partir de uma “perspectiva de gueto”, é possível pensar desse ponto de vista o desejo dos

grupos afro-culturais de Ilhéus de produção de uma identificação entre o bloco, seu

espaço/comunidade/bairro e a questão racial. Em algumas situações – pois esta não é uma

idéia fixa, presente durante todo o tempo – os grupos assumem que fazem parte e que estão

situados em zonas segregadas da cidade, onde existe uma dimensão racial fortemente

colocada, e investem esforços no sentido de suscitar na população aí residente uma outra

forma de olhar para esses lugares e/ou de se posicionar perante a cidade.

Além de várias outras dimensões que serão tratadas ao longo do trabalho, as

atividades realizadas pelos blocos afro em suas sedes – ou na rua da sede ou, nos casos dos

blocos que não possuem sede, na casa do presidente e/ou fundador (que em geral é a

referência do bloco e seu endereço oficial) – são justificadas pela necessidade de dar

69 Agier identifica na Bahia (em Salvador) um tipo de racismo que “não tem uma forma deexclusão/segregação, mas uma maneira, difusa e inconfessada, de integração e dominação” (1992:62).

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150

opções de lazer à população. Um argumento bastante utilizado pelos dirigentes dos grupos

é o de que as pessoas “não se sentem à vontade” para freqüentar espaços de lazer no

Centro da cidade, por exemplo. Em 2001, durante a gravação de um programa sobre

‘preconceito’ pela TV local, três dirigentes de grupos filiados ao Conselho de Entidades

Afro-Culturais (CEAC) foram entrevistados. Em suas respostas, todos eles identificaram a

segregação espacial, embora não tenham usado tais termos, como o maior problema da

população negra em Ilhéus. É claro que não há nenhuma proibição real que impeça as

pessoas de freqüentar este ou aquele lugar, mas há “o receio de que você não seja bem

visto nesses lugares. Você não vai para evitar um problema maior, um constrangimento”,

segundo um dos dirigentes. E, em determinados locais de lazer no Centro da cidade e em

bairros considerados de moradores de renda mais alta, é notória a ausência, ou a baixa

freqüência, de pessoas negras. É certo que o fator ‘falta de recursos financeiros’ é

preponderante, mas ele não justifica tudo: pode-se gastar tanto dinheiro num bar “perto de

casa” quanto se gastaria num bar no Centro, mas o primeiro é quase sempre preferível ao

segundo.

Assim, apresentações de dança, teatro, palestras e, especialmente, shows de blocos

afro devem ser realizados na Conquista para que as comunidades dos grupos compareçam,

costumam dizer os dirigentes dos blocos. Por outro lado, esta mesma percepção leva ao

argumento oposto: de que os shows devem ser feitos no Centro para que as pessoas das

comunidades – “os negros”, como dirigentes e representantes do governo costumam dizer

quando estão falando da população negra – entendam que a cidade também lhes “pertence”

e para que “elas possam se sentir melhor em sua própria cidade”. Essas visões não variam

de grupo para grupo, nem mesmo de dirigentes para dirigentes dentro de um mesmo grupo,

mas de evento para evento, às vezes tratando-se da mesma pessoa.

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151

As reuniões para planejamento das atividades da Semana da Consciência Negra são

momentos especialmente interessantes para refletir acerca de identificação étnica e espaço.

Em 1997, a organização da Semana Nacional da Consciência Negra esteve a cargo

principalmente do CEAC, embora tenha contado com participações pontuais da Pastoral

Afro, vinculada à Igreja Católica, e com o “apoio” do governo municipal, ‘mediado’ pelo

gerente de Ação Cultural, da Fundação Cultural de Ilhéus (FUNDACI), e pelo sub-

secretário de Esportes, ambos também, nesta época, representantes de grupos afro. Numa

das reuniões de preparação para o dia 20 de Novembro, dia dedicado a Zumbi dos

Palmares e é quando ocorre o evento mais importante da Semana, um longo tempo foi

destinado à discussão de onde deveria ser realizado o show dos blocos afro e a exposição

de fotos: se fosse no Centro, na Praça da Catedral de São Sebastião, as comunidades não

iriam, mas as atividades teriam maior visibilidade, o que seria bom para o fortalecimento

do “movimento afro-cultural”; se fosse na Conquista, “por ser o bairro com maior número

de blocos afro” e, conseqüentemente com o maior número de pessoas vinculadas aos

blocos, seria possível aglutinar muito mais gente para assistir ao espetáculo, porém, a

repercussão na cidade seria pequena. Tanto num caso quanto no outro, os argumentos

versavam sobre a melhor maneira de se elevar o sentimento de “auto-estima” da população

negra de Ilhéus: se o show fosse no Centro, o evento poderia ter repercussão na TV e nos

jornais, pessoas de todos os bairros poderiam comparecer, a “cidade toda ficaria

sabendo”... a população negra de Ilhéus se sentiria prestigiada; se o show fosse na

Conquista, o bairro teria visibilidade na cidade, haveria um número muito maior de

espectadores, seria um evento de lazer para uma população que quase não o tem... a

população negra de Ilhéus se sentiria prestigiada. A conclusão foi de que o evento deveria

ocorrer na Praça da Catedral, no Centro da cidade70.

70 É importante observar que o fator distância não seria um impedimento para o deslocamento dos moradores

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152

Já em 2001, além dos blocos afro, o governo municipal, através da Secretaria de

Esporte e Cidadania, e a Igreja Católica através da Alufá-Gê71, uma associação vinculada à

Pastoral Afro, tiveram uma participação bem mais efetiva na organização da Semana da

Consciência Negra. Um dos representantes da Alufá-Gê, que é padre, propôs a realização

de uma missa em estilo afro numa igreja situada no bairro da Conquista, próxima à quadra

do Dilazenze, em função dos vários blocos afro sediados neste bairro e de seus membros.

O presidente do Dilazenze, que atuava como representante dos blocos, argumentou que

todas as atividades deveriam ser realizadas na Conquista dada a facilidade de aglutinar

pessoas e de proporcionar a “participação da comunidade”, o que não ocorreria se as

atividades fossem realizadas no Centro. Ambas as propostas foram resultado de uma

conversa particular entre eles, ocorrida previamente à primeira reunião de preparação.

Nessa ocasião, já com a presença de outros participantes, inclusive do secretário municipal

de Esporte e Cidadania, a proposta de que todas as atividades ocorressem na Conquista foi

questionada. Primeiramente pelo secretário, que preferia que as palestras que ele estava

sugerindo com pessoas famosas e que atrairiam, segundo ele, um bom público

acontecessem no Centro de Convenções Luiz Eduardo Magalhães, cujo auditório maior

tem capacidade para mil lugares. Argumentou que era preciso “pensar grande”, que as

pessoas dos blocos pareciam estar “com medo quanto à sua capacidade de colocar muita

gente no Centro de Convenções”. Para contrapor-se a ele, o representante dos blocos afro

retomou uma colocação do padre a respeito da dificuldade das pessoas de “assumirem sua

negritude”, justificando que embora a população negra de Ilhéus fosse muito grande, isso

não significava que todas as pessoas “tivessem vontade de ouvir alguém falar sobre

questões relacionadas ao negro”. Enquanto o secretário insistia que as atividades não

da Conquista para a Praça da Catedral: da Praça da Conquista, onde se costuma realizar os shows, à Praça daCatedral não se leva mais de dez minutos a pé.

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153

deveriam ser na Conquista, algumas mulheres da Alufá-Gê presentes à reunião faziam

sinais de apoio à idéia – sorriam e balançavam a cabeça em sentido vertical. Talvez porque

não quisessem discordar diretamente do padre, não chegaram a argumentar nada. Quando o

assunto foi encerrado com a decisão final de realizar todos os eventos na Conquista, uma

das mulheres disse, com um ar de decepção e ainda como se fosse uma última tentativa de

argumentação, que todas as atividades deveriam ocorrer “bem cedo [no início da noite]

porque lá na Conquista é muito perigoso”, justificando sua ‘torcida’ notada anteriormente

para que os eventos não fossem realizados no bairro. Seu comentário, obviamente, é

baseado no estigma atribuído ao local já ressaltado páginas atrás72.

Percebe-se, assim, que nos momentos em que buscam trabalhar conjuntamente o

bloco, o espaço/a comunidade e a questão racial – ressaltando que do meu ponto de vista

nenhuma relação estabelecida entre esses três ou quatro termos é óbvia e imanente –, os

grupos afro podem ser considerados, então, “espaços sociais negros”, como sugere Agier

(1992:64). Porém, como já foi alertado antes, nem sempre a questão racial está colocada e

os grupos afro podem ser apenas ‘espaços sociais’, estabelecendo com a comunidade uma

relação que passa pelo sentimento de pertencimento local, do tipo ‘tal bloco é de tal bairro’

ou ‘de tal comunidade’. Essa conexão pode ser evocada, por exemplo, durante o desfile no

carnaval, quando o bloco é apresentado à população e faz-se uma referência à sua

localização na cidade. Iniciar o desfile nas ruas do bairro, como fazem o Dilazenze, o Miny

Kongo e o Rastafiry, por exemplo, ou caminhar por elas depois do resultado do carnaval

(quando se é campeão, é claro), como tem feito o Dilazenze nos últimos cinco anos, são

71 Associação do Resgate da Identidade e da Cultura Negra e Necessitados. Sobre esta entidade e sua relaçãocom os blocos afro, informações mais detalhadas serão apresentadas nos capítulos seguintes.72 Apesar da decisão de realizar todas as atividades na Conquista, o secretário, por conta própria, organizouuma palestra com um deputado federal num outro espaço, à qual compareceram cerca de dez pessoas, sendotrês dirigentes de blocos afro, dois representantes da Alufá-Gê, o padre era um deles, eu e um outropesquisador e três alunos da escola onde seria realizada a palestra. É claro que havia também assessores dodeputado e um vereador, além de funcionários da Assessoria de Imprensa do município para registrar oevento. E é claro também que a palestra não aconteceu em função do pequeno público.

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154

formas de interação com ‘a comunidade’. A relação do grupo afro com sua comunidade, do

papel do grupo diante dela e da ‘sociedade’, ou seja, seu caráter propriamente

‘comunitário’ tem muitas outras implicações, cada vez mais fortes e presentes no cotidiano

dos grupos, a serem trabalhadas no Encontros 5.

Mas nem sempre essa ‘identificação’ bairro-comunidade é boa. Isso acontece

também nos conflitos entre gangues de bairros, o que já gerou, pelo menos, uma morte.

Quando uma gangue de um bairro está em conflito com uma gangue de um outro bairro, é

aconselhável que o bloco afro do primeiro não vá tocar no segundo, ou vice-versa, mesmo

que não haja componentes dos grupos envolvidos com as gangues. Há casos de grupos que

foram fazer apresentações em locais que lhe haviam sido proibidos e tiveram problemas;

há casos em que tiveram ameaças de problemas; e há casos em que os componentes se

recusaram a ir.

À

Conforme anunciado no início deste capítulo, ele e o próximo são complementares

em seu objetivo geral de apresentar os agenciamentos que permitiram a formação do

movimento afro-cultural de Ilhéus. A opção pela divisão se deu em função do tipo de

material trabalhado em cada um deles: enquanto este se dedicou a analisar fluxos de

histórias da presença da população negra na cidade, da própria formação desta, de

estatísticas, de ocupação do espaço urbano etc., o próximo também pensará sobre fluxos de

histórias, mas de histórias dos blocos afro, dos carnavais da cidade, dos personagens

considerados importantes quando se fala do movimento afro-cultural, enfim, do que é

colocado em jogo quando se trata de pensar a origem desse movimento em Ilhéus.

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Encontros 3

MOVIMENTOS NEGROS EM ILHÉUS

“Traz na pele, no sangue e no peito oorgulho de ser Ilê Aiyê

Foi você quem fez mudar o nosso pensar,o nosso pensar

Sem você não existiria o nosso lugar.”(Gilson Rodrigues, “Exaltação Ao Ilê Aiyê”)1

Em seu primeiro desfile, em 1975, ao se mostrar para o mundo e prevendo que

causaria impacto, que era realmente “um bloco original”, tal como propagandeava seu

primeiro cartaz de divulgação, o Ilê Aiyê cantou: “Que bloco é esse?/Eu quero saber/É o

mundo negro/Que viemos mostrar prá você”2. Quem conhece um pouco do movimento

negro na Bahia, seja pela literatura sobre o assunto ou empiricamente, já viu/ouviu esse

trecho algumas ou várias vezes. Ele está presente na maioria dos trabalhos sobre blocos

afro, ora como epígrafe, ora como citação ou até mesmo como título de algum capítulo ou

seção. Isso ocorre por dois motivos, ambos muito óbvios: primeiramente por ter sido a

primeira música, do primeiro bloco afro, sendo utilizada tanto quando há a intenção de

contar a ‘história’ do movimento negro em Salvador quanto quando se quer recompor a

genealogia dos grupos, pois o Ilê Aiyê é o “ancestral”, o “pai” de todos os blocos; o

1 Música-tema do Grupo Cultural Dilazenze no desfile do carnaval em 2000, cujo tema foi “Mundo Negro IlêAiyê”.

Luiza
Highlight
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156

segundo motivo tem a ver com a própria letra da música, muito propícia para introduzir o

tema, pois, praticamente, transforma-o num ‘conceito’ ou em algo a ser explicado. A partir

da pergunta “que bloco é esse?”, seguem-se descrições e definições do que é um bloco afro

ou sobre o movimento negro ou ainda sobre a chamada reafricanização do carnaval de

Salvador. E a experiência do Ilê Aiyê é sempre o ponto de partida, ainda que o objeto em

questão seja um outro bloco.

Assim, a história do movimento negro em Ilhéus também pode ser introduzida a

partir da música e da pergunta Que bloco é esse?, primeiramente porque a origem do

movimento em Ilhéus – quando surgiram os dois primeiros blocos afro da cidade – está

direta ou indiretamente vinculada a pessoas e acontecimentos relacionados ao movimento

negro de Salvador. Assim, ao remontarem sua genealogia, os blocos afro de Ilhéus também

chegam à capital e ao Ilê Aiyê. Por outro lado, pelo menos em Ilhéus, a pergunta “que

bloco é esse?” continua pertinente. Quando, com o Ilê Aiyê, surgiu o que só depois veio a

ser chamado de “bloco afro”3, ele era algo realmente novo, mas ainda hoje, quase trinta

anos depois, o que vem a ser um bloco afro é tema de discussão e de propostas de

definição.

A proposta deste capítulo, ou deste novo ‘relato de encontros’, é a mesma que se

aplicou ao movimento de Salvador em Encontros 1, ou seja, apresentar que conexões de

fluxos tornaram possível o surgimento do movimento afro-cultural de Ilhéus. É também

uma continuação do capítulo anterior, no qual foram apresentados dados históricos e

socioeconômicos que compõem os agenciamentos coletivos que permitiram o

aparecimento dos blocos, assim como entram na composição do dia-a-dia do movimento.

2 “Que bloco é esse?”, de Paulinho Camafeu.3 O termo “bloco afro” foi “inventado” pela Bahiatursa, órgão de turismo do governo do Estado, no final dosanos 70, quando já havia em Salvador outros blocos com as mesmas características e a empresa estataldesejou diferenciá-los dos demais para fins de definição de recursos e de horários de desfile, transformando-os em uma “categoria”.

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157

Inicialmente, a idéia é oferecer ao leitor um panorama geral do movimento afro-

cultural de Ilhéus. Para tanto, cada bloco será resumidamente apresentado, formando uma

espécie de ‘árvore genealógica’ dos grupos, porém, de baixo para cima, ou seja,

começando pelo último bloco afro surgido em Ilhéus, em 2000, e terminando nos

primeiros. Já nessa concisa apresentação, que constitui a primeira seção, aparecem

diferentes fluxos que se agenciaram e promoveram o surgimento de cada um dos blocos: o

candomblé, o movimento negro de Salvador, o carnaval, a dança, o dinheiro...

São dois os primeiros blocos afro de Ilhéus porque há uma divergência sobre a

natureza (bloco afro ou afoxé) daquele que seria o primeiro. A data de fundação do Miny

Kongo é anterior ao surgimento do Lê-guê Depá em pouco mais de um mês. No entanto,

este último desfilou primeiro. Isso faz com que o aspecto cronológico não encerre a

questão e outras duas observações quanto à natureza dos grupos sejam consideradas: a

primeira refere-se ao fato de que o Miny Kongo foi fundado, mas não desfilou

imediatamente, assim, segundo este argumento, ele não teria existido como bloco afro

desde a sua fundação; a segunda diz respeito à forma como o Lê-guê Depá se apresentou:

seus ritmos, suas músicas, seus instrumentos seriam de afoxé, não de bloco afro, fazendo

do Miny Kongo o primeiro bloco de Ilhéus. Eis aí um exemplo de que a definição de bloco

afro ainda suscita calorosas discussões. O Miny Kongo e o Lê-guê Depá são o tema da

segunda seção.

Quando se escuta as falas das pessoas que participaram diretamente do surgimento

dos blocos afro em Ilhéus ou mesmo as histórias que os mais novos contam sobre eles,

logo fica claro que vários fatores contribuíram concomitantemente para a sua emergência.

As experiências dos fundadores dos primeiros blocos no carnaval e sua relação com o

movimento negro de Salvador é um desses fatores e faz parte da própria história dos

grupos, contada na seção anterior. Por isso, dar uma noção do que era o carnaval ilheense

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158

em seus “bons tempos” e de como ele chegou à atual configuração é o objetivo da terceira

seção.

Também constitui fator de influência sobre o movimento negro de Ilhéus a ida para

a cidade de pessoas que viveram o surgimento dos blocos na capital, reconhecidas como de

suma importância para a constituição do movimento. Nesse último item, sem dúvida, o

nome mais lembrado é o de Mário Gusmão, ator de teatro e de cinema, além de dançarino,

cuja importância para o movimento em Ilhéus é até relativizada, mas nunca é negada.

Mário Gusmão é o tema de uma outra seção.

Porém, além do carnaval, do movimento negro de Salvador, do candomblé –

presentes na história dos primeiros blocos –, também outros agenciamentos que

participaram da produção do movimento de reafricanização da capital passavam por Ilhéus

e devem ser registrados, como a relação da cidade com o continente africano através do

comércio do cacau e o movimento do black soul. Esse é o tema da última seção.

Antes de terminar esta introdução ao capítulo, porém, é preciso ressaltar que

também valem aqui as mesmas observações feitas anteriormente quanto ao uso da

‘história’, ou melhor, das ‘histórias’. Novamente, lembro, são versões – de historiadores,

de antropólogos, de outros pesquisadores, mas também de militantes, de participantes, de

pessoas que viveram determinadas situações ou ouviram falar delas – que estão claramente

em disputa de prestígio e atuando na dinâmica do movimento afro-cultural de Ilhéus a todo

instante.

O Movimento Afro-Cultural de Ilhéus

Atualmente, o Conselho de Entidades Afro-Culturais de Ilhéus (CEAC), ou

simplesmente “Conselho”, é composto por quinze grupos4: doze blocos afro, um afoxé, um

4 Além dos treze grupos que se apresentaram nos desfiles de carnaval dos anos de 2002 e 2003, estãoincluídos entre os quinze o D’Logun, que não tem desfilado nos últimos anos, mas cujo representante é o

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159

grupo de maculelê e uma “levada”5 de um grupo de capoeira. Dos quinze grupos, treze

vêm participando com mais ou menos regularidade dos desfiles de carnaval e têm

constituído uma das principais atrações da cidade durante esse período. Entre eles, o mais

antigo é o grupo de maculelê, conhecido como “Pauzinhos”6, mas cujo nome é Embaixada

Gêge Africana e tem como fundação o ano de 1976. O mais recente é o bloco afro

Guerreiros de Zulu, fundado em 2000.

Os grupos que compõem o CEAC têm em comum o fato de desfilarem no carnaval

com instrumentos, ritmos, danças, vestimentas, alegorias etc., relacionados ao que se

costuma denominar ‘cultura afro-baiana’ ou ‘cultura negra’ ou ‘cultura afro’. Num

determinado plano, isso é o que os identifica. Por outro lado, esses grupos são muito

diferentes. Pode-se dizer que os ‘Pauzinhos’ e o afoxé Filhos de Ogum são remanescentes

de uma outra época do carnaval ilheense, quando havia outros grupos de maculelê e muitos

outros afoxés, além de diversas escolas de samba. Às vezes, os Pauzinhos são convidados

para apresentações ao longo do ano em eventos públicos e privados, como escolas e

igrejas. Já o afoxé e a ‘levada’, restringem-se ao carnaval, como lhes é próprio, pois esses

grupos não têm existência fora daquele momento. O afoxé Filhos de Ogum está constituído

como Associação Recreativa de Educação e Cultura Afro-brasileira Filhos de Ogum e é

formado por filhos e filhas-de-santo do Ilê Axé Loi-Loyá e pela comunidade do Alto do

Coqueiro, onde o terreiro está situado; já a “levada da capoeira”, como é chamada, tem por

componentes os capoeiristas do Grupo de Capoeira Camarada-Camaradinha. Existem

muitos outros terreiros em Ilhéus e tantos outros grupos de capoeira, mas somente esse

atual presidente do Conselho (gestão 2001-2003), e o Força Negra, que participou pela última vez comogrupo na eleição para a atual diretoria do Conselho, em 2001, embora não desfile mais há muitos anos.5 Levada nada mais é do que um bloco sem alegoria, sem tema. Os blocos afro quando saem “só de camisa”também são chamados assim.6 O apelido é explicativo: maculelê é um misto de dança e luta com bastões (ou facões). Em apresentações depalco, alguns grupos utilizam facões que quando batidos um no outro provocam faíscas e fazem o espetáculoficar ainda mais bonito. Porém, no desfile de carnaval só bastões são utilizados.

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terreiro e esse grupo de capoeira constituíram um afoxé e uma levada, respectivamente.

Por isso, fazem parte do Conselho.

Verifica-se, assim, que o grupo de maculelê, o afoxé e a levada apresentam

características muito peculiares que os diferenciam entre si e coloca-os, mas apenas nesse

plano, em oposição aos blocos afro, que constituem a base do CEAC e o núcleo do que se

conhece como movimento afro-cultural de Ilhéus.

Os blocos afro, embora sejam grupos carnavalescos, isto é, seu propósito maior é o

desfile no carnaval, têm uma existência como entidade que se pretende permanente. Dizer

que um bloco “só aparece no carnaval” ou “só trabalha no carnaval” é uma acusação, em

geral feita por dirigentes de outros blocos ou por militantes do movimento negro. O

argumento é que um bloco afro “deveria realizar atividades o ano todo”. Além disso, como

entidades, eles estão organizados no CEAC, no qual o afoxé e a levada só entraram em

1997 e os Pauzinhos só em 2001, e idealmente – já que na prática não é bem assim – são

regularizados (registrados) como associações e possuem sedes, estatutos, fazem eleições

etc. Somente sua existência nesses moldes permite que eles se constituam num

‘movimento’.

Sobre os “grupos afro-baianos” de Salvador, aí incluídos blocos afro e terreiros de

candomblé, Agier (1992a:109) diz que são três os princípios que os organizam e

constituem sua “identidade política”: segmentação, genealogia e pureza. No caso dos

blocos afro, estes se vêem, de acordo com Agier (1992b:70)7, e são vistos pela maioria dos

estudiosos do tema, conforme descrito no primeiro capítulo deste trabalho, na ponta final

de uma linha do tempo que começaria com o batuque como divertimento dos escravos,

passando pelos afoxés e pelos blocos de índio, até chegar ao Ilê Aiyê, o primeiro bloco

afro. Daí, todos os blocos traçam uma linha genealógica com este último e o nascimento

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de cada novo grupo se dá por segmentação. Como diz Agier, para que um bloco seja

inserido no meio, legitimado, “é preciso situar-se dentro da genealogia do campo e

identificar-se como uma segmentação desse campo” (1992a:109), que é o que lhe

possibilita traçar sua linha de pureza.

Como resultado parcial de sua pesquisa também desenvolvida em Ilhéus – e já

exposta na introdução deste trabalho –, Goldman (2001) deseja introduzir o uso da noção

de segmentaridade como uma aposta de que tal conceito pode dar mais inteligibilidade à

política em Ilhéus e, de maneira geral, em “sociedades dotadas de Estado” (:60). Sua

proposta é investigar a política stricto senso, isto é, “partidária e de Estado” (:58), do ponto

de vista do movimento negro da cidade. Para tanto, Goldman inicia seu artigo tomando

emprestado o modelo de análise de Agier (1992b) e mostra que ele pode ser aplicado em

Ilhéus: assim como em Salvador, os blocos afro ilheenses também se representam por

modelo genealógico e cada novo bloco é formado a partir de uma ruptura com um bloco

anteior, ou seja, por segmentação. Os primeiros blocos afro de Ilhéus deram origem, assim,

a duas linhas genealógicas. Goldman também observa que “as rupturas que dão origem aos

blocos são atribuídas a brigas entre seus componentes, a maior parte ligada a problemas

financeiros e/ou desentendimentos sobre a organização do bloco” (2001:59). Já em 1981,

as disputas internas eram uma preocupação de Antônio Risério, que estava vendo “a

conversão das rixas em rachas”. Essas ‘rixas’ que provocavam ‘rachas’ podiam ter por

origem a rivalidade entre bairros ou disputas pessoais – “inclusive amorosas”, ele ressalta.

Mas, ao que parece, o tipo de racha que mais lhe preocupava era aquele provocado pelas

disputas de “poder e prestígio social”, em função da projeção que os grupos vinham

ganhando a nível nacional (:125)8. Em Ilhéus, embora não seja possível apontar nenhum

7 Embora façam referência ao mesmo tema e tenham muitos trechos em comum, esses artigos de Agier(1992a e 1992b), um em francês e outro em português, não constituem exatamente traduções.8 Ribard (1999:337) também chama a atenção para as rivalidades internas que geram novas entidades.

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tipo de regularidade, quem rompe, por que rompe e a origem, isto é, de que grupo o

fundador de determinado bloco veio, são questões que influenciam a composição de

alianças. Além disso, a posição de “dono” de bloco, que gera ‘poder e prestígio social’ é

um importante fator na dinâmica do movimento9.

As duas linhas genealógicas originadas nos primeiros blocos afro de Ilhéus deram

origem a cerca de quinze grupos ao longo de quase vinte anos de movimento10. E essa

expansão do movimento é o “lado positivo” das rupturas que levam à segmentação, como

disse um dos fundadores do Miny Kongo: “foi bom que houvesse dissidências porque

aumentou, espalhou o movimento afro na cidade”.

O Grupo Guerreiros de Zulu é o bloco afro mais recente e nele se cruzaram as duas

linhas genealógicas. Como banda afro, o grupo nasceu em 1998 com o nome de “Babilônia

Jah”, mas até o carnaval de 2000, seus fundadores ainda desfilavam no Zambi Axé e no

Miny Kongo, de onde saíram para fundar o Guerreiros de Zulu como bloco afro em abril

de 2000. O grupo possui uma pequena sede, na verdade uma sala, no Alto Soledade,

localizado entre os bairros do Malhado e de São Miguel. Seus ensaios são realizados numa

praça, que é o ponto mais alto do morro, ou na Av. Ubaitaba, nos ensaios que antecedem o

carnaval e reúnem um maior número de pessoas. O grupo conta ainda com um salão cedido

pela igreja católica local para a realização de aulas de capoeira.

Primeiramente, sigo a linha genealógica na direção do Zambi Axé.

O Grupo Zambi Axé foi fundado em 1994, como grupo de dança. Seu primeiro

desfile foi em 1997. Na ocasião, assim como outros grupos, o Zambi Axé saiu com uma

banda em cima de um minitrio e com dançarinos na Avenida. No ano seguinte, o grupo

9 Mas essas reflexões estão reservadas para o Encontros 5.10 Em algumas poucas situações, dois ou três outros grupos são lembrados. Alguns constituíram-se apenascomo grupo de dança, como o Raça Negra, também do Alto da Conquista. Outros tiveram uma vida muitocurta. Entre eles está o Obatalá, de Sambaituba, distrito rural de Ilhéus, que foi o único bloco afro formadofora do distrito sede que chegou a desfilar na Avenida por dois ou três anos no início da década de 90.

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saiu melhor caracterizado como bloco afro. O Zambi Axé foi formado por dissidentes d’Os

Gangas e por componentes de um grupo de dança chamado Zalamandra. Inicialmente, sua

sede foi no bairro do CSU, na Rua do Cano; depois passou a ser no Basílio (na casa de um

ex-diretor dos Gangas) e atualmente é no Malhado, um dos bairros mais populosos de

Ilhéus. Embora não possua uma sede própria, conta com o apoio de um terreiro de

umbanda para guardar instrumentos e utilizar como sede. Filhos carnais da mãe-de-santo

participam ativamente do grupo. Seus ensaios são num largo em frente ao terreiro.

Outro grupo nascido como dissidência d’Os Gangas é a Associação Afro Cultural e

Comunitária Os Malês, fundada em 1992. Desde então, seu presidente é um ex-

componente dos Gangas. Outros fundadores d’Os Malês haviam desfilado no Lê-guê

Depá, que já não desfilava há quatro anos. O grupo Os Malês não possui sede própria. Sua

comunidade, onde mora a maioria dos componentes, é o Malhado.

O Grupo ‘Os Gangas’ foi fundado em 1986 como uma dissidência do Lê-guê Depá.

Sua sede era no Alto do Basílio. Desde sua fundação até 1997, quando ainda se fazia

presente como entidade embora não tenha desfilado naquele ano, o bloco desfilou de cinco

a seis vezes. Atualmente não existe mais. Seu último presidente converteu-se ao

protestantismo e hoje é vereador. Assim, por essa linha, chega-se ao Lê-guê Depá, cuja

descrição será feita adiante.

A outra linha genealógica de ascendência do Guerreiros de Zulu segue direto para o

Miny Kongo. Porém, antes dele, passo para o outro bloco mais recente, o Leões do

Reggae, que também descende diretamente do Miny Kongo, pois seus fundadores também

desfilaram nele, embora tenham passado por uma banda afro, que não se constituiu como

bloco, antes de fundarem o grupo.

O Grupo Leões do Reggae foi fundado em 1997. Inicialmente, atuou somente como

banda afro. Seu primeiro desfile no carnaval ocorreu em 1999, junto com o Raízes Negras.

Page 165: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

164

O grupo não desfilou nos dois anos seguintes e seu primeiro desfile individual foi em 2002.

A casa de seu presidente, que funciona como sua sede, está situada na Rua Santarém, entre

a Av. Itabuna e o Alto da Conquista.

O Grupo Danados do Reggae é formado por ex-componentes do Zimbabuê que

deixaram este último em 1990. O grupo não possui sede própria, mas seus ensaios

acontecem numa das regiões mais turísticas da cidade, a Praia do Pontal, ao lado do Morro

de Pernambuco, ou na Av. Lomanto Júnior, que beira a Baía de Ilhéus. Seus componentes,

quase todos jovens, são moradores do bairro do Pontal, considerado um bairro de classe

média, e de Nova Brasília, uma espécie de sub-bairro do Pontal, cuja população é de baixa

renda. O grupo desfila apenas com percussionistas e poucos dançarinos, como se fosse

uma grande banda afro na Avenida. Seu estilo lembra menos um bloco afro do que a

Timbalada, grupo de Carlinhos Brown em Salvador que também desfila como bloco afro,

no qual seus dirigentes dizem se inspirar.

O Zimbabuê foi fundado em novembro de 1985. Seus fundadores são conhecidos

capoeiristas de Ilhéus, filhos de um outro famoso capoeirista e estivador. São moradores

antigos do Oiteiro de São Sebastião – seu pai era o principal responsável pela organização

de uma grande festa no dia 20 de Janeiro em homenagem a São Sebastião na sede do

Sindicato dos Estivadores. Os irmãos Barreto desfilavam no Miny Kongo e deixaram este

último para fundar o Zimbabuê, a partir da mobilização de outros capoeiristas. Embora

fossem moradores do Oiteiro, o grupo ensaiava e saía do Pontal, lugar onde hoje ensaia o

Danados do Reggae. Desde 2001, o Zimbabuê é praticamente outro bloco. Os

componentes antigos não desfilam mais e sua sede é no bairro Teotônio Vilela, uma antiga

invasão, localizada na periferia da cidade, que é outro dos bairros mais populosos e mais

carentes de Ilhéus. Quem o “assumiu”, como se costuma dizer, foi um ex-integrante e

vocalista do Dilazenze.

Page 166: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

165

Além desses, há outros caminhos que levam ao Miny Kongo.

O Grupo D’Logun seria considerado não mais existente, não fosse pelo fato de que

seu presidente tornou-se, em 2001, o presidente do CEAC. Havia alguns anos que o grupo

não desfilava e, mesmo seu presidente tendo assumido a presidência do Conselho, isso não

voltou a acontecer. O grupo foi fundado em 1992 e é o mais novo dos blocos afro situados

no Alto da Conquista, mais exatamente numa sub-região conhecida como Alto Formoso.

Seus fundadores saíram do Raízes Negras, mas em mais de uma ocasião esses blocos se

uniram para desfilar no carnaval.

O Grupo Raízes Negras foi fundado em 1990 como dissidência do Rastafiry.

Também está situado na Conquista. Seus ensaios acontecem na Praça de uma área

conhecida como Plano Inclinado. Já desfilou na companhia do D’Logun e do Leões do

Reggae.

A Associação Afro Rastafiry foi fundada por ex-integrantes do Miny Kongo em

1982, embora seu primeiro desfile só tenha sido realizado em 1987. Durante todo esse

período, seus fundadores continuaram a desfilar no Miny Kongo. O grupo possui uma

pequena sala como sede no térreo da casa de seu presidente. Seus ensaios acontecem num

mirante próximo à Praça Santa Rita, a principal do bairro da Conquista. Dos blocos ainda

em atividade, é o segundo mais antigo e já foi campeão do carnaval.

Novamente chega-se ao Miny Kongo, mas ainda é preciso falar de outros blocos

antes dele.

O Grupo Cultural Dilazenze é, atualmente, o bloco afro mais bem estruturado da

cidade. Alguns outros possuem sedes próprias, mas a do Dilazenze é a única que é uma

quadra, o que permite que os ensaios e vários eventos sejam realizados aí. Foi fundado em

1986 por ex-componentes do Axé Odara. Também está situado na Conquista, numa sub-

região conhecida como “Carilos”, uma referência ao dono da fazenda ali situada há muitos

Page 167: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

166

anos atrás, avô de Luiz Carilo, fundador do Lê-gue Depá. Alguns de seus componentes

têm/tiveram posição de destaque na história do movimento negro ilheense. Gilmar

Rodrigues foi presidente do CEACI no início dos anos 90. Marinho Rodrigues, presidente

do grupo desde 1988, tornou-se vice-presidente do CEACI em 1992 e presidente eleito do

CEAC quando este foi reativado como uma nova entidade (gestão 1997-2000)11. Nei

Rodrigues é o atual vice-presidente do Conselho (gestão 2000-2003) e do Dilazenze. Os

três são irmãos e isso revela mais uma característica do grupo: há uma rede familiar

extensa responsável por sua sustentação. O Dilazenze foi o campeão consecutivo dos

carnavais de 1999 a 2003.

O Grupo Cultural Axé Odara foi fundado por ex-integrantes e, mais do que isso,

por fundadores do Miny Kongo, em 1984. Eles formavam a base do grupo de dança deste

último. Sua saída provocou um grande abalo na estrutura do Miny Kongo. Entre os

fundadores do Axé Odara, estava o ator e dançarino Mário Gusmão, importante

personagem também na história do Miny Kongo e, por isso, do movimento negro de

Ilhéus. Embora tenha se constituído como bloco afro, a proposta do Axé Odara estava

muito mais direcionada para sua formação como grupo de dança e de teatro, cujos

espetáculos tinham um caráter mais politizado. Segundo seu estatuto, sua sede ficava na

Av. Princesa Isabel, mas seus ensaios aconteciam no Circo Folias de Gabriela, criado para

a realização de shows populares, na Av. Soares Lopes. O grupo tinha um número reduzido

de componentes e não tinha uma “comunidade”, uma ‘base territorial’. Ainda assim,

chegou a ser campeão do carnaval ilheense. Desde o início da década de 90, ele atua na

11 Na verdade, Marinho Rodrigues já havia assumido a presidência da entidade alguns anos antes, quando oantigo presidente, Mirinho, se afastou. Contudo, os anos de 1995 e 1996 foram um momento dedesmobilização do movimento, tanto que foi preciso fundar uma nova entidade em 1997, até porque todos osdocumentos da anterior foram perdidos numa enchente na casa de Mirinho. A cronologia da organização dosblocos afro em Ilhéus será detalhada no próximo capítulo.

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167

cidade de Porto Seguro como grupo de dança e é dirigido por um de seus fundadores, mas

este é o único dos antigos componentes que permanece no grupo.

O Grupo Força Negra também foi fundado por ex-integrantes do Miny Kongo.

Quando houve a saída daqueles que fundaram o Axé Odara, foram esses integrantes que

ajudaram a sustentar o grupo. A história do Força Negra começa ainda na década de 70

com o Movimento Estudantil Promocional de Ilhéus – MEPI, entidade fundada em 1970 e

formada por estudantes de vários níveis de escolaridade e inicialmente vinculada à Igreja

Católica, onde costumava se reunir até uma divergência com o bispo, desde então passando

a utilizar o Sindicato dos Bancários até o início da década de 90, quando deixou de existir.

O MEPI possuía uma espécie de núcleo voltado para a “questão negra” e um grupo de

“dança de clube”, no estilo black soul, que também chegou a Ilhéus. Em 1980, alguns

militantes foram convidados para participar da fundação do Miny Kongo e logo passaram a

compor também seu grupo de dança afro. Em 1988, embora ainda fizessem parte do Miny

Kongo, os componentes do MEPI organizaram um grupo de dança afro do núcleo, ao qual

foi dado o nome de Força Negra. Eles saíram do grupo de dança do Miny Kongo, mas não

do bloco. Apenas dois anos depois de formado, o Força Negra passou a desfilar no

carnaval, quando seus fundadores, de fato, deixaram o Miny Kongo.

A sede do Força Negra era a casa de um dos componentes, também no Alto da

Conquista. O grupo teve uma vida relativamente curta: uma de suas lideranças, Alzidério,

que também teve muito destaque na história do movimento em Ilhéus (participou do Miny

Kongo e foi fundador do Axé Odara), faleceu. Além disso, seu presidente, liderança do

grupo e do movimento, converteu-se ao protestantismo. Tal como ocorre no Dilazenze, a

rede familiar era, em grande medida, responsável pela sustentação do grupo. Em 1997,

desde alguns anos inativo, houve uma tentativa de reativar o Força Negra por parte de

militantes do Movimento Negro Unificado (MNU) de Ilhéus. A tentativa de revitalização

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168

do grupo não foi bem sucedida, pois nunca conseguiram desfilar. A última vez que seus

representantes se posicionaram como entidade foi nas últimas eleições para o CEAC, em

2001, em função de uma decisão dos organizadores de que votariam aqueles dirigentes que

haviam participado das eleições de 1997.

Com o Força Negra conclui-se a rápida apresentação de cada um dos blocos afro

em Ilhéus gerados pelos dois primeiros em duas linhas genealógicas, que se iniciam

distintamente e se encontram no Guerreiros de Zulu12. Seguem-se, então, as descrições dos

grupos geradores dessas linhas: o Miny Kongo e o Lê-guê Depá.

O início

Era o ano de 1981 em Salvador. Antônio Risério publicava Carnaval Ijexá: notas

sobre afoxés e blocos do novo carnaval afrobaiano, texto sempre citado pelos trabalhos

sobre blocos afro em Salvador como a primeira reflexão sobre o ‘novo movimento’, sobre

o ‘diferente’, sobre a “reafricanização” que vinha ocorrendo no carnaval da capital desde

meados da década de 70. Isso significa que no início da década de 80, o movimento dos

blocos afro já tinha tomado corpo, já era conhecido e reconhecido, se ainda não no Brasil –

o que vai acontecer com força com a explosão do Olodum, em 1987 –, pelo menos na

Bahia.

Era o ano de 1980 em Ilhéus. Como diz Luiz Carilo, personagem importante do

início do movimento afro-cultural da cidade, “começou a aparecer por aqui um

movimento. Aí, no Oiteiro de São Sebastião, apareceu um movimento afro e eles fundaram

um bloco, o Miny Kongo”. A fundação oficial do Miny Kongo data de 22 de Novembro de

1980. Em janeiro de 1981, um outro grupo se organizava para a lavagem da Catedral de

São Sebastião: estava sendo fundado o Lê-guê Depá, sendo Carilo um de seus fundadores.

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O Lê-guê Depá desfilou no carnaval desse ano; o Miny Kongo só saiu em 1982. Essa

diferença de datas sobre fundação e desfile é um dos ingredientes da polêmica que ainda

hoje alimenta discussões em Ilhéus sobre qual foi o primeiro bloco afro da cidade. Por

enquanto essa discussão ficará de lado para ser retomada adiante. Agora, o que importa

registrar é a observação de Carilo de que “começou a aparecer por aqui um movimento”.

Ele não explicita que movimento é esse, mas percebe-se que se trata do mesmo movimento

que fervilhava em Salvador e começava a respingar em Ilhéus. Eram os blocos afro

chegando13.

O Lê-guê Depá

Luiz Carilo é dançarino, ator, produtor artístico, professor. Passou vários anos de

sua juventude em Salvador, participando ativamente da vida cultural da cidade, pela qual,

como ele conta, era encantado: adorava o som do berimbau dos grupos de capoeira nas

ruas, os batuques nos bares, as baianas, as lavagens do Bonfim, as famosas festas de

Largo... Chegou a ingressar na Faculdade de Dança em 1974, mas não terminou o curso.

Trabalhou com artistas que “foram presos pelo DOPS”. Diz que “vivenciei[ou] a

Tropicália” e “assisti[u] ao casamento de Caetano Veloso”. Voltou para Ilhéus ainda na

década de 70 e continuou trabalhando com produção de eventos e espetáculos para a

prefeitura. Começou a freqüentar o terreiro de candomblé de Pai Pedro14 e, através de seu

interesse por candomblé e por teatro, aproximou-se de Ilza Rodrigues, ou D. Ilza, como

12 Ver Anexo 3 com o quadro das linhas genealógicas traçadas entre os grupos e Anexo 4 com o mapa deIlhéus e a localização da área de atuação dos blocos, tomando como referência a numeração que consta emAnexo 3.13 Conforme já anunciado, ver-se-á nas próximas páginas que há algumas divergências sobre o início dosblocos afro em Ilhéus, contudo, a informação de Barbosa (1994:50) reproduzida por Cambria (2002:45) deque os blocos surgiram após ou a partir do espetáculo “África Presente”, de Mário Gusmão, é totalmenteequivocada. Em primeiro lugar, como já registrado, os primeiros blocos são de 1980 e 1981, enquanto oespetáculo é de 1985, cuja estréia ocorre dias antes do primeiro carnaval do Axé Odara, grupo que encena oespetáculo, fundado no ano anterior. E em segundo lugar, todos os blocos posteriores ao espetáculo foramfundados por ex-integrantes dos blocos anteriormente existentes.14 Pai Pedro foi um dos mais conhecidos pais-de-santo de Ilhéus. Faleceu no início do ano de 2003.

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doravante será chamada aqui. D. Ilza é a mãe-de-santo do Terreiro Euá Tombency Neto,

localizado nos “Carilos”. O terreno onde hoje está situado o terreiro já foi bem maior. Era a

chácara de D. Roxa, mãe carnal de Ilza, sua antecessora no cargo maior do Tombency e

uma das mais famosas mães-de-santo da região. Provavelmente, a chácara fora,

anteriormente, parte da fazenda do avô de Luiz Carilo, a quem D. Roxa e Sr. Valentim, seu

esposo, conheceram.

D. Ilza, mãe de quatorze filhos, também era dançarina e atriz. Participava de um

grupo de teatro e de dança com Pedro Matos, ator, produtor, diretor de teatro. No carnaval,

saía em todos os blocos, afoxés e escolas de samba que podia. Como ela conta, “nem vinha

em casa para trocar de roupa para não perder tempo. Levava a roupa do outro bloco e

trocava lá na Avenida mesmo”. Seu encontro com Carilo e com Pedro Matos produziu

vários espetáculos, nos mais diferentes eventos da cidade. Ela levava junto seus filhos mais

velhos, que também participavam ativamente, tocando e dançando. Com Luiz Carilo, ela

participou da fundação da Sociedade de Artistas em Artes Cênicas de Ilhéus (SACI), em

outubro de 1980. Era uma associação de artistas de dança, teatro e música. Algum tempo

depois, ambos fundaram a uma outra entidade como dissidência da SACI.

D. Ilza via bloco afro na TV, mas afoxés, danças e ritmos do candomblé, ela

conhecia muito bem. Carilo vira e vivera o burburinho do movimento afro em Salvador

bem em seu início, embora não tivesse desfilado em nenhum bloco. Nas entrevistas que me

concederam, cada um deles disse que foi do outro a idéia de formar um bloco afro em

Ilhéus. Gilmar, um dos filhos de D. Ilza, contou que a idéia nasceu “numa mesa de bar”,

em um dos vários encontros que o grupo de teatro e dança fazia nos fins-de-semana, em

bairros diferentes, para “fazer samba de roda e de viola para o pessoal ficar mais

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integrado”, além de teatro de rua15. Nesse momento, o “movimento no Oiteiro” e a

conseqüente fundação do Miny Kongo já haviam ocorrido. Carilo, D. Ilza, seus filhos e

outros decidiram que fariam a Lavagem da Escadaria da Catedral já como bloco e, se desse

certo, desfilariam no carnaval. Era, então, janeiro de 1981, ano do “Centenário de Ilhéus”

(comemoração de sua elevação da categoria de vila para cidade) e uma série de eventos

comemorativos estavam programados. Carilo, por sua proximidade com o governo

municipal, solicitou verba à prefeitura para o lançamento de um bloco afro no carnaval.

Com o dinheiro adiantado, organizou o evento da Lavagem da Catedral de São Sebastião

pelo grupo e comprou atabaques e agogôs, os primeiros instrumentos.

O nome do grupo foi uma homenagem a Xangô, orixá importante na história do

Terreiro Tombency16. Lê-guê Depá é o nome de “uma qualidade de Xangô”, é um “Xangô

menino”. Assim, as cores escolhidas para o bloco foram vermelho e branco, as cores do

orixá homenageado.

O sucesso conseguido pelo grupo no evento de janeiro encorajou-o ainda mais a

desfilar no carnaval. Os ensaios ocorriam no terreiro, de onde o bloco saiu no dia do

desfile. O tema escolhido foi uma homenagem a Oxalá. Além de Oxalá, representado pelo

próprio Carilo, três outros orixás foram homenageados. Eram os “destaques” do bloco,

“luxuosamente vestidos”. O bloco foi dividido em alas e desfilou com cerca de 150

pessoas. Havia a ala dos destaques, a ala das baianas e outra de pessoas vestidas de abadá,

de pedaços de tecido trançados no corpo e até mesmo “lençóis brancos amarrados”, como

conta D. Ilza. Carilo esclarece algo que D. Ilza também já disse várias vezes: as pessoas de

santo (diretamente ligadas ao candomblé) “não saíam” – ou “não saem”, ou “não deveriam

sair” – vestidas com roupas de santo para “não confundir as coisas”, para “mostrar

15 Tal como foi destacado em Encontros 1, mesas e bares constituem espaços privilegiados para encontros enovas composições.

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respeito”. Assim, vestiam-se de orixás ou de baianas somente pessoas que não tinham

cargos no candomblé ou que não “viravam no santo”, ou seja, que não entravam em

possessão.

Segundo Carilo, a divisão em alas já fazia parte de sua preocupação em frisar que

se tratava de um bloco e não de um afoxé. E este será o principal argumento contra o título

reivindicado pelo Lê-guê Depá como o primeiro bloco afro de Ilhéus: dirão que ele era um

afoxé, não um bloco afro. Sobre isso, cabe observar que na matéria do dia 10 de março de

1981, no jornal Diário da Tarde, o grupo é citado na programação do carnaval como um

entre os nove afoxés que desfilariam naquele ano17. Em 1982, já contando com a presença

também do Miny Kongo, ambos são citados como “blocos afro” na programação do

carnaval divulgada pelo mesmo jornal, nos dias 20 e 21 de fevereiro. Neste ano, o Lê-guê

Depá novamente homenageia um orixá, Xangô, o padroeiro do bloco.

Em 1983, o Lê-guê Depá desfilou sem fantasias, sem tema, praticamente sem

bateria. Em função de um desentendimento entre componentes da bateria (formada

principalmente pelos filhos de D. Ilza) e Carilo quanto ao ritmo que seria empregado, os

primeiros deixaram o bloco e foram para o Miny Kongo, então em seu segundo ano de

desfile. Embora tivesse conseguido novos instrumentos, Carilo entendia que era preciso

continuar com o ritmo ijexá, “próprio de afoxé”, como dizem ex-integrantes do Lê-guê

Depá, para “manter a tradição”, confirma o próprio Luiz Carilo. Além disso, não havia

recursos para trabalhar o bloco18. Com poucos integrantes, fantasias somente as de baianas

16 Xangô também é o padroeiro do Dilazenze, grupo afro que seria fundado anos depois por filhos maisnovos de D. Ilza.17 A “Embaixada Gêge Africana” (os Pauzinhos) também está incluída como um afoxé na programação.18 Era o primeiro ano do primeiro governo de Jabes Ribeiro. Não foi possível verificar o que a imprensa dissena época porque o primeiro semestre de 1983 do jornal Diário da Tarde não está disponível no acervo doCentro de Documentação da UESC, onde foi realizada a pesquisa com jornais. Porém, em fevereiro de 1984,uma matéria ressalta que não houve competição de blocos no ano anterior, o que sugere que a prefeitura nãodisponibilizou recursos para as entidades.

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– que as pessoas tinham ou era possível conseguir – e poucos percussionistas, o bloco não

foi bem.

No ano seguinte, já morando no bairro do Malhado, Carilo resolveu “levar o bloco”

para lá, ou seja, ele deixou de ensaiar e de sair do Tombency, embora D. Ilza continuasse

fazendo parte da diretoria do grupo. A receptividade da comunidade do Malhado foi boa –

Carilo conta que recebeu apoio também financeiro de comerciantes locais – e deu fôlego

ao Lê-guê Depá para desfilar por mais cinco anos, até 1988. O bloco foi campeão dos

carnavais de 1984 e 1985, com os temas “Revolução dos Malês” e “Iniciação de Iaô”,

respectivamente.

Além do desfile no carnaval, o bloco fazia apresentações de dança e era também

um “bloco junino”, ou seja, organizava-se como quadrilha de festa junina para

apresentações. Carilo ressalta que o objetivo do grupo era conhecer e transmitir

conhecimento sobre “folclore e costumes da região”, através das “pesquisas” que ele

realizava. O bloco não existia só pelo carnaval ou pelo teatro, mas “pelo conhecimento”.

O Miny Kongo

Como no caso do Lê-guê Depá, também no Miny Kongo o movimento de Salvador,

o candomblé e o envolvimento anterior dos fundadores com o carnaval foram marcantes

para a fundação do bloco. No entanto, a participação do ator e dançarino Mário Gusmão

como fundador do Miny Kongo fez com que essas influências ficassem em segundo plano.

Há algumas opiniões divergentes, mas a ele é atribuída a fundação do grupo, assim como o

início do movimento negro no município de Ilhéus.

Atanagildo, morador antigo do Oiteiro de São Sebastião, desfilava na Vermelho e

Branco, uma das escolas de samba mais famosas e lembradas de Ilhéus. Ele também

gostava muito de carnaval e conta que esteve em Salvador, observou os blocos afro e

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174

pensou que seria bom “levar um movimento desse para Ilhéus porque lá não tem nada”.

Era o ano de 1980. E foi num passeio para Olivença, distrito hidromineral e turístico de

Ilhéus, enquanto ele apresentava as músicas e as “batidas” que aprendera em Salvador para

outras pessoas, que surgiu a proposta de fundar um bloco afro. A data oficial de fundação

do Miny Kongo é o dia 22 de Novembro de 1980. Porém, o desfile no carnaval do ano

seguinte foi uma idéia que não se concretizou.

Embora haja uma versão um pouco diferente para o nascimento do grupo, ela não é

incompatível com a de Atanagildo. Acredito que se trate de uma questão de dar prioridade

a este ou àquele momento de um mesmo processo. De acordo com essa outra versão, a

vontade de formar um bloco afro teria surgido no grupo de dança criado por Mário

Gusmão, na Academia Raiz, onde começou a dar aulas em 1981, ano de sua vinda de

Salvador para Ilhéus. Logo que chegou, Mário foi morar no Oiteiro e convidou algumas

pessoas do lugar para que fossem ter aulas de dança com ele, notadamente de dança afro,

na Academia Raiz. Eram cerca de dez pessoas que viriam a ser a base do grupo de dança

do Miny Kongo e, mais tarde, do Axé Odara, que Mário Gusmão também ajudou a fundar

e do qual foi diretor. Dado que a fundação formal do bloco aconteceu em 1980, mas não

foi possível desfilar em 1981, pode-se pensar que esta era uma idéia que existia, mas que

só ganhou consistência, ou que ganhou maior consistência, a partir do incentivo de Mário

Gusmão, que teria dito a Veludo (também fundador do Miny Kongo) e a Atanagildo: “faça

mesmo, crie mesmo esse bloco” – e de sua experiência, que já participara no Ilê Aiyê e

vivera intensamente todo o início do movimento negro na capital. Dessa forma, ambas as

versões são combinadas e só discordam na importância dada a Mário Gusmão. Porém,

antes de discuti-la, é preciso discorrer mais sobre o grupo.

Atanagildo não fazia parte do grupo de dança e, além de ser liderança do grupo,

ficou exercendo, ao que parece, o papel de ‘relações públicas’ do bloco, principalmente

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junto ao poder público. Mas não apenas isso: o bloco está registrado em cartório em seu

nome, prática comum também a outros blocos. Segundo conta, o nome do grupo é uma

homenagem a Ogum, seu orixá. Miny Kongo seria, então, segundo ele, uma qualidade de

Ogum. Além disso, o nome seria bom porque criaria uma relação com a África, dando a

entender que seria “uma parte da África aqui no Brasil, o Congo”.

Outras pessoas praticantes e conhecedoras de candomblé informam que há uma

zuela (cantiga) dedicada a Oxóssi na qual aparecem os termos “Banda Miny Kongo”,

forma como o bloco era chamado logo no início19. Essa zuela foi cantada na Avenida no

primeiro desfile do grupo, o que também o caracterizaria como afoxé. Contudo, embora

utilizasse músicas e ritmo de afoxé, o Miny Kongo diferenciou-se do Lê-guê Depá em

relação aos instrumentos: havia muitos atabaques e agogôs – “por falta de instrumentos [de

percussão]” – mas a presença de um paulistão e de alguns outros instrumentos marcava que

não se tratava de um afoxé.

Para o primeiro desfile em 1982, o Miny Kongo recebeu um auxílio da prefeitura e

contou com a ajuda de Jabes Ribeiro doando todo o tecido que seria utilizado nas fantasias

do bloco. Jabes estaria concorrendo ao cargo de prefeito naquele ano pela primeira vez.

Alguns instrumentos foram tomados emprestados nos terreiros de Pedro Farias, ou Pai

Pedro, e de uma parente de Atanagildo. Pai Pedro tornou-se, então, padrinho do bloco e lhe

deu um grande apoio. Um dos fundadores diz que o bloco “saiu com muito atabaque

também. Tudo começou com muito atabaque”. Outros instrumentos “próprios de bloco

afro” foram comprados por Atanagildo ou tomados emprestados na famosa Escola de

Samba Vermelho e Branco, também situada no Oiteiro. Em seu primeiro carnaval, o Miny

Kongo já foi campeão, desfilando com cerca de 250 pessoas, pelos cálculos de Atanagildo.

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176

Em seu segundo desfile, em 1983, a chegada em Ilhéus e, mais precisamente, no

Oiteiro, de Renato do Olodum às vésperas do carnaval provocou uma mudança importante

no Miny Kongo: a batida, o ritmo já não seria de afoxé, como no ano anterior. Embora

instrumentos de percussão (repique, surdos) já tivessem sido adquiridos, nos ensaios

daquele ano, a batida ainda não havia mudado muito. Renato, com a ‘autoridade’ de ex-

diretor do Olodum20, introduziu a “batida de bloco afro”, o que colaborou para o

deslocamento dos percussionistas do Lê-guê Depá para o Miny Kongo. A influência dos

blocos afro de Salvador pode ser notada não só pela participação de ex-integrantes do Ilê

Aiyê e do Olodum, mas também porque os blocos da capital eram o modelo a ser seguido.

Se não havia blocos afro em nenhum outro lugar e se aqueles eram chamados de blocos

afro, era preciso fazer, ser como eles para ser também reconhecido como tal – era preciso

entrar na linha de pureza que Agier menciona. Atanagildo conta que, em função disso, ele

chegou a levar “os meninos do Miny Kongo” (percussionistas e dançarinos) para Salvador.

A hospedagem era a casa de sua irmã, onde permaneciam por cerca de uma semana. Nesse

período, iam aos ensaios do Ilê Aiyê, do Muzenza para aprender as músicas, as danças, os

ritmos a fim de reproduzi-los no Miny Kongo. É preciso ressaltar que Missião também já

havia desfilado no Ilê Aiyê duas vezes antes da fundação do Miny Kongo.

Em 1984, o Miny Kongo experimentou, pela primeira vez em Ilhéus, ser um dos

protagonistas de um episódio que viria a se repetir algumas vezes e que se tornaria uma

espécie de ‘emblema’ de um embate ‘racial’ e de ‘classe’: trata-se do momento em que o

bloco afro se encontra com o trio elétrico na Avenida. Naquele ano, o trio elétrico em

questão foi nenhum outro senão o primeiro e mais famoso da Bahia e do Brasil, o de Dodô

19 No jornal Diário da Tarde de 20 e 21/02/82 e de 29/02/84, o grupo é citado como “Bloco Afro Filhos daBanda Minicongo” e “Bloco Afro Banda MiniKongo”, respectivamente.20 Comparando essa informação com a história do Olodum, presume-se que a ‘autoridade’ concedida aRenato fosse pelo fato de estar vindo de Salvador, já que o Olodum ainda estava no início e já emdecadência, pois só em 1983 ele seria assumido por João Jorge, Neguinho do Samba e outros ex-componentes do Ilê Aiyê que promoveram seu renascimento (ver Encontros1).

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e Osmar. O incidente daquele ano foi bem resolvido pois, como manda a ‘etiqueta’ do

carnaval, o trio, que é bem mais potente e ‘barulhento’, deve silenciar-se para o bloco afro

passar. E foi o que aconteceu. Além disso, Osmar pediu desculpas dizendo que não foi

intencional (Diário da Tarde 08/03/84). Esses ‘incidentes’ são famosos e recorrentes em

Salvador e já aconteceram algumas vezes em Ilhéus. Como esses episódios são, em geral,

tratados na chave da discriminação racial sofrida pelo bloco afro, essa discussão será

aprofundada no próximo capítulo.

Lê-guê Depá ou Miny Kongo?

A polêmica sobre qual foi o primeiro bloco afro de Ilhéus só costuma ser levantada

por pessoas que participaram da fundação de um dos dois blocos em questão, o que

significa dizer que ela não é muito importante para o conjunto dos militantes do

movimento. O que pode ser chamado de ‘senso comum’ da história do movimento negro

em Ilhéus afirma que o Miny Kongo foi o primeiro bloco afro e que Mário Gusmão foi seu

grande idealizador e fundador. No entanto, para os objetivos deste trabalho, a questão é

relevante porque oferece dados e reflexões a respeito da própria concepção de bloco afro,

pois não se trata apenas de um problema cronológico – embora nem mesmo este seja tão

simples. As divergências passam principalmente pela definição do que é um bloco afro.

Quanto ao aspecto cronológico – quem foi o primeiro? –, a contenda parece fácil de

ser resolvida. Considerando-se o momento da fundação, aparentemente, não há dúvida de

que o Miny Kongo seria o primeiro. Mas não é bem assim. Contra o que parece ser um

fato, um dado, pessoas que participaram da fundação do Lê-guê Depá argumentam que o

Miny Kongo foi fundado, mas não se constituiu como bloco afro: “Primeiro bloco afro que

existiu aqui dentro de Ilhéus foi o Lê-guê Depá. A primeira entidade afro foi o Lê-guê

Depá. O Miny Kongo se queixa que foi o primeiro bloco a ser fundado. Aí pode ser. Mas o

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178

primeiro a desfilar foi o Lê-guê Depá. Ele foi fundado um ano antes, mas não desfilou”.

Por outro lado, mesmo para fundadores do Miny Kongo, o argumento das datas parece não

ser determinante. Atanagildo defende a posição do Miny Kongo chamando a atenção

justamente para as características dos grupos: “Lê-guê Depá não era bloco, era afoxé.

Como bloco afro mais velho aqui é Miny Kongo”.

Além dos temas dos desfiles, das roupas de orixás usadas principalmente nos dois

primeiros anos, dos instrumentos de candomblé (atabaques, agogôs, chocalhos e reco-

recos), as músicas cantadas no desfile aproximavam ainda mais o Lê-guê Depá da

concepção de afoxé. A música do primeiro ano, de autoria de Délson Rodrigues, um dos

filhos de D. Ilza, apresentava o bloco a partir de Xangô: “Lê-gue, lê-gue, lê-gue, lê-gue /

Lê-gue, lê-gue, lê-gue, lê-gue / Lê-guê Depá / Sou menino, sou orixá / Eu sou Xangô / No

reino do Lê-guê Depá”. Em outros anos, foram utilizadas versões de músicas de ‘novos

afoxés’ famosos de Salvador, como o Zanzibar e o Badauê. Uma versão de uma música do

Zanzibar faz com que o próprio Lê-guê Depá se chame de afoxé: “Morena linda / Não

fique triste / Você tem que se alegrar / Jogue a tristeza para o alto / E venha para o afoxé

Lê-guê Depá”.

Principalmente em seu primeiro ano, o Miny Kongo também cantou “música de

terreiro”, especialmente a música (zuela) de onde foi tirado o nome do bloco, dedicada a

Oxóssi. Também utilizou instrumentos de candomblé, “batida” de candomblé. Enfim,

como o Lê-guê Depá, também tinha características de afoxé.

O Miny Kongo foi fundado em novembro de 1980; o Lê-guê Depá, menos de dois

meses depois, em janeiro de 1981. O Lê-guê Depá desfilou em 1981; o Miny Kongo só em

1982. O Lê-guê Depá saiu pela primeira vez somente com instrumentos de afoxé, cantando

músicas de candomblé e de afoxés, mas nasceu com a “intenção” de ser bloco afro: “Eles

[do Miny Kongo] colocaram na cabeça que foram o primeiro bloco afro de Ilhéus. Mas a

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intenção da gente foi colocar um bloco afro”, diz Ilza Rodrigues; o Miny Kongo desfilou

pela primeira vez com instrumentos de afoxé e instrumentos de percussão, tocou em ritmo

de afoxé, cantou músicas de afoxé, de candomblé, mas também cantou músicas do Ilê

Aiyê. Também surgiu concebendo-se como bloco afro.

Em seu primeiro desfile, em 1975, o Ilê Aiyê também saiu com instrumentos de

afoxé, embora não fosse a totalidade deles, cantando composições próprias, mas também

“música de terreiro” em ritmo de candomblé21. Não havia, nesse momento, outro bloco no

qual se espelhar para se dizer se era ou não era um bloco afro. Aliás, como já foi observado

anteriormente, o termo “bloco afro” nem existia. Mas havia afoxés e o Ilê Aiyê não queria

ser mais um afoxé. O que havia era o desejo de ser “apenas um bloco original”, como o Ilê

Aiyê se auto-qualificou em seu primeiro cartaz convidando as pessoas para o bloco.

Também já havia referências à África: uma foto de pessoas caminhando numa rua de

Lagos, Nigéria, e a frase “São os africanos na Bahia” (Agier 2000:72). Contudo, no

segundo ano de desfile, esse desejo ficou muito mais claro e as referências à África foram

mais marcantes. Numa ótima conversa num fim de tarde no quintal da casa de D. Ilza em

que músicas do Lê-guê Depá e do Miny Kongo foram lembradas e cantadas, alguns de seus

filhos, ex-componentes de ambos os blocos, explicaram que além dos instrumentos e do

ritmo, uma diferença importante entre bloco afro e afoxé é que a referência do primeiro são

as “coisas da África” – “histórias da África, indumentárias da África, povos da África”.

Eles disseram que no início dos blocos afro, a “África” era sempre o tema dos desfiles, das

roupas, das músicas. Gomes (1989:180) aponta a “ênfase aos temas ‘africanos’” como a

principal característica da “reorientação estética” do carnaval baiano provocada pelos

blocos afro, “revelando uma mudança de comportamento da juventude negra baiana em

torno da construção e valorização de determinados símbolos de identidade étnica que

21 O ritmo ijexá ainda hoje é a base da batida do Ilê Aiyê.

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tinham como inspiração o continente e a cultura negra africanos”22. Era o movimento de

reafricanização.

Não cabe aqui ‘bater o martelo’ a respeito da polêmica sobre o primeiro bloco afro

de Ilhéus, nem mesmo haveria argumentos suficientes para isso, como espero ter

demonstrado. Mas vale ressaltar que ‘ser bloco afro’ era desejo do Miny Kongo, do Lê-guê

Depá e do próprio Ilê Aiyê, e foi esse desejo que criou tudo. Porque o desejo é a base de

criação de qualquer coisa, é o que gera fluxos que se encontram, que se agenciam e

inventam a vida. Como dizem Deleuze e Guattari (1996:98): “um fluxo é sempre de crença

e de desejo. As crenças e os desejos são o fundo de toda sociedade (...)”.

Um pouco do Carnaval em Ilhéus

Para se fazer um histórico do carnaval em Ilhéus, seria preciso realizar uma

pesquisa sobre o tema, tarefa mais apropriada para um historiador. Além disso, não há nem

mesmo uma bibliografia sobre o assunto e informações sobre o carnaval antigo da cidade

estão espalhadas em pouquíssimas obras23. No entanto, como já foi observado

anteriormente, dado que a relação que os fundadores dos primeiros blocos afro tinham com

o carnaval foi mais um fator que concorreu para seu envolvimento com eles, melhor

dizendo, para a produção do desejo de formar um bloco afro, é preciso dar ao leitor alguma

noção do que era o carnaval ilheense anterior e concomitante ao início dos blocos. Essa

‘noção’, que também é a minha, foi formada a partir de comentários das pessoas com as

quais trabalhei conjugados com informações encontradas em outras fontes. E assim são,

em geral, os dados etnográficos: eles são ouvidos, vistos, lidos, mastigados, digeridos,

‘introjetados’, amalgamados e, depois de tudo, transformam-se em ‘idéia’, em ‘noção’, que

22 A temática dos blocos passou por modificações, especialmente por causa do Olodum, que começou aenfocar outros temas, como a história da população negra no Brasil ou outros locais externos à África Negra,como Cuba, Egito e Madagascar, respectivamente nos carnavais de 1986, 1987 e 1988 (Gomes 1989:183;185).

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é o que se diz sobre um objeto ou o que fundamenta tudo o que se diz. Mas apresentar os

‘dados’ é um recurso para facilitar a transmissão da ‘idéia’. Por isso, na medida do possível

e de maneira, obviamente, sintética, recorrerei a informações advindas dos comentários das

pessoas, mas também de jornais e da pouca bibliografia disponível para descrever o que sei

sobre o carnaval de Ilhéus.

Como contam Campos (1981[1937]) e Vinháes (2001), em Ilhéus, o carnaval

começou a ser comemorado no final do século XIX. Não há muitas informações além de

nomes de entidades e de personalidades da cidade que participavam desta ou daquela

agremiação e, obviamente, os autores estão se referindo ao carnaval de elite. Uma

informação interessante dada por Vinháes (:312) é que em 1950 Pedro Farias criou o afoxé

Filhos da África, o qual teria existido até 1970. Vinháes ainda escreve sobre o carnaval de

Ilhéus por mais quatro páginas e chega até o carnaval de 1999, mas o de Pai Pedro é o

único afoxé citado por este autor. Além de Vinháes, também Carilo em sua entrevista a

mim e Échio Reis em entrevista a Borges (2002:32) comentam sobre a beleza e a

admiração que tinham pelo afoxé de Pai Pedro. Já alguns filhos de D. Ilza disseram que

preferiam o Filhos de Xapanan, que sempre passava pela Conquista. Hoje quase não há

afoxés na cidade. Existe o afoxé Filhos de Ogum que é filiado ao CEAC e “um ou dois

ainda desfilam de vez em quando”. Mas nem sempre foi assim. A decadência dos afoxés,

assim como das escolas de samba de Ilhéus e dos blocos de arrasto mais tradicionais, foi

um processo da década de 80.

No carnaval de 1981, foram nove os afoxés que desfilaram24. Ao longo dos anos,

este número foi diminuindo. Por não serem registrados, os afoxés não recebiam

financiamento público, como as escolas de samba e os blocos. A falta de recursos tornava a

presença de vários deles na Avenida algo intermitente. Em 1987, segundo matéria

23 Ver, por exemplo, Barbosa 1994, Campos 1981, Borges 2002 e Vinháes 2001.

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publicada no Diário da Tarde de 27/02 do mesmo ano, apenas dois afoxés desfilaram. E,

dez anos depois, novamente apenas dois se filiaram ao CEAC, justamente o Filhos de

Ogum, que desfila até hoje e o Filhos de Xapanan, que desfilou pela última vez em 1998.

Os jornais da década de 80 também mostram o fim das escolas de samba e de

muitos blocos de arrasto. As escolas de samba de Ilhéus são dos anos 60 e “não deixavam

nada a dever para as do Rio de Janeiro”, foi o que ouvi mais de uma vez em Ilhéus. Borges

(2002) diz que nos primeiros anos da década de 60 “a sociedade de Ilhéus brindava as

notícias da imprensa: o terceiro melhor carnaval do país.” (:25). Talvez haja um certo

exagero nessas declarações, mas o fato é que nessa época o modelo de carnaval era o do

Rio de Janeiro25 e as escolas de samba ilheenses despertavam paixões nos foliões, havendo

uma grande rivalidade entre elas. Interessante notar que seus nomes eram os de suas cores.

As mais conhecidas escolas de samba de Ilhéus foram a Azul e Branco, a Verde e Branco,

a Vermelho e Branco, a Amarelo e Branco e a Amarelo e Azul, além da Escola de Samba

do Pontal (Vinháes 2001:312).

Matérias publicadas no Diário da Tarde de 1985 mostram uma tendência do

carnaval da Bahia que em Ilhéus certamente contribuiu para o fim das escolas de samba e

dos afoxés. Começava o reinado do trio elétrico, embora eles já fizessem parte da festa

desde a década de 70 (Borges 2002:36). No dia 14/02/85, havia uma nota falando sobre o

descontentamento de várias agremiações carnavalescas em relação à política de carnaval

do Departamento de Turismo Municipal, mais exatamente sobre os recursos

disponibilizados. Por isso, as escolas de samba – aquelas que ainda desfilavam, mas não

diz quais – e alguns blocos de arrasto não desfilariam nesse ano, “em solidariedade às

escolas de samba”. Já no dia 21/02, depois do carnaval, a manchete estampada na primeira

24 Incluindo o Lê-guê Depá, registrado como afoxé pelo Diário da Tarde, de 10/03/81.25 Gomes (1989:172), referindo-se a Salvador, também diz que “durante toda a década de 60 e início dos anos70, o modelo de carnaval carioca exerce grande influência nos festejos baianos”.

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página do Diário da Tarde é “Para a maioria, o carnaval foi decepcionante”. Segue, então,

uma matéria esclarecendo o “real motivo” do desentendimento entre as escolas de samba e

a prefeitura. Segundo o jornal, as escolas de samba pediram 15 milhões de cruzeiros e,

embora não houvesse uma recusa na cessão do dinheiro, o diretor do Departamento de

Turismo teria feito declarações de ofensa às escolas dizendo que “elas queriam mesmo era

comercializar com o dinheiro da prefeitura”. Entretanto, continua a matéria, naquele ano a

prefeitura pagou cento e cinqüenta milhões de cruzeiros para o trio elétrico de Baby e

Pepeu, além das despesas com sua comitiva, de dezessete pessoas, inclusive seus filhos,

babás e a mãe de Baby. O jornal diz também que no ano anterior, a prefeitura pagou “uma

fortuna” ao trio de Dodô e Osmar, “o que só serviu para fazer Jabes” – então prefeito –

“aparecer no Jornal Nacional”. Na década de 90, serão os trios da própria cidade e os

“blocos de branco” que competirão com os blocos afro, mas este assunto será abordado

adiante.

Além dos afoxés e das escolas de samba, os blocos de arrasto faziam muito sucesso

em Ilhéus. Até o início da década de 80, eles desfilavam no ‘horário nobre’ e competiam

entre si. O apoio do governo municipal era fundamental para a organização dessas

agremiações, como ainda é. Dois prefeitos, em especial, são sempre destacados nessa

relação entre o poder público, bem corporificado na pessoa do prefeito, e os blocos de

carnaval. Um deles era Herval Soledade. Borges (2002:24) comenta sobre o grande

incentivo ao carnaval popular que ele deu em sua primeira gestão (1955-59). Para ela,

atitudes populares como a promoção do carnaval popular e o “natal dos bairros” teriam

favorecido sua reeleição em 1963. Vale a pena reproduzir aqui uma fala de Herval

Soledade que consta de seu trabalho:

“... O povo não deve apenas pagar impostos, disse eu várias vezes,quando censurado e chamado de louco, baderneiro e batuqueiro, porpatrocinar o carnaval, ajudar os foliões, promover concursos e enfeitara cidade. É dever do poder público promover meios a que o povo

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alegre o espírito e esqueça, por três dias em cada ano que seja, osseus sofrimentos e as suas finalidades [sic]. E assim procedi,atendendo a minha consciência e o desejo popular” (grifo meu).

Naquela época, apresentar-se para o prefeito, “era uma tradição”, que já “deixava

uns barris de chope, comida....” para os blocos, é o que “contam os mais velhos”, segundo

o presidente do Dilazenze. Essa “tradição” também acontecia nos tempos de Ariston

Cardoso, ex-prefeito de Ilhéus (1973-76). Todos os blocos que iriam desfilar tinham de ir

até sua casa, na Conquista. Até hoje os Pauzinhos se apresentam em frente à casa de

Ariston Cardoso antes de seguirem para o desfile na Avenida. D. Ilza conta que alguns

blocos também iam até o terreiro para se apresentar para D. Roxa, sua mãe.

Vários blocos de arrasto e “de sujo” continuam desfilando ainda hoje, mas não há

mais competição entre eles, que costumam passar pela Avenida à tarde e entre um bloco

afro e outro. O ‘horário nobre’ agora é dos blocos afro, embora seus dirigentes não o

considerem tão nobre assim, pois o melhor horário, “quando a rua está mais cheia”, fica

reservado para os shows de palco ou para os trios elétricos.

A respeito do movimento negro de Salvador, conforme foi observado no Encontros

1, é dito que os afoxés e os blocos de índio, estes últimos surgidos na década de 60, foram

precursores dos blocos afro, pois essas entidades reuniam a população negra e moradora da

periferia da cidade. Em Ilhéus não havia blocos de índio. Eram os grupos de maculelê que,

ao lado dos afoxés, agregavam especialmente rapazes negros, moradores de bairros

periféricos e mostravam ritmos, instrumentos e danças afro-brasileiras na Avenida. Além

do grupo de maculelê Embaixada Gêge Africana, os Pauzinhos da Conquista, que ainda

hoje desfila no carnaval e é filiado ao CEAC, havia um outro grupo famoso em Ilhéus, o de

Cabo Jonas, que saía do Pontal. Os filhos mais velhos de D. Ilza eram foliões dos

Pauzinhos – ‘Seu’ Jurassi, dirigente do grupo, é um dos ogãs mais antigos do Terreiro

Tombency – e lembram da rivalidade que havia entre os grupos. Houve uma época em que,

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terminado o desfile, a polícia recolhia os “pauzinhos” e se pegasse alguém portando um

bastão, a pessoa seria presa. O encontro dos dois grupos sempre terminava em “uma briga

arretada”: “Eles cantavam ‘cana via, pegou fogo, é de vera...’. Quando falava ‘é de vera’,

aí o bicho pegava”, conta um ex-folião.

O carnaval de Ilhéus da década de 80 foi marcado pela quase extinção das escolas

de samba, pela diminuição do número de blocos de arrasto, pelo enfraquecimento do

‘carnaval de rua’ e, numa direção contrária a tudo isso, pelo recrudescimento do

movimento afro-cultural.

Em 1981, houve a estréia do Lê-guê Depá. Em 1982 desfilaram este último e o

Miny Kongo. O mesmo aconteceu nos dois anos seguintes. Em 1985, no “Carnaval da

Democracia”26, uma homenagem ao fim da ditadura militar com a posse de um presidente

da República civil, dois novos blocos afro estrearam na Avenida: Axé Odara e

Embaixadores da África (que só desfilou este ano). Em 1986, desfilaram Lê-guê Depá,

Miny Kongo, Axé Odara e o estreante Zimbabuê. O “Carnaval da Vitória”, em 1987 – uma

homenagem à vitória de Waldir Pires nas eleições ao governo do Estado de 1986 (Diário

da Tarde 17/02/87) e do qual Jabes viria a ser secretário do Trabalho em 1989, para em

1990 se eleger deputado federal (Goldman 2001:61) – foi o primeiro ano de desfile de três

novos blocos: Dilazenze, e Os Gangas, totalizando sete concorrentes. A partir de então, o

número de blocos afro cresceu, embora nem todos tivessem sempre condições de desfilar.

O início da década de 90 é considerada a melhor época para os blocos afro: muitas

apresentações de suas bandas nos hotéis e bares da cidade, além de haverem se tornado a

principal atração do carnaval de Ilhéus. Em 1993, o Diário da Tarde registrava que seriam

nove blocos afro desfilando. Entretanto, na gestão de Antônio Olímpio (1993-1996), os

26 Em cada ano, a comissão de carnaval da prefeitura escolhe um tema para ser trabalhado nas chamadas depropaganda turística para o carnaval, assim como nos adereços que enfeitam o local do desfile e as principais

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blocos afro também sofreram com a falta de investimento no carnaval por parte do governo

municipal. Em 1994, o carnaval foi transferido da Avenida Soares Lopes, no Centro, para a

Avenida Litorânea, no Malhado. A mudança de endereço do local de desfile e do carnaval

de rua, de maneira geral, foi para evitar danos à recém reurbanizada Soares Lopes, embora

algumas pessoas digam que isso ocorreu para atender a pedidos de moradores da área, a

mais ‘nobre’ da cidade, que não queriam “conviver com o carnaval”, com “o povo em suas

portas”. Neste ano, o Diário da Tarde ainda registra o desfile de dez blocos afro, situação

que mudaria radicalmente no ano seguinte, quando os recursos destinados a auxiliar o

desfile dos blocos deixaram de existir. Em 1995, somente o Rastafiry desfilou na Av.

Litorânea, enquanto o Dilazenze se apresentou no distrito de Olivença, ambos como

levadas, ou seja, com poucos instrumentos e sem alegorias, “só de camisa”. Este também

foi o primeiro ano do “carnaval antecipado”, uma ‘criação’ da prefeitura de Itabuna

imitada pela de Ilhéus. Ele acontecia em janeiro porque se tornava mais viável trazer para a

cidade os grandes trios elétricos e artistas de Salvador, que cobravam muito caro para

saírem da capital na época do carnaval. Em 1996, o carnaval antecipado foi ‘privatizado’, o

que significa dizer que essas atrações eram contratadas pelos blocos de trio da cidade. Era

o “carnaval comercial”27. Neste ano, desfilaram Dilazenze, Rastafiry e Miny Kongo,

novamente apenas “de camisa”, pois nestes dois últimos anos do governo Antônio

Olímpio, os blocos não receberam qualquer auxílio da prefeitura. Os anos de 1994, 1995 e

1996, quando a festa foi realizada no Malhado e, especialmente os dois últimos anos,

quando não houve “carnaval de verdade”, são considerados os piores carnavais de Ilhéus

na opinião dos dirigentes dos blocos.

ruas da cidade. É interessante notar que o tema escolhido para 1985, assim também como o de 1987 (o de1986 não foi possível saber), refletem posições políticas assumidas pelo então prefeito Jabes Ribeiro.27 Maiores detalhes sobre motivações e percepções a respeito da introdução dos dois carnavais em Ilhéus,além de uma boa descrição destes, podem ser obtidos em Menezes 1998.

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De 1997 a 2001, Ilhéus teve dois carnavais28: o “carnaval antecipado”, chamado de

“Ilheus Folia”, e o “carnaval cultural” ou “oficial”. No primeiro ano da nova gestão de

Jabes Ribeiro, em 1997, o carnaval voltou para a Avenida Soares Lopes. Além de manter o

carnaval antecipado, o governo municipal investiu na reativação do carnaval propriamente

dito, ao que chamou de “carnaval cultural”. Para tanto, ele buscou os grupos ainda

existentes, praticamente apenas blocos afro, e lhes deu algum recurso para o desfile, que

não foi ainda nos moldes da década de 80, com carros alegóricos e fantasias, mas foi um

recomeço. O carnaval desse ano foi chamado de “Carnaval do Resgate”. Fica fácil

entender o título a partir de uma propaganda do governo municipal em jornais locais

reproduzida por Menezes (1998:88):

“O carnaval mudou tanto, que este poderia até ser chamado decarnaval fora de época. Aqui em Ilhéus, a cultura ainda é viva e vocêvai brincar de uma maneira contagiante e envolvente, como se faziaem outras épocas. O carnaval cultural de Ilhéus representa o resgate demanifestações próprias da cidade. Nele, a tradição se mistura comblocos afro, trios elétricos, afoxés, blocos de trio, de percussão e dearrasto. Venha viver a espontaneidade e o carisma do povo de Ilhéus ereviver os carnavais de pierrôs, colombinas, palhaços e mascarados,culminando com um apoteótico banho de mar à fantasia.”

O carnaval cultural e, em função dele, o estímulo à reorganização dos blocos afro –

e com o tempo também dos blocos de arrasto, que no carnaval de 2002 já eram em torno de

dezesseis filiados à Ilheustur – provocou também a reestruturação do Conselho de

Entidades Afro-Culturais em 1997, pois o governo municipal insistiu que a partir do ano

seguinte não negociaria mais com cada uma das entidades, apenas com o Conselho. O

processo de re-fundação do CEAC merece uma análise aprofundada, que ficará para

adiante. O que importa registrar agora é que no momento de rearticulação das entidades

carnavalescas locais, apenas os blocos afro estavam em condições de se apresentar.

28 A título de curiosidade, esta não foi a primeira vez que Ilhéus teve ‘dois’ carnavais. Campos (1981[1937]:504) conta que havia um “segundo carnaval” chamado “Mi-Carême”, uma festa “mais popular” doque o carnaval, cuja “duração estende[ia]-se do sábado de aleluia até a sexta-feira de Páscoa, às vezes”. Era

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Segundo o presidente do Dilazenze, isso só aconteceu devido à estrutura permanente do

bloco afro, diferente das demais entidades carnavalescas: “Já tinha estrutura, por exemplo,

não saía no carnaval, mas tinha um grupo de dança funcionando, tinha uma bateria, uma

banda fazendo show. E as escolas de samba e os outros blocos não tinham isso, só

apareciam no carnaval”. Além disso, na maior parte dos casos, “o pouco patrimônio que

[os blocos] tinham foi mantido, como os instrumentos”.

Em 1998, dos quinze grupos afro filiados ao CEAC, apenas dois não desfilaram.

Em 1999, voltaram a acontecer os concursos entre os blocos afro e assim se segue desde

então. Em 2002, o Ilhéus Folia deixou de ser realizado e o governo municipal, a terceira

gestão de Jabes Ribeiro (2001-2004), voltou a trazer trios elétricos para o carnaval cultural,

que neste ano teve a presença de doze grupos afro, além de blocos de arrasto, cantores e

bandas locais e atrações famosas de Salvador29.

Após discorrer superficialmente sobre o que tem sido o carnaval de Ilhéus das

últimas décadas até o momento, é preciso retomar a exposição dos diferentes fluxos que ao

se encontrarem, provocaram o surgimento do movimento afro-cultural. De todos os aqui

listados, talvez aquele a que se atribui maior importância seja a vinda para Ilhéus do ator e

dançarino Mário Gusmão.

Mário Gusmão

Quando fui a Ilhéus pela primeira vez, em 1997, ouvi falar de Mário Gusmão. Meu

trabalho não era exatamente sobre os blocos afro30 e em função do curto período de campo

de que dispunha, a história do movimento negro do município foi tratada muito

uma festa comum em todo o interior e certamente deu origem ao nome ‘micareta’, pelo qual são conhecidosos ‘carnavais fora de época’ que ocorrem em todo o país no estilo do carnaval de Salvador.29 Ver Anexo 5: “Quadro resumo da participação dos blocos afro nos carnavais de Ilhéus (1981-2004)”.30 Cf. Introdução.

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superficialmente. Assim, em minha dissertação de mestrado (Silva 1998:89-90), pouco

escrevi sobre o ator. Apenas que:

“O fundador do Miny Kongo foi Mário Gusmão, ator, bailarino e ex-integrante do Ilê Aiyê de Salvador que havia se mudado para Ilhéus.Mário Gusmão foi evocado em diversas ocasiões como o ‘grandemestre dos blocos afro’, ‘o precursor do movimento negro emIlhéus’”.

Alguns anos depois, não creio que meu conhecimento sobre Mário Gusmão tenha

se ampliado muito. Como sempre acontece, o período de campo pareceu curto para buscar

tantas informações diferentes e no caso dele, penso, seria interessante uma pesquisa que o

tivesse como foco central. Todavia, o aprofundamento da pesquisa na direção da história

do movimento negro em Ilhéus proporcionou-me conhecer um pouco mais de sua

passagem pelo município, o que é suficiente para, a partir das novas informações,

enfatizar, relativizar ou acrescentar outras àquelas dadas em 1998. É preciso dizer que

essas ‘novas’ informações não são fruto somente do trabalho de campo. Dois textos de

Jeferson Bacelar (2001 e 2003)31 e um ou outro comentário do próprio Mário Gusmão

colhido em Risério (1981) ajudaram muito a entender melhor o que se diz a seu respeito

em Ilhéus.

Mário Gusmão nasceu no município de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, em 1928.

Bacelar (2001) conta que ele era de família pobre, mas em função das relações de trabalho

de sua mãe e de sua avó com as “senhoras de sociedade” (:161), Mário pôde estudar em

escolas particulares, “de branco” (:164). Ele cresceu “junto aos candomblés” em

Cachoeira, mas “jamais se incorporou à religião afro-brasileira” (:166). Em meados dos

anos 40, Mário foi morar em Salvador com sua família. Relatando sobre seus primeiros

empregos na capital, Bacelar diz que ele era auto-didata em inglês e, por isso, conseguiu

31 Sou grata a Jeferson Bacelar por ter, tão gentilmente, enviado a mim o Capítulo VII de sua tese dedoutoramento em Ciências Sociais intitulada “Mário Gusmão. Um príncipe negro nas terras dos dragões damaldade”, defendida recentemente na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federalda Bahia, Salvador.

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190

um emprego numa “empresa americana” (:170; 175). Essa informação é relevante porque o

conhecimento de inglês é um dos elementos que compõem a imagem mais recorrente de

Mário Gusmão em Ilhéus como pessoa “experiente”, “inteligente”, “que até morou fora do

país”, o que de fato não aconteceu. As aulas de inglês que dava em Ilhéus são sempre

citadas como sua forma de ter renda na cidade e também de ser conhecido.

Bacelar também informa que Mário Gusmão foi o primeiro negro a ingressar na

Escola de Teatro da UFBa, o primeiro curso de teatro de nível superior do país (:174). Em

1959, um grupo dissidente da Escola de Teatro fundou o “Grupo dos Novos”, ao qual

Mário Gusmão viria a se integrar pouco tempo depois32. Em 1964, esse mesmo grupo

fundou o Teatro Vila Velha, ícone do Tropicalismo por ter sido o palco do início das

carreiras de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia e Tom Zé, entre

outros (:176).

Mário Gusmão tornou-se um ator famoso e consagrado: participou de inúmeras

peças de teatro e de vários filmes, especialmente de Glauber Rocha (:177). Mas em 1973,

passou cinqüenta dias na prisão por ter sido encontrado com uma grande quantidade de

LSD (:179). Deprimido, viveu um período de isolamento, até que, em meados da década de

70, voltou a trabalhar com o apoio de Clyde Morgan, dançarino negro americano, professor

da Escola de Dança da UFBa (Bacelar 2003:238) que, segundo Bacelar, foi quem

introduziu Gusmão “na riqueza da cultura africana e afro-brasileira”, que o fez “descobrir a

sua condição racial” (2001:180-1). Ele e Morgan atuavam no grupo de dança do Núcleo

Cultural Afro-Brasileiro. Além disso, como ressalta Bacelar, Mário Gusmão vivenciava de

perto o movimento político e cultural negro que se iniciava na década de 70 em Salvador, a

fundação do Ilê Aiyê, do MNUCDR (Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação

32 Entre os fundadores desse grupo estava Échio Reis, que faleceu em Ilhéus em 2000. Em 1997, em minhaprimeira visita à cidade, ele trabalhava para a Fundação Cultural e dirigia um grupo de teatro, tendo noelenco sob sua direção militantes do movimento negro chamado ‘político’.

Page 192: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

191

Racial), bem como os processos de independência dos países africanos e o movimento

negro americano (:181).

Em 1977, Mário Gusmão fez parte da delegação que foi representar o Brasil no II

Festival Mundial de Artes e Culturas Negras, em Lagos, na Nigéria. A viagem durou

menos de um mês (Bacelar 2003:247-8), mas em Ilhéus, para algumas pessoas, ela durou

anos, o que também valoriza e dá mais ‘autoridade’ a ele no que diz respeito ao seu

conhecimento sobre “a África”. Nessa época, embora Mário Gusmão ainda não fosse

militante ativo do Ilê Aiyê – segundo Bacelar, Mário Gusmão envolveu-se com o Ilê Aiyê

entre 1979 e 1980 (:257) – ele era amigo de Macalé dos Santos, dançarino e fundador do

grupo, e ambos trouxeram dessa viagem modelos de roupas, informações, objetos e outras

coisas que ajudaram a produzir o desfile do Ilê Aiyê quando o bloco homenageou a Nigéria

em 1979 (Risério 1981:42). Aliás, depoimentos de Gusmão estão espalhados por todo o

livro de Antônio Risério, com informações e opiniões sobre o movimento negro de

Salvador na década de 70, especialmente sobre o Ilê Aiyê.

Em 1981, Mário Gusmão estava morando numa região pobre de Salvador, estava

sem trabalho e não conseguia alunos para as aulas de inglês (Bacelar 2001:182). Com a

ajuda de Jorge Amado foi contratado pela prefeitura de Ilhéus no início daquele ano. Isso

aconteceu graças a uma carta de Jorge Amado ao então prefeito Antônio Olímpio (Bacelar

2003:246)33.

Gusmão foi contratado pela prefeitura com variadas funções. Como professor, ele

deveria “desenvolver atividades culturais nos colégios, ali formando grupos de teatro, de

dança e corais” (Bacelar 2001:182). Mas Bacelar também informa que ele foi “designado

para prestar serviços como auxiliar da Coordenação dos festejos do Centenário da Cidade”

33 Mário Gusmão disse a Bacelar que “pela amizade que Jorge Amado lhe devotava e para auxiliá-lo, exigia asua presença nos filmes adaptados de seus romances” (2003:246).

Page 193: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

192

(2003:263)34. Diz ainda que ele foi professor de inglês da prefeitura. Além disso, sabe-se

em Ilhéus que ele foi professor da Academia Raiz – onde desenvolveu o trabalho de dança

que deu origem ao Miny Kongo – e montou alguns espetáculos na cidade. Em 1983, Mário

Gusmão assumiu um cargo importante no departamento de Cultura de Itabuna, na gestão

de Ubaldo Dantas (:264).

Enquanto esteve na região cacaueira, os trabalhos como ator foram poucos, mas

importantes. Ele atuou em um filme, uma mini-série e uma novela. Em 1987, Mário

Gusmão retornou a Salvador, onde permaneceu até falecer em 1996 (Bacelar 2001:182).

Quando Mário Gusmão chegou em Ilhéus, em fevereiro ou março de 1981, seu

primeiro endereço foi o Oiteiro de São Sebastião. Para lá, ele levou consigo o reconhecido

e prestigiado ator que era, mas não apenas isso, era ator e era negro, “uma das figuras mais

queridas e respeitadas da comunidade negromestiça baiana”, assim o apresenta Risério

(1981:19); levou também o dançarino, especialmente de dança afro, da dança dos orixás,

muito interessado em ‘cultura’; levou a experiência da viagem à Nigéria, de ter conhecido

pessoalmente a África, ‘fonte de inspiração’ das roupas, das músicas, dos cabelos, dos

discursos de boa parte da juventude baiana no auge do movimento de ‘reafricanização’;

levou o militante que participava de reuniões com o movimento negro político de

Salvador; e, entre muitos outros, levou o ex-integrante do Ilê Aiyê, considerado “uma

espécie de consultor para assuntos artísticos, afro-brasileiros e africanos”, diz Vovô,

presidente do Ilê, em depoimento a Bacelar (2003:257-8). No mesmo ano em que chegou

em Ilhéus, Mário Gusmão foi jurado na Noite da Beleza Negra do Ilê Aiyê, ajudou a

fundar um afoxé em Salvador e viajou com este grupo para a Serra da Barriga, em

Alagoas, em homenagem a Zumbi dos Palmares (:259).

34 Outros atores e atrizes conhecidos nacionalmente também foram convidados pela prefeitura com o mesmopropósito.

Page 194: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

193

No Oiteiro de São Sebastião, Mário Gusmão encontrou “um movimento”, como

disse Luiz Carilo: encontrou um bloco afro recém-fundado, que era mais um desejo do que

um fato; encontrou jovens que haviam visto e/ou desfilado em blocos afro na capital e que

admiravam o Ilê Aiyê; encontrou nesses mesmos jovens a vontade de valorização da

África e da ‘negritude’; encontrou uma relação forte das pessoas, da comunidade, com o

carnaval – a Escola de Samba Vermelho e Branco, do Oiteiro, ainda desfilava e era uma

das mais importantes de Ilhéus; encontrou pelo menos uma pessoa ligada a candomblé,

Atanagildo, que naquele momento já era liderança do bloco.

Ao que Mário Gusmão levou para Ilhéus e para o Oiteiro e ao que encontrou por lá,

podem ser acrescentadas as condições, que talvez possam ser chamadas de ‘práticas’, que,

em maior ou menor medida, a depender do interlocutor, contribuíram para a formação do

Miny Kongo. É preciso lembrar mais uma vez que essas ‘condições práticas’ são pensadas

neste trabalho também como fluxos que participaram dos agenciamentos que produziram o

início do movimento dos blocos afro em Ilhéus.

A disponibilidade de Mário Gusmão para desenvolver atividades culturais em

Ilhéus, dada pelo tipo de contrato que tinha com o governo municipal, é ressaltada

especialmente por pessoas que, embora reconheçam sua importância para o movimento

negro ilheense, desejam minimizá-la. Essas pessoas encontram-se em uma luta discursiva

pela memória do movimento, por prestígio e pelo que possa advir dele. Mário Gusmão

acaba por fazer parte da mesma contenda que Carilo e Atanagildo protagonizam sobre o

primeiro bloco afro de Ilhéus: se cada um desses últimos reivindica para si a iniciativa do

primeiro bloco afro, então, Mário Gusmão não pode ter o título de ‘precursor’ do

movimento. Ambos, em suas entrevistas a mim, chamaram a atenção para o papel que

Gusmão deveria desempenhar na cidade como promotor de grupos culturais. Para Carilo, a

formação do Miny Kongo era parte de seu trabalho: “Ele recebia um salário da prefeitura

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194

(...). Então, o deles [Miny Kongo] era como se fosse financiado pelo governo. Ele tinha

direito a casa, comida e roupa lavada. Ele estava em Ilhéus para isso”. Atanagildo,

obviamente, não compartilha da opinião de Luiz Carilo. Porém, argumenta que o Miny

Kongo já existia e que a relação de Mário Gusmão com o grupo era de trabalho.

Outra ‘condição prática’ favorável foi o tipo de relação que Atanagildo foi capaz de

estabelecer com o governo municipal, que lhe proporcionou a obtenção da verba necessária

para o desfile do grupo em 1982. Também pelas mãos de Atanagildo vieram os primeiros

instrumentos, tanto aqueles que ele tomou emprestados com Pai Pedro graças à sua relação

com o terreiro, quanto aos demais, principalmente os de percussão, comprados com seu

próprio salário, segundo conta. Sua relação com o então candidato Jabes Ribeiro, que doou

os tecidos para o primeiro desfile do bloco, também pode ser contabilizada aqui.

A aproximação de Mário Gusmão da Academia Raiz também foi de suma

importância em função de ter ocorrido nesse espaço a gestação do grupo de dança afro, o

núcleo do Miny Kongo e, mais tarde, do Axé Odara. Para Missião um dos fundadores do

Miny Kongo que participava do grupo, foi aí que “tudo começou para os blocos afro de

Ilhéus”:

“Mário Gusmão nos levou para a Academia Raiz e lá fizemos umtrabalho de grupo, fizemos um trabalho de palco; ele nos davaorientações de teatro, de dança. Inclusive o Miny Kongo tinha seupróprio grupo de dança e de espetáculo. Fazia show em tudo que écidadezinha por aí”.

Quando saiu do Miny Kongo em 1984 e levou consigo seu grupo de dança para

fundar o Axé Odara – embora no estatuto de fundação do grupo não conste seu nome –

Mário Gusmão já não morava no Oiteiro, mas num sítio afastado da cidade, que o deixava

mais próximo de Itabuna, onde estava trabalhando.

As características mais marcantes do Axé Odara – ser mais um grupo de teatro do

que um bloco afro e ser mais politizado no que concerne à questão racial – parecem revelar

Page 196: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

195

uma influência ainda maior de Mário Gusmão do que a que se via no Miny Kongo. Em

1985, primeiro ano de desfile do grupo, estava em cartaz o show “África Presente”,

dirigido por Mário Gusmão e montado pelo Axé Odara. No jornal Diário da Tarde de

15/02 do mesmo ano, há uma nota – provavelmente a reprodução de um release feito pelo

grupo – que informa sobre o enredo do Axé Odara: “Moçambique, 9 anos de

Independência”. Diz também que “a proposta da negrada do Axé, que participa

intensamente do movimento negro ilheense, é levar para a avenida o espetáculo que o

grupo tem levado aos palcos das cidades da região cacaueira” e que a escolha do enredo

tem a ver com a vontade do grupo de “manifestar-se pela valorização da raça negra” e que

“Moçambique é símbolo de resistência negra na luta pela liberdade e contra a

discriminação racial”. Foi o Axé Odara que pela primeira vez em Ilhéus debateu e

manifestou-se contra a comemoração da Abolição da Escravidão em 13 de Maio35 e

comemorou o Dia Nacional da Consciência Negra. Nessa ocasião, o nome do grupo

divulgado pelo jornal foi “Comando Negro do Sul da Bahia Axé Odara”, que transmite

uma idéia politicamente mais agressiva em torno da questão racial. E dois anos depois, em

25/05/87, já sem a presença de Mário Gusmão, o jornal anuncia que o Axé Odara está se

“articulando para formar o MNUI” (Movimento Negro Unificado de Ilhéus), a ser descrito

no próximo capítulo.

Comecei esta seção reproduzindo o que escrevi sobre Mário Gusmão na dissertação

de mestrado. Depois de acrescentar outras informações àquelas que escrevi, é preciso

concluir esta parte do texto ‘consertando’ o que foi dito na ocasião. Primeiro, que Mário

Gusmão não foi o fundador do Miny Kongo, mas um deles, ao lado de vários outros.

Segundo, que é possível relativizar seu título de “precursor do movimento afro em Ilhéus”,

35 Diário da Tarde 11 e 12/05/85: “(...) o grupo afro ilheense inicia hoje as comemorações contra a data 13 demaio...”; e em 20/11, o mesmo jornal divulga a programação do grupo para o Dia da Consciência Negra, queinclui espetáculo no Circo Folias da Gabriela e missa em homenagem à memória de Zumbi dos Palmares.

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196

pois o desejo do movimento já existia antes de sua chegada. É claro que se ele “só fez o

seu trabalho” ou se “ele deu início a tudo. Foi a partir dele que tudo começou para os

blocos afro de Ilhéus”, é questão de ponto de vista. Em terceiro lugar, interessa enfatizar a

força de sua presença ainda hoje no movimento. As palavras mudam, mas a todo instante é

possível encontrar alguém do movimento afro-cultural de Ilhéus saudando-o como ‘o

grande mestre dos blocos afro’.

África e black power também em Ilhéus

Alguns outros movimentos que se tornaram importantes para o entendimento do

processo de reafricanização que ocorreu em Salvador também podem ser percebidos em

Ilhéus, ainda que com menor relevância e sem deixar de levar em conta que só sua

ocorrência na capital já afetaria a cidade.

Um deles é a intensificação de relações com países africanos, registrada, por

exemplo, na visita de ministros da agricultura da Nigéria, de Togo e de Camarões em 1968

ao terreiro de candomblé de Pai Pedro, um dos mais famosos da cidade (Barbosa 1994:49).

Em entrevista a Marcio Goldman36, em 1982, quando de seu trabalho de campo para sua

dissertação de mestrado, Pai Pedro falou dessa visita com orgulho, menos, talvez, por

serem ministros em seu terreiro, e mais por poder “conversar [com eles] normalmente”.

Além disso, segundo contou Pai Pedro a Goldman, posteriormente ele recebeu uma carta

do ministro da Nigéria dizendo-lhe que a língua ‘falada’ em seu candomblé era a mesma

língua de seus bisavós, língua já morta em seu país. Nessa mesma entrevista, Pai Pedro

disse ainda que vinha exercendo a função de intérprete da CEPLAC durante as visitas de

africanos, informações essas que legitimavam seu conhecimento de candomblé e que

36 A quem, mais uma vez, agradeço por disponibilizar alguns de seus dados para mim.

Page 198: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

197

produziam o efeito de fazer com que um terreiro de candomblé em Ilhéus pudesse ser tão

ou mais ‘africano’ do que a própria África.

As informações de Pai Pedro aliadas às de Santos (2000) permitem supor que as

décadas de 60 e de 70 podem mesmo ter experimentado uma intensa presença africana em

Ilhéus. Como já observado em Encontros 1, Santos enfatiza os esforços de aproximação do

governo brasileiro em direção ao continente africano como forma de criar um bloco de

países do terceiro mundo, tendo o Brasil como líder, esforços esses apoiados sobre

‘afinidades culturais’ e sobre a imagem do país como exemplo de democracia racial. Além

disso, seja compondo alianças ou seja em disputa direta, a relação de Ilhéus e região com

os países africanos era intensa em função do cacau que, ainda segundo Santos, era “o ponto

suscetível entre o governo brasileiro e países africanos” nesse desejo de aproximação, pois

em fins da década de 60, esses últimos passaram a ser a grande ameaça e mesmo os

causadores de mais uma crise da economia cacaueira. A informação de Santos de que em

1968 houve a XI Conferência da Aliança dos Produtores do Cacau justifica a visita dos

ministros africanos a Pai Pedro (2000:40-1), o que deve ter ocorrido na cidade algumas

outras vezes37.

Apesar de ter ouvido poucas referências a esse movimento, é preciso registrar que

fluxos de black soul também atingiram e agitaram parte da juventude negra de Ilhéus.

Alguns dos filhos mais velhos de D. Ilza costumavam freqüentar os bailes da década de 70

e a ‘produção’ deles e dos amigos era toda feita em sua casa: sapatos “cavalo-de-pau”

lustrados e cabelos penteados com pente “ouriçador” – feito com cabo de madeira e pentes

de guarda-chuva velho – para deixá-los no estilo ‘black’ faziam parte dessa produção, é o

37 O cacau é responsável também por outro tipo de interação de Ilhéus com o continente africano, ainda quemais recente do que o período acima focalizado e que, muitas vezes, não chega a acontecer porque setransforma em tragédia. Em função da queda de produção do cacau brasileiro, as indústrias passaram aimportá-lo de países africanos. O produto chega pelo porto de Ilhéus em grandes navios que trazem em seusporões passageiros clandestinos que vêm de países africanos para o Brasil. O problema é que os gases tóxicos

Page 199: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

198

que conta o presidente do Dilazenze, embora ele só pudesse observar o movimento, já que

não tinha idade para os bailes. E ‘vestígios’ da época ainda alcançaram o grupo, pois é o

que se pode deduzir do nome dado ao seu primeiro concurso de beleza, em 1986: “Garota

Black Dilazenze”. No ano seguinte, ele assume o nome de Noite da Beleza Negra, como o

Ilê Aiyê, e assim se mantém.

O “grupo de dança de clube” que também esteve na origem do Força Negra,

conforme já observado antes, é um outro exemplo desses mesmos agenciamentos. Embora

um pouco mais tardio, já no momento em que o black soul começava a ganhar os ares do

funk, no final dos 70, a organização em “grupo de dança” e a idéia de que se tratava de

“música de negro” refletia as propostas do movimento anterior.

À

Até o momento, este trabalho concentrou-se em apresentar como se deu o início do

movimento afro-cultural em Ilhéus, tendo sido este o propósito dos três primeiros

capítulos. Para que fosse possível entender o que aconteceu na cidade, o primeiro ‘relato de

encontros’ foi dedicado a mostrar os agenciamentos que promoveram o (res)surgimento de

uma série de fenômenos que acabaram por configurar a estética, o comportamento, a

música, as idéias que compuseram o que veio a ser chamado de reafricanização do

carnaval, de Salvador e da vida de parcela da juventude negra. Entre esses fenômenos estão

os blocos afro. Os fluxos que produziram mudanças na capital também atingiram Ilhéus e

com tanto mais força à medida que os fenômenos produzidos também criaram outros

fluxos que se agenciaram com outros tantos existentes na cidade. Os dois capítulos

seguintes visaram passar por processos sociais criadores desses fluxos, fossem eles

econômicos, históricos, políticos, culturais, religiosos etc.

produzidos pela fermentação das amêndoas de cacau fazem com que boa parte dessas pessoas cheguem

Page 200: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

199

Os dois próximos encontros formarão, então, uma segunda parte da tese, cujo

objetivo, grosso modo, será apresentar o funcionamento do movimento dos blocos afro em

Ilhéus a partir de desejos de diferir, de incluir e de ser incluído, que correspondem a

agenciamentos que geram, respectivamente, modos de subjetivação negra, comunitária e

artística ou empresarial.

mortas à cidade. Não era raro ouvir esse tipo de notícia enquanto estive no campo.

Page 201: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

200

Encontros 4

BLOCOS AFRO: SINGULARIZAÇÃO,TERRITÓRIOS EXISTENCIAIS, TERRITÓRIOS NEGROS

“Novas práticas sociais, novas práticas estéticas,novas práticas de si na relação com o outro, com o

estrangeiro, como o estranho: todo um programaque parecerá bem distante das urgências do

momento!”(Guattari 1995)

Quando o Miny Kongo e o Lê-guê Depá surgiram em Ilhéus, fundados

respectivamente em 1980 e 1981, o movimento dos blocos afro de Salvador já havia

tomado corpo. Em fins dos anos 70, a Bahiatursa criou o termo ‘bloco afro’ e oficialmente

eles passaram a constituir uma categoria específica no carnaval, o que significou horário de

desfile diverso dos demais blocos, verbas e quesitos de julgamento próprios também.

Embora nem todos concordassem e esta fosse uma forma de “domesticar preventivamente

o fenômeno afrocarnavalesco” (Risério 1981:121) que começava a aparecer, isolar esses

blocos do conjunto dos blocos carnavalescos e classificá-los sob o adjetivo ‘afro’

certamente contribuiu para lhes dar a força de um ‘movimento’.

É certo que não foi o termo implantado pela Bahiatursa que deu essa especificidade

aos blocos afro. Já em seu primeiro desfile, em 1975, ao permitir que só pessoas negras

desfilassem, o Ilê Aiyê mostrou que os organizadores do bloco e seus primeiros

componentes partilhavam de uma outra visão de mundo distinta daquela que predominava

Page 202: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

201

(e ainda predomina) na ‘sociedade brasileira’ ou na ‘sociedade baiana’ a respeito do que se

costuma denominar relação racial. A primeira conseqüência disso foram as acusações de

‘racismo’ feitas ao bloco por parte da imprensa1. O Ilê queria ser “um bloco original”,

como constava de seu primeiro cartaz de divulgação, e sua originalidade se manifestava no

uso de elementos – a indumentária, a música, o nome, os temas – que buscavam na

‘África’ sua inspiração: uma ‘África’ que passava por Lagos, na Nigéria, presente na foto

que ilustra o primeiro cartaz do bloco, mas que passava também pelo candomblé, do

Brasil, de onde vieram os primeiros instrumentos; enquanto o nome tinha origem

simultaneamente nas duas Áfricas: Ilê, presente no nome do terreiro da mãe de um dos

fundadores, e Aiyê buscado num dicionário de yorubá emprestado por um amigo iugoslavo

(Agier 2000:119 e Risério 1981:45)2. Na descrição dos agenciamentos que produziram o

surgimento do movimento dos blocos afro em Salvador (Encontros 1), pôde-se ver que

essa ‘outra visão de mundo’ e o desejo de ser ‘original’ foram gerados a partir de fluxos

que passaram por movimentos políticos, culturais, religiosos, musicais, econômicos etc.,

que ocorriam na África, nos Estados Unidos, na Jamaica, no Brasil...

O adjetivo ‘afro’ não tem, portanto, o mesmo sentido que ‘de sujo’, ‘de arrasto’, ‘de

trio’ ou de qualquer nomenclatura que sirva para categorizar um bloco de carnaval. Até

poderia ter, pois, em princípio, ele serviria para descrever que se tratava de um bloco

carnavalesco que se diferenciava de outros por utilizar um tal ritmo, uma tal forma de se

fantasiar, de privilegiar tais temas e alegorias. No entanto, dada sua vinculação a uma das

formas mais poderosas de estratificação – a racial –, o adjetivo ‘afro’ extrapola o carnaval

porque é mais do que uma designação de música ou de fantasias para um bloco

carnavalesco; ele marca distinções que vão muito além do momento do desfile. O adjetivo

1 Sobre a repercussão do primeiro desfile do Ilê Aiyê e as acusações de racismo, ver principalmente Gomes(1989), mas também Risério (1981).

Page 203: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

202

‘afro’ marca uma diferença não somente daquele bloco, mas daquelas pessoas em relação a

outras e essa diferença não se restringe ao carnaval, ela pode se estender à vida, ao dia-a-

dia. É nesse sentido, então, que a etiqueta ‘afro’ imposta aos blocos pela Bahiatursa

participa da constituição de um movimento: ao identificá-los em torno de uma

característica comum, ela contribuiu para que os grupos se aglutinassem a partir de

objetivos também comuns, os quais passavam tanto pelo carnaval quanto pelo cotidiano,

pelo anseio de mudanças sociais, políticas, enfim, pela vida. Além de atividades conjuntas

entre os blocos afro e destes com outros setores do movimento negro, em Salvador, foram

geradas duas associações – a FEBAB e a ABAB3 – e em Ilhéus, os blocos afro se

organizaram no CEAC (ou CEACI, como a entidade era chamada de sua fundação até

1997), que será melhor apresentado adiante.

Um dos corolários da idéia de movimento é o de perenidade dos blocos. Como já foi

destacado antes, um bloco afro deve estar em atividade o ano inteiro e dizer que ele só

“aparece no carnaval” é uma forma de acusação. Um desdobramento disso é que os blocos

passaram a não se formar como grupos carnavalescos – ao menos não em seus estatutos –,

mas como ‘grupos culturais’, ‘associações culturais’ e outros termos semelhantes. Assim,

embora desfilar no carnaval continue sendo o principal motivador de constituição dos

blocos4, a atividade passou a ser mais uma de suas atribuições e, dependendo do contexto –

especialmente para pessoas externas ao movimento –, não é nem mesmo a mais

fundamental delas. Ao longo deste capítulo, serão apresentadas evidências etnográficas

para essa afirmação.

2 Ilê: “Denominação da casa de candomblé (...); casa”; Aiyê: “(...) mundo, terra, tempo de vida” (Cacciatore1977:148; 41).3 Cf. Encontros 1.4 Autores que escrevem sobre blocos afro em Salvador relacionam outras motivações para a criação dasentidades que serão discutidas no decorrer deste capítulo e do seguinte.

Page 204: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

203

Os blocos afro surgiram no processo de emergência dos novos movimentos sociais

nas décadas de 60 e 70, quando a luta política deixou de ser exclusiva da esfera da

produção e se embrenhou em outros domínios da vida social, mostrando que a diferença de

classe não era a única existente nem a única que exigia mudança. A luta contra outras

formas de opressão tinha de passar inicialmente pela demonstração de sua existência, o que

só seria possível dando visibilidade às minorias e enfatizando as diferenças sobre as quais

estavam calcadas as relações de opressão. No caso da luta contra o racismo, “assumir a

negritude” através de tudo o que pudesse ser identificado com ‘cultura negra’ era a forma

de marcar a diferença5 e mostrar uma modalidade de opressão sofrida exclusivamente pela

população negra no Brasil. Dever-se-ia ser negro acima de tudo. O nascimento do Ilê Aiyê

se dá, então, no agenciamento de fluxos do movimento do black soul e do black power, do

reggae, das lutas de independência de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, da

valorização do candomblé, entre outros. Todos movimentos de ‘afirmação de negritude’. O

Ilê nasce, assim, como mais uma forma de expressar a singularidade de ser negro numa

sociedade que gosta de se conceber misturada e sem diferenças raciais, portanto, sem

racismo.

A essa postura dos movimentos sociais – lembrando que enfatizar a especificidade

era uma estratégia comum a todos os grupos minoritários – corresponde uma forma de

análise acadêmica que privilegia essa diferença, também considerando-a acima de tudo.

Assim, um outro corolário dessa posição de movimento negro defendida pelos blocos

reside no tipo de análise acadêmica que incide sobre eles, que faz com que não só a origem

dos grupos, mas também todas as suas práticas, sejam explicadas pela ‘tomada de

consciência’, ou não, de uma ‘identidade étnica’.

5 Cf. a argumentação presente em Encontros 1.

Page 205: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

204

A proposta aqui não é negar que os blocos afro sejam grupos de pessoas que se

organizam a partir da identificação com temas que podem ser chamados de ‘raciais’ ou

‘étnicos’ ou ‘que têm origem na diáspora negra’... É claro que as pessoas pensam nisso.

Um dos objetivos desse novo ‘relato de encontros’ é mostrar através da etnografia que os

blocos afro se constituem em torno de dois aspectos fundamentais: carnaval e ‘cultura

negra’. Ambos são termos polêmicos. O primeiro porque às vezes é visto como um aspecto

secundário, até menor, do grupo; é como se, entre muitas outras coisas, os blocos se

organizassem para sair no carnaval. Ao contrário do que costuma parecer, essa é uma

definição central, um argumento importante para diversos posicionamentos dos grupos

frente às críticas que lhes são feitas. O segundo aspecto fundamental de definição dos

blocos afro é que eles são grupos de pessoas que, em geral, mas não exclusivamente6, são

classificadas e se auto-classificam como negras e estão organizadas em entidades que têm

como objetivos principais a ‘valorização’, a ‘preservação’ e a ‘divulgação’ do que é

concebido por elas como ‘cultura negra’.

Sem querer adotar uma visão legalista, o fato de ser essa a definição que consta da

maioria dos estatutos dos blocos deve ser levado em consideração. E isso acontece. Ainda

mais do que em relação ao primeiro aspecto – o de serem entidades carnavalescas – não há

discordâncias quanto ao segundo. No entanto, nas definições extraídas dos trabalhos de

pesquisa a respeito do tema, parece haver uma necessidade de um complemento para esta

segunda definição: valorizar, preservar e divulgar a ‘cultura negra’ não são objetivos que

se encerrem em si mesmos; é preciso que eles sejam seguidos de um ‘para’ ou um ‘a fim

de’ ‘aumentar a auto-estima da população negra’ ou ‘promover a consciência negra’ ou ‘a

cidadania’, ‘ocupar um lugar na sociedade’, ‘construir uma identidade cultural negra’,

6 Somente no Ilê Ayiê há essa exclusividade.

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205

entre outros complementos de mesmo significado7. Apresentar a existência dos blocos afro

em função de seu objetivo de ‘valorização’ da ‘cultura negra’ como forma de luta contra a

dominação pela discriminação racial, aumentando a ‘auto-estima’, mostrando ‘o negro’

como ‘não inferior’, como ‘igual’ ‘ao branco’... é um discurso recorrente nos grupos e

entre os intelectuais que tratam do tema, além de ser o que torna possível a aproximação

entre os blocos afro e os grupos do movimento negro dito político, apesar de todas as

divergências ainda colocadas.

Contudo, parecem ser os intelectuais os que mais levam a sério esse discurso. Não

que ele seja falso, ou que os grupos não se julguem cumprindo esse papel ou ainda que os

militantes do movimento negro não acreditem no trabalho dos blocos afro. A questão é

que, para a maioria dos componentes dos blocos, termos como ‘auto-estima’, ‘cidadania

negra’ ou ‘consciência negra’ não são natural e primariamente constitutivos deles, ou seja,

eles não nasceram para isso, embora seu trabalho possa ter esses resultados. Na verdade, é

também isso o que enxergam os militantes do movimento negro político, daí as constantes

críticas que estes dirigem àqueles, baseadas na proposição de que a luta contra a

discriminação racial deveria ser o objetivo principal, sendo ‘cultura negra’ apenas o meio

de promovê-la. É nesse sentido que parecem ser os intelectuais que estudam os blocos afro

os que mais fazem uso desse discurso para defini-los. Ainda quando os trabalhos

apresentam várias outras dimensões do cotidiano dos blocos ou de suas motivações para se

organizarem, o enfoque na ‘identidade étnica’ (ou ‘etnicidade’ ou ‘negritude’)

sobrecodifica todo o resto.

A primeira seção deste Encontros 4 tem por objetivo explicitar por que caminhos,

também neste trabalho, os blocos afro são concebidos como ‘territórios negros’. Esta é

uma definição bastante comum tanto na literatura especializada quanto no meio militante,

7 Zourabichvili (2000) observa que toda organização política tem uma ‘meta’, um ‘projeto’ a cumprir e é uma

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206

mas a idéia de território aqui não passa necessariamente por um ‘espaço’, mas por um

modo de existência, conforme ver-se-á a seguir.

A segunda seção visa apresentar a relação dos blocos afro de Ilhéus com o

candomblé como principal, porém não única, fonte de elementos de ‘cultura negra’, que

alimenta cotidianamente a produção das atividades, da estética, mas também das

concepções e formas de agir de seus membros, ou pelo menos, de boa parte deles.

Contudo, os grupos afro-culturais de Ilhéus também se relacionam com outras religiões, ou

ainda, outras religiões também interagem com o movimento dos blocos afro, assunto

abordado em seguida.

Na terceira seção far-se-á uma descrição das atividades e elementos que

caracterizam um bloco afro a partir de um viés que pode ser denominado de étnico, que

produzem e são produzidos por um modo de subjetivação negro. Dado que os blocos afro

são entidades carnavalescas, é sobretudo na sua forma de se apresentar na festa – fantasias,

temas, coreografias, música – e em sua preparação – ‘Noite da Beleza Negra’, ‘Festival de

Música’ – que mais se expressa sua singularidade. O carnaval é a ‘vitrine’ dos blocos afro,

afirmação que já se tornou um clichê entre acadêmicos e militantes. E é justamente porque

os grupos afro se mostram mais ‘racializados’ no carnaval, quando sua proposta de diferir

fica mais em evidência, que a festa constitui o grande foco de análise das teorias sobre

identidade e etnicidade que definem o movimento dos blocos afro. O carnaval é concebido

como o espaço-tempo da produção de identidade; é a fronteira onde ocorrem as relações

interétnicas. Seja como ‘inversão’, ‘contestação’ ou ‘deformação’ ‘da realidade’ ou como

elevação de auto-estima e imposição social, busca da ocupação de um lugar, investimento

na mudança da organização social... Uma rápida passagem sobre essas análises e o que elas

implicam para a definição de bloco afro será o tema da quarta seção.

espécie de obrigação que todas elas venham acompanhadas da pergunta “o que se propõe?” (:333).

Page 208: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

207

Ao mesmo tempo em que “é bom assumir a negritude” no espaço do bloco, para

além do racismo que incide sobre as pessoas individual ou coletivamente – racismo sentido

assim como uma agressão pessoal ou sobre toda a população negra –, ser um grupo

racialmente organizado também impõe relações racialmente orientadas, que ora podem

significar uma conquista para os grupos, ora podem revelar-se pelo racismo de outros

setores sociais. Descrever tais relações é o objetivo da quinta seção.

Por fim, na sexta seção deste capítulo, o foco será o movimento afro-cultural

essencialmente enquanto movimento: sua organização como movimento cultural e suas

relações políticas.

Bloco afro como território negro

Conforme foi adiantado no final do capítulo anterior, este capítulo e o próximo

objetivam mostrar os agenciamentos que constituem o movimento afro-cultural de Ilhéus.

Não há dúvida de que o desejo de diferir é fundamental na proposta de organização de um

bloco afro e que isso se dá nos encontros de elementos provenientes do que é concebido

como ‘cultura negra’, gerando, então, uma forma de pensar o mundo a partir desse desejo,

ou seja, a partir de um modo de subjetivação negro. Porém, este não é o único desejo que

constitui um bloco afro, nem o único processo de subjetivação gerado por ele, daí a

importância de situá-lo num capítulo – este – reservando o seguinte para outros desejos e

outras formas de subjetivação.

É amplamente difundida a idéia de que a categoria ‘negro’ foi construída pela

escravidão, que aboliu origens e transformou a todos em escravos, escravos vindos da

África, escravos negros. Mas a categoria imposta transformou-se em auto-percepção e em

arma de luta. Retomando o artigo de Rolnik (1989), a idéia de ser negro surgiu e se

desenvolveu na senzala: “o confinamento na terra de exílio foi capaz de transformar um

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grupo – cujo único laço era a ancestralidade africana – em comunidade” (:30). A senzala,

foi assim, o primeiro território negro. Ao longo do tempo, outros foram surgindo, sendo o

quilombo o mais representativo deles, pois propunha uma forma de se pensar e de interagir

com a ‘sociedade’ como um grupo distinto, formado a partir da experiência singular e

violenta da escravidão.

A associação entre bloco afro e ‘território negro’ é recorrente nos meios militantes

e acadêmicos, seja em artigos, em palavras de ordem ou em letras de música. Guerreiro

afirma que a “noção de territorialidade é uma marca das organizações afro de Salvador”

(1998:112) e que esses territórios “funcionam como local do encontro, da troca, das

elaborações simbólicas que permitem a construção das identidades” (:119). Michel Agier

diz que depois da criação do Ilê Aiyê, o bairro da Liberdade passou a ser chamado de

“novo quilombo” (2000:63); o Curuzu, sub-bairro onde está situado o grupo, é a ‘nova

senzala’; a sede do Ilê tem o nome de ‘Senzala do Barro Preto’ (significado do termo

Curuzu). Ainda segundo Agier, os blocos afro são “espaços negros urbanos” definidos a

partir de limites constituídos por “traços físicos, sociais ou culturais” que formam

“fronteiras simbólicas entre etnias”, as quais são concebidas pela obrigatoriedade da

identificação “frente aos outros e ao olhar dos outros” (2003:08). O nome escolhido do Ilê

Aiyê passa pela idéia de território ou, para usar uma expressão de Agier, de “espaço social

negro”, pois dá ao grupo uma noção de “casa” – significado do termo “ilê” –, de “busca de

um lugar, de um espaço seguro, traço visível de um ancoradouro cultural afirmado contra

todas as depreciações, sociais e culturais, às quais os negros são habitualmente submetidos

nos espaços cotidianos não segregados” (Agier 2000:121)8. Ribard (1999), embora não use

o termo ‘território’, conduz a sua análise do surgimento dos blocos afro em Salvador em

torno da noção barthiana de “fronteiras étnicas”, de um ‘nós’ que se forma como “grupo

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étnico” frente a um ‘outros’, importando saber como a fronteira é mantida, isto é, como os

blocos afro investem na diferenciação para construir e manter uma “identidade étnica”, que

os permita ser “outros”9. De acordo com essa análise, a rua, e mais exatamente o carnaval,

seriam o lugar da fronteira, das “relações interétnicas” entre “movimento afro-baiano” e

“sociedade global” (:304), do “confronto” de “dois mundos e duas identidades

antinômicas”, simbolizados pelo jovem negro do bloco afro e pelo jovem branco de um

trio elétrico famoso (:306). Assim, o bloco afro, seja enquanto sede ou grupos de pessoas

desfilando na avenida ou mesmo como ‘referencial étnico’ de pessoas que se pensam como

‘nós’ em oposição a ‘outros’, é percebido como um lugar.

Michel Agier (2000) conta a história da fundação do Ilê Aiyê a partir da

organização de jovens vizinhos, moradores do bairro da Liberdade, para o lazer. Mesmo

antes da fundação da Zorra, uma espécie de pequena empresa que organizava excursões a

partir da qual seria criado o Ilê, os jovens amigos saíam juntos no carnaval formando uma

banda (:69), estudavam na mesma escola (:66), organizavam torneio de futebol, grupos de

quadrilhas para São João, saíam juntos para praias, para os bailes... (:65). Era, assim como

tantos outros, um grupo de amigos criando atividades para estar juntos. E o Ilê foi mais

uma dessas atividades. O Ara Ketu também foi produto de um desejo coletivo de amigos e

familiares que queriam sair no carnaval (Guerreiro 2000:37).

Entre os blocos afro de Ilhéus não foi diferente. O Lê-guê Depá surgiu quando

pessoas que se juntavam para atividades artísticas e de lazer resolveram fundar um bloco

afro. No Miny Kongo, mesmo antes da Academia Raiz e de Mário Gusmão, da história de

formação do bloco contada por um dos seus fundadores pode-se concluir que eram amigos

8 É o próprio Agier quem diz que a tradução para Ilê Aiyê mais divulgada pelo grupo é a de “Mundo Negro”(2000:122).9 No primeiro capítulo de sua obra, chamado “A Questão Étnica”, Ribard (1999) faz um apanhado geral danoção de etnicidade, apresenta os conceitos de Frederik Barth cunhados em Os Grupos Étnicos e suasFronteiras, de 1969, e sua aplicação sobre o que ele chama de “Mundo Afro” de Salvador.

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que saíam juntos: segundo Atanagildo, foi numa excursão para Olivença, distrito

hidromineral de Ilhéus, que pela primeira vez se comentou sobre a formação de um bloco

afro. O mesmo se dá com o Força Negra, formado a partir do MEPI10, e até mesmo com o

Dilazenze: apesar do grupo vir na esteira da participação de seus membros em outros

blocos, uma associação de amigos de bairro chamada Associação Juvenil do Alto dos

Carilos – AJAC foi uma das bases para a formação do bloco.

Antes da AJAC, já havia a Associação Desportiva do Alto dos Carilos –

ASSEDAC. Apesar do termo “desportiva”, tratava-se de uma associação de moradores

fundada e presidida por um irmão mais velho do atual presidente do Dilazenze. Talvez pela

diferença de geração, não havia espaço na ASSEDAC para os adolescentes. A criação da

AJAC visava suprir a demanda do grupo de amigos por passeios, festas e, principalmente,

torneios de futebol, o que garantia uma “mobilização” muito maior do que aquela

conseguida pela associação de moradores, pois seu presidente “não gostava de futebol”. Os

primeiros e únicos bens adquiridos pela associação foram “material esportivo”, como bolas

de futebol e jogos de camisa.

Poder-se-iam multiplicar muito os exemplos de blocos afro que nasceram a partir

de outras formas de organização, sejam comunitárias ou simplesmente de amigos de rua.

Ribard afirma que uma das principais características dos grupos negros é a socialidade

baseada na idéia de “viver com”, de “estar junto” (1999:479). Agier diz que os blocos “são

habitualmente os produtos da sociabilidade dos bairros” (2000:59). Assim, é preciso

lembrar que um grupo afro enquanto um “espaço social negro”, “lugar onde os negros

fiquem à vontade”, como um “oásis”, tal como esse autor o define (1992:71), é antes um

‘espaço social’, onde, a princípio, amigos se reúnem e se sentem ‘à vontade’. Os blocos

afro, seriam, então, territórios negros não somente porque são espaços onde pessoas negras

10 Uma associação estudantil, conforme descrito em Encontros 3.

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se reúnem – o que já acontecia antes – mas, fundamentalmente, porque aí é produzida o

que Guattari chama de uma “subjetividade dissidente” da “subjetividade capitalística”, que

é a dominante (1986)11. Seguindo Raquel Rolnik (1989), então, poder-se-ia afirmar que os

blocos afro são “territórios negros” porque neles continua a se desenvolver um devir

negro12, que floresceu ainda nas senzalas, como “afirmação da vontade de solidariedade e

autopreservação que fundamentava a existência de uma comunidade africana em terras

brasileiras”. Foi essa “vontade de solidariedade e autopreservação” que fez com que

grupos totalmente heterogêneos, “cujo único laço era a ancestralidade africana”, pudessem

se constituir em comunidade (:30).

Assim, a associação entre território negro e bloco afro conjuga o espaço físico do

bloco – seja como sede, mas também como grupo de pessoas desfilando na avenida,

ensaiando em uma praça, promovendo ou assistindo a um espetáculo – com um “território

existencial”, tal como definido por Guattari (1986): “Um território é o conjunto de projetos

ou de representações sobre o qual vai se desencadear pragmaticamente toda uma série de

comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos,

cognitivos.” (:119). Diferentemente de ser um ‘espaço negro’, a idéia que guia este

11 “Subjetividade dissidente” é o mesmo que “processo de singularização”, “singularidade”; é a invenção deoutros modos de existência: “o termo ‘singularização’ é usado por Guattari para designar os processosdisruptores no campo da produção do desejo: trata-se dos movimentos de protesto do inconsciente contra asubjetividade capitalística, através da afirmação de outras maneiras de ser, outras sensibilidades, outrapercepção, etc.” (Guattari e Rolnik 1996:45). “Subjetividade capitalística” é o mesmo que “ordemcapitalística”, cuja definição fica bem clara no seguinte trecho: “A ordem capitalística produz os modos dasrelações humanas até em suas representações inconscientes: os modos como se trabalha, como se é ensinado,como se ama, como se trepa, como se fala, etc. Ela fabrica a relação com a produção, com a natureza, com osfatos, com o movimento, com o corpo, com a alimentação, com o presente, com o passado e com o futuro –em suma, ela fabrica a relação do homem com o mundo e consigo mesmo.” (:42).12 Devir: termo de Deleuze e Guattari da ordem do desejo: “É que devir não é imitar algo ou alguém,identificar-se com ele. (...) Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que sepossui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento erepouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e atravésdas quais nos tornamos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo. (...) O ator De Niro, numaseqüência de filme, anda ‘como’ um caranguejo; mas não se trata, ele diz, de imitar o caranguejo; trata-se decompor com a imagem, com a velocidade da imagem, algo que tem a ver com o caranguejo.” (Deleuze eGuattari 1997:64-67). Adiante, os autores dizem que “até os negros, diziam os Black Panthers, terão quedevir-negro. Até as mulheres terão que devir-mulher.” (:88).

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trabalho é a de perceber o bloco afro como ‘território negro’ no sentido de lugar de

produção de subjetividade negra.

Blocos afro e Religiosidade

Bloco afro e candomblé

No primeiro capítulo deste trabalho, ao mostrar que agenciamentos produziram o

processo de reafricanização do carnaval e o surgimento dos blocos afro, pôde-se ver que o

candomblé teve uma posição de destaque em todo o processo. A partir das décadas de 60 e

70, o candomblé passou a ser valorizado especialmente como resultado da mistura, do

sincretismo, do ‘Brasil mestiço’, tornando-se, então, ‘religião alternativa’ e ‘atração

turística’, imagem-símbolo da ‘baianidade’13. Por outro lado, os movimentos negros não

permitiram que o candomblé fosse apropriado exclusivamente pela idéia de ‘mestiçagem’ e

transformaram-no também em símbolo de ‘negritude’ e de ‘resistência’ por sua forte

relação com uma origem africana, cujos principais elementos característicos teriam sido

conservados na língua dos cânticos, nos mitos dos orixás, nas roupas, na dança, nos

instrumentos, nos ritmos etc, o que faz da religião a mais importante fonte de ‘cultura

negra’ do país.

Não bastasse o fato do candomblé ser chamado de ‘guardião’ da cultura negra no

Brasil nos meios militantes e inspirar as manifestações artísticas de boa parte dos grupos

negros já existentes em meados dos anos 70, o primeiro bloco afro ainda surgiria no seio

de um terreiro, influenciando sobremaneira o que passaria a ser assim concebido. Do

candomblé, saíram ritmos, temas, nomes, danças, instrumentos, acessórios, vestimentas...

Dessa perspectiva, todo o capítulo poderia se resumir a esta seção, pois a maior parte dos

elementos que constituem um bloco afro na dimensão que aqui está sendo referida como

‘étnica’ poderia ser encontrada na sua relação com a religião. No entanto, eles também são

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compostos a partir de outros agenciamentos, o que torna mais profícuo pensá-los

separadamente, levando em conta outras conexões.

O candomblé, porém, participa do funcionamento de um bloco afro sob uma outra

dimensão, uma que não passa apenas por ‘características’, mas por rituais14, rivalidades

entre os grupos e orientações que guiam as ações dos dirigentes, por exemplo.

Em Ilhéus, nem todos os blocos afro têm relação com o candomblé como religião15.

Isso ocorre com mais intensidade em quatro deles. Na descrição do nascimento do Miny

Kongo no capítulo anterior, foram dadas informações que ligam o grupo à religião: seu

nome, os primeiros instrumentos emprestados de dois terreiros e a relação de um de seus

fundadores com um desses terreiros. O nome do Zambi Axé também tem origem no

candomblé: Zambi é o deus supremo, o equivalente, na nação angola, a Olorum em ketu, e

axé significa a força, a energia que abarca e constitui tudo o que existe. Além disso, e

como já foi dito, o local onde o grupo guarda seus instrumentos e na frente da qual realiza

seus ensaios, é também um terreiro de umbanda, cujos ogãs, filhos carnais da mãe-de-

santo, são importantes percussionistas do bloco. Outro grupo que tem seu dirigente e um

dos principais percussionistas como ogã de uma casa de candomblé é o Danados do

Reggae.

Mas a relação mais explícita se dá no caso do Dilazenze: em Ilhéus, foi o único

grupo a nascer, assim como o Ilê Aiyê, no interior de um terreiro de candomblé, o

‘Terreiro de Euá Tombency Neto’, cuja data de fundação remonta a fins do século XIX,

ainda que com outros nomes. A atual mãe-de-santo, também fundadora do Lê-guê Depá16,

é a quarta geração a ocupar a direção do terreiro, sucedendo à sua mãe desde 1975, dois

13 Cf. Encontros 1.14 O ritual de saída do Ilê Aiyê é uma das características mais marcantes do bloco. Ele costuma ser maiscomentado e prestigiado do que o próprio desfile do grupo.15 O motivo da ressalva com sentido de esclarecimento é que mesmo aqueles grupos cujos dirigentes nãopertencem ao candomblé, de uma forma ou de outra se relacionam com ele através dos elementos aquichamados de característicos dos blocos.

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anos após o seu falecimento. Sua antecessora dirigiu o ‘Terreiro de Senhora Santana

Tombency Neto’ entre 1942 e 1973. Ela sucedera a seu irmão falecido em 1941. Foi nesse

momento, mais exatamente em 1946 – quando concluiu suas obrigações religiosas – que o

terreiro passou a fazer parte da linha genealógica do Tombency, cuja matriz, em Salvador,

é o primeiro terreiro de nação angola do Brasil. Isso aconteceu porque a finalização das

“obrigações” tanto da atual mãe-de-santo quanto de sua antecessora17 foram feitas por uma

mãe-de-santo de um terreiro descendente do primeiro Tombency. Seu tio materno e pai-de-

santo antes de sua mãe havia assumido o terreiro em 1915 com o nome de ‘Terreiro Roxo

Mucumbo’, um ano após o falecimento de sua mãe, que havia fundado o ‘Terreiro Aldeia

de Angorô’ em 1885.

O nome do Dilazenze é uma homenagem a um personagem importante da história

do terreiro. Dilazenze Malungo era a dijina18 de Hipólito Reis, amigo e pai-de-santo do tio

da atual mãe-de-santo. Ele iniciou as obrigações de sua mãe e faleceu antes que pudesse

completá-las. Ele era “africano” (não se sabe dizer em que país nasceu) e “nem sabia falar

bem o português”, o que certamente lhe conferiu uma legitimidade ainda maior para

exercer suas funções religiosas. É também importante registrar que Hipólito Reis foi o pai-

de-santo do tio da mãe-de-santo do Tombency, ainda que este já exercesse a função há

muito tempo, sem que houvesse sido iniciado por ninguém – “exercia por dom”, assim

como sua mãe19.

16 Cf. Encontros 3.17 Mãe e filha “de sangue”, irmãs “de santo”, Dona Ilza, a atual mãe-de-santo ainda era criança quando foifeita no santo no mesmo barco que sua mãe, em meados da década de 40. Quando ela faleceu, D. Ilza era‘mãe pequena’ da casa, a segunda função mais importante em um terreiro.18 Dijina : “nome pelo qual a filha ou filho de santo será conhecido, dentro do ritual, após sua iniciação. Érevelado pelo orixá ou entidade protetora pessoal. É formado pelo nome conhecido do santo, acrescido deuma qualidade especial deste, e mais, às vezes, o local de origem da divindidade ou da entidade. Termousado nos candomblés bantos e na Umbanda.” (Cacciatore 1977:105).19 Em 1997, durante meu primeiro trabalho de campo em Ilhéus, foi-me solicitado que reunisse asinformações ali disponíveis sobre a história do terreiro e redigisse uma “apostila” para os compositores dobloco. O tema do carnaval de 1998 seria “Tombency Angola, essa é a sua história”, uma homenagem aoterreiro. “Apostila” é um pequeno texto com as informações necessárias sobre o tema para orientar oscompositores na redação das músicas que concorrerão no festival (quando ele acontece), cujas vencedoras

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A vida do Dilazenze, então, começou fortemente vinculada ao terreiro. A própria

adoção do nome só foi possível após um pedido de permissão feito através do jogo de

búzios, já que se tratava de um dos mais importantes eguns20 do terreiro. Dada a permissão

e verificado que o Dilazenze devia ser consagrado “de Xangô”, orixá de Hipólito Reis,

passou-se à realização de todos os rituais necessários à sua existência. Os fundamentos21 do

Dilazenze estão enterrados no centro do barracão do terreiro junto com os fundamentos

deste, o que lhe dá uma relação muito estreita com a dimensão do sagrado, um

“compromisso”. E este “compromisso” costuma ser invocado, especialmente pela mãe-de-

santo, nas ocasiões em que há algum conflito interno ao grupo: é preciso “respeitar os

fundamentos”, é um “compromisso que não pode ser desfeito por qualquer coisa”.

Na verdade, a interferência do ‘sagrado’ nos momentos de conflito entre os

dirigentes do grupo – que, não se deve esquecer, são irmãos, o que faz qualquer conflito

ser ainda mais grave – é recorrente. Um desses momentos, rapidamente descrito na

Introdução deste trabalho, ocorreu às vésperas do carnaval de 2000. Eu havia chegado em

Ilhéus no sábado anterior ao carnaval, dia do festival de música e Noite da Beleza Negra,

quando é eleita a ‘rainha’ do bloco. Esse também é o dia de tentar arrecadar recursos

extras, já que o orçamento do desfile costuma ser sempre mais alto do que o montante

concedido pela prefeitura. O problema é que só o próprio evento já consome recursos

extras, além do pouco conseguido junto a (raros) patrocinadores e ao governo municipal.

serão cantadas durante o desfile. Essa é uma prática também entre os blocos de Salvador (ver Ribard1999:423; Risério 1981:44; Agier 2000:36; 79-80; Guerreiro 2000:89-93). Não considero o texto da apostilacomo de minha autoria: ele apenas é, como disse, uma reunião de informações contidas no livro Encontro deNações de Candomblé, 1984, em documentos do terreiro e complementadas por entrevistas com D. Ilza, aatual mãe-de-santo do Tombency. Miguel Vale de Almeida e Susana Viegas, ambos antropólogosportugueses realizando pesquisa em Ilhéus durante meu primeiro período de campo, foram convidados pormim a acompanhar uma das entrevistas com D. Ilza, na qual também estavam presentes alguns de seus filhoscarnais e filhas-de-santo do Tombency. Vale de Almeida reproduziu o texto da apostila parcialmente e commodificações num artigo (2000:87-90).20 Egun: “Espíritos, almas dos mortos ancestrais que voltam à Terra em determinadas cerimônias rituais.”(Cacciatore 1977:110).21 Fundamentos: “ ‘Assentamentos’, objetos que contêm o axé das divindidades e ficam enterrados sob ocentro ou outro local especial do terreiro, constituindo a base mítica do mesmo.” (Cacciatore 1977:132).

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216

Um palco foi montado na rua, em frente à quadra do Dilazenze, e até que compareceu um

bom público se a chuva terrível que caía for levada em conta, mas a arrecadação só deu

para cobrir os custos do momento.

Sem ter como adiantar a compra de todo o material para o desfile por falta de

verbas, o jeito era esperar pelo “dinheiro da prefeitura”, que só foi liberado na terça-feira

imediatamente anterior ao carnaval. A base da fantasia seria de tecido amarelo, amarelo

forte, amarelo ouro, que é uma das cores do Dilazenze, mas seria preciso encontrar

também estampados com motivo afro e outras cores. Para facilitar a compra, aluguei um

carro e nos dirigimos para Jequié, município situado a cerca de duas horas e meia de

Ilhéus, onde haveria uma concentração de fábricas têxteis; não encontramos, porém, os

tecidos desejados por lá. No dia seguinte, procuramos os tecidos em Ilhéus – o pouco que

havia fora comprado no dia anterior por outros blocos, especialmente o Miny Kongo, cuja

cor predominante também é o amarelo. Fomos, então, a Itabuna, município vizinho a

Ilhéus, e também nada foi achado. Já era quarta-feira e as costureiras precisavam iniciar o

trabalho, caso contrário não haveria tempo de produzir as cerca de cento e cinqüenta

fantasias pretendidas. O clima estava tenso e era grande o nervosismo por parte de todos os

envolvidos com o bloco. À noite, no retorno de Itabuna, houve uma intensa discussão entre

três irmãos: o presidente do bloco, o vice-presidente, e um outro, nem tão envolvido com o

grupo, mas nosso ‘motorista’ naquela ocasião. Acusações, gritos e ânimos muito exaltados.

Nesse momento, a mãe-de-santo, muito nervosa, tentava acalmar seus filhos, quando sua

‘cabocla’, uma das entidades mais importantes do terreiro, a possuiu. A discussão cessou e

os três foram chamados para conversas particulares com ela. Depois disso, todas as pessoas

que de alguma forma estavam envolvidas na preparação do bloco para o carnaval ali

presentes foram convocadas para passar por rituais de limpeza e de proteção. Enquanto

aguardávamos a preparação dos banhos que todos deveríamos tomar, resolvemos que o

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217

carro seria alugado por mais um dia e iríamos a Salvador comprar os tecidos. E assim

fizemos, só retornando a Ilhéus na madrugada da sexta-feira, quando as costureiras

iniciaram o trabalho e não descansaram até a noite de domingo, mais precisamente até o

momento de saída do grupo para o desfile. E o Dilazenze conquistou seu bicampeonato.

As obrigações para o carnaval do Dilazenze começam cerca de uma semana antes,

com providências tomadas pela mãe-de-santo. Na noite anterior ao desfile, todas as pessoas

“de frente” do bloco – basicamente a diretoria, os responsáveis pelo carro alegórico, as

costureiras e outras pessoas envolvidas – são convocadas para um cerimônia interna no

terreiro, cujo maior objetivo é proteger essas pessoas e o próprio bloco. E uma outra

cerimônia acontece no momento de saída para o desfile, quando o bloco já está formado na

rua, em frente ao terreiro de um lado e à quadra do Dilazenze de outro. A mãe-de-santo faz

orações, entoa zuelas, joga pipoca e sopra pó de pemba sobre todo o bloco. Ela diz que é

necessário “protegê-lo”, pois ele passará por várias encruzilhadas até chegar na avenida

para o desfile, e isso pode ser perigoso, pode haver algum “trabalho” preparado contra todo

o grupo ou contra algum de seus componentes. Interessante ver que em 2000, quando

presenciei esse momento, alguns percussionistas se benziam com o ‘sinal-da-cruz’ e

espalhavam pó de pemba sobre seus instrumentos, da mesma forma como os ogãs fazem

sobre os atabaques nas cerimônias de candomblé22.

No carnaval de 1999, um outro episódio ocorrido no momento de saída é também

bastante revelador da importância da dimensão do sagrado na vida do Dilazenze. Bloco

armado na rua, aparentemente tudo pronto “para descer”, uma das filhas-de-santo do

Tombency – também irmã dos dirigentes do Dilazenze – virou no santo. Tratava-se de sua

‘Pomba-Gira’, ou ‘escrava de sua santa’, que vinha avisar que uma obrigação não fora

22 Vale informar também que cada novo instrumento do Dilazenze passa por obrigações, para só depois serusado, segundo depoimento de Marinho Rodrigues, presidente do Dilazenze, reproduzido por Cambria(2002:121).

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218

realizada e que o bloco corria perigo, que havia “trabalhos” contra ele no caminho e que

alguma coisa ruim poderia acontecer. O presidente do grupo reconheceu que havia

“esquecido” de providenciar o animal para a oferenda a Exu, que deveria ter sido feita no

sábado – esta seria uma tarefa sua porque ele é o responsável pela distribuição da verba

recebida da prefeitura para o carnaval. Na mesma hora, a mãe-de-santo tratou de

improvisar uma oferenda e “caprichou” no pó de pemba e na pipoca, cuidando de cada

componente individualmente. Só então o bloco desceu para a avenida. No caminho, alguns

incidentes ocorridos foram posteriormente interpretados como conseqüência dessa

‘desatenção’ e que eles poderiam ser muito mais graves, caso a entidade não tivesse

avisado e não se providenciasse o mínimo necessário para a proteção do bloco. Para o

segundo dia de desfile, o corte para Exu foi feito e tudo correu bem23. O acontecimento foi

marcante também porque este foi o ano da primeira vitória do Dilazenze, das cinco

consecutivas, no concurso dos blocos afro.

Em Ilhéus, o Dilazenze é o único bloco que realiza esta cerimônia em função de sua

relação com o terreiro. A respeito de Salvador, Ribard afirma, generalizando, que os blocos

afro realizam a cerimônia de saída antes do desfile (1999:447) e que “mesmo quando o

grupo não tem uma conexão muito estreita com o candomblé, deve-se efetuar um certo

número de rituais e seguir regras específicas, necessários ao bom andamento dos projetos e

das atividades” (:406). Embora outros blocos realizem o padê de Exu antes do desfile, ao

que parece, o Ilê realiza a cerimônia desde os primeiros carnavais. E o ritual de saída é,

sem dúvida, a maior atração do bloco, sendo, inclusive, transmitido pela TV e

‘celebridades’ costumam marcar presença, como conta Agier, para quem este ritual “é a

mais original das atividades do Ilê Aiyê, sua mais importante marca de identidade”; é o que

o faz ser percebido como “o mais africano e o mais puro de todos os blocos de carnaval,

23 Goldman, Comunicação Pessoal.

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219

parece ter ‘saído’ de uma casa de candomblé, pode ser definido como um afoxé, e sua

existência seria a prova de uma presença das tradições africanas no Brasil” (Agier

2000:141-2).

Agier entende o carnaval do Ilê como uma seqüência ritual que compreende três

momentos: os banhos de purificação, ou “lavagens”, no dia anterior ao carnaval que

marcariam, em sua visão, a separação de uma condição social comum para a condição de

ser Ilê – “todos preparam seus corpos e seus espíritos para ser Ilê durante cinco dias”

(:143); a saída, ou “abertura do caminho”, que seria um momento liminar entre a separação

e a reagregação já como Ilê Aiyê no momento do “desfile”, que constituiria o terceiro

momento da seqüência. Em seu conjunto, o processo que começa pelos banhos, passa pela

saída e termina no desfile, teria por objetivo criar um “mundo novo”, “formar” uma nova

identidade: seria a identidade individual dando lugar ao nascimento de uma identidade

coletiva – a identidade Ilê Aiyê (:150).

A etnografia da saída do Ilê Aiyê feita por Agier24 é muito interessante e mostra

bem qual é o sentido do ato: pipoca, pemba, oferendas a Exu... tudo visa proteger o bloco e

seus componentes. É bastante plausível supor que o ritual de saída do bloco tenha se

tornado mais espetacular à medida que o grupo foi se tornando mais famoso, ganhando

mesmo o status de atração – Agier informa que as emissoras de TV devem pagar ao grupo

para filmar o ato (:141) –, fazendo dele mais uma de suas ‘marcas’, tanto quanto a

interdição ao desfile de pessoas brancas. Mas as duas ‘características’ têm, me parece,

razões de ser muito distintas. Manter o Ilê como um ‘bloco só de negros’ é expressão do

desejo de diferir e de criação de um território único, distinto, ou seguindo o raciocínio de

Agier, é um “marcador de identidade”. Mas o mesmo não pode ser dito para um ritual de

candomblé, ainda que ele colabore para reforçar a diferença do bloco. Quando Agier diz

24 Ver Agier 2000, seções “Le rite carnavalesque” e “La mise en scène de l’identité” (:141-154).

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que o ritual de saída “é a mais original das atividades do Ilê Aiyê, sua mais importante

marca de identidade” (:141), parece não considerar que se trata de uma obrigação aos

orixás, que o bloco deve ser protegido e que esse é um procedimento usual e necessário no

candomblé para todas as situações em que algo ou alguém corre riscos. O bloco

simplesmente não pode sair sem essa obrigação. Em Ilhéus, o Dilazenze é o único grupo a

passar por esse ritual de saída, mas nunca foi dito que isso ocorresse para ‘mostrar uma

identidade negra’ ou para ‘afirmar a negritude’ ou mesmo para marcar uma diferença, seja

do bloco como ‘bloco afro’, ou seja em relação a outros blocos afro. Os motivos têm a ver

com riscos de vida mesmo.

O temor dos possíveis ‘trabalhos’ religiosos ou mágicos não é exclusividade do

Dilazenze, que não seria sua única ‘vítima’. Outros blocos também julgam ser necessário

buscar proteção, mas contra o Dilazenze. Conversando com o dirigente de um bloco, ele

pediu que eu lhe confirmasse que o Dilazenze “fazia trabalho” contra os demais blocos

para ganhar o carnaval (no momento dessa pergunta, o Dilazenze havia conquistado seu

tricampeonato). Neguei que isso acontecesse, ao que ele replicou: “mas para se proteger,

faz, não faz?”. Faz. Nesse plano, a maior rivalidade em Ilhéus se dá entre o Dilazenze e o

Miny Kongo, já que são os blocos que mantêm relações mais estreitas com o candomblé.

As acusações são mútuas, até porque ambos são reconhecidos, ao lado do Rastafiry, como

os melhores blocos da cidade, pois essa rivalidade não teria muito sentido se assim não

fosse25. Contudo, outros blocos também podem ser envolvidos, já que há mães e pais-de-

santo próximos a outros dirigentes. Assim, em certas situações, problemas do Dilazenze,

por exemplo, podem vir a ser atribuídos por seus membros a ‘trabalhos’ de outros grupos

ou a sentimentos de inveja – o chamado ‘olho grande’; da mesma forma que as vitórias

25 Os três continuam sendo os maiores blocos em número de componentes e politicamente ainda sãoreconhecidos como os mais importantes. Além disso, cada um deles reivindica para si um motivo para

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221

deste mesmo grupo podem ser percebidas por parte de membros de outros blocos também

como resultado de ‘trabalhos’ em favor do Dilazenze.

A religiosidade está muito presente no dia-a-dia do Dilazenze, não só no carnaval.

Antes de atividades importantes, reuniões vistas como decisivas ou encontros promovidos

pelo grupo, orações e cânticos são entoados. Se membros do grupo forem participar de

algum evento considerado importante, eles também são “preparados” para que possam

estar protegidos; se o barracão do terreiro for usado para uma atividade coletiva com a

presença de outros grupos, ele é cuidado para que ninguém possa trazer nada de mal para

as pessoas dali. Esse foi o caso de uma palestra de um deputado federal do PT/BA, também

dirigente nacional do MNU, ocorrida na abertura da Semana Nacional da Consciência

Negra. Na mesa armada para o palestrante e autoridades, havia um lindo arranjo que fora

dado de presente para a Cabocla Jupira, entidade importante do terreiro. A mãe-de-santo

do Tombency disse que sua função seria mostrar a quem chegasse – haveria muita gente

“de fora” no barracão – que a casa estava protegida, evitando, assim, a própria tentativa de

“fazer qualquer coisa”.

Em 2000, o Dilazenze criou o Projeto Batukerê, realizado com crianças e

adolescentes da comunidade, que será objeto de discussão do próximo capítulo. Aqui

interessa destacar que sua criação também passou por obrigações: além de ser um projeto

do grupo – e isso naturalmente aconteceria –, o fato de utilizar em seu nome o termo ‘erê’,

que denomina o ‘espírito criança’, também exigia o pedido de permissão. O problema foi

que isso demorou a acontecer. Logo que se iniciou o projeto, a mãe-de-santo do Dilazenze

lembrava-nos constantemente de que era preciso oferecer um caruru, comida à base de

quiabo, aos orixás Ibeji, que corresponderiam a São Cosme e São Damião no sincretismo

afro-brasileiro. E à medida que diversos problemas foram ocorrendo no projeto, ela

receber um valor maior do que os demais: o Dilazenze tem sido campeão dos últimos carnavais, o Miny

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222

tornava-se mais insistente. Finalmente, quando saiu a primeira parcela dos recursos

prometidos pela prefeitura para o Batukerê, a primeira providência foi fazer o caruru para

todas as crianças e pessoas envolvidas com o projeto. E ao longo de todo o período de

campo, ficou muito claro que cuidar do Batukerê era também cuidar dos santos erês,

especialmente daqueles das pessoas do terreiro. Assim, toda vez que em um evento

diferente uma refeição especial era servida às crianças do projeto26, parte deveria ser

guardada para as entidades; se doces fossem distribuídos, alguns deveriam ser oferecidos a

elas27.

A direção do grupo também é uma determinação dos orixás. O atual presidente

ocupa a posição desde 1988 e deverá presidir o Dilazenze pelo período de 21 anos. Nos

quase dois primeiros anos do grupo, um irmão seu foi o presidente provisório. Houve um

consenso em escolhê-lo como a pessoa que conduziria o processo de fundação do

Dilazenze que, como dito anteriormente, passou por uma série de obrigações. Ao final

destas, “houve uma resolução dos orixás” de que o presidente atual “deveria assumir”.

Apesar de ser uma determinação divina, isso não significa que não haja conflitos internos

em torno da questão. Houve até um momento de afastamento do atual presidente que durou

seis meses – quando o vice-presidente, seu irmão, assumiu o cargo – e tantos outros de

reivindicação de mudanças ou de ameaças de renúncia. Segundo o presidente do grupo,

situação semelhante se passa no Ilê Aiyê, do qual Vovô, um de seus fundadores, não pode

deixar a presidência em circunstância alguma, conforme também determinaram os orixás28.

Kongo é o mais antigo e o Rastafiry argumenta ter o maior número de componentes na bateria.26 A proposta do Projeto Batukerê é servir merenda para as crianças participantes diariamente, o que só nãoacontece quando não há forma alguma de obtenção dos recursos.27 Eu mesma fui aprendendo que se levasse balas para as crianças, deveria reservar algumas para os erês dacasa.28 Agier (2000) conta que Vovô assumiu a presidência três anos após a fundação do bloco, pois havia umacordo entre ele e Apolônio, também fundador, de que cada um deles dirigiria o grupo por esse período.Apolônio deveria voltar à presidência para o carnaval de 1981, mas ele deixou o bloco, que já se encontravainteiramente instalado na casa de Vovô (:79). Adiante, Agier diz que a posição de Vovô como presidenteacabou se tornando “implicitamente permanente” (:83).

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223

À

Em Ilhéus, terreiros e rituais de candomblé não são atrações turísticas como em

Salvador. Por muito tempo, o único terreiro citado em folhetos ou em publicações

turísticas era o de Pedro Farias, falecido em 2003, e o único evento era a Festa de Iemanjá,

na Baía do Pontal, mais precisamente na Praia da Maramata29, que recentemente passou a

ser promovida com apoio da prefeitura e a ser anunciada como atração turística no

calendário divulgado pela Ilheustur (órgão municipal de turismo)30. Um outro evento

famoso é a Lavagem da Catedral de São Sebastião – semelhante à Lavagem da Igreja do

Senhor do Bonfim –, cuja relação com o candomblé acaba sendo somente a presença das

‘baianas’ lavando a escadaria com ‘água de cheiro’ e aparecendo nas fotos de promoção do

evento, que é uma homenagem a São Sebastião, um dos padroeiros da cidade31. Parece

acontecer em Ilhéus o mesmo que ocorre em Salvador, onde ‘lavagens’ de escadarias e

praças tornaram-se comuns como festas que não se justificam religiosamente como parte

do “ciclo pré-carnavalesco” da cidade (Agier 2000:29).

A pouca visibilidade do candomblé na cidade, se comparada com Salvador, e os

números do Censo do IBGE de 1991 – apenas 151 pessoas, ou 0,06% da população,

declararam ter o candomblé ou a umbanda como religião – poderiam levar a crer que não

há muitos praticantes em Ilhéus. Contudo, são muitos os terreiros de candomblé e ainda

que não seja possível estabelecer precisamente quantos, parece legítimo supor que só o

29 Assim chamada após a instalação do “Campus das Espumas Flutuantes”, sede da Universidade Livre doMar e da Mata – MARAMATA, entidade ambiental do governo municipal.30 Heine (1996:61) cita a Festa de Iemanjá como uma “festa popular” de Ilhéus, uma “festa profana” (sic), naqual acontece uma procissão de barcos. Interessante é sua conclusão: “Também acontece festa de largo,barracas, trios elétricos, que o baiano é muito alegre e não precisa de muito motivo para fazer uma festa”. Omérito de Iemanjá parece ser bem diferente do que ela atribui a N. Sra. das Vitórias: “é a outra padroeira deIlhéus, merecendo pois todas as honrarias”. Menezes (1998:93-8) conta que a festa começou a ser realizadana Baía do Pontal em 1997 e no ano seguinte recebeu pela primeira vez o apoio da prefeitura. Assim, apesarde diversos outros terreiros também promoverem a cerimônia, a festa do Pontal passou a ser a ‘oficial’ dacidade.31 Ilhéus tem ainda dois outros padroeiros: São Jorge e Nossa Senhora das Vitórias.

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224

número das pessoas que ocupam cargos importantes nos terreiros seja maior do que aquele

verificado no Censo. Dessa forma, mesmo aqueles grupos afro cujos dirigentes não

participam ativamente de algum terreiro, estabelecem relações ou têm componentes

ligados à religião, o que promove uma vinculação ainda mais estreita entre candomblé e

blocos afro. Não que esta seja uma relação necessária. Isso foi negado por vários

dirigentes, mesmo por aqueles que se consideram “de dentro da seita”, como o presidente

do Dilazenze, para quem já foi muito mais forte em Ilhéus a concepção de que todo bloco

afro tem que estar ligado a um terreiro. Na década de 80, quando nasciam os primeiros

blocos, mesmo aqueles cujos dirigentes não pertenciam ao candomblé procuravam

vincular-se a um pai ou a uma mãe-de-santo como se tal relação fosse inerente a um bloco

afro. Talvez isso tenha ocorrido porque alguns dos mais importantes blocos de Salvador

possuíam essa relação: o Ilê Aiyê nasceu, praticamente, no interior de um terreiro; um dos

fundadores do Ara Ketu era um pai-de-santo e sua presidente é praticante da religião,

guardando relações estreitas com seu terreiro; a mãe de João Jorge, presidente do Olodum,

é também mãe-de-santo. Em Ilhéus, o Miny Kongo era ligado ao terreiro de Pedro Farias;

o Lê-guê Depá tinha relações com o Tombency enquanto saía dos Carilos e passou a estar

ligado a outro terreiro quando foi para o Malhado; o Axé Odara afirmava ter uma ligação

também com o Tombency, pois a mãe-de-santo e alguns de seus filhos pertenciam ao

bloco. Contudo, entre os principais blocos, talvez esta fosse a relação mais ‘artificial’ na

opinião do presidente do Dilazenze, já que não havia uma ligação “verdadeira”: “não

ficava claro que eles [os principais dirigentes] aceitavam isso [o candomblé]. Era só o

status do Axé Odara de ser ligado ao terreiro de Mãe Ilza, porque não se via a influência

do terreiro no bloco.”

Bloco afro e outras religiões

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225

Ainda que os ritmos e as coreografias dos blocos afro tenham origem no

candomblé, é fácil compreender que, com o tempo e com outras influências, eles tenham

sido desvinculados e tenham ganhado ‘vida própria’: o ritmo (ou o ‘estilo’) que impera na

maioria dos blocos afro desde meados dos anos 80 é o samba-reggae32; a dança afro pode

ser ‘primitiva’, ‘contemporânea’, ‘folclórica’, entre outros. Assim, “para fazer bloco afro,

não precisa ser de candomblé, não”, como disse um dirigente que pertence a uma casa de

santo.

Se não é necessário “ser de candomblé”, também não parece possível que uma

pessoa pertença simultaneamente a um bloco afro e a uma religião evangélica: o vínculo

entre blocos afro e candomblé é freqüentemente evocado como justificativa da saída de

alguém de um grupo quando essa pessoa é ‘convertida’. Este foi o caso do Força Negra e

dos Gangas, grupos que deixaram de existir após a conversão de suas lideranças.

O presidente do Força Negra, cuja conversão ocorreu dias antes da data marcada

para sua iniciação numa casa de santo, disse que não seria mais possível continuar com o

bloco em função de sua relação com o candomblé. Nesse caso, porém, isso não significou

seu afastamento da “questão negra”: ele teria dado continuidade ao seu “trabalho de

conscientização” numa Igreja Batista situada no bairro da Conquista, cuja maioria dos fiéis

é negra, através da formação de grupos de percussão (com os instrumentos do bloco) que

tocam “música de adoração a Deus em iorubá” nos cultos; ele também é responsável pela

organização de um grupo de dança afro e costuma promover palestras e debates sobre a

questão racial33. E ainda que afastado dos blocos afro, é possível encontrá-lo em atividades

promovidas por eles, nas quais, muitas vezes, já se sentiu “discriminado por não ser de

32 Cambria (2002:74) defende que ‘samba-reggae’ é um “conceito guarda-chuva que define a concepção deorganização rítmica adotada pelos blocos e compreende diversos ritmos específicos (principalmente:merengue, reggae, samba-reggae e suingue)”.33 Burdick (2002) dá exemplos de algumas igrejas evangélicas na região metropolitana do Rio de Janeiro –seu trabalho é principalmente com as pentecostais – que incentivam a formação de bandas juvenis de gênerosmusicais como samba, pagode, hiphop, rap com temas religiosos (:201-2).

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candomblé”. Essa ‘queixa’ foi feita em 2001, mas ele já falara disso em 1997, logo após

um debate na Semana da Consciência Negra daquele ano, no qual o prefeito esteve

presente e anunciou que implantaria o Conselho Municipal do Negro, o que acabou não

acontecendo34. Naquela ocasião, o ex-dirigente do Força Negra estava se referindo a um

militante do MNU, filho carnal de uma mãe-de-santo e sem relação prévia com blocos

afro, embora estivesse naquele momento assumindo o próprio Força Negra junto com

outros integrantes do MNU, e que lhe repreendeu por sua nova religião.

Já o ex-presidente dos Gangas esteve afastado dos grupos até recentemente quando,

já vereador (eleito em 2000), voltou a se aproximar dos dirigentes, principalmente através

do atendimento de pequenas solicitações dos grupos, embora não comparecesse a nenhuma

de suas atividades35. Sobre sua relação com o candomblé, a seguinte cena é reveladora: ao

entrar em sua sala e ouvir que eu conversava com seu assessor sobre o assunto, ele fez uma

‘careta’ e se retirou.

Um terceiro exemplo de mudança pós-conversão apresenta uma posição bem

distinta das anteriores. Trata-se do atual subsecretário municipal de Esporte. Um dos seus

irmãos foi dirigente do Axé Odara, grupo ao qual também já pertenceu; ele é primo do ex-

dirigente do Força Negra citado acima, e também já fez parte desse grupo, além de ter

contribuído com a fundação de alguns blocos novos, inclusive chegando a participar da

diretoria do CEAC eleita em 1997 como membro do Zambi Axé. Como professor de

educação física e diretor da Divisão de Desportos da Secretaria Municipal de Educação36,

ele era responsável por atividades de ginástica ao ar livre durante o verão e tinha um bloco

34 Sobre a tentativa de implantação do Conselho Municipal do Negro em Ilhéus, ver Silva 1998:66-70.35 Os Gangas já não desfilavam há alguns anos, antes mesmo da conversão de seu ex-presidente, mas o fimoficial do grupo coincide com o seu afastamento (ver Encontros 3).36 Este era seu cargo na gestão 1997-2000 de Jabes Ribeiro; já no segundo mandato consecutivo de Jabes(2001-2004), a Divisão de Desporto foi transferida para a Secretaria de Esporte e Cidadania, onde ele passoua ser o subsecretário de Esporte.

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227

de carnaval chamado Timbalafro, “uma espécie de levada de carnaval”37, e chegou a

desfilar no Dilazenze em mais de uma ocasião. Numa conversa reproduzida por Almeida

(2000:28) antes de sua conversão, Gurita, como é conhecido, relacionava “negros

americanos” e protestantismo, dizendo que eles “perderam a identidade: não sabem o que é

o acarajé, o vatapá, o caruru, o candomblé”, pois eles não teriam a mesma relação que o

Brasil tem com a África, o que lhes daria uma “concepção de negritude” diferente daquela

existente no Brasil.

Nas eleições municipais de 1996, o subsecretário concorreu ao cargo de vereador e

fez articulações para ser o candidato de alguns blocos afro, mas não foi eleito. Já nas

eleições de 2000, ele esperava ser o candidato de todo o movimento negro38, o que também

não conseguiu, mas havia uma diferença em relação à tentativa anterior, pois agora ele era

“evangélico” e sua relação com a ‘cultura negra’ precisava ser outra, não poderia mais

passar pela participação em blocos afro, ou seja, pela “parte festiva da cultura negra”, mas

por sua organização (quando ajudou a fundar o Guerreiros de Zulu ele já era protestante):

“Hoje é que eu não saio mais [em bloco afro] porque assumi umapostura religiosa outra, do protestantismo mesmo. Hoje eu sou umcidadão evangélico. (...) Isso não me impede de trabalhar pela culturanegra. Eu deixei a parte festiva da cultura negra, mas vou continuartrabalhando na parte social, administrativa, que eu acho que é muitomais importante do que a parte festiva. A parte festiva qualquer umpode trabalhar porque gosta de festa, gosta de beber, de tocar, dedançar... mas a parte que eu me proponho a fazer é a mais difícil. Euacho que a minha relação vai ficar muito mais fortalecida, muito maisconfiável a partir de agora”.

A observação conjunta de suas declarações mostra a relação por ele estabelecida

entre ‘cultura negra’, blocos afro e candomblé39, a qual também é afirmada por membros

37 Grupo fundado em 1993, inicialmente para ser um bloco de trio, o que não se concretizou, transformando-se, então, em um grupo de dança para puxar blocos de trio.38 Em meu trabalho de campo em 1997, Gurita já dizia isso e era algo que parecia ser viável, pois durantetodo o tempo ele buscava colaborar com os grupos e manifestava essa vontade, sendo, então, apoiado poroutros dirigentes (ver Silva 1998:72-74), mas em 2000, ele novamente não foi eleito.39 O antagonismo existente entre o movimento negro e o movimento pentecostal, como conclui Burdick(2002), está fundamentado no fato de que “do lado do movimento negro, o pentecostalismo é visto comoinimigo porque está impregnado da tradição religiosa européia e porque declarou guerra à religiosidade afro.

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dos grupos afro, para quem é difícil conceber que uma boa relação possa ser estabelecida

com a igreja evangélica – sentimento que também se estende à igreja católica, como se

verá em seguida. E se, de alguma forma, os personagens dos três exemplos acima

conseguem estar próximos dos blocos, isso acontece em função de sua condição anterior de

militantes do movimento afro-cultural. Um quarto exemplo deixará isso mais evidente. Em

2001, ainda que a contragosto dos dirigentes dos blocos afro, uma palestra com o deputado

federal Pastor Reginaldo Germano (PFL/BA), fez parte da programação da Semana

Nacional de Consciência Negra em Ilhéus. Pouquíssimas pessoas compareceram e a

palestra não aconteceu. A localização da escola onde ocorreria o evento foi importante para

o esvaziamento da palestra, mas o fato de ser um pastor – além de ser um político

conhecido na região, com uma boa base eleitoral entre evangélicos, especialmente da

Igreja Universal – também influenciou bastante. Isso não significa uma ‘xenofobia’

religiosa, embora seus pronunciamentos contra os ‘cultos afro-brasileiros’ tenham sido

uma alegação contrária à sua participação levantada por um dos presentes na reunião de

preparação da Semana da Consciência Negra em que a palestra foi proposta. O deputado é

até reconhecido como alguém que toca na questão racial40, mas o entendimento das

pessoas era que ele não teria nada a dizer a militantes de blocos afro. Além do mais, como

a proposta, assim como toda a articulação para o evento, partiu do secretário de Esportes e

Cidadania, político antigo da cidade – com cinco mandatos como vereador –, esta tentativa

de aproximação pareceu extremamente ‘eleitoreira’ aos olhos de alguns dirigentes, como

se Pastor Reginaldo estivesse buscando novas bases eleitorais junto aos blocos afro

utilizando o discurso da questão racial, o que também poderia vir a ser útil ao secretário.

Enquanto isso, os pentecostais solidários com a luta contra o racismo sentem-se alienados do movimentonegro por causa, entre outras razões, do compromisso deste último com as religiões afro.” (:207).40 Na ocasião, foi-nos dado um livrete com pronunciamentos de Reginaldo Germano na Câmara dosDeputados entre 1999 e 2001 a respeito de temas como ‘discriminação racial’, ‘segurança pública’ e ‘justiça’,editado pelo Centro de Documentação e Informação/Coordenação de Publicações da Câmara dos Deputados,Brasília, 2001.

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229

Situação semelhante se passa na relação com a Igreja Católica, mas não exatamente

com a religião católica, o que acaba por facilitar um pouco o entendimento com a primeira.

A grande maioria dos integrantes dos blocos afro ilheenses se considera católica. Visitas às

casas de alguns deles para conversas ou entrevistas me permitiram ver imagens de santos

em suas paredes, bíblias na sala etc.

Na verdade, o pequeno número de praticantes de candomblé declarados ao Censo

de 1991 do IBGE na cidade pode ser explicado, entre outras razões, porque parece não

haver incompatibilidade entre ‘ser católico’ e ‘ser do candomblé’. É bem verdade que é

cada vez maior o número de pessoas, especialmente em Salvador, que desejam mudar a

concepção de candomblé como ‘religião de sincretismo’, afirmando sua ‘pureza’ e

negando a aproximação do catolicismo. No caso do Terreiro Tombency e do Dilazenze, em

Ilhéus, seu presidente é um defensor dessa separação. Contudo, ao longo de todo o período

de campo, foram inúmeras as manifestações religiosas de cunho católico que presenciei,

sobretudo no meio da ‘família Dilazenze’.

Em 2001, uma das filhas do vice-presidente do grupo freqüentava o catecismo para

fazer sua primeira comunhão. Nesse mesmo ano, numa das festas mais importantes do

Terreiro Tombency, a festa de Nanã, que acontece em julho, esta mesma menina e sua

prima, quase da mesma idade, vestiram-se como (lindas) ekédis41 – ainda não

confirmadas42 – e “dançaram na roda” pela primeira vez. Foi uma novidade e um grande

acontecimento, dotado, por diversas razões, de grande importância.

Em 1997, o Tombency encontrava-se na seguinte situação: a mãe-de-santo,

algumas filhas e netos moravam nos cômodos do terreiro – a camarinha (quarto de

41 Ekédi: “Moça, mulher auxiliar das filhas de santo em transe, amparando-as para que não caiam,enxugando-lhes o suor, levando-as à camarinha para vestir a roupa do orixá etc. Seu orixá deve seharmonizar com o da iaô que ela auxilia. A ekédi não entra em transe. Em alguns candomblés faz umainiciação ligeira, como a dos ogãs.” (Cacciatore 1977:111).

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230

recolhimento, onde ficam reclusas as pessoas que estão se preparando para a iniciação ou

para o cumprimento de alguma etapa de sua vida religiosa) era o quarto de todos, enquanto

a cozinha do terreiro foi dividida e teve um espaço transformado em sala, cuja porta dá

para o barracão. Foi preciso ocupar os espaços do terreiro porque a antiga casa não tinha

condições de moradia em função de uma obra que já durava anos. Ao lado da casa, havia

as ruínas do antigo terreiro, onde se encontravam os assentamentos dos orixás na frente do

atual. A partir de 1999, as obras foram retomadas; a casa pôde voltar a ser habitada e no

lugar das ruínas foi construído o “quarto do santo”, onde estão os assentamentos. Nesse

mesmo ano, foi realizado um toque, uma cerimônia mais simples do que seria uma festa. E

em maio de 2000, finalmente houve a primeira grande festa pública (com duração de três

dias) do Terreiro de Eua Matamba Tombency Neto depois de alguns anos. Foi uma

obrigação para Angorô, orixá do pai pequeno da casa, que comemorava seus 21 anos de

feitura de santo, embora já tivesse completado 25 anos. Em dezembro, houve uma outra

grande festa, na qual também foram comemorados os 50 anos de feitura de santo da

ialorixá do Tombency, completados desde 1996.

A alegria de ver as meninas ékédis “dançando na roda” dizia respeito ao futuro do

terreiro, mas também ao futuro do Dilazenze. Seu presidente comentou o quanto era

importante para o grupo que o terreiro voltasse a “funcionar” para que “os netos”, que

entravam na adolescência, também pudessem ter a referência do candomblé, já que até

então eles não tinham visto (talvez apenas quando muito pequenos) as festas do terreiro. É

claro que durante todo esse tempo o terreiro ‘funcionou’, pois as obrigações internas, e até

umas poucas e pequenas cerimônias públicas, não deixaram de acontecer, e é até

presumível que as crianças participassem de alguma forma, já que costumam circular, na

42 Elas foram ‘suspensas’, ou seja, indicadas para o exercício dessa função por um orixá, um ano antes,também na Festa de Nanã. A confirmação ocorrerá num momento posterior, depois de obrigações e umperíodo de reclusão na camarinha.

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231

medida do possível, livremente por todos os espaços. No entanto, elas não podiam

experimentar o que é considerado fundamental para a vida do Dilazenze – e dos blocos

afro de maneira geral: a música, a dança, as roupas, os gestos que só são vividos nas festas

públicas. O presidente do grupo dizia que a coreógrafa, na ocasião com vinte e poucos

anos, vivera intensamente as festas do terreiro na infância, que coincidiu com o nascimento

do bloco e do sucesso de seu grupo de dança, formado, em grande parte, por seus tios,

todos com funções no terreiro. E essa vivência teria colaborado imensamente para seu

aprendizado como bailarina e coreógrafa de dança afro.

E o que vale para a dança, também vale para a aprendizagem da percussão. Em

Encontros 1, mencionei a importância da vivência no candomblé, ou com alguém que

fosse próximo a ele, na formação dos grandes percussionistas de Salvador. Durante um

intervalo de uma festa do terreiro, alguns percussionistas do Dilazenze, que são também

ogãs, conversavam sobre o quão difícil e cansativo é tocar os atabaques durante as festas,

pois é preciso estar atento e preparado para provocar ou atender à solicitação de cada orixá,

o que sempre implica aceleração/redução do ritmo ou mudança deste repentinamente. Não

é preciso dizer que esta é a melhor escola de percussão que pode haver.

Compreende-se, assim, a alegria geral da família e dos que torcem pelo futuro do

terreiro e do grupo de ver as meninas vestidas de ekédi e dançando na roda pela primeira

vez. Nesse mesmo período, passou a ser comum vê-las com outras crianças imitando os

passos desenvolvidos na roda. Também passou a ser recorrente ver, especialmente os

meninos mais novos, tocando os atabaques durante o dia ou enquanto esperavam a festa

começar ou ainda nos intervalos desta, além da traquinagem de ficarem imitando as

manifestações dos orixás, com gritos, gestos e danças, e com imensa perfeição. Não deve

mesmo haver forma mais eficaz de aprendizagem e de garantia de que mais tarde, quando

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232

tiverem de dançar e de tocar no Dilazenze ou em alguma outra situação, eles saberão

exatamente o que estarão fazendo.

Retornando à relação do Dilazenze, e do terreiro, com o catolicismo, setembro de

2001 foi um período extremamente interessante desse ponto de vista. No início do mês, um

percussionista do grupo e ogã do terreiro, participou de um cursilho43 masculino de um

fim-de-semana no seminário católico da cidade. Ao final do encontro, no domingo, os

participantes seriam recepcionados por suas famílias e lá compareceram sua esposa, sua

mãe e uma de suas irmãs. Além disso, foi solicitado que familiares e amigos escrevessem

mensagens em cartões com dizeres religiosos ou de amizade. Ao menos nas semanas

seguintes, foi notório seu entusiasmo para comparecer às missas.

Outro episódio ocorreu cerca de duas semanas depois, quando houve uma festa

importante no terreiro, a festa da Cabocla Jupira. Tratava-se da inauguração de sua

“cabana”, resultado também de uma obra longa, que se seguiu à recuperação da casa da

mãe-de-santo e à reabertura do terreiro. Sendo o espaço pequeno, a festa muito disputada e

o lugar extremamente quente, permaneci pouco tempo no recinto, e quase não fotografei.

Por alguns dias, em função de outras atividades, não retornei ao terreiro. Recebi um recado

de que as oferendas da cabana ainda não haviam sido retiradas esperando que eu pudesse

fotografar o lugar – que estava belíssimo. Uma interessante coincidência fez com que o dia

em que fui fotografar a cabana da Cabocla Jupira fosse também o dia em que esteve na

casa da mãe-de-santo “Nossa Senhora Peregrina”, uma imagem (Nossa Senhora de Fátima

ou alguma outra) que percorre cidades e é levada às casas que a solicitam, aí

permanecendo por um dia. Houve orações e cânticos católicos em torno da imagem.

43 Atividade comum na Igreja Católica, na qual as pessoas (em geral apenas homens ou apenas mulheres)ficam reclusas por alguns dias para rezar, ouvir palestras, fazer discussões, cantar...

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Também fui convidada a fotografar a ‘santa’ e as pessoas presentes para as orações44: a

própria mãe-de-santo e algumas suas filhas, de sangue e de santo.

Em 1973, pouco antes de falecer, a mãe e antecessora da atual mãe-de-santo

concluiu a construção de uma pequena capela dedicada à Senhora Santana – que

corresponderia, segundo o sincretismo, à Nanã, seu orixá – em frente ao terreiro, para que

a missa em comemoração ao seu dia pudesse ser realizada ali e para que fossem feitas

todas as obrigações do terreiro que necessitam de uma igreja, especialmente as de

iniciação, quando a ‘iaô’ – ou ‘muzenza’, como se denomina no candomblé angola – deve

participar de uma missa ao final de sua preparação. Durante todo o período de campo, a

capela foi usada como moradia para um filho e netos da mãe-de-santo.

A igreja católica em Ilhéus, por sua vez, tem buscado uma aproximação junto aos

terreiros, ainda que somente através do reitor do Seminário e de seus assessores,

responsável pela Pastoral Afro de Ilhéus e presidente da Alufá-Gê – Associação do

Resgate da Identidade e da Cultura Negra e Necessitados45, uma entidade católica

vinculada à Pastoral Afro. O termo ‘necessitados’ como parte do nome da associação foi

acrescentado a partir do entendimento dos membros fundadores de que a entidade não

deveria ser exclusivamente dedicada “ao negro”, mas a “todos” que estivessem em

condições sociais desfavoráveis, que atingem principalmente a população negra, mas não

somente.

Em Ilhéus há alguns anos e um dos pouquíssimos padres negros da cidade, o

presidente da Alufá-Gê fomentou a fundação de uma Pastoral do Negro – depois chamada

de Pastoral Afro – na Diocese e conseguiu que algumas paróquias criassem seus núcleos –

havia quatro núcleos em 2001. O principal objetivo da pastoral é “proporcionar vivências a

44 As fotografias com a imagem foram anteriores às da cabana. Para estas, a mãe-de-santo se produziu comuma roupa feita com um tecido de estampa no estilo afro.

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partir do Evangelho no resgate da cultura afro-brasileira, perpassando pela conscientização

individual e coletiva da identidade do negro”46. Ao menos naquele momento, suas

atividades estavam centralizadas na realização de “missas em estilo afro”, ou seja, cânticos

em ritmos “africanos”, tocados com atabaques e outros instrumentos percussivos de

“origem africana”, e letras sobre a “questão negra”, ou seja, letras sobre discriminação

racial, escravidão, pobreza; além disso, há um ornamento específico para a igreja, com

muitos tecidos estampados, palhas, cestos e folhas. Esta era a ornamentação nas três

ocasiões em que participei de atividades religiosas organizadas pela pastoral, duas em

“parceria” com o movimento afro-cultural47. Ele também é engajado num movimento

interno à igreja de bispos, padres e diáconos negros, tendo Ilhéus sediado o 4o Encontro de

Bispos, Padres e Diáconos Baianos Negros em 2001, o que seria uma “conquista” diante

do preconceito racial que o padre reconhece existir na cidade.

O primeiro movimento mais concreto de aproximação entre igreja católica, grupos

afro e terreiros ocorreu por ocasião das atividades da Semana Nacional de Consciência

Negra de 1997. Naquele ano, o então gerente de ação cultural da Fundação Cultural de

Ilhéus (FUNDACI) e principal representante local do Movimento Negro Unificado48,

tentou articular que a organização da Semana fosse conjunta entre o governo municipal e

sua entidade, os grupos afro e a Pastoral Afro. Tal aproximação foi provocada

45 O nome da entidade, como contou seu presidente, foi sugerido por seus integrantes. O termo ‘alufá’significaria sacerdote em iorubá e a partícula ‘Gê’ refere-se a seu nome, Getúlio.46 Conforme consta do documento “Projeto da Pastoral do Negro da Diocese de Ilhéus”, s/d.47 A terceira atividade foi um “casamento afro” celebrado na Catedral de São Sebastião, um “marco” para aconsolidação da pastoral afro em Ilhéus, segundo alguns de seus membros, que valorizaram ainda mais o atoposteriormente, comentando sobre o fato de que alguns freqüentadores da igreja, brancos, se retiraram dacerimônia, gesto entendido como de desaprovação. Esta era a prova de que a realização do casamento naCatedral fora uma audácia apoiada pelo bispo e que consistia, por isso, num grande avanço na Diocese. Poroutro lado, as reações de alguns membros do Dilazenze presentes também foram bem interessantes edistintas: seu presidente se retirou desaprovando o “uso” de elementos do candomblé no ritual; já seu vice-presidente acompanhou toda a cerimônia, realizando todos os gestos e orações, apesar de risos e olhares dedesaprovação em alguns momentos. Contudo, foi muito visível seu entusiasmo quando uma mãe-de-santopresente, que estava co-celebrando o casamento, cantou uma zuela a Oxalá, seu orixá.

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principalmente pelo gerente de ação cultural, que embora seja do candomblé, militou na

igreja católica na juventude e naquele momento estava bem próximo dos blocos afro por

ter participado da reativação do CEAC e por ser, ao menos em tese, seu canal de

comunicação com o governo. A organização conjunta resultaria num ato ecumênico, mas

isso foi possível pois os representantes da igreja protestante convidados não aceitaram

participar. Houve, sim, um ato religioso – um “ato de reflexão”, como ficou sendo

denominado o evento – no pátio de uma escola secundária, com leituras da bíblia, cânticos

católicos, também atabaques, passos de dança do candomblé, roupas como as que seriam

usadas por escravos, oferendas que representavam ‘coisas’ ligadas ao ‘negro’, como

comidas ‘típicas’ (pipoca, milho, acarajé...), utensílios de barro e de palha, além de muitos

pronunciamentos.

O grupo de dança do Dilazenze e mais recentemente também o grupo formado

pelas crianças do Projeto Batukerê são constantemente convidados a se apresentar em

algum encontro promovido pela igreja católica, seja no Abrigo São Vicente, próximo ao

Dilazenze, com o qual existe uma espécie de parceria informal – os grupos se apresentam

gratuitamente e às vezes o Dilazenze solicita o espaço para algum evento, ou pede

doações... –, seja em eventos maiores, promovidos pela Diocese. Exemplo desse último foi

a apresentação do grupo no show de encerramento do X Encontro Intereclesial das

Comunidades Eclesiais de Base, de 11 a 15 de julho de 2000, uma grande reunião

promovida pela igreja católica. Nessas ocasiões, o Dilazenze é apresentado como um grupo

‘folclórico’ e o show é mais ‘turístico’: as meninas vestidas de ‘baiana’ ou de ‘gabriela’49

se apresentando em coreografias mais simples do que as da dança afro propriamente dita.

48 Sua participação no governo foi devida a uma coligação do PT, seu partido, com o PSDB, então partido deJabes Ribeiro, eleito prefeito em 1996. Em 1998, a coligação acabou graças ao apoio do prefeito a FernandoHenrique Cardoso, candidato à presidência apoiado por ACM. O líder do MNU, então, deixou o governo.49 Estar vestida de ‘gabriela’ significa, em geral, usar um vestido estampado com flores, curto e decotado nomodelo ‘tomara-que-caia’. Em Ilhéus, ‘gabriela’ também pode ser uma profissão: da moça que se veste desta

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Dessa forma, o Dilazenze, assim como outros grupos, é percebido mais como um produto

da “cultura regional”, do que como um grupo do movimento negro, o que faz com que a

relação com a igreja católica tenha o mesmo significado de uma relação comercial ou com

algum outro setor profissional.

Em 2001, também por ocasião das comemorações da Semana dedicada a Zumbi

dos Palmares, uma nova aproximação se deu entre a igreja e os blocos afro. O primeiro

intermediário entre os grupos foi o então secretário municipal de Esporte e Cidadania,

também membro da Alufá-Gê. Naquele momento, sua proximidade com o CEAC se dava,

principalmente, em função da criação do Memorial da Cultura Negra, que passava por sua

secretaria, e do convênio estabelecido com o Dilazenze para o repasse de verbas para o

Projeto Batukerê, assunto do próximo capítulo. Diferentemente de 1997, houve, de fato,

uma tentativa de organização conjunta de quase todas as atividades, entre as quais alguns

debates e uma missa, que ocorreram no Abrigo São Vicente. As opiniões dos membros da

Pastoral Afro sobre a ação dos blocos é muito semelhante às de outros setores do

movimento negro – o que será enfocado adiante – e, talvez por isso, a participação da

Alufá-Gê foi restrita aos atos ‘reflexivos’, como os painéis de discussão, e a missa. A parte

“festiva”, que correspondeu a um show dos blocos afro na Praça da Conquista e a um

torneio de futebol, ficou toda a cargo do CEAC.

Os debates foram esvaziados, mas a missa, assim como o show que ocorreu logo

após, foram concorridos. A missa foi preparada como um grande acontecimento, mais um

‘marco’ para a ‘igreja católica ilheense’. A proposta inicial do padre responsável pela

Pastoral Afro era realizá-la na Catedral, para demonstrar força perante a elite branca da

própria igreja que condenava “esse tipo de missa”, mas foi “desaconselhado” pelo bispo da

forma para trabalhar em hotéis, restaurantes ou até mesmo em navios de turistas que chegam à cidade, diz-seque “é gabriela”, que “trabalha de gabriela”.

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Diocese, que achava que aquele ainda não era o momento50. De qualquer forma, a ocasião

foi concebida como muito especial: pela primeira vez o próprio bispo celebrou uma missa

em estilo afro e ainda havia a presença do prefeito, com alguns assessores, do secretário de

Esporte e Cidadania e de duas ou três mães-de-santo, entre elas a do Terreiro Tombency,

que usava um abadá de origem africana51. Aliás, eram muitas as pessoas que exibiam

alguma roupa ou acessório em ‘estilo afro’, inclusive assim eram os paramentos dos

celebrantes da missa.

A ‘produção’ do evento foi toda da Pastoral Afro, que solicitou, porém, que os

percussionistas para a missa ficassem a cargo dos blocos, pois a pastoral tinha suas

próprias bailarinas que costumavam se apresentar nas missas afro. O responsável pelos

blocos nessa comissão conjunta não providenciou os percussionistas, mas rapazes da

própria igreja tocaram durante a cerimônia, o que fez com que este fosse um evento

exclusivamente produzido pela igreja e, até porque haveria o show posteriormente e muitas

providências de última hora precisavam ser tomadas, quase não houve a participação de

dirigentes dos blocos.

Terminada a Semana, o padre reclamou da ausência dos componentes dos blocos,

de sua pouca participação nos eventos, principalmente nos debates, e da não colaboração

na missa, conforme sua solicitação. Já o representante do CEAC reclamou da falta de apoio

da Alufá-Gê para os demais eventos programados, os da ‘parte festiva’, assim como dos

poucos presentes oriundos da pastoral afro ou da associação até mesmo nos debates. Na

verdade, a “parceria” entre a igreja católica e os blocos afro se restringiu, efetivamente, a

um conjunto de cerca de dez pessoas participando de todos os eventos.

50 Uma informação de Agier a respeito do Ilê Aiyê mostra a enorme diferença entre a igreja católica deSalvador e a de Ilhéus: este autor diz que Vovô, presidente do Ilê, é membro da Confraria da Igreja de NossaSenhora do Rosário dos Pretos, na qual em todo 1o de novembro é realizada uma missa em comemoração aoaniversário do grupo. Toda a cerimônia (músicas, objetos do ritual do ofertório e orações) tem como tema omesmo escolhido para o desfile do grupo no carnaval seguinte. Depois da missa, o bloco sai em procissão atéo Forte de Santo Antônio, onde realiza um ensaio (2000:125).

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Em todas essas ocasiões de aproximação entre a igreja católica e o movimento afro-

cultural, chama a atenção que também aqui vêem-se reproduzidos o problema e a solução

dos movimentos negros da década de 70: tenta-se superar a heterogeneidade dos

movimentos – latente nos debates e nas acusações mútuas – a partir do candomblé como o

substrato comum a eles, ou seja, como ‘fonte’ de ‘cultura negra’. As formas de interação

da igreja católica com o movimento dos blocos afro levam a concluir que “o resgate da

cultura afro-brasileira”, um dos objetivos da pastoral afro conforme descrito páginas atrás,

passa pela coleta de elementos presentes no candomblé – a roupa, a dança, o ritmo, a

comida, até a língua (em algumas missas, há cânticos e orações que utilizam expressões

iorubá ou angola, quando alguma mãe-de-santo da cidade é convidada a participar) – vistos

como ‘originais’, como representantes de uma ‘cultura’ ausente no dia-a-dia dos fiéis

católicos, mas ‘guardada’, ‘preservada’ pelos praticantes do candomblé. Desse ponto de

vista, os blocos afro se encaixam adequadamente na proposta: trabalham elementos do

candomblé sem serem entidades religiosas. Assim, tem-se acesso à ‘cultura negra’ do

candomblé, sem que seja preciso comprar o pacote inteiro. É bem verdade que há também

tentativas de aproximação da igreja com o próprio candomblé, mas, em geral, nos espaços

católicos, sob a fórmula de ‘um mesmo Deus, sob diferentes formas’. E, diante do que foi

apresentado anteriormente a respeito da relação de pessoas ligadas ao candomblé com a

religião católica, isso não é muito difícil, embora esses momentos de interação se resumam

a alguns poucos eventos anuais.

Bloco afro e subjetividade negra

O Ilê Aiyê, como primeiro bloco afro, foi criado a partir da apropriação dos

elementos que compõem um bloco de carnaval, tais como música, tema, fantasia e

alegoria, e do investimento sobre eles do que foi considerado como o mais puramente

51 O abadá fora trazido de Londres como presente por um casal de amigos.

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negro, de origem africana, ou como herança mais próxima do que era africano, guardado

pelo candomblé. Essa foi uma forma de seus fundadores diferenciarem-se do que existia,

fazendo-se mais negros, fazendo outras pessoas se sentirem mais negras, inventando o que

seria daí em diante considerado mais negro, chamado de ‘afro’ posteriormente.

Como visto em Encontros 1, Salvador estava se reafricanizando nos anos 70, e os

blocos afro são tanto conseqüência quanto contribuição para isso. E sua importância

central está no fato de que nenhum outro grupo ou movimento poderia ser tão

manifestamente negro em sua estética, associada à sua música, quanto um bloco de

carnaval, que permite a fantasia e a exibição como não se faz no dia-a-dia. Assim, os

principais elementos considerados ‘étnicos’ passaram pelo carnaval, mas ganharam outros

domínios, foram para as ruas e para outras atividades que movimentam os grupos afro

durante todo o ano, quando estes estruturam-se para isso.

Esta seção pretende, então, apresentar e analisar os principais elementos que

participam da composição de um bloco afro, não apenas no carnaval, como também em

outros momentos. A partir da rápida explicação de Deleuze (1992:203-4) sobre os gêneros

do conhecimento, pode-se dizer que a música, a dança, a indumentária, os temas produzem

uma idéia, um conceito de ser negro – “novas maneiras de pensar”. O conceito inspira,

produz novos perceptos e afectos, que são também dimensões do conceito. Têm-se, assim,

novas formas de se vestir, de usar os cabelos, de se movimentar que são singulares. Trata-

se de um percepto que funciona para si e para outros quando se dança de tal forma, se toca

tal ritmo, se compõe uma música enfocando um tal tema – “novas maneiras de ver e

ouvir”. E, a partir dos perceptos, novos afectos, ou seja, “novas maneiras de sentir” e de

devir negro, tornar-se outro52...

52 Deleuze sobre o mesmo tema: “É que o conceito, creio eu, comporta duas outras dimensões, as do perceptoe do afecto. É isso o que me interessa, e não as imagens. Os perceptos não são percepções, são pacotes desensações e de relações que sobrevivem àqueles que os vivenciam. Os afectos não são sentimentos, são

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A dança afro

Agier sustenta que o Ilê Aiyê introduziu um novo tipo de samba no Brasil, um

“samba re-etnicizado, em função da reafricanização” (2000:159). Nesse novo samba, não

só o ritmo é novo, mas também a dança. Do samba que se conhecia, guarda-se a ‘ginga’,

mas o grupo produz um novo estilo, novas regras que definem o que é dança afro, cujas

características fazem referência a uma origem africana, de uma África longínqua e no

passado, mas também ao candomblé, uma África atual na Bahia (:159-60). Quando escreve

Carnaval Ijexá..., em 1981, Risério revela que no Ilê não há alas de dança nem um modelo

de coreografia para não oprimir as pessoas com uma forma única de dançar (1981:44): “No

Ilê, o destaque são todos”, diz um dos membros do grupo. Já Agier (2000), baseado em sua

pesquisa realizada na primeira metade da década de 90, descreve o desfile do Ilê Aiyê com

uma pequena ala de dança formada por seis pessoas sobre um caminhão e um outro grupo

de componentes também formando uma ala de dança no chão. Além disso, há dois

dançarinos mais prestigiados: um homem, que é sempre o mesmo, e uma mulher, a “Deusa

de Ébano” eleita na Noite da Beleza Negra (:95). Segundo Guerreiro (2000:40), o Malê

Debalê, surgido em 1979, foi o primeiro bloco afro a ter uma ala de dança em seu desfile.

Ribard, referindo-se genericamente aos blocos afro, diz que cada ala tem sua própria

coreografia, como se fossem sub-grupos no interior de um bloco, homenageando orixás

específicos (1999:434).

A contribuição do Ilê Aiyê na divulgação da dança afro é inegável; contudo, é

difícil conceder ao grupo a ‘invenção’ do estilo. Além dos afoxés, que já reproduziam

passos de candomblé nas ruas desde finais do século XIX, já no final da década de 60 e

início da de 70, havia grupos que estilizavam as danças dos orixás em apresentações

devires que transbordam aquele que passa por eles (tornando-se outro). (...) O afecto, o percepto e o conceitosão três potências inseparáveis, potências que vão da arte à filosofia e vice-versa.” (Deleuze 1992:171)

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teatrais, como aquela de que Mário Gusmão participou em 1971 (Bacelar 2003:238). Sua

experiência nesse e noutros espetáculos, e a ‘descoberta’ de sua ‘negritude’ e da dança afro

com seu amigo Clyde Morgan, que tinha relações com o candomblé, fizeram de Mário

Gusmão um dançarino profissional de ‘afro’. É verdade que ele chegou a participar do Ilê

Aiyê no final dos anos 70, mas sua formação como bailarino de dança afro já era um fato.

E sua experiência como dançarino foi, certamente, sua maior contribuição para o

surgimento do movimento afro-cultural de Ilhéus.

Entre as inúmeras diferenças existentes entre os blocos afro de Ilhéus e aqueles de

Salvador (ao menos dos principais, cujas histórias são mais divulgadas), uma que se

destaca é quanto à origem dos primeiros blocos ilheenses, aqueles surgidos nos anos 80:

vários nasceram a partir de grupos de dança afro. Alguns formaram-se a partir da dança e

depois de algum tempo tornaram-se blocos afro; outros já foram criados como blocos afro,

mas o grupo de dança foi a primeira atividade do grupo. Mário Gusmão esteve diretamente

ligado ao surgimento de dois deles e, indiretamente, a alguns outros. Além disso, não se

pode esquecer que a competência de Gusmão deve ser conjugada com a proximidade com

o candomblé das pessoas que iniciaram os primeiros blocos.

Retomando rapidamente a origem dos primeiros blocos, tanto o Miny Kongo

quanto o Lê-guê Depá surgiram a partir de pessoas que inicialmente se organizaram para

dançar. Foi a dança afro que aproximou Luiz Carilo, que era bailarino clássico, da mãe-de-

santo do Tombency, que dança para os orixás. Ele desejava “aprender o afro”. Essa troca

de experiências rendeu bons frutos: organizaram-se como grupo de teatro – com a

participação de Pedro Mattos – e de dança; fundaram a SACI – Sociedade de Artistas em

Artes Cênicas de Ilhéus –, em cuja ata de fundação D. Ilza consta como “dançarina

profissional primitiva”, assim como três de seus filhos que também assinam a ata;

apresentaram-se num espetáculo de dança – vestidos como baianas e orixás – na Lavagem

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da Catedral de São Sebastião de 1981 e fundaram o Lê-guê Depá, promovendo o primeiro

desfile no carnaval deste mesmo ano.

O Miny Kongo foi fundado em novembro de 1980 com a proposta de ser bloco

afro, mas não desfilou em 1981; logo depois do carnaval, Mário Gusmão chegou em

Ilhéus, foi morar no Oiteiro de São Sebastião e trabalhar na Academia Raízes, para onde

levou vários jovens vizinhos e lhes ensinou dança afro; dessa primeira organização,

juntamente com Atanagildo e Veludo, este último pai de alguns dos alunos de Gusmão, o

Miny Kongo estruturou-se para seu primeiro carnaval em 1982. E em seus dois primeiros

anos, o grupo de dança do Miny Kongo, no segundo ano já com a presença também de D.

Ilza e filhos, foi “sucesso” em toda a região.

Logo depois, surgia o Axé Odara também tendo origem num grupo de dança,

praticamente o mesmo que participou da fundação do Miny Kongo, com Mário Gusmão à

frente, mas também com D. Ilza e filhos. E, embora o grupo tenha desfilado já no carnaval

seguinte à sua fundação, ele é mais reconhecido como um grupo de dança e de teatro que

desfilava no carnaval do que como um bloco afro que possuía um grupo de dança.

Um exemplo ainda mais contundente do predomínio dos grupos de dança naquele

momento é o surgimento do Força Negra, que nasce mesmo como grupo de dança e

somente após dois anos atuando desfila em seu primeiro carnaval. Houve ainda grupos

como o Raça Negra, também na Conquista, formado por ex-componentes do Rastafiry e do

Axé Odara, que durou cerca de um ano e nunca se constituiu em bloco.

O Dilazenze, fundado em 1986, foi originalmente pensado como um bloco afro,

mas sua primeira e principal atividade foi seu grupo de dança que, segundo conta seu

presidente, nasceu com o diferencial de ser ainda mais voltado para a estilização das

danças dos orixás e logo fez muito sucesso. Anotações, panfletos e notícias de jornal de

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fato comprovam uma intensa atividade dos grupos de dança afro naquele momento na

cidade.

Já entre os blocos afro surgidos na década de 90, apenas um, o Zambi Axé, nasceu

a partir de um grupo de dança – o Zalamandra, que não era afro. Os demais surgiram já

como bloco ou como banda afro. Pode-se supor que esta mudança seja proveniente do

sucesso de grupos como o Olodum e o Ara Ketu, assim como dos blocos mais antigos de

Ilhéus, atuando sob esse formato a partir do final dos anos 80. Tal como aconteceu com os

grupos de dança, alguns blocos se constituíram como uma etapa posterior de sua formação

como banda; outros se mantiveram assim e acabaram extintos num momento de retração

do estilo a partir da metade da década de 90, quando a ‘axé music’ ou o ‘pagode baiano’

passaram a ser mais requisitados pelos hotéis da cidade, principais contratadores dos

blocos.

Atualmente, apenas o Miny Kongo e o Dilazenze dedicam-se a preparar espetáculos

de dança afro na cidade; porém, só este último tem um grupo de dança em permanente

atividade, e é o que tem garantido sua visibilidade em relação ao trabalho artístico. O Balé

Afro Dilazenze, como é chamado, recebe convites para se apresentar em eventos

promovidos pela prefeitura e pela universidade local53. Há algumas outras poucas

oportunidades, todas, em geral, mal remuneradas ou mesmo prestadas como favores. Mas o

grande mérito do grupo está no fato dele mesmo produzir eventos como shows em escolas,

‘mostras de cultura’, oficinas de dança e a apresentação da ala de dança no desfile de

carnaval, que se tornou uma das atrações mais esperadas. O Miny Kongo também participa

de alguns eventos e promove outros, mas sempre em menor intensidade do que o

53 Durante um certo período, alguns componentes do Dilazenze participaram de um grupo de dança afroformado na Universidade Estadual de Santa Cruz, que lhes dava uma pequena ajuda de custo. A coreógrafado grupo chegou a ensinar dança afro para crianças atendidas por um projeto social da universidade. Alémdos pequenos cachês recebidos vez por outra, essas foram as únicas oportunidades em que esses bailarinosforam pagos pela atividade de dançar.

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Dilazenze. Ambos já prepararam espetáculos para serem especialmente apresentados no

Teatro Municipal de Ilhéus, inclusive com venda de ingressos. Entre os demais grupos, o

Zambi Axé e o Guerreiros de Zulu também investem na preparação de dançarinos e

seguem o modelo do Dilazenze de ter uma ala de dança que realiza coreografias

específicas durante o desfile. Nos outros blocos, os grupos de dança são compostos por

pessoas, em geral meninas, que se apresentam nos shows da banda percussiva nos hotéis e

nos ‘receptivos’ para os navios que chegam com turistas.

Uma diferença marcante entre os grupos de dança afro atuais e aqueles formados na

década de 80, em seu período ‘áureo’, está na participação masculina: apesar de não ter

registro de todos os participantes de todos os grupos, pode-se dizer que a maioria dos

componentes eram homens. Uma primeira mudança da composição de gênero ocorreu

ainda nos grupos já então formados. No mais famoso deles, o Axé Odara, foram as

desavenças internas e acusações ao então dirigente que assumiu o grupo após o

afastamento de Mário Gusmão, que levaram à saída de grande parte dos rapazes, mas

também das moças. O Axé Odara passou por uma renovação a partir da entrada de novos

componentes, principalmente mulheres, e seguiu para Porto Seguro. No caso do Miny

Kongo, uma boa parte de seus componentes iniciais foi para o Axé Odara; o grupo de

dança foi assumido, então, por pessoas que mais tarde viriam a fundar o Força Negra, entre

elas vários rapazes. O Dilazenze começou seu grupo de dança com um número equilibrado

de homens e mulheres, pelo que consta em anotações antigas do grupo, sendo seu primeiro

diretor do grupo de dança o também primeiro presidente do bloco. Com o tempo, o grupo

de dança do Dilazenze foi perdendo os rapazes e as mulheres passaram a ser maioria,

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assumindo a direção do grupo: primeiramente foram as filhas mais novas da mãe-de-santo

do Tombency, depois uma de suas netas, a atual coreógrafa54.

Atualmente, o grupo de dança do Dilazenze se apresenta com um número muito

maior de mulheres do que de homens. A divisão sexual no grupo é bem marcada: mulheres

na dança e homens na percussão. Esta é uma divisão bastante usual, seja em blocos afro ou

não. No entanto, por se tratar de um grupo tão estreitamente ligado a um terreiro de

candomblé, não se pode negligenciar esta relação, e mais uma vez a influência da religião

pode ser bem notada, já que também no candomblé há uma divisão sexual acentuada:

homens tocam atabaques, são ogãs; mulheres viram no santo e dançam na roda; homens

que viram no santo são homossexuais ou são julgados assim.

Em 2000, nas reuniões de planejamento do Projeto Batukerê55, havia uma

preocupação em evitar que as crianças e adolescentes participantes também assumissem

essa postura de divisão de ‘tarefas’ por gênero. Assim, foi decidido que todos deveriam

participar de todas as oficinas oferecidas pelo projeto: dança afro, percussão, criatividade

(artesanato, teatro) e capoeira. A princípio, a participação de meninos na oficina de dança e

de meninas na percussão era satisfatória e algo exótica: todos comentavam sobre como

alguns meninos dançavam bem e sobre a disposição de tocar percussão, mesmo os

instrumentos mais pesados, que as meninas demonstravam. No entanto, não tardou muito

para que a divisão se estabelecesse e, apesar dos apelos dos instrutores, os meninos não

compareciam mais à oficina de dança. Já as meninas freqüentaram por mais tempo a

oficina de percussão, pois, se por um lado, os meninos sofriam mais pela estigmatização

em torno da dança – ou temiam por isso –, por outro, parecia ser mais aceitável, e mesmo

mais admirável, que as meninas tocassem.

54 No momento, ela se encontra afastada, embora continue dando “assistência” a uma outra neta de D. Ilza,responsável pelo grupo.

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Durante alguns anos, outro grupo afro de Ilhéus, o Rastafiry, teve um Banda

Feminina de percussão e, segundo seu dirigente, esse era o segmento mais requisitado do

grupo para a realização de shows, era seu diferencial em relação aos demais blocos. Nos

últimos anos, a banda não tem se apresentado mais, porém, o trabalho gerou resultados: o

Rastafiry ainda possui o maior número de mulheres em sua bateria.

No meio masculinizado dos blocos afro, são raras as mulheres que atuam em suas

baterias. De acordo com a opinião de um dirigente, “não há mulheres na bateria porque

nossa batida é muito difícil, às vezes nem homem aprende” – declaração que explicita um

pensamento dominante no meio dos blocos afro, embora poucos tenham coragem de

afirmá-la de maneira tão contundente. Vê-se, assim, que uma outra proposta de visão de

mundo, que uma subjetividade feminina precisa ser continuamente produzida a fim de

possibilitar a criação de ‘novos mundos’ diferentes deste em que os meninos do Batukerê

podem pressionar as meninas que desejam tocar percussão baseados na idéia de que este é

o seu lugar, não o delas. O esvaziamento das oficinas a partir da divisão de gênero fez com

que começasse a haver uma reivindicação geral pela possibilidade de escolha das aulas que

se desejaria fazer, o que acabou por ‘oficializar’ a ‘divisão sexual’ da arte.

A influência do candomblé na constituição do que veio a ser conhecido como dança

afro é mais do que notória. A estilização da dança dos orixás é a base ‘do afro’. De acordo

com o presidente do Dilazenze, este foi o grande trunfo de seu grupo de dança em seu

surgimento: em função de sua “real” relação com um terreiro, mais e melhor do que os

outros o grupo saberia fazer uso do que conhecia sobre a dança dos orixás. Especialmente

no caso desse grupo, por sua ligação com o terreiro, o candomblé está sempre muito

presente, seja por seus elementos, seja pela competência dos bailarinos, seja pelos cuidados

que devem ser tomados com a forma de tocar – o ritmo empregado não pode ser tão forte

55 Trata-se de um projeto social com crianças e adolescentes da comunidade do Dilazenze que será

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247

quanto o que se usa para chamar os orixás. Há uma grande preocupação com o que

poderia ser chamado de ‘saúde religiosa’, isto é, um bailarino designado para uma tal

função – desempenhar o papel de um orixá, por exemplo – deve estar com suas obrigações

religiosas em dia, se ele as tiver, para não correr o risco de “sentir-se mal”, ou seja, de

sofrer os primeiros sintomas da possessão mas não chegar a entrar em transe por não ser

iniciado, ou mesmo de virar no santo. Durante um ensaio em 2001, um dos dançarinos,

que já fora avisado que tinha obrigações a cumprir, começou a entrar em transe durante o

ensaio de um dos números, cujo tema era a dança de Iansã e Xangô. Todo o grupo foi

duramente repreendido pela mãe-de-santo, pois se as pessoas “de dentro” tivessem notado

o que estava para acontecer, poderiam evitar a situação diminuindo o ritmo dos atabaques

ou interrompendo o ensaio. O dançarino, por sua vez, também foi lembrado de que

precisava fazer o que “havia para ser feito”. Na ocasião, foram relatados outros episódios

em que fatos semelhantes teriam acontecido. Uma delas foi durante um espetáculo em que

membros do Dilazenze tocavam, mas a possessão só foi notada por quem é “de dentro”,

pois aos olhos do público parecia parte da cena.

Entretanto, os agenciamentos que produziram o que passou a ser chamado como

dança afro desvincularam-na do candomblé, não sendo a religião sua única fonte.

Documentários sobre tribos africanas disponíveis em fitas de vídeo ou filmes que tenham o

continente africano como cenário também são recursos úteis, pelo menos para blocos afro

como os de Ilhéus, que não têm acesso a outros materiais. Porém, depois do candomblé,

talvez a mais importante fonte de informação sobre dança afro para os grupos de Ilhéus

sejam as visitas, embora não muito freqüentes, de Zebrinha, bailarino de referência

nacional para a dança afro e diretor e coreógrafo do Balé Folclórico da Bahia, famosa

companhia de dança de Salvador. Vez por outra, ele é convidado pela prefeitura para

apresentado no próximo capítulo.

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248

oferecer oficinas de dança na cidade. Nessas ocasiões, a dança afro é valorizada e mesmo

bailarinos das academias de balé clássico participam das aulas56. Além disso, intercâmbios

com grupos de Salvador também são apontados como importantes para a aquisição de

conhecimento. Ultimamente eles têm sido raros, mas comenta-se que “em outros tempos”

– sempre é dito que houve um outro período muito melhor para os blocos afro de Ilhéus

–eram constantes as viagens para a capital baiana a fim de trocar experiências com grupos

famosos, como o Olodum e o Ilê Aiyê.

A roupa afro

O candomblé também fornece muitos dos elementos que compõem a indumentária

utilizada nos espetáculos dos grupos afro de Ilhéus, especialmente quando estes tematizam

a dança dos orixás. Porém, para os desfiles no carnaval e outros shows, a inspiração é a

África, preferencialmente aquela chamada de ‘primitiva’, a das “tribos”. Nesse caso,

novamente documentários, filmes e revistas são as principais fontes. Em função da falta de

recursos, os mais diferentes materiais podem ser utilizados como modelo, entre eles

imagens dos grupos de Salvador conseguidas em fitas de vídeo ou pela transmissão da TV,

mas também livros de fotos com temas africanos, revistas e documentários produzidos pela

“National Geographic”, aos quais alguns poucos grupos têm acesso, assim como filmes de

ficção, como a antiga série de TV “Tarzan” e outros mais recentes como o filme

hollywoodiano “Um Príncipe em Nova York”, que conta a história de um ‘príncipe’ de um

país africano que vai procurar uma noiva nos Estados Unidos. As pessoas que se referiram

ao filme como fonte disseram que seu interesse nele passava pela observação das roupas

utilizadas pelos ‘africanos’. No caso de “Tarzan”, a “África” apresentada é concebida

como mais “primitiva” e inspira roupas para espetáculos de dança afro também

56 Ao longo de meu trabalho de campo, iniciado em 1997, embora não tenha presenciado nenhuma dessasoficinas, soube algumas vezes da estada de Zebrinha na cidade. Uma dessas ocasiões, precisamente daquele

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“primitiva”, como a “dança do fogo”, tema de performance de diferentes grupos. Livros

didáticos ilustrados com figuras sobre o período da escravidão, telenovelas de época ou

mesmo pinturas também foram citados. Um ex-dirigente comentou que uma de suas

inspirações para a criação de indumentárias para seu bloco foi um quadro que retratava o

cotidiano dos escravos no Brasil, com suas roupas de algodão cru, e que inspirou Castro

Alves em seus poemas. Possivelmente era um Rugendas.

Nesse aspecto, a estrutura dos grandes blocos de Salvador é muito diferente daquela

dos de Ilhéus que, possivelmente, se assemelha à dos pequenos blocos da capital. Ainda na

década de 70, o Ilê Aiyê já pôde contar com artefatos, tecidos, modelos diretamente vindos

da África. Em 1977, por exemplo, um de seus componentes, Macalé, e Mário Gusmão,

ainda não integrado ao grupo na ocasião, foram à Nigéria para o II Festival de Artes

Africanas em Lagos e trouxeram muito do que seria utilizado pelo Ilê Aiyê no carnaval de

1979, quando homenageou aquele país. Agier (2000) informa que os responsáveis pelas

pesquisas no Ilê Aiyê chegaram a viajar para Angola, Senegal e Benin. Conhecer de perto

os países africanos era uma forma de mudar o foco da África ‘primitiva’ e ancestral para a

África contemporânea, enfatizando as dimensões políticas e culturais desses países (:79).

Através de um “intercâmbio cultural” com países africanos promovido pela Fundação

Gregório de Matos (Guerreiro 2000:105), as viagens foram financiadas pelo governo

municipal, possibilitando que membros dos grandes blocos de Salvador visitassem o

continente africano, coletassem material e realizassem pesquisas que seriam

posteriormente desenvolvidas nos desfiles. Em depoimento a Risério (1981:42), Vovô,

presidente do Ilê, diz que a roupa do bloco é o resultado da mistura de diversos elementos

do ‘povo’ ou da ‘região’ enfocada; a roupa é estilizada, não copiada, e pode agregar

informações sobre “costumes, política, religião.”

ano, encontra-se registrada no trabalho de Vale de Almeida 2001:48-9.

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Como visto, é prática comum aos grupos afro a produção de ‘apostilas’ ou enredos

a respeito do tema escolhido para aquele ano que orientarão a composição do carro

alegórico – o ‘carro de som’ – e a criação das fantasias, mas sobretudo a composição das

músicas que serão cantadas durante o desfile. Especialmente em seu início, era comum que

os grupos afro tivessem ‘grupos’ ou ‘equipes’ de pesquisa que se encarregavam da coleta

de informações sobre o tema escolhido e da seleção do material básico a ser repassado para

os compositores e demais responsáveis pelas fantasias e alegorias. Entre os primeiros

blocos de Salvador, a ‘equipe de pesquisa’ abrigava intelectuais, artistas e pessoas ligadas

ao movimento negro ‘político’ que se aproximavam da entidade57. Contudo, de modo

geral, esses grupos são formados pelas pessoas que possuem um nível mais alto de

escolaridade no interior do grupo, como diz Ribard: “(...) essa ‘coleta de dados’ cabendo a

uma pessoa do bloco que tenha mais facilidade de ter acesso a essas informações”

(1999:423), ou mesmo pelas lideranças, que determinam o tema e recolhem os subsídios

que ajudarão na produção do carnaval.

No início do Dilazenze, por exemplo, há registros da existência de equipes de

pesquisa que produziam as apostilas e até assinavam-nas como tal. O presidente do grupo

diz que a equipe constituía, na verdade, um grupo de estudos sobre história da população

negra e sobre racismo. Esse grupo de pesquisa também era encarregado de produzir

material para que todo o bloco discutisse sobre essas questões, além de preparar textos

sobre a história do Dilazenze, seus objetivos e apresentá-los aos novos componentes.

Também há registros de grupos de pesquisa no Axé Odara e no Força Negra. Uma das

57 Segundo Cunha (1991), esses grupos eram chamados de ‘núcleos de apoio’ ou ‘assessorias’. O seguintecomentário de Vovô, líder do Ilê Aiyê, reproduzido pela autora numa nota, faz entrever que, sob esseformato, esses grupos permaneciam numa relação quase que autônoma aos blocos: “Com uma composiçãohumana com poucos conhecimentos teóricos sobre África negra e negros, [os blocos afro] tiveram querecorrer a intelectuais brancos, negrólogos e negreiros para conseguir informação sobre sua própria cultura, eestes intelectuais passam a ser padrinhos, madrinhas e conselheiros. Transmitindo uma visão particular dapolítica para a diretoria e por conexão ao bloco e afoxé, geralmente contrários às aspirações dos associados ”(Nêgo: boletim informativo do MNU 1982:3 apud Cunha 1991:161). Ver também Encontros 1.

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pessoas mais importantes para o Dilazenze nesse aspecto foi seu primeiro presidente:

mesmo após ter deixado a presidência do grupo, ele continuou à frente das pesquisas e da

criação das fantasias, até se afastar totalmente. Assim, com o passar do tempo, a proposta

dos temas e os textos básicos de orientação acabaram sendo feitos quase que

exclusivamente por seu presidente58. Noutros grupos de Ilhéus, os dirigentes são sempre os

responsáveis pelo tema e pela elaboração das apostilas, embora também contem com a

ajuda de alguns membros e amigos do grupo.

Como já se sabe, a disponibilidade de recursos no meio dos blocos afro de Ilhéus é

escassa. Faltam-lhe livros e outros tipos de materiais que forneçam informações sobre o

tema escolhido. Muitas vezes, esse ‘material’ não é nem mesmo necessário, por exemplo,

quando os temas giram em torno de personagens importantes para o grupo ou de sua

própria história, ainda que, de qualquer forma, uma pequena compilação de dados seja feita

para homogeneizar as informações. Foi o que aconteceu em 1997, como já descrito,

quando o presidente do Dilazenze solicitou que eu reunisse algumas das informações

existentes em documentos e na memória de algumas pessoas para homenagear o Terreiro

Tombency. Já quando o tema proposto é um fato histórico apropriado pelo movimento

negro como importante para a auto-afirmação e para a elevação da auto-estima da

população negra, como o são o Quilombo de Palmares e a Revolta dos Malês,

58 Em 2001, houve um fato inédito, pelo menos para os últimos anos: o tema do carnaval de 2002 foidecidido por eleição durante um encontro do Dilazenze em novembro. Até então, isso não ocorria. É claroque sempre houve tentativas de se propor um tema diferente daquele encaminhado pelo presidente. Noentanto, esbarra-se no obstáculo da produção da apostila: quem quiser se contrapor, que prepare também aapostila para o grupo – este é o seu ‘desafio’ – e isso nunca acontece. A escolha do tema para o carnaval de2002 foi de fato singular, pois não só a proposta do presidente perdeu a eleição, como ele mesmo aprontou aapostila. Mas havia um motivo muito particular para isso: o tema escolhido foram os 15 anos do grupo,completados em 2001. O ‘consenso’ surgiu porque não haveria outro carnaval para comemorar a data, nemoutra pessoa tão organizada quanto ele para ter a história do grupo já praticamente pronta. No carnaval de2003, o presidente desejava homenagear Mário Gusmão (o que acabou acontecendo no carnaval de 2004),mas sua proposta foi derrotada. Ainda que a mãe-de-santo do Dilazenze reconhecesse que não poderia “votarcontra Mário Gusmão”, seu voto acabou sendo por uma homenagem às ‘iabás’ (orixás femininos) propostapelo vice-presidente. E mais uma vez foi o próprio presidente do grupo quem preparou o material básico paraa organização do carnaval por falta de quem o fizesse. Registre-se que nesse ano o grupo voltou a ter acolaboração de seu primeiro presidente, considerado um de seus melhores estilistas.

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252

respectivamente em níveis nacional e estadual, e até mesmo a Revolta do Engenho de

Santana, a nível regional; ou países da África Negra, como Angola; ou movimentos de

influência sobre o movimento negro no Brasil, como o rastafarianismo etc.; até mesmo

quando o tema são os orixás59, as fontes para as apostilas são aquelas que estiverem ‘à

mão’: livros didáticos, revistas, matérias publicadas em jornais, material produzido por

outros grupos60 e, é claro, a ajuda de outras pessoas que estejam dispostas a isso e, ao

menos naquele momento, compartilhem da preocupação e do desejo de que o carnaval seja

bom61. Essa ajuda pode vir até mesmo de um outro dirigente que já tenha desenvolvido o

tema em ano anterior e concorde em ceder a apostila, o que é um fato raro, mas não

inédito.

A estrutura para a produção das fantasias e alegorias para o desfile também é bem

diferente entre os blocos de Ilhéus e os grandes blocos de Salvador. O Ilê Aiyê e o Olodum

possuem suas próprias confecções, onde produzem os tecidos e as fantasias que serão

utilizados naquele ano, de acordo com o tema escolhido. No caso do Olodum, sua fábrica

não se limita ao carnaval e produz roupas e acessórios que podem ser encontrados em

todos os pontos turísticos do país. Essa é uma de suas principais marcas do ‘Olodum

empresa’, elogiado por uns e criticado por outros. Mas, mesmo entre os blocos menores de

Salvador, com exceção de uns poucos que utilizam apenas camisetas, Ribard diz que vários

compram tecido e pintam-no ou mandam confeccionar com o emblema do bloco e do tema

59 É evidente que as pessoas mais próximas ao terreiro conhecem os orixás, ou inquices, como são chamadosno candomblé angola, mas colocar esse conhecimento numa apostila requer um bom poder de elaboração detexto e síntese, sendo mais prático e eficiente buscar os livros.60 Depois que adquiriu uma certa estrutura organizativa e financeira, o Ilê Aiyê passou a transformar oresultado de suas pesquisas, suas apostilas, em pequenos livros chamados ‘Cadernos de Educação’, utilizadosna escola mantida pelo grupo e distribuído para algumas entidades. Além do texto, são divulgadas também asletras das músicas que concorreram ao festival do ano em questão.61 Assim é que, de 1997 para cá, em alguns desses anos, eu e meu orientador temos auxiliado das maisdiversas formas a elaboração dessas apostilas, mas apenas naquele primeiro ano colaborei na redação. Nosdemais, e apenas quando nos foi solicitado, ajudamos enviando pequenos textos ou artigos sobre o assunto,algumas vezes nem mesmo sem ter essa intenção. É o caso do carnaval deste ano de 2004: ainda em Ilhéusem 2001, compartilhando com o presidente do grupo de seu interesse sobre Mário Gusmão, cedi-llhe uma

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daquele ano; os blocos ainda fornecem as sandálias e os adereços, o que faz das fantasias

dos blocos afro as mais custosas do carnaval, embora os blocos de trio possam cobrar

muito mais por uma simples camiseta chamada de ‘abadá’ (1999:436-40), nome tomado

das fantasias dos blocos afro.

A situação dos blocos afro de Ilhéus é bem outra. Contando apenas com os recursos

liberados pela prefeitura anualmente para o carnaval, suas fantasias são feitas com os

tecidos que se consegue encontrar nos dias que antecedem a festa, em geral, seguindo as

cores dos blocos. As estamparias de motivo afro, sempre desejadas mas nunca utilizadas –

até porque costumam ser tecidos importados, caros e difíceis de achar – são substituídas

pelos estampados de cores fortes, comprados na própria cidade, em cidades vizinhas ou na

capital baiana. A compra de todo o material fora de Ilhéus tem se tornado cada vez mais

comum, pois os dirigentes dos blocos afro ilheenses costumam reclamar do aumento dos

valores dos artigos de carnaval na cidade “quando os lojistas ficam sabendo que a

prefeitura liberou o dinheiro”. Segundo dizem, a crise do cacau, o desemprego na cidade e

a extinção das escolas de samba fizeram com que os blocos afro passassem a ser os únicos

grandes consumidores de tecido, aviamentos e outros artigos utilizados em fantasias de

carnaval em Ilhéus e, “ao invés de aproveitarem a oportunidade para vender mais, os

comerciantes exploram os blocos, que acabam preferindo comprar em outras cidades.”

Nesses momentos, até a ‘tese’ de que esse tipo de comportamento é “herança do cacau”,

que “ensinou esse pessoal [os mais ricos] a querer ganhar dinheiro fácil” é evocada. Talvez

seja verdade que haja um aumento dos preços nessa época, mas seria necessária uma

pesquisa de mercado que comprovasse o argumento dos dirigentes. Por outro lado, talvez

os blocos não sejam vistos pelos lojistas como tão bons consumidores assim, pois o

comércio não só não faz descontos como nem mesmo se prepara com estoques dos tecidos

cópia de Bacelar (2001), artigo que este ano foi a base da apostila para a homenagem que o grupo fez ao

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mais utilizados pelos grupos. Em 2000, durante a ‘odisséia’ já relatada para comprar o

material do carnaval do Dilazenze, foi possível constatar que simplesmente não havia

tecidos considerados básicos para qualquer agremiação carnavalesca nas cores amarela,

vermelha ou branca, por exemplo62. Outra hipótese que se pode levantar nesse sentido, é

que ao menos uma vez por ano uma loja de instrumentos musicais ganharia um bom

dinheiro em Ilhéus, se houvesse alguma. A maior parte dos recursos recebidos da

prefeitura é investida na compra de peles para os instrumentos, que são caras e têm ‘vida

curta’, mas é preciso ir a Itabuna adquiri-las, o que pode se transformar num problema,

pois todos os blocos afro de Ilhéus, assim como os blocos de arrasto, além dos blocos da

própria cidade, dirigem-se às mesmas lojas para a compra do material e nem sempre os

estoques conseguem suprir a demanda63.

A confecção das fantasias varia de bloco para bloco. O Dilazenze, por exemplo,

responsabiliza-se pela costura de todas as roupas: durante alguns dias – sempre a depender

da data de liberação “do dinheiro da prefeitura” – três ou quatro costureiras trabalham dia e

noite aprontando tudo, contando com a ajuda de algumas outras mulheres para os

arremates. Nos anos considerados mais organizados, o grupo vende suas fantasias em

carnês, que ficam em torno de quinze a vinte reais. A venda antecipada garante a entrada

de algum recurso com antecedência, mas nunca é muito significativo. Além disso, são

poucas as fantasias vendidas, pois as duas maiores alas do bloco, a de dança e a de bateria,

ganham suas roupas e, na “ala do povão”, muitas fantasias são doadas, seja porque se trata

“grande precursor dos blocos afro de Ilhéus”.62 No carnaval de 1999, primeiro ano das cinco vitórias consecutivas do Dilazenze, a fantasia do grupo na‘ala do povão’ ficou jocosamente conhecida sob o apelido de “presidiário”: com a falta de tecidos nas coresdo bloco, optaram pela cor preta para compor a fantasia. Diante da reclamação geral de que o bloco nãopoderia sair usando tanto o preto (a mãe-de-santo do Dilazenze sempre adverte que isso não é bom, do pontode vista do candomblé), combinaram-no com o branco, fazendo uma fantasia listrada de preto e branco, daí oapelido.63 Ribard (1999) cita a aquisição das peles para instrumentos de percussão, por seu custo, como um dospiores problemas dos blocos afro de Salvador sempre que se refere às suas dificuldades financeiras. Ver,entre outras, p. 435.

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de alguém da família, seja porque é um convidado ou simplesmente porque não tem

condições de pagar. Nos últimos anos, há também a “ala do Batukerê”, formada por

crianças que participam do projeto e que também recebem suas fantasias. A única

exigência é que as pessoas comprem suas sandálias de couro, que o bloco não tem como

fornecer.

Em outros blocos, no Miny Kongo, por exemplo, o tecido é comprado pelo

dirigente e cópias desenhadas das fantasias são entregues às pessoas para que elas mesmas

as costurem. Às vezes, paga-se pelo tecido, mas nem sempre. O presidente do Dilazenze

disse que o grupo já utilizou esse sistema uma vez, mas isso prejudicou a homogeneidade

do desfile, pois, ainda que houvesse um modelo a ser seguido, algumas pessoas ‘criaram’

suas próprias fantasias. Contudo, foi possível ver que essa homogeneidade é de fato

importante nas alas de dança e de bateria, uma vez que na pressa dos últimos minutos antes

do bloco sair, “vale até pano amarrado” na ‘ala do povão’.

A rigidez do julgamento de membros de blocos afro pode ser maior do que a dos

jurados no dia do desfile, sobre os quais às vezes é dito que “não entendem nada de bloco

afro”. Portanto, para aqueles que ‘entendem’, as fantasias utilizadas definem se um grupo é

ou não um bloco afro. Não que este julgamento acarrete qualquer conseqüência, ou seja,

não é o uso deste ou daquele tecido, desta ou daquela roupa que vai determinar se um

grupo continuará fazendo parte do CEAC e se receberá verbas no ano seguinte. Então,

talvez seja melhor dizer que o uso de uma fantasia revela se o grupo está se comportando

ou não como um bloco afro sob o olhar, em geral, de membros de outros blocos afro.

Do primeiro desfile do Lê-guê Depá em 1981 ao carnaval de 1994, segundo ano do

governo de Antônio Olímpio, os blocos afro de Ilhéus foram subvencionados.

Depoimentos de vários dirigentes atestam que esta nunca foi uma negociação fácil e,

especialmente após a criação do Conselho das Entidades Afro-Culturais de Ilhéus, então

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CEACI, os blocos considerados novos não recebiam o repasse das verbas, controladas

pelos “grandes” que dirigiam a entidade. Segundo um ex-dirigente do Força Negra, era

preciso ‘provar’ que se conseguiria sair sem recursos para ‘ter direito’ a recebê-los no ano

seguinte. E, ainda assim, os considerados menores sempre recebiam quantias menores

também. No período compreendido entre os anos de 1994 a 1996, a política de carnaval do

governo mudou radicalmente: primeiramente, o carnaval foi transferido da Av. Soares

Lopes para a Av. Litorânea, no bairro do Malhado. Nos anos de 1995 e 1996, quando o

carnaval foi antecipado, os blocos perderam sua subvenção e apenas dois deles, o

Dilazenze num ano e o Rastafiry no outro, desfilaram, mas utilizando apenas camisetas.

Atualmente, o Olodum, o bloco afro mais conhecido do país, utiliza apenas camisetas em

seu desfile e alguns blocos de Ilhéus acabaram seguindo seu exemplo. Na opinião de

alguns, esta foi uma saída válida na época em que não havia recursos e as camisetas, além

de serem bem mais baratas, podiam ser financiadas por políticos ou por patrocinadores que

teriam seu nome e sua marca estampados nelas. Em 2000, por exemplo, que era ano

eleitoral, o Rastafiry utilizou uma camiseta em que constava o nome de um candidato a

vereador.

Outro aspecto considerado é quanto à concepção de fantasia de bloco afro. Para

alguns dirigentes, a influência da TV mostrando escolas de samba do Rio e de São Paulo e

a pouca divulgação dos blocos afro de Salvador – que são pouco televisionados e, quando

são transmitidos, isso acontece em horários de pouca audiência –, faz com que “alguns

dirigentes nunca tenham visto um bloco afro desfilar. Ele tem uma idéia porque viu um

‘flashezinho’ na TV”, como contou um presidente de bloco que acabara de emprestar uma

fita de vídeo com um desfile do Ilê Aiyê para um outro dirigente. Por isso, alguns blocos

seguem os modelos propostos pelas escolas de samba: tecidos com brilho, lantejoulas,

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plumas e até ‘madrinhas de bateria’ podem aparecer nos casos mais exagerados64, inclusive

com mulheres utilizando biquíni ou roupas sensuais, algo bastante condenado entre os

blocos afro. O modelo dos blocos de trio acabam sendo adotados nos blocos afro por

“meninas que acham que botar um shortinho com uma camisetinha ficam mais na moda.”

É bem verdade que esses são casos raros, mas há uma preocupação de que blocos trajados

dessa forma não recebam boas notas dos jurados, para não “fazer escola”. Isso aconteceu,

por exemplo, a partir do uso de camisetas pelo Rastafiry: de acordo com o mesmo dirigente

citado acima, “outros blocos seguiram o mesmo caminho, pois acharam que havia mais

facilidade para vender.” A preocupação vem de um dos elementos fundamentais para a

concepção dos blocos afro: além da música, uma nova forma de se vestir, de se fazer belo,

de se fazer moda, foi a grande novidade dos grupos afro nos anos 70: é a “auto-gestão

estética”, expressão de Gilberto Gil reproduzida por Risério (1981:26), que deve ser

preservada.

Na verdade, a expressão ‘auto-gestão estética’ é uma boa forma de começar a

abordagem de uma questão delicada, mas importante, tanto no meio do movimento negro

cultural quanto no do político, ao menos em Ilhéus. Nos anos 70, falar de ‘auto-gestão

estética’ da ‘juventude negromestiça’, como diz Risério, significava ressaltar que uma

parcela considerável da população jovem e negra entrava em novos agenciamentos a partir

dos mais diferentes fluxos e propunha novas formas de se vestir, de usar o cabelo,

acessórios... uma nova moda que desejava fazer-se diferente da moda e do modo de ser

dominantes. Não tardou para que o novo estilo fosse, como tudo o mais, capturado pelo

capitalismo, aceito e até mesmo estimulado por ele. Ainda assim, ele continuou a indicar

diferenças, mas a idéia de auto-gestão estética também perdeu um pouco do seu sentido

inicial, pois, em alguns contextos, ela passou a ser obrigatória, ditadora de posições. Não é

64 Em geral, são personagens da cidade que certamente desfilariam em escolas de samba se elas ainda

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258

preciso passar muito tempo em Ilhéus para saber que o movimento negro forte e

predominante na cidade é o dos blocos afro, mas, em termos de estética do cotidiano, são

os representantes do movimento negro político que se destacam: cabelos, batas, sandálias,

boinas... Em meu primeiro dia na cidade ainda em 1997, disseram-me que seria fácil

reconhecer o mais destacado representante do MNU em Ilhéus e alguns outros membros

por seus trajes. Simultaneamente, descobri que os trajes não diziam nada sobre os

dirigentes dos blocos afro, pelo menos não em seu cotidiano. Roupas em estilo afro são

reservadas para eventos. Pode-se afirmar que nenhum deles utiliza roupas, cabelos ou

acessórios que o identifique como ‘negro’: nem batas, nem boinas ou gorros, nem cabelos

dreadlocks, nem tranças, nem contas... E, em certas ocasiões, isso constitui um motivo de

acusação por parte de alguns representantes do movimento negro considerado mais

político, que utilizam bastante esses elementos. Para estes últimos, vestir-se dessa forma

significa afirmar-se como negro, não ter vergonha de sua negritude. E foi mesmo com esse

objetivo que o processo de reafricanização do carnaval reafricanizou também os corpos.

Como diz Risério:

“o novo visual da blackitude, diferenciando-a no conjunto dapopulação, representava exatamente o momento em que o pensamentose materializava, aquém e além das palavras. Batas, búzios,trancinhas, etc., funcionavam, portanto, como sinais exteriores deidentificação entre membros de uma comunidade reunida ao redor deinteresses comuns. (...) [era] símbolo de inconformismo e afirmaçãode uma distância” (1981:101).

Talvez usar ou não usar tais roupas ou acessórios nunca tenha passado pela cabeça

dos dirigentes mais jovens, mas não se pode dizer o mesmo dos mais antigos, que viveram

com mais ou menos intensidade as décadas de 70 e de 80 e a “febre” da música “Eu sou

Negão”, de Gerônimo, símbolo de ‘afirmação de negritude’. Contudo, diferentes fatores

fizeram com que usar trajes afro no dia-a-dia não fosse mais possível ou desejado:

existissem. Os blocos afro são apenas uma passarela.

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259

discriminação no emprego, falta de recursos e até mesmo a idéia, às vezes expressa num

tom um tanto agressivo, de que “não é preciso estar fantasiado para mostrar que se é negro

e que se faz um trabalho sério pela população negra”, como disse um dos dirigentes. De

fato, partindo de um viés mais prático, as pessoas mais conhecidas do movimento negro

político hoje de Ilhéus que valorizam essa forma de se vestir, trabalham em locais

alternativos e, na maioria das vezes, seu emprego – ou sua forma de sobreviver – passa por

sua liderança ou por seu trabalho político/comunitário. É claro que a relação não é causal e

poder-se-ia legitimamente argumentar que empregos e posições de liderança vieram como

conseqüência da postura assumida anteriormente. Porém, levando-se em consideração

apenas o momento presente, a situação dos dirigentes dos blocos afro é bem diferente. Em

sua grande maioria, eles são desempregados e, quando têm emprego, não é na área de

cultura ou de política de movimento, o que, segundo seus relatos, proíbem-nos de usar

“trancinhas ou roupas coloridas”. O dirigente do Rastafiry lembra que chegou a usar

‘dreadlocks’, mas isso só aumentava a discriminação contra si mesmo e contra o grupo a

partir da associação entre o cabelo “rasta”, o nome do grupo e o uso de maconha, o que o

obrigou a cortar o cabelo para procurar emprego65. Apenas alguns poucos percussionistas,

que conseguem tocar em bandas de axé music e têm um trabalho mais permanente, fazem

uso de uma estética afro no dia-a-dia, mas nesse caso poder-se-ia dizer que eles se vestem

‘artisticamente’. Estritamente desse ponto de vista, é paradoxal que aqueles que acusam os

blocos de só quererem saber da ‘festa’ e da ‘cultura’, valorizem tanto a estética, se

apresentem mais ‘culturalmente negros’, enquanto aqueles que acusam os representantes

do movimento político de só saberem falar e fazer reuniões, pareçam avessos à valorização

cotidiana da ‘culturalização’ dos corpos.

65 O Rastafiry sempre sofreu uma certa rejeição por parte da comunidade, talvez por não ter uma basefamiliar no bairro e, certamente, pela associação do nome do grupo ao consumo de maconha. Já houveabaixo-assinado contra o grupo e ele já foi chamado de “rasta-fumo”.

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260

Por outro lado, não se pode deixar de considerar que essa ‘acusação’ por parte de

pessoas do movimento negro político tem uma certa razão de ser. É inegável que o não uso

de roupas e cores associadas a um estilo ‘afro’ seja também produto do racismo, produto

de uma visão de mundo, de um modo de subjetivação que atinge ‘brancos’, ‘negros’ e

pessoas de quaisquer outras ‘cores’, inclusive membros e dirigentes de blocos afro. Como

disse uma pessoa envolvida com os blocos em Ilhéus: “Todo mundo quando pensa em

negro, pensa logo em cores berrantes. Pensa em vermelho, amarelo, verde... É uma pena

que as pessoas não tragam isso para o seu dia-a-dia. Mas ‘branco’ pode; ‘negro’ tem que

andar de branco ou de preto, para sumir”. Essa mesma pessoa, então, lembrou de alguns

ditos populares preconceituosos sobre o uso de roupas de determinadas cores por pessoas

negras. Como não imaginar que as pessoas não pensem nisso na hora de se vestir? Como

supor que elas não temam, ainda que por instantes, ser comparadas com as imagens criadas

por alguns desses ditos que talvez já tenham ouvido diversas vezes? Como supor que elas

estejam dispostas a enfrentar possíveis conflitos ou a produzir mudanças, a produzir uma

outra forma de ver o mundo, todos os dias? Um pequeno diálogo entre dois membros de

blocos afro torna bastante clara essa idéia. Eles conversavam sobre a mudança da forma de

se vestir daquele destacado membro do MNU que, como relatei acima, disseram-me que eu

poderia facilmente reconhecê-lo por seus trajes. Naquela época, ele ocupava um cargo na

prefeitura como representante do movimento negro. Afastado da prefeitura e do próprio

MNU, um dos rapazes constatou que ele estava se vestindo diferente, não estava mais

usando o estilo afro e que o motivo da mudança talvez fosse a necessidade de usar roupas

mais formais para acompanhar as constantes audiências judiciais pelo assentamento rural

do qual é líder. Mas o outro rapaz disse que talvez seja, “simplesmente, por estar cansado

de ser discriminado.”

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261

É praticamente senso comum nos estudos sobre a diáspora negra a defesa da tese de

que o corpo foi o meio mais utilizado, mesmo único, de preservação e transmissão de uma

‘memória coletiva’ frente à opressão do sistema escravocrata. Assim, danças, gestos,

marcas na pele, cabelos, roupas, acessórios foram e continuam a ser a principal forma de

expressão de subjetividade negra. Para os componentes dos blocos afro, os desfiles são o

momento máximo dessa expressão, quando todos os símbolos afro são acionados

conjuntamente: vestuário, música, dança, religião, temas, discursos. Além do desfile de

carnaval, há vários outros ‘eventos’, ou seja, momentos especiais em que se produz e se

expressa singularidade negra. Estes podem ser as comemorações da Semana da

Consciência Negra; “missas afro” e cerimônias de candomblé; shows; palestras;

entrevistas; programas de TV; os festivais de música afro e a Noite da Beleza Negra, entre

outros. Isso não significa que as pessoas só desejem expresssar sua singularidade nesses

momentos ou que aquelas que utilizam roupas afro no dia-a-dia sejam mais negras do que

as demais: ainda que seja o cotidiano, utilizar tais roupas tem sentido por se conceber o

trabalho, o provável encontro na rua, o ato de ser visto por outros como ‘eventos’,

momentos especiais em que se deseja expressar uma forma singular de ser, que é negra.

Por isso, constitui um erro relacionar o uso ou não de vestimentas ou adereços

chamados de ‘étnicos’ com idéias como as de ‘identidade’ ou ‘consciência étnica’. Ambas

as categorias circunscrevem os processos de singularização, fazendo-os passar por um

mesmo esquadrinhamento: ‘assumir a identidade negra’, ‘tomar consciência’, ‘ter

consciência étnica’ significa vestir-se, comportar-se, pensar e sentir de uma mesma forma,

como se esta estivesse em algum lugar aguardando ser ‘enxergada’ ou ‘assumida’. Tratar o

movimento dos blocos afro, o movimento negro político ou qualquer outro movimento

baseado em novas possibilidades de experimentar o mundo como uma questão de

‘identidade’ ou de ‘consciência’ é negar a criação possível dos encontros, como se

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houvesse uma única forma de ser afetado por um novo modo de existência, o qual já está

lá66. Como diz Guattari,

“identidade e singularidade são duas coisas completamente diferentes.A singularidade é um conceito existencial; já a identidade é umconceito de referenciação, de circunscrição da realidade a quadros dereferência (...). Em outras palavras, a identidade é aquilo que fazpassar a singularidade de diferentes maneiras de existir por um só emesmo quadro de referência identificável.” (Guattari e Rolnik1986:68).

A Noite da Beleza Negra

Depois do desfile de carnaval, a “Noite da Beleza Negra” ou a “eleição da rainha do

bloco”67 talvez seja o evento mais emblemático promovido pelos blocos afro na produção

de seu desejo de diferir. Ritmos, danças e roupas não significam tanto para a proposta de

uma outra concepção da vida social quanto a afirmação de que uma estética percebida

como muito distinta da dominante deve ser admirada. Pois é no corpo, no rosto, na cor da

pele, na textura e forma dos cabelos que o racismo mais se agarra, onde o modelo único

mais se impõe.

O Ilê Aiyê foi também o pioneiro na realização de um concurso para eleger uma

mulher com o objetivo de representar o bloco: a ‘Deusa de Ébano’. De acordo com Agier

(2000) a ‘Noite da Beleza Negra’ teria surgido na “segunda fase” do Ilê, caracterizada pela

ênfase no “engajamento político”, quando seus temas claramente demonstrariam uma

66 Um exemplo da ‘não criação’ presente na idéia de ‘tomada de consciência’ é a observação de Zourabichvili(2000) a respeito do comunismo segundo o marxismo: “o comunismo não está, propriamente falando, porvir; ele está, desde já, presente como uma tendência, inscrita nas constradições do sistema atual. O quepermite falar do futuro, sem descambar em princípio para o sonho ou para o arbitrário, é a possibilidade dedecifrá-lo no próprio presente em devir. Mas, desse modo, a estrutura de realização aparece combatida demodo insuficiente: tem-se sempre previamente o futuro em imagem, graças ao instrumento dialético; orealizável é apenas elevado a necessário, enquanto o virtual conserva a forma antecipatória de uma meta(essa é a maneira pela qual o futuro continua a se antecipar no presente). Daí por que operador revolucionáriopor excelência é a tomada de consciência, que pressupõe o próprio conteúdo e dá, paradoxalmente, ao futuroa forma lógica do passado: não a emergência de uma nova sensibilidade.” (:344-5, nota 26).67 Talvez porque receba este título, e ainda que ressalte que “em menor medida” do que o maracatu, Ribardatribui a eleição da rainha à influência do coroamento do rei e da rainha na Congada (1999:166). Entretanto,é bom lembrar que apesar dos padrões estéticos e critérios distintos, trata-se de um concurso de beleza, talqual os concursos de “miss” que fizeram tanto sucesso no Brasil durante décadas (e ainda existentes), cujasvencedoras recebem (ou recebiam) manto, coroa e cetro.

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263

“intenção africanista mais política e pedagógica” (:79)68. Nessa época surgiram o que o

autor denomina de “principais marcadores da identidade do grupo” (:80). Além da Noite da

Beleza Negra, Agier também assim qualifica o ‘Dia da Mãe Preta’, comemorado em 28/09,

dia em que foi assinada a Lei do Ventre Livre69 (faz-se uma homenagem à Mãe Hilda e,

através dela, a todas as mães do bloco e debate-se o papel da mulher, especialmente da

mulher negra) e ‘Novembro Azeviche’, que engloba uma série de comemorações de

caráter “étnico” ocorridas neste mês, começando com o aniversário do grupo, dia 1o,

depois o aniversário de independência de Angola, dia 11, a Semana da Consciência Negra,

comemorando o 20 de Novembro, dia de Zumbi dos Palmares e a Revolta das Chibatas, no

dia 22 (:125)70.

A Noite da Beleza Negra é, sem dúvida alguma, um concurso de beleza. Mas acima

da beleza estética corporal, há “critérios estéticos específicos” que, ao menos em tese,

devem ser levados em conta: a competência na dança afro e a fidelidade do penteado e da

roupa ao estilo afro. No Ilê, além de saber dançar para desfilar no alto de um carro

alegórico – critério essencial em todos os blocos, segundo Ribard (1999:432, nota 61) – é

preciso ter uma “postura identitária ligada à expressão da consciência negra” (:433). Para

tanto, já na inscrição, a candidata deve responder a perguntas direcionadas a medir seu

potencial de articulação verbal e suas idéias a respeito do Ilê, uma forma de verificar se ela

68 Agier (2000) divide a história do Ilê Aiyê em três fases distintas que correspondem à “caracterizaçãoprogressiva de sua identidade”: a primeira fase, no surgimento do grupo, teria como principal característica odesejo de “participação no carnaval” a partir de uma organização “informal”, cujo diferencial do bloco estariaapoiado sobre um “exotismo improvisado”; a segunda fase enfatizaria seu engajamento político e umaconcepção de “africanização mais trabalhada”; já a terceira fase, já no final dos anos 80, seria marcada peloinvestimento do grupo em seu caráter associativo (os trabalhos sociais) e empresarial (:77).69 Segundo Agier, o grupo buscava um dia para dedicar à Mãe Preta e encontraram a data num “calendário deigreja” (2000:125).70 Na resenha que faz ao trabalho de Agier, entre várias outras objeções, Moura diz que o calendárioapresentado pelo autor não é cumprido daquela forma e que “o esquema de interpretação utilizado pelo autor[do qual o calendário é parte] parece ter vida própria” (2000:368). No entanto, ao final do parágrafo em quedá essas informações, o próprio Michel Agier observa que só o Dia de Zumbi dos Palmares é comemoradocom regularidade (2000:125).

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se encaixa no perfil do bloco: ela deve ter “consciência racial” e “inspirar respeito” (Agier

2000:137).

E é natural que exista essa exigência, pois, como representante do bloco – no caso

do Ilê Aiyê especialmente, por ser um grupo importante, pelo qual ela dará entrevistas, será

assediada pela imprensa – e eleita para isso com base em critérios que valorizam elementos

‘étnicos’ que diferem do padrão de beleza hegemônico, é necessário que seu discurso

condiza com a razão de ser do evento, cujos objetivos são: “a busca constante da mudança

dos modelos de beleza no país, a valorização da beleza negra, a satisfação do negro a partir

de suas próprias características, a integração do negro com seus valores na sociedade.”

(Agier 2000:131).

O investimento do Ilê Aiyê numa imagem de “elite negra”, tal como defendido por

Agier (2000), é constituído não só pela diferenciação econômica, que teve origem na

formação profissional e emprego de seus fundadores, mas também passa pela diferenciação

moral de seus membros em relação aos estereótipos depreciativos atribuídos à população

negra. No caso da ‘deusa de ébano’, por ser representante do bloco e por ser mulher e

negra, sobre quem os estereótipos incidem com mais vigor, as exigências em relação aos

valores morais são ainda mais destacados. Ainda segundo Agier, a mulher no Ilê Aiyê – e

isso é dito às candidatas ao título de Beleza Negra – deve representar força, dignidade

(principalmente em relação à sensualidade), deve ter relação com o candomblé e com a

cultura negra (o que significa “ancestralidade”) e deve ter sentido de família, pois estará

representando a ‘família Ilê Aiyê’ (:131).

No Dilazenze, o concurso foi realizado pela primeira vez sob o nome de “Garota

Black Dilazenze”, em 1987. Já na segunda edição passou a receber o mesmo nome criado

pelo Ilê Aiyê, e também apresenta preocupações com os comportamentos morais de seus

membros. Mas, no caso das candidatas à Beleza Negra, os fatores, a princípio

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preponderantes, são aqueles referentes à participação anterior no bloco ou à expectativa de

que isso venha a acontecer. Apesar de haver inscrições, uma pré-seleção é feita a partir do

próprio convite para o concurso, em geral dirigido a moças que integram o grupo de dança

ou que tenham parentesco ou amizade com alguém do grupo, sendo esta uma suposta

garantia de que a vencedora virá a se integrar ao bloco, pois espera-se que sua presença

não seja restrita ao desfile. Mas isso é só um ideal. Unicamente a beleza de uma candidata

sem relação prévia com o grupo, que pareça só estar interessada em ganhar um ‘concurso

de beleza’ e ser destaque do bloco desfilando no alto do caminhão, pode ser motivo

suficiente para obter uma torcida forte entre os homens e causar discussões destes com

[su]as mulheres. Aos jurados71 recomenda-se que observem se as candidatas sabem dançar

afro: como destacou Ribard para os blocos de Salvador, também em Ilhéus este é um

critério essencial. Algumas chegam a ter aulas com a coreógrafa do grupo dias ou mesmo

horas antes do desfile, mas nem sempre isso é suficiente. Quando nenhuma das candidatas

é uma exímia dançarina, os comentários que levam a apostas e previsões sobre quem

vencerá, ou sobre quem deveria vencer para o bem do grupo – quem fará “mais bonito” no

carnaval –, giram em torno da desenvoltura da candidata e da percepção ou não de suas

habilidades para o aprendizado da dança, tarefa à qual ela deve estar disposta a se dedicar

no período entre o concurso e o carnaval que, em geral, não passa de uma semana.

No julgamento das candidatas, deve-se observar também os trajes utilizados. É dito

que às vezes cada candidata representa um país africano; em outros concursos, cada uma

estiliza a roupa do seu orixá – ou do que se supõe ser o seu orixá, já que nem todas são do

71 Geralmente, o júri é formado por artistas locais (músicos, escritores, atores e diretores) que acompanham atrajetória dos grupos afro através de uma participação ou outra em alguns eventos e pela posição mesma dejurados, em concursos como esses ou nos próprios desfiles; por patrocinadores – quando eles existem –, porpessoas consideradas ilustres que estejam na cidade e que se aproximam do grupo e, em algumas ocasiõesnos últimos anos, por pesquisadores. Em 2000, por exemplo, o “corpo de jurados” era formado por mim; peloentão secretário de Esportes e que seria candidato a vereador naquele ano (que possui uma relação próximaaos blocos e já participou de alguns deles); por uma cantora de nome da cidade, que participou do Força

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candomblé. Na Noite da Beleza Negra de 2000, o importante era que o traje fosse ‘afro’,

ou seja, havia uma mistura de tecidos e estilos, concebida a partir de um certo improviso.

Poucas candidatas possuíam sua própria roupa e todas elas foram, ainda que apenas com

um ou outro detalhe, arrumadas pelas mulheres do grupo. Assim, tecidos com motivo de

‘tigre’ ou de ‘onça’ eram combinados com torços72, acessório próprio do candomblé, ou

com lenços e saias amarrados das mais diferentes formas.

Não há prêmios em dinheiro ou em bens para a vencedora. Até há alguns anos, o

troféu era o ‘martelo de Xangô’, orixá do Dilazenze, feito artesanalmente em madeira,

tecido, palha e búzios. Atualmente, o artista plástico que colabora com o Dilazenze faz

esculturas em madeira como troféu. Mas há também uma possibilidade, ainda que rara, de

fazer uma ‘carreira’. Dois casos ocorridos nos últimos anos são exemplares de quais são

esses possíveis ganhos. Em 1999, com a volta da competição entre os blocos, o Dilazenze

desejava desfilar com uma rainha, mas pôde realizar a Noite da Beleza Negra por falta de

recursos. Convidou, então, uma moça que já fora rainha do grupo e de outros blocos, além

de já ter pertencido ao grupo de dança do próprio Dilazenze, mas também do Axé Odara.

Ela disse que só aceitaria o convite se recebesse um cachê para isso, pois já teria recebido

convites de outros blocos que lhe pagariam. O grupo recusou e a rainha daquele ano foi

uma das filhas das irmãs do presidente do grupo.

Outro exemplo é o de uma menina moradora do bairro do Salobrinho (bairro

periférico onde está situada a UESC) que fazia aulas de dança com a coreógrafa do grupo

no programa social da Universidade. Ela foi um dos casos de candidata convidada a

participar do concurso por já ser de um grupo de dança afro. Na Noite da Beleza Negra de

2001, ela ficou com o segundo lugar, mas acabou também desfilando no alto do caminhão

Negra em seu início; por uma poetisa e produtora cultural e por um representante do setor de financiamentode pequenos empreendimentos da Caixa Econômica Federal, da cidade vizinha de Itabuna.

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– na verdade, havia uma torcida grande por ela entre os componentes do grupo e como a

decisão dos jurados não agradou muito, uma prerrogativa foi aberta exclusivamente neste

ano para que a ‘vice’ também desfilasse. Ela passou a se integrar ao grupo de dança do

Dilazenze e a fazer apresentações e foi, assim, ‘projetada’, como disse um dos integrantes

do Dilazenze: “Quem era ela antes do carnaval? Era uma menina lá do Salobrinho. Só.

Mas ninguém sabia quem era ela. Saiu no Dilazenze, fez filme para a Ilhéustur. Está como

‘gabriela’73. Por quê? Porque foi vice. Não foi nem rainha, foi vice. Mas ficou conhecida

pelo Dilazenze desfilando. Esse pessoal [da Ilhéustur] viu.”

O Rastafiry e o Miny Kongo também já chegaram a realizar a Noite da Beleza

Negra em Ilhéus, embora com bem menos freqüência do que o Dilazenze. Até o fim do

período desta pesquisa, o Rastafiry se contrapunha a esta ‘vantagem’ orgulhando-se de ter

implantado e promovido o Festival de Música em maior número de vezes na disputa direta

com o Dilazenze.

No caso do Ilê Aiyê, a Noite da Beleza Negra passou a ser um de seus maiores

eventos, para o qual são convidadas pessoas famosas para compor o júri. Ele costuma

acontecer em clubes ou outros espaços, fora do bairro da Liberdade. A descrição que Agier

faz do concurso mostra ser este um momento especial para a participação feminina no

bloco: há mulheres no júri; o concurso é apresentado por uma mulher e o troféu é uma

escultura de Oxum, conhecida como a deusa da feminilidade (2000:137). Conforme visto

acima, o Dia da Mãe Preta é outro momento de homenagem às mulheres. De qualquer

forma, o que chama a atenção nesses eventos é justamente o fato de que há dias para

homenagear as mulheres, raras na diretoria do grupo.

72 “Xale ou manta que se enrola na cabeça à guisa de turbante” (Dicionário Aurélio Eletrônico – SéculoXXI).73 Tem como emprego aparecer em eventos promovidos pelo governo municipal trajada conforme descritoanteriormente.

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Em 1981, em Carnaval Ijexá..., Risério já reclamava da ausência de participação

feminina nos blocos afro: “encerro esse nosso papo aqui expressando um desejo: o de que

as mulheres se movimentem e marquem presença na transa do afrocarnaval.” Para ele, o

papel das mulheres se limitava a tarefas determinadas pelos homens, em geral, ligadas a

“prendas domésticas e de escritório” (:128). Os trabalhos existentes sobre blocos afro de

Salvador, assim como a experiência em Ilhéus, mostram que pouco mudou desde então.

Embora Ribard (1999) comente a participação crescente das mulheres, a importância da

mulher no “Mundo Afro” em sua organização familiar e social, na política, na comunidade

e no terreiro (:431-2); embora afirme que é “cada vez mais e mais marcada a presença

feminina nos diferentes níveis da concepção, da produção e da gestão de algumas

entidades” (:333), o fato é que são poucos os exemplos que o autor pode dar. Ele cita Vera

Lacerda, presidente do Ara Ketu, que foi sua fundadora, e Cristina Rodrigues, dirigente do

Olodum, irmã do presidente do grupo. Entre grupos exclusivamente formados por

mulheres, ele cita o “Filhas de Oxum”, um afoxé criado como contraponto ao “Filhos de

Gandhi”, e a Banda Didá, fundada por Neguinho do Samba, ex-mestre de bateria do

Olodum (:333-4)74, que já havia tentado fundar uma banda feminina no Olodum que não

foi à frente.

E os próprios blocos afro de Salvador reconhecem a ausência de participação

feminina em seus quadros, pelo menos é o que diz um documento denominado “Carta de

Salvador”, resultante do I Encontro Nacional de Dirigentes de Blocos Afro, ocorrido em

novembro de 1993 e promovido pela FEBAB75. Na seção intitulada “A Situação dos

Blocos Afro”, há um tópico a respeito do assunto, onde está escrito: “a participação da

mulher no bloco afro ainda é pequena pelo machismo que impera em várias entidades”.

74 É provável que desde 1995, ano em que Ribard realizou sua pesquisa, outros grupos e bandas afro devemter surgido na capital baiana.

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Porém, nas duas seções seguintes, chamadas “Nossas Propostas” [da direção da Federação]

e “Propostas dos Dirigentes para a FEBAB”, nas quais deveriam constar encaminhamentos

para os problemas levantados na seção anterior, não há nenhum relativo a mulheres.

Para Agier, contudo, uma das características mais marcantes do Ilê Aiyê é a forte

presença feminina. A partir de 1990, elas tornaram-se mais numerosas do que eles, em sua

opinião, por duas razões: a primeira porque o bloco criou uma imagem de si como

“tradicional”, com um grande número de mulheres mais velhas ligadas ao candomblé – as

“damas do Ilê”; a segunda razão é semelhante à argumentação de Ribard a respeito da

importância do papel das “mulheres baianas dos meios populares” na organização

doméstica, na criação de um “sentimento familiar”. A presença das ‘damas do Ilê’ dá ao

grupo “uma respeitabilidade moral e um ambiente familiar” que favorecem e permitem a

freqüentação de mulheres (2000:103). Apesar do número de mulheres que integram o

bloco, apesar da importância que o grupo concede à figura de Mãe Hilda e às mulheres em

geral em eventos, debates e homenagens, em 1995, a diretoria do Ilê era composta de

dezessete pessoas, sendo apenas quatro mulheres e destas, uma era irmã e a outra esposa de

Vovô (:95).

A observação de Risério quanto ao lugar ocupado pelas mulheres no interior dos

blocos afro – nas “prendas domésticas e de escritório” (1981:128) – ainda é válida para os

tempos atuais entre os grupos ilheenses. Além dos espaços sexualmente bem marcados da

percussão e da dança, conforme discutido páginas atrás, os espaços das tarefas mais gerais

e o das decisões, da organização do bloco, também os são. Em reuniões do CEAC ou nos

locais de encontro dos dirigentes dos blocos, as únicas mulheres presentes eram a dirigente

do Afoxé Filhos de Ogun, que às vezes estava acompanhada de alguma filha-de-santo, e

eu. No entanto, em visita a alguma atividade promovida por um dos blocos ou mesmo para

75 Ver Encontros 1. Uma cópia do documento foi-me cedida por Marinho Rodrigues, presidente do

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conhecer ou conversar com dirigentes, as mulheres – mães, esposas, irmãs, vizinhas –

estavam sempre por perto, fosse na limpeza, na organização dos papéis, na preparação de

comidas para vender ou servir ou no cuidado com as roupas. Os depoimentos de alguns ex-

dirigentes, como os do Lê-guê Depá e do Força Negra, ressaltam e valorizam muito a

importância de suas mães e irmãs, especialmente no início do bloco, na confecção das

fantasias e na arrecadação de recursos através de trabalhos considerados tipicamente

femininos – a mãe do ex-dirigente do Força Negra, por exemplo, aprendeu a fazer

‘trancinhas’ numa oficina dada pelo Olodum em Ilhéus e assim conseguiu recursos para o

primeiro desfile do bloco.

No que tange à participação feminina, o Dilazenze ocupa uma posição um tanto

singular em relação aos demais blocos de Ilhéus. Assim como acontece com Mãe Hilda no

Ilê Aiyê, a mãe-de-santo do Tombency tem exercido um papel fundamental no

funcionamento do Dilazenze. O diferencial que sua presença imprime ao grupo é que sua

importância reside não apenas no seu “papel ritual”, como diria Agier, de ‘mãe’, ‘carnal’ e

‘de-santo’. Como já foi exaustivamente demonstrado aqui, D. Ilza é uma pessoa

‘carnavalesca’ e muito atuante, participando ativamente do dia-a-dia e das decisões do

grupo. A diretora do grupo de dança compõe, ao lado do presidente e do vice, que é

também mestre da bateria, uma espécie de trio de decisão do Dilazenze. Antes da

implantação do Projeto Batukerê, em 2000, o bloco possuía uma banda mirim, que tinha

uma mulher como mestre76, algo bastante raro. Desde seu início, a formação do grupo já

indicava um quadro de maior participação feminina: os rapazes que participavam da

bateria do Axé Odara e que tiveram a iniciativa de fundar um novo grupo, contaram com

irmãs, primas, namoradas e amigas da rua para a nova empreitada. A formação do grupo a

partir de uma base familiar e a liderança da mãe-de-santo, às vezes chamada por seus

Dilazenze, a quem, uma vez mais, agradeço.

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271

membros de “nossa matriarca”, favorecem que a participação feminina seja mais intensa

no Dilazenze do que a que costuma ocorrer nos demais blocos, mas está longe de ser a

ideal. As tarefas domésticas continuam exclusivamente em mãos femininas; a

representação de organização e direção do bloco, nas masculinas.

Entre os blocos afro de Ilhéus, o Zambi Axé também merece destaque no que tange

à participação feminina. O grupo de dança a partir do qual foi fundado tinha uma mulher

como uma das principais lideranças, que também desempenhou um papel importante na

sua fundação e em seus primeiros anos. Ela foi presidente do grupo, coreógrafa, estilista e

até compositora. E, mesmo morando em Salvador nos últimos anos, continua a contribuir

com o grupo nos carnavais, segundo seu atual presidente.

Músicas e temas

Um dos elementos mais utilizados para caracterizar os blocos afro é o tema usado

em seus desfiles. O tema é o assunto, ou o ‘enredo’, sobre o qual o bloco afro tratará em

sua música e em suas alegorias e fantasias. No início do movimento dos blocos afro, eles

se referiam, sobretudo, aos países africanos. Segundo Gomes (1989:183; 185), o Olodum

foi o responsável pela expansão temática, passando a trabalhar também com países da

diáspora negra, inclusive com a história da população negra no Brasil, e até mesmo com

países que não fazem parte da África Negra, como Egito e Madagascar77, dois grandes

sucessos musicais do Olodum na segunda metade da década de 80.

É a partir da análise dos temas enfocados pelo Ilê Aiyê que Agier (2000:77) divide,

como já visto, a história do grupo em três fases, privilegiando mais ou menos os países

africanos como locais de ‘origem’ e explorando uma África exótica e o candomblé como

essa África no Brasil, na primeira fase; as lutas políticas dos países africanos, com ênfase

76 Infelizmente falecida em 2001.

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272

sobre os movimentos de independência, na segunda; e o povo negro no Brasil a partir de

seus principais eventos históricos e suas lutas mais atuais contra o racismo, trabalhando

também com o apartheid na África do Sul e as lutas norte-americanas na terceira fase.

A divisão de ‘fases’ em relação aos temas feita por Ribard (1999:419-20) difere um

pouco daquela de Agier pela composição de cada uma delas, mas não dos temas em si.

Primeiramente, o enfoque dos blocos afro teria sido sobre o candomblé e sobre uma África

primitiva, original; no segundo momento, os temas concentraram-se sobre “os países e

‘culturas-irmãs’, lutas, heróis e movimentos políticos e culturais da população negra

africana e americana”; já no terceiro momento, o assunto dos grupos seria a situação atual

do “negro baiano” a fim de propor intervenções sobre a “realidade”.

Em geral, os blocos afro de Ilhéus seguem esse ‘padrão temático’ apontado pelos

autores acima: candomblé, países africanos, eventos e personagens históricos78. Alguns

temas já foram enfocados por mais de um bloco, como “Canudos”, “Revolta dos Búzios”,

“Quilombo”, entre outros. Também temas sobre orixás são bastante utilizados, mas talvez

o Dilazenze tenha sido o bloco que mais trabalhou o candomblé em seus desfiles: além de

ter feito homenagens a orixás, como Xangô, Oxumaré, Oxóssi e as Iabás (orixás

femininos), respectivamente nos anos de 1988, 1989, 1990 e 2003, por exemplo, o grupo

homenageou a antecessora da atual mãe-de-santo do Tombency, e conseqüentemente o

terreiro, logo em sua estréia em 1987, e em 1998 o tema foi a própria história do terreiro.

Há ocasiões em que o bloco exalta a si mesmo, como fez o Dilazenze em 2002,

comemorando seus 15 anos completados no ano anterior. Ou mesmo uma exaltação a todos

os blocos da cidade, como fez o atual dirigente dos Malês em 1988, quando ainda era

77 Cf. Ribard 1999:426-9, onde o autor transcreve e faz uma análise da letra de uma das músicas compostaspara o tema Madagascar, do Olodum, de 1988.78 É preciso fazer uma observação quanto à dificuldade de conseguir coletar essas informações junto aosblocos afro de Ilhéus, pois eles não possuem arquivos de seus temas e músicas. Na maioria dos casos, o únicoregistro é a memória dos dirigentes. Para sua dissertação de mestrado, Cambria (2002) fez um trabalho

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273

diretor dos Gangas. Ele sempre lembra de, provavelmente, seu melhor tema e música – já

que também foi o compositor: “Afrocomunhão”, uma homenagem a todos os blocos afro

de Ilhéus.

Quando se conversa com diferentes pessoas sobre o movimento afro-cultural de

Ilhéus, como foi o meu caso, é possível perceber uma espécie de senso comum a respeito

dos temas. Quase que como jargões, pessoas de experiências distintas declararam opiniões

muito semelhantes. Pessoalmente ou através de relatos de integrantes dos grupos afro, ouvi

a mesma reclamação de que os blocos de Ilhéus não trabalham temas locais, não valorizam

o seu ‘povo’, a ‘sua história’. De fato, além de personagens importantes para cada bloco

em particular79, o tema ‘local’ mais trabalhado pelos blocos afro é a Revolta do Engenho

de Santana, evento histórico resumidamente apresentado em Encontros 2. É presumível

que quase todos os blocos, ao menos entre os mais antigos, já tenham se dedicado a

apresentá-lo. E isso acontece porque, em primeiro lugar, a revolta dos escravos do

Engenho de Santana é contada pelo prisma da resistência e da vitória, e ainda que ao final

os líderes tenham sido presos ou assassinados, simbolicamente o fato representa a origem

da força e da resistência do movimento negro de Ilhéus; em segundo lugar, há uma

produção historiográfica sobre o assunto, à qual os blocos podem recorrer para montar suas

apostilas.

No entanto, como os grupos poderiam trabalhar sobre “os negros da região” numa

cidade cuja ‘história’, como já foi visto em Encontros 2, não admite a existência de

escravidão, não havendo, portanto, produção sobre o tema? Como esperar que os grupos

afro explorem assuntos sobre os quais não há material a que possam recorrer? Essa

dificuldade foi sentida na pele por militantes do MNU que assumiram o grupo Força Negra

exaustivo de compilar o repertório do Dilazenze, talvez o único bloco em que isso seja possível, já que é oque possui um arquivo de documentos, ainda que com lacunas.

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274

em 1997, após este ter sido desativado em função da conversão de seus líderes ao

protestantismo. A proposta dos novos dirigentes era a de fazer com que o grupo viesse a

explorar a presença de negros ‘angola’ na região, tanto como tema de carnaval quanto em

outros trabalhos no dia-a-dia. O argumento era baseado na hipótese de que a maior parte

dos escravos que se dirigiram para o sul da Bahia era de origem bantu e que isso tivesse

trazido especificidades para a ‘cultura negra’ local, já realçada nos terreiros de candomblé,

mas que poderia ser notada em outros elementos ainda não percebidos como herança dessa

origem. Embora o Força Negra não tivesse conseguido sequer montar um projeto sobre o

tema por falta de material disponível80, um dos seus principais líderes insistia na idéia de

que os grupos afro de Ilhéus deveriam explorar a ‘origem angola’ da população negra da

região, pois isso poderia ser ‘lucrativo’ para os grupos afro a partir da geração de um

trabalho distinto daquele produzido pelos blocos de Salvador, o que lhes possibilitaria

alguma competitividade com estes últimos no quadro geral do turismo do estado, além de

“elevar a auto-estima dos negros da região”81.

A mesma ‘queixa’ da falta de trabalho dos blocos com temas locais vem também de

um outro tipo de discurso: aquele que exige que os blocos prestem um serviço à

comunidade, que sua relevância para a ‘cultura local’ seria maior se eles pudessem “trazer

ensinamentos” para a população trabalhando a história da cidade como, por exemplo,

pessoas negras “ilustres” de Ilhéus ou que nela moraram. Não obstante as intenções

políticas das propostas, ambos os discursos têm, no fundo, a mesma concepção de que os

grupos afro devem ter outros objetivos além daquele de serem ‘carnavalescos’.

79 Neste ano de 2004, o Dilazenze homenageou Mário Gusmão, enquanto o Miny Kongo fez o mesmo porPai Pedro, falecido em 2003.80 Nesse caso é importante ressaltar que o grupo apresentava uma média de taxa de escolaridade bemdiferente dos demais blocos afro, já que vários de seus componentes estavam cursando o nível superior.81 Durante a reestruturação do CEAC em 1997, esse mesmo líder insistia que a entidade deveria constituiruma equipe de assessoria, também em pesquisa, para auxiliar os grupos.

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275

A música é o “discurso” do bloco afro: “discurso de afirmação, de valorização, de

denúncia. (...) É um ato político”, é o que diz um dos seus dirigentes em Ilhéus. E isso é

tanto mais verdade se for considerado que as músicas dos blocos são compostas, em geral,

em função dos temas propostos para cada ano. São as ‘músicas-tema’. No Dilazenze, no

Rastafiry e, mais raramente, em alguns outros blocos de Ilhéus, elas são apresentadas nos

festivais de música que, em geral, ocorrem na mesma noite do concurso de Beleza Negra.

Os autores que trabalham com o movimento dos blocos afro de Salvador

classificam suas composições em ‘músicas-tema’ e ‘músicas-poesia’: as primeiras

compostas para os desfiles; as segundas não têm um tema imposto. Em geral, elas são

românticas, mas podem ser de denúncia ou, como diz Vovô, presidente do Ilê Aiyê,

“Existem muitas músicas românticas hoje no Ilê Aiyê. Existe umoutro discurso, Ilê é como um refúgio, um ponto de apoio. A músicapode falar daquele que foi abandonado, daquele que está enamoradode uma ‘Negona’ que ele encontrou no bloco... Essa música é da rua,ela fala da rua, das árvores, de uma mangueira...” (Ribard 1999:426).

Também com base em sua pesquisa com o Ilê Aiyê, Agier (2000) define ‘música-poesia’

como “uma composição sem tema imposto, mas onde o autor deve, entretanto, desenvolver

os valores (ideológicos, morais, estéticos, etc.) que ele reconhece no Ilê Aiyê” (:164). Seja

música composta para o desfile do bloco ou ‘música-poesia’, o importante é que ela seja

‘música negra’: denunciando discriminação racial ou injustiça social; enaltecendo heróis

negros; valorizando a origem ‘cultural’, seja pelo candomblé ou pelos países africanos; ou,

o que é mais comum na ‘música-poesia’, promovendo a auto-estima da população negra ao

falar da beleza e do encantamento da mulher negra, da alegria e do prazer de um desfile do

bloco, do valor de sua música etc.

Em sua dissertação de mestrado, cuja pesquisa de campo foi realizada junto ao

Dilazenze, Cambria (2002) busca definir o que seria ‘música negra’ para o grupo. O autor

chega à conclusão de que é aquela que fala “do negro, de sua realidade, de sua cultura.”

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276

(:119). Em nota, diz que as músicas-poesia que se referem à “questão negra, compostas

fora do carnaval, de alguma forma, constituem uma ponte entre os dois tipos” (:119),

donde se poderia concluir que as músicas-poesia que não falam da questão negra não

seriam, então, música negra. Tomando a fala de Vovô, transcrita acima, letras de música

do Dilazenze e de outros blocos afro e a experiência de campo, não tenho dúvidas em

afirmar que as músicas de um bloco afro são sempre ‘música negra’82. Isso não significa

dizer que as músicas apresentadas pelos grupos afro em seus shows o sejam, pois “músicas

de axé, de pagode são sempre pedidas e a gente tem que tocar”. É evidente, como também

diz Cambria (:119), que “não é suficiente [a música] ter sido criada ou desenvolvida por

pessoas negras”, pois música clássica também poderia sê-lo, nem por isso seria ‘música

negra’. E um grupo pode até acusar um outro de não estar fazendo música negra se quiser

descaracterizá-lo como bloco afro, mas isso nunca seria dito enquanto discurso auto-

referido.

Se o Dilazenze explora mais freqüentemente temas ligados ao candomblé, o

Rastafiry é considerado o bloco mais ‘político’ por trabalhar temas históricos com um

enfoque mais social. Também em ‘música-poesia’, o Rastafiry costuma fazer mais “música

de protesto”, enquanto o Dilazenze compõe músicas mais românticas. Quando o grupo

conseguiu que uma de suas músicas fosse veiculada em rádios FM de Ilhéus, esta foi uma

música considerada romântica, preferida pelas gravadoras segundo um compositor de

bloco afro de Salvador em depoimento dado a Ribard (1999:230): “para que uma música

negra seja tocada, ela deve ser romântica”. E são justamente essas músicas que costumam

ser ‘ouvidas’ nos ensaios dos blocos e, como não são registradas, são ‘apropriadas’ por

blocos de trio ou bandas de axé, que mudam o ritmo e, às vezes, as letras83. É interessante

82 Evidentemente, um componente de um bloco pode vir a compor músicas cuja temática não seja negra, masnão composta para o grupo afro.83 Cf. Ribard 1999:302.

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277

que Guerreiro exemplifique essa situação com um caso ocorrido com o compositor Rey

Zulu, que teve uma de suas músicas “roubada” por banda de trio e tocada em rádio antes

mesmo de ser registrada84. Anos atrás, Rey Zulu conheceu uma ‘música de protesto’ do

Dilazenze, quis gravá-la e um pequeno número de músicos do grupo foi a Salvador

participar da gravação. Sob a alegação de que poderia tornar a música mais comercial, o

componente do Olodum acelerou um pouco seu ritmo e modificou a letra, retirando seu

caráter de denúncia de racismo e transformando-a em música romântica.

A princípio, causa estranheza que existam blocos afro em Ilhéus que possuam a

palavra ‘reggae’ em seus nomes – ‘Danados do Reggae’ e ‘Leões do Reggae’ –, que

eventos chamados ‘Terça’ ou ‘Sexta’ ‘do Reggae’ sejam para apresentações de bandas afro

e que, por outro lado, bandas de reggae não façam parte do Conselho de Entidades Afro-

Culturais – CEAC, nem sejam incluídas no que se chama de ‘movimento negro’ da cidade.

Isso não significa que o reggae não seja ‘música negra’. As razões de sua não inclusão no

CEAC dizem respeito mais à natureza deste como entidade que agrega blocos afro e três

outros grupos quase que a ele impostos, como ver-se-á adiante, do que a uma classificação

de reggae como música negra ou não. Isso depende do contexto.

Em 1997, quando da reestruturação do Conselho e da definição de que grupos

poderiam fazer parte dele, chegou-se a cogitar a entrada de bandas de reggae na entidade.

Discutiu-se, então, a natureza do reggae como ‘afro’ ou não. Entre afirmações que

argumentavam pela mesma origem africana do reggae e do ‘afro’, seja por sua “concepção

etíope” ou pela semelhança baseada na “batida do ijexá”, que deu nome ao ritmo que se

tornou próprio dos blocos afro, o samba-reggae, foi vetada a participação de bandas de

reggae no Conselho porque elas nunca poderiam se tornar blocos afro. Por outro lado,

naquele mesmo ano, com o objetivo de arrecadar fundos para o carnaval dos blocos, o

84 Guerreiro informa que se trata da música “Elejigbó”, gravada mais tarde pela cantora Margareth Menezes e

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278

CEAC decidiu pela realização de um grande show e o artista escolhido foi Edson Gomes,

maior representante do reggae na Bahia e um dos maiores no Brasil. Além da certeza de

que o evento seria um sucesso, havia também a expectativa de que o artista cobrasse um

cachê baixo porque seria um show em benefício de entidades negras, já que suas letras

“falam da realidade do povo negro” ou “são politizadas”, segundo alguns integrantes do

movimento, constituindo-se em protesto contra o racismo, contra a desigualdade social...

“Reggae é música de protesto”, disseram. Foram semanas de tentativas de negociação,

tanto com o artista quanto com a prefeitura, a qual deveria financiar parte dos custos do

show como forma de um primeiro investimento nos grupos afro, que a partir daí seriam

capazes de gerar seus próprios recursos. Mas Edson Gomes acabou realizando um grande

show em Ilhéus trazido por uma empresária branca com auxílio da prefeitura, sem

nenhuma participação dos blocos. Em 2000, houve um outro show de Edson Gomes na

cidade, realizado no bairro da Conquista85, cuja população é majoritariamente negra.

Porém, dessa vez, o reggae de Edson Gomes parecia bem menos com “música negra”, “de

protesto”: com invocações a Deus e aclamações ao “Senhor” a todo instante, foi como se

Edson Gomes perdesse sua condição de representante da população negra na luta contra o

sistema que a oprime, para falar numa linguagem própria ao estilo. Era reggae, mas já não

era tão ‘música de protesto’ assim...

que se tornou um grande sucesso (2000:147).85 Sobre o bairro da Conquista, seus estigmas e a relação com os blocos afro de Ilhéus, ver Encontros 2.

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279

Nomes

É óbvio que um dos mais importantes símbolos ‘étnicos’ dos grupos afro são seus

nomes. O nome do grupo é o que primeiro aparece e o remete a algum dos elementos

aceitos na definição de bloco afro. Em Ilhéus, eles podem ser agrupados em três categorias:

candomblé, ‘negritude’ e preferências musicais.

Dos grupos com nomes referidos ao candomblé, apenas o D’Logun não é

diretamente ligado à religião. Os demais – Miny Kongo, Lê-guê Depá, Axé Odara e

Dilazenze – com mais ou menos intensidade, são ou foram vinculados a algum terreiro e a

força do bloco é imaginada a partir do significado do nome escolhido. E isso seja porque se

trata do orixá da cabeça do fundador ou porque é importante para o conjunto das pessoas

que o fundou, o que fará com que elas ou o bloco sejam protegidos (caso do Miny Kongo e

do Lê-guê Depá, respectivamente); seja porque o significado das palavras dentro do

candomblé representam coisas boas (como no caso do Axé Odara), ou ainda porque se

trata do nome de alguém que tem um significado muito especial para o grupo (como para o

Dilazenze).

A categoria ‘negritude’ envolve as idéias de ‘africanismos’ e de ‘resistência negra’,

cuja reunião se dá em função do significado único que elas encerram: é a força do ‘povo

negro’ que se quer dar ao bloco, esteja esta força na idéia de capacidade de luta – “Força

Negra” –, como guardião de uma origem africana – “Zimbabuê”, “Guerreiros de Zulu”,

“Raízes Negras” – ou em sua resistência a partir de movimentos históricos, como são os

casos dos “Gangas” (originados de Gangazumba, primeiro líder do Quilombo dos

Palmares) e dos “Malês” (da Revolta dos Búzios).

O nome do grupo pode revelar ainda sua preferência musical, como é o caso do

“Leões” e do “Danados” “do Reggae”. O “Rastafiry” também se enquadra nessa categoria,

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280

porém, além da preferência pela batida do reggae – o grupo sempre afirmou uma

identificação com o Muzenza, bloco de Salvador conhecido também como o ‘bloco do

reggae’86, o nome representa também a admiração de seus fundadores pelo rastafarianismo,

embora nunca tenham sido praticantes, e, principalmente, por seus maiores líderes: na sede

do Rastafiry há um grande cartaz com a foto de Bob Marley na parede.

Carnaval

Por ser um evento em que são acionados de uma só vez vários elementos buscados

no que se denomina ‘cultura negra’ e que participam da composição dos blocos afro, o

carnaval é definido por diversos autores como um momento em que se assume ou se

produz uma ‘identidade étnica’, portanto, um lugar para o confronto ou para a interação de

‘identidades’.

O conceito de identidade não pode ser pensado sem a determinação de um ‘nós’ e

de um ‘outro’. No caso dos blocos afro, estes assumem o lugar do ‘nós’ enquanto a

‘sociedade’ ou ‘os blocos de trio’ assumem o lugar do ‘outro’. Sendo assim, não só o

desfile em si, como também o famoso ‘encontro’ dos blocos e sua disputa por horários e

audiência são momentos privilegiados na análise. O objetivo desta seção é discutir a

experiência dos blocos afro em Ilhéus sob esses mesmos prismas, comparando-a com o que

é observado por alguns dos autores que trabalham com o tema em Salvador.

À

‘O carnaval é a vitrine dos trabalhos comunitários dos grupos afro’ – afirmação

feita por Ribard (1999:26) que por já ser um clichê, o autor escreve o termo ‘vitrine’ em

português. Em minha dissertação de mestrado, reproduzi esta mesma frase, que me fora

dita por um representante do MNU em Ilhéus quando valorizava politicamente o trabalho

86 Ver Encontros 1.

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281

dos grupos afro em suas comunidades durante todo o ano e argumentava que apresentar

esse trabalho para a sociedade era a função do carnaval (Silva 1998:105). Também ouvi a

frase de dirigentes de blocos afro, ressaltando a importância da festa para os grupos. E

talvez diversos outros autores, componentes de blocos, militantes do movimento negro,

jornalistas etc., já tenham feito tal observação.

Na acepção utilizada por Ribard, pelo representante do MNU em Ilhéus e, em

momentos específicos, por dirigentes dos blocos afro, o termo ‘vitrine’ significaria mesmo

uma pequena parte, uma ‘amostra’ de um trabalho que ocorre durante o ano nas

comunidades dos grupos afro e tem o desfile no carnaval como auge, como um momento

culminante daquele esforço87, cujo objetivo final deveria ser o de ‘aumentar a auto-estima’

tanto das pessoas envolvidas no trabalho, quanto da população negra de modo geral. O

desfile do bloco afro no carnaval, seria, então, percebido mais como um meio e não como

algo que tem um fim em si mesmo. Ele seria um ‘trabalho social’, como será visto no

próximo capítulo.

Ainda de acordo com Ribard, o carnaval seria um “meio para os blocos afro

poderem aparecer, ser visíveis através da apresentação e da expressão de um trabalho

cultural (...) e também de ser reconhecidos pelas instâncias oficiais e por patrocinadores,

ainda que esse reconhecimento seja apenas hipotético.” (1999:414). Essa também é uma

forma de ver o carnaval como vitrine, talvez no sentido mais usual do termo: o de se

mostrar para se fazer (re)conhecido e, assim, poder ser beneficiado ou conseguir

patrocínio. Chamando a atenção de que esse reconhecimento pode ser apenas hipotético, o

autor parece desejar informar que dificilmente há uma mudança real na obtenção de

recursos para o bloco a partir de uma melhor ou pior apresentação no desfile, seja junto ao

87 Costuma-se dizer o mesmo para os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, embora nesse caso, oobjeto em discussão sejam os carros alegóricos, as fantasias e adereços, que começam a ser confeccionados

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282

governo, seja junto a patrocinadores. Mas no caso do Dilazenze em Ilhéus, pode-se dizer

que o carnaval, de fato, funcionou como ‘vitrine’ e trouxe benefícios para o grupo, ainda

que não exatamente financeiros. Depois de alguns anos sem desfile e alguns mais sem

concurso, os blocos voltaram a receber recursos da prefeitura em 1997, e em 1999

voltaram a competir. Deste ano até 2003, o Dilazenze foi o campeão. Mesmo que em

algumas edições do concurso sua vitória tenha sido por poucos pontos – numa delas,

apenas por meio ponto sobre o Miny Kongo na contagem final –, as vitórias consecutivas

combinadas com a implantação do Projeto Batukerê, a organização de outros eventos fora

do período do carnaval (Mostra de Cultura, Seminários, Semana de Folclore etc.) e uma

conseqüente maior presença na mídia compuseram uma tal configuração que fez com que

comentários a respeito da “superioridade” do Dilazenze em relação aos demais grupos

começassem a ser repetidos por seus membros e por representantes do governo, além dos

próprios jurados e mesmo membros de grupos menores e mais recentes. No carnaval de

2001, observações dos jurados nesse sentido foram registradas nos versos das planilhas de

apuração do concurso que, sendo repassadas ao grupo, só reforçaram a idéia e foram uma

das justificativas para que em 2004 o Dilazenze deixasse de concorrer, tornando-se hors

concurs.

Mas a palavra ‘vitrine’ pode expressar ainda uma outra percepção do carnaval que,

embora englobe as já apresentadas, parece primeira em relação a elas, tanto a partir da

proposta de constituição dos blocos quanto de sua prioridade atual. Todo o esforço

empregado nos preparativos para o carnaval, o interesse no concurso, os comentários

posteriores, a rivalidade existente entre os grupos em função da colocação no desfile... tudo

isso mostra que para os blocos afro, apresentar-se no carnaval é, antes de tudo, apresentar

um espetáculo e a proposta de mostrar-se diferente a partir de uma organização do tipo

com muitos meses de antecedência. Em alguns casos mais, em outros menos, diz-se que ali está o trabalho da

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283

‘bloco de carnaval’ só tem sentido se o evento for concebido desse ponto de vista.

Evidentemente essa percepção não é exclusiva dos grupos afro, nem é nova. As escolas de

samba são o melhor exemplo de que o carnaval é um espetáculo – “o maior espetáculo da

terra”, como se costuma qualificar o desfile no ‘sambódromo’ do Rio de Janeiro –, mas

isso não se restringe a elas: qualquer agremiação de carnaval concebida a partir de um

formato que envolve fantasias, alegorias etc., uma tal forma de dançar ou de tocar, enfim,

que se constitui para ser visto, é um espetáculo. Mesmo entre grupos considerados

‘culturais’, como o ‘maracatu’, os ‘caboclinhos’, os vários tipos de blocos existentes no

país que têm a figura do boi como personagem central etc., a ‘preservação da cultura’ se

realiza na preparação, mas sobretudo, na apresentação do grupo frente a um público, na

qual cada componente deseja ser apreciado por outrem com a fantasia do bloco e sentir-se

bonito compondo o show a ser apresentado. No caso dos blocos afro, há aqueles que são

considerados os artistas de fato, como o mestre da bateria, os cantores, os componentes da

bateria e os dançarinos, as pessoas que se vestem como destaques... E na chamada ‘ala do

povão’, além da própria fantasia do bloco, os componentes buscam enfeitar-se com

acessórios que os tornam ainda mais ‘afro’, como colares, pulseiras, faixas na cabeça etc.

Tudo isso é bem diferente do que ocorre num bloco de arrasto ou num bloco de trio, nos

quais as pessoas usam a mesma camiseta e o que importa é a música, é estar no bloco.

Enquanto nos blocos afro se ‘desfila’, nesses outros o que importa é ‘pular’.

A oposição ‘carnaval-participação’, referindo-se ao carnaval baiano, invadido pelos

blocos de trio na década de 70, versus ‘carnaval-espetáculo’, que descreve o estilo de

carnaval do Rio de Janeiro, dominado pelas escolas de samba, tornou-se uma espécie de

senso comum no Brasil88, à qual foram agregados valores contidos em termos como

comunidade da escola.88 Mas não apenas: já em 1967, um autor uruguaio definia o carnaval montevideano como “carnaval deespetáculos” (Ver Carvalho Neto 1967 apud Frigerio 1996).

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284

‘democrático’, ‘do povo’, em relação ao primeiro, e ‘para turista ver’, ‘para ganhar

dinheiro’, para o carnaval do Rio de Janeiro. Apesar do crescimento dos blocos afro e dos

‘novos afoxés’ em Salvador ao longo da década de 80, organizados como ‘espetáculos’89, e

da também crescente privatização dos trios elétricos, a imagem de carnaval da

participação e da democracia permaneceu. Em parte porque os grupos afro são vistos

como manifestações culturais majoritariamente formados por pessoas negras, portanto,

populares, e também porque “a música que emana dos trios abastece tanto associados dos

blocos como os foliões pipoca” (Guerreiro 2000:244), ou seja, quem está fora das cordas.

Por outro lado, a imagem do carnaval do Rio como ‘espetáculo para turista’ também foi

reforçada com a inauguração do Sambódromo em 1984, com a bem marcada setorização

do espaço pela diferença de preços dos ingressos e pela cada vez maior quantidade de

fantasias nas escolas destinadas a turistas90.

A ênfase na dimensão de espetáculo do carnaval dos blocos afro, ganha mais

sentido se colocada junto às definições a respeito do evento produzidas por alguns dos

autores com os quais este trabalho vem dialogando. Na introdução a este capítulo, foi

observado que a definição de bloco afro defendida pela grande maioria dos autores refere-

se a ele como entidade de ‘preservação’ de ‘cultura negra’, acompanhada de complementos

que sugerem que as atividades desenvolvidas pelo bloco, principalmente o carnaval, são

um meio de alcançar outros objetivos, geralmente relacionados a questões de caráter

étnico. Assim, as definições em torno do carnaval não poderiam seguir outro caminho.

Ainda que nem sempre de maneira explícita, as análises sobre o fenômeno

carnavalesco a partir da observação dos blocos afro de Salvador parecem dialogar com a

89 Como mostra uma matéria jornalística que elogia os grupos afro em função do “espetáculo montado paraser exibido e colher aplausos” e critica os blocos de trio por serem “culturalmente vazios” (Jornal A Tarde,09/02/86 apud Gomes 1989:182).90 Ver Sheriff (1999) em artigo de título bastante eloqüente: “The Theft of Carnaval: National Spectacle andRacial Politics in Rio de Janeiro” (“O Roubo do Carnaval: Espetáculo Nacional e Políticas Raciais no Rio deJaneiro”).

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mais divulgada das teorias sobre o assunto no âmbito da antropologia brasileira, a de

Roberto DaMatta em Carnavais, Malandros e Heróis (1979). Simplificando-a

demasiadamente, trata-se de pensar o carnaval como um fenômeno que permite

ritualmente a inversão da realidade, “que suspende temporariamente a classificação precisa

das coisas, pessoas, gestos, categorias e grupos sociais (...). A transformação do carnaval

brasileiro é, pois, aquela da hierarquia cotidiana na igualdade mágica de um momento

passageiro.” (:132). O fenômeno da reafricanização do carnaval e dos blocos afro

possibilitaria, de fato, uma mudança da realidade, ao contrário do que postula DaMatta. É o

que parece dizer Antônio Risério quando afirma que há uma “força transformadora”

atuando no carnaval e que “não é verdade dizer que depois do carnaval tudo volta a ser

como era antes” (1981:19). Nisso também acreditam Agier (2000), para quem o carnaval é

um espaço de “invenção de um outro mundo” (:53), de “deformação da realidade” (:236)

que pode se prolongar no cotidiano da cidade (:29); e Ribard (1999), que concebe a festa

como um “espaço de contestação social” (:72), que “postula simbolicamente a

transformação do equilíbrio social e interétnico da sociedade” (:476). Há muitas distinções

entre as análises desses autores, mas nem Ribard nem Agier afirmam que há uma mudança

de fato na organização social da cidade. O carnaval seria um meio, o principal deles91, de

“afirmar” uma ‘identidade étnica coletiva’ para Ribard, ou de “ritualizar” uma ‘identidade’

de “elite negra”, no caso de Agier92, ao apresentar um ‘outro mundo’, no qual ‘os negros’

estariam ocupando um outro lugar na ‘sociedade’; o desfile seria uma forma de exprimir

reivindicações comuns à ‘comunidade negra’, propondo, assim, uma mudança nas

91 Agier trabalha com a idéia de que o carnaval é um “contexto ritual”: “um espaço-tempo fora do cotidiano,propício à simbolização, sem prejulgar as formas e a densidade dele (...): a simbolização ritual aí é diferente edesigualmente densa segundo os atores e os momentos (às vezes nulo e às vezes excessivo), e essasdiferenças de sentido reenviam à segmentação desse espaço segundo as categorias sociais e sócio-raciaispresentes na cidade e na festa” (2000:231)92 Agier toma o cuidado de não generalizar a idéia de que o carnaval é uma “distorção do real” através daritualização de identidades para todos que dele participam. Ele primeiramente diz que só os grupos afro o

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286

‘relações interétnicas’ vigentes, como uma “resposta às formas particulares do racismo

brasileiro.” (Agier 2000:54).

Não considero possível pensar o carnaval como um fenômeno único, definido a

partir de valores ou comportamentos sociais que abrangeriam ‘a população’ ou ‘a

sociedade’ ou ‘o Brasil’, nem mesmo ‘a Bahia’ ou ‘o Rio de Janeiro’. Em Ilhéus, um

dirigente de bloco afro, ou mesmo um componente com responsabilidades em relação à sua

organização, como as costureiras por exemplo, podem viver poucos outros momentos de

carnaval que não sejam aqueles do desfile de seu bloco, aos quais se resume a festa. É

óbvio, então, que num mesmo momento, carnavais muito diferentes estejam sendo vividos

por um turista, por um folião de vários blocos de arrasto ou por pessoas que só vão assistir

aos shows das bandas de axé...

Antes de prosseguir, é preciso refletir a respeito da afirmação recorrente de que o

carnaval é um espaço privilegiado de encontro de ‘identidades’, expressas pelo bloco afro,

por um lado, e pela ‘sociedade’ por outro. Um primeiro ponto a ser observado é que só os

grupos afro possuem uma identidade. A idéia de encontro, nesse caso, vem do fato de que

uma identidade só pode existir frente a outras, como defende Agier (2000:225). Adiante,

ver-se-á que, às vezes, essa ‘outra’ identidade é corporificada nos blocos de trio, chamados

de ‘blocos de branco’, e as narrativas dos embates raciais são concentradas aí, mas ainda

assim a identidade permanece nos grupos afro.

O momento da apresentação do bloco afro no desfile de carnaval é quando estão

reunidos todos os elementos que o constituem como ‘afro’: música (letra e ritmo), dança,

indumentária, tema, alegorias, além de seu próprio nome. Há nesse instante uma produção

de subjetividade negra que afeta os componentes do bloco que, com exceção do Ilê, não

são exclusivamente pessoas consideradas negras, e que ‘racializa’ seus corpos através da

fazem e depois afirma que mesmo entre eles, os que mais ritualizam são os mais estruturados, aqueles

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dança, dos acessórios, dos penteados... Tal subjetividade também pode afetar o público que

assiste ao desfile e pode fazer com que, tanto público quanto componentes, concebam o

desfile como momento de ‘afirmação’ de que ‘o mundo’ deveria ser de outra forma, de que

não deveria mais haver discriminação, de que as pessoas negras e sua cultura deveriam ser

valorizadas. A possibilidade disso vir a acontecer, de fato, mobiliza muitas pessoas em

torno dos grupos afro. Todavia, ao menos entre os grupos afro de Ilhéus, o que se espera

mesmo de um desfile é que o bloco seja bonito, admirado por quem o assiste. E cada

componente deseja colaborar para isso, fazendo-se bonito, dançando, tocando, cantando

bem. Deseja-se mesmo que o espetáculo seja bom.

Blocos afro e blocos de trio

Em Carnaval Ijexá..., em 1981, Risério queixava-se da privatização dos trios

elétricos (:113-4) como um fenômeno novo que começava a acontecer no carnaval de

Salvador: “de resto, alguns blocos de pessoas mais ricas, a fim de não se misturarem com a

crioulada, estão contratando pequenos (e lamentáveis) trios elétricos para tocar só para

eles, no espaço privativo do bloco, balizado por cordões” (:47). Os trios elétricos são

fenômenos já considerados antigos do carnaval baiano – o primeiro, de Dodô e Osmar, é

de 1949. E, pela diferença de estilo e de potência de som, desde o surgimento dos blocos

afro há conflitos quando ocorrem encontros entre eles. Mas os embates entre blocos afro e

blocos de trio foram acirrados a partir da privatização desses últimos, quando além de

potência e estilo, outras diferenças foram ressaltadas e colocadas em pólos opostos, como

‘cor’ e ‘classe social’, conforme descrito por Risério na citação acima quando o autor faz

referência a “pessoas mais ricas” que não desejam se misturar “com a crioulada”. Ao longo

da década de 80, os chamados ‘incidentes’ entre blocos afro e blocos de trio são

capazes de criar a imagem de uma elite negra, “o ponto forte do carnaval africanizado” (2000:55).

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recorrentes: o encontro hipotético narrado por Gerônimo em “Macuxi Muita Onda” (“Eu

sou Negão”) pelo qual inicio o primeiro capítulo deste trabalho, de fato acontece.

O carnaval de Salvador ainda é divulgado como o ‘o mais democrático do Brasil’,

embora seja notória a segmentação social e racial existente. Notícias a respeito de práticas

racistas por parte dos blocos de trio são antigas – Gomes (1989) informa que no início dos

anos 80 já havia denúncias contra os blocos – e perduram até o presente. Em 1999, chegou

a ser aberta uma Comissão Especial de Inquérito sobre o assunto na Câmara de Vereadores

de Salvador, que ficou conhecida como CEI do Racismo. Na época, seis grandes blocos de

trio foram acusados de proibir a participação de pessoas negras, mas o Relatório Final da

CEI encaminhou solicitação ao Ministério Público que abrisse inquérito apenas contra um

deles, “A Barca”93. Também pesa contra o título de ‘democrático’ dado ao carnaval de

Salvador, o espaço cada vez menor do ‘folião pipoca’, imprensado entre as cordas dos

blocos e os camarotes e arquibancadas, ou seja, cada vez é menor o número de ‘não

pagantes’, de ‘povo’, que pode desfrutar do som do trio.

Os blocos afro são, acima de tudo, percebidos por seu caráter ‘étnico’, como fica

claro pelas afirmações da grande maioria dos autores que trabalham com esse objeto. Mas

é interessante notar que praticamente todos eles, assim como também faço, ao falar de

blocos afro tocam também nos blocos de trio, até apontam práticas racistas, mas não lhes

atribuem uma “natureza política ou conotação étnica”, como ressalta Guerreiro, mesmo

dizendo que esses blocos constituem “espaços brancos”, às vezes originados em “grêmios”

de escolas94, que angariam votos para políticos que os patrocinam e que alguns deles

exigem “foto e comprovante de residência” para a compra de seus abadás (2000:127),

93 No site www.uol.com.br/times/nytimes constava o relatório final original e o texto como foi apresentadopelo relator, com alterações não aprovadas pela comissão que atenuavam as acusações.94 “Esses jovens são, de modo geral, estudantes de escolas particulares e de cursinhos pré-vestibular, onde amaioria dessas organizações se originou. Atualmente, os grêmios das escolas particulares são dominadospelos blocos de carnaval e não por partidos políticos. Eles servem para cooptar novos foliões e para angariar

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garantindo homogeneidade na cor e na classe social de seus associados. Assim, a

proposição de que não há ‘conotação étnica’ nesses espaços é derivada de uma concepção

que só atribui ‘símbolos étnicos’, ‘cultura’, ‘identidade’ a grupos minoritários, como já

observado antes neste trabalho. Porém, freqüentemente os blocos de trio assumem o lugar

do ‘outro’ na ‘construção da identidade negra’ do bloco afro.

Diferentemente da maior parte dos autores, Ribard (1999) confere uma ‘identidade’

ao folião de um bloco de trio famoso, considerando seu encontro com um folião de bloco

afro como o confronto de “dois mundos e duas identidades antinômicas”, no qual cada um

deles deseja “ser reconhecido a partir de sua origem sociocultural ou étnica” e “ocupar um

lugar na festa” (: 306), o que é propiciado pelas características do carnaval: “espaço de

interação entre indivíduos que, situados nas extremidades da escala social (...) não têm, ou

têm pouco, a ocasião de se encontrar em tempos ‘normais’.” (:72) e favorável à “projeção e

[à] participação de cada um, qualquer que seja seu estatuto e sua posição social na

sociedade.” (:141).

Existem inúmeros exemplos para relativizar e minimizar a segregação sócio-racial

da qual os blocos de trio, por um lado, e os blocos afro, por outro, seriam seus pólos.

Contra as dicotomias bloco afro/pobres/negros versus bloco de trio/ricos/brancos,

estabelecida também por Agier ao longo de sua obra, Moura (Moura e Agier 2000)

argumenta que há vários blocos de trio mais baratos do que alguns blocos afro, como o

Olodum e o Ilê Aiyê, e que por isso “congregam um grande número de associados negros”

(:369). Por outro lado, baseado em sua tese de que o desfile do Ilê Aiyê ritualiza uma

identidade de ‘elite negra’, o próprio Agier diz: “complemento inesperado do exercício

ritual, o custo da inscrição do bloco confirma a série ritualmente criada para o desfile. O Ilê

Aiyê é o mais caro dos blocos afro-brasileiros do carnaval e vê-se que é necessário que

votos para os políticos que eventualmente patrocinam os trios, transformando alguns professores de segundo

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seja.” (:196). Segundo Ribard, na época de sua pesquisa, as fantasias dos grandes blocos

afro custavam em torno de duzentos reais, preço alto que permite que apenas uma classe

média, seja negra, branca ou ‘mestiça’, possa participar. Guerreiro também informa que,

com exceção do Ilê, que só admite a participação de pessoas negras, os demais blocos afro,

“cujas bandas têm trânsito na mídia, são compostos por associados branco-mestiços e, em

menor escala, pela classe média negra.” (2000:244). Além do mais, esses blocos também

viraram ‘blocos de trio’, ainda que ‘afro’, mas têm a mesma estrutura dos outros: trio

elétrico, abadás, cordas e ‘cordeiros’ negros95.

O primeiro incidente entre bloco afro e trio elétrico em Ilhéus ocorreu com o Miny

Kongo em 1984 ao encontrar-se com o trio elétrico de Dodô e Osmar. Na ocasião, não

houve maiores problemas porque o trio permitiu que o Miny Kongo o atravessasse e

Osmar ainda pediu desculpas. Como ainda é hoje, tratava-se de um trio elétrico que era

seguido pelos foliões, sem cordas ou associados.

Os encontros entre blocos afro e trios elétricos da década de 90 são bem diferentes

daquele de 1984. A partir de 1994, começam a surgir em Ilhéus os primeiros blocos de trio

da cidade, como “Pileque”, “Galera de Ilhéus”, “Borimbora”, “Dk um Cheiro”, “Eva”,

“Massicas”, “Chupa Rindo”... (Borges 2002:37-8). Organizados por jovens de famílias

ricas, todos, ou quase todos, os blocos de trio possuem ou possuíam sede na Av. Soares

Lopes, às vezes na própria casa da família, remanescente do auge da época cacaueira...

Em 1997, durante meu primeiro período de pesquisa de campo, os blocos de trio,

também chamados de “bloco de barão” ou “bloco de branco” pelos militantes do

movimento afro-cultural, estavam em alta. Os dois últimos ‘carnavais antecipados’, sob o

nome de “Ilhéus Folia” de 1996 e 1997, tinham sido exclusivamente promovidos por eles,

grau em donos de blocos carnavalescos.” (Guerreiro 2000:127).

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foi o que se chamou de ‘privatização do carnaval’ e era dito que ambos foram grandes

sucessos.

Tal como acontece no carnaval de Salvador, a estrutura de bloco de trio do Ilhéus

Folia é de segregação, que Menezes (1998:83) chama de social, mas sem dúvida alguma é

também racial. Apesar de sua observação sobre cor só fazer referência aos seguranças (“na

maioria negros”), a informação sobre o preço do abadá (“que custa em torno de 200 reais”)

permite saber quem está do lado de dentro da corda e quem está do lado de fora96. Do

ponto de vista de um dirigente de bloco afro, bloco de trio é “só para rico e para negro

pobre e ousado”, que, segundo ele, se endivida durante todo o ano para desfilar num desses

blocos.

Nesse momento, eles eram bem mais numerosos e visíveis do que nas visitas

subseqüentes, pois permaneciam na mídia durante todo o ano: promoviam shows trazendo

atrações de fora, festas de fim de ano e “festas de camisa”. Essas últimas são atividades

particularmente interessantes em razão dos comentários gerados no meio dos blocos afro.

“Festas de camisa” são eventos em que o ingresso – e o consumo da festa, mas nem sempre

– é a compra de uma camisa do bloco, em 1997, entre trinta e cinqüenta reais, preços

considerados bastante altos. Apesar do preço e dos comentários de que pessoas negras não

eram bem tratadas, embora não houvesse proibição, os dias de ‘festas de camisa’

constituíam um ‘acontecimento’, ou seja, eram motivo de muitos comentários e agitação na

região do Dilazenze, seja porque as pessoas lamentavam não ter o dinheiro para ir, seja

porque algumas iam. O presidente do grupo reprovava essas pessoas, dizendo que algumas

“passa(va)m necessidades no dia-a-dia”, mas “não perde(ia)m uma dessas festas” porque,

95 Cordeiros são os seguranças responsáveis por ‘segurar a corda’ a fim de evitar que pessoas sem abadásentrem no bloco. Num capítulo intitulado “As Cordas”, Guerreiro informa que os grandes blocos de trioutilizam, em média, um segurança para cada três associados.96 O artista plástico colaborador do Dilazenze contou que uma de suas experiências com racismo em Ilhéus(ele é de outra cidade) se deu num Ilhéus Folia, quando foi proibido de entrar no espaço dos camarotes,mesmo sendo convidado de seu cunhado, um alto funcionário da Ilheustur.

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segundo sua visão, elas gostavam de freqüentar esses espaços, sentiam-se mais importantes

por isso. Entretanto, numa reunião do CEAC em que os dirigentes buscavam uma forma de

arrecadar recursos para os blocos, alguém levantou a possibilidade de realizar uma festa de

camisa, afinal, era sabido que os blocos de trio costumavam ter muito lucro com elas. A

idéia foi rebatida com o argumento de que eles teriam que cobrar muito pouco pela camisa

e a festa acabaria não dando lucro, pois mesmo aqueles que pagavam caro para ir nas

“festas dos barõesinhos”, não iriam querer pagar nada para ir na “festa de negão”.

Em 1999, em minha segunda ida a Ilhéus, diante do anúncio de uma dessas festas,

fui informada de que houvera uma diminuição grande destas, pois os blocos diziam ter

prejuízo com elas. Soube também que o preço das camisas havia aumentado muito (de

trinta para setenta reais) sob a alegação de que estava indo “muita gente do morro”, “muita

gente feia” – disse um membro de bloco afro como se estivesse repetindo algo dito por

dirigentes de blocos de trio, como se houvesse aspas em sua fala.

Num primeiro momento, a implantação dos ‘dois carnavais’, o antecipado e o

cultural, em 1997, parecia resolver o problema do encontro entre os blocos. Segundo

Menezes (1998), a partir do depoimento de um dirigente de bloco afro,

“a separação do carnaval de Ilhéus acabou sendo ‘um bom negócio’para os blocos afro da cidade, que agora teriam mais destaque e nãoprecisariam ‘concorrer com os trios elétricos’, como ocorriaanteriormente, na época em que só havia o carnaval oficial e os blocosque ‘desfilam no chão e só com instrumentos de percussão’ ficavamdesprestigiados frente aos trios elétricos” (:85).

Mas não foi o que aconteceu realmente, pois, mesmo no ‘carnaval cultural’, a prefeitura

manteve trios pequenos, que continuaram causando problemas, como o relatado por Vale

de Almeida (2000) em sua experiência de desfilar no Dilazenze em 1998, quando houve

uma verdadeira discussão entre um dos membros do grupo e o vocalista do trio (:144).

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Horário de desfile dos blocos

Agier (2000) apresenta a programação do carnaval de Salvador a partir de uma

classificação baseada em cor e classe. Durante a manhã, predominariam os blocos

organizados entre amigos, de pessoas fantasiadas – a que a imprensa se refere como o

antigo carnaval de rua –, formados pela “classe média mestiça”; depois do meio-dia, seria

o momento dos blocos de trio, nos quais a “presença de brancos é a mais numerosa” e são

formados pelas “classes média e superior da cidade” (:44); e à noite, seria o momento dos

grupos afro-brasileiros: “do ponto de vista da posição social dos participantes, é o

momento da chegada dos mais pobres no carnaval. E esse momento constitui, no conjunto,

uma festa à parte para os negros da Bahia, muito pouco presentes nas duas outras

modalidades.” (:48)97. Gomes (1989:182) reproduz um artigo jornalístico de 1986 que já

observava a existência de segregação racial definida na programação dos desfiles dos

blocos, mas só em 1987 ela seria oficializada: os trios elétricos só poderiam desfilar até as

19 horas (:183). Anos depois, a posição dos blocos, especialmente dos considerados

pequenos, só piorou, pois, segundo Guerreiro (2000), os blocos afro só desfilam de

madrugada, quando não há transmissão da TV e são poucos os espectadores. Em 1999, a

antecipação do horário do desfile dos blocos afro foi uma das reivindicações presentes na

CEI do Racismo, que acabou funcionando apenas para os cinco maiores blocos (Ilê Aiyê,

Olodum, Muzenza, Malê Debalê e Filhos de Gandhi98): no carnaval de 2000, foi

determinado que em dois dos três dias de desfile, houvesse uma intercalação entre blocos

afro e blocos de trio a partir das 19 horas na Passarela do Campo Grande (:223)99.

97 Ribard especula, em nota, que o horário do desfile dos blocos se deve ao padê de Exu que eles costumamrealizar, o que só pode acontecer após o pôr-do-sol (1999:447).98 O Ara Ketu, incluído por Ribard, por exemplo, entre os cinco maiores, está ausente da relação deGuerreiro, talvez por já desfilar no horário reservado aos blocos de trio, mas a autora não informa.99 No Relatório Final da CEI, consta a seguinte proposta: “Promover mecanismos que garantam ademocratização dos espaços da festa, no circuito oficial, (Barra/Ondina, Campo Grande /Sé e nos queporventura venham a ser criados) em especial quanto à ordem e horário do desfile das entidades

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Independentemente da suposta configuração racial dos componentes dos blocos,

está-se tratando dos grupos em si, e não dos indivíduos e, desse ponto de vista, o fato do

desfile dos blocos afro ser tarde da noite é, segundo pessoas pertencentes aos grupos, como

disseram-me em Ilhéus, um indicativo do “desprezo” que a organização do carnaval tem

pelos blocos afro, embora, ao menos entre os dirigentes ilheenses, dificilmente esse

‘desprezo’ seja associado à discriminação racial. Assim como em outras situações como

pagamento de cachê, infra-estrutura para os shows..., são inúmeros os relatos de tratamento

diferenciado sempre ‘para pior’ em relação aos demais grupos, mas a palavra

discriminação é raramente usada e, quando acontece, ela é dirigida aos grupos afro como

categoria, não como ‘racismo’, ou seja, não por ser um grupo formado por pessoas negras.

Em Ilhéus, os grupos também se queixam do horário das apresentações, mas pelo

motivo inverso: eles se apresentam muito cedo. A organização do carnaval costuma iniciar

o desfile dos blocos afro por volta das dezoito horas, quando “não há ninguém na rua para

ver”, segundo um dos dirigentes. Sendo Ilhéus uma cidade cujo maior atrativo são suas

praias, e ainda durante o período do horário de verão em que só anoitece horas depois, os

componentes dos blocos afro alegam que as pessoas “só vão para as ruas mais tarde” e no

fim da noite as “ruas estão cheias”.

Observando-se a programação do carnaval ao longo dos anos, percebe-se que já

ocorreu do horário marcado para o início dos trios ser anterior ao horário de desfile do

último bloco afro. E, haja vista que este sempre sofre atrasos, não era raro haver também

em Ilhéus os famosos encontros entre o bloco afro e o trio elétrico. Nos últimos anos,

mesmo não tendo de concorrer com os trios, pois estes se apresentavam no ‘carnaval

carnavalescas, através do sorteio combinado com critérios que garantam a pluralidade e multiplicidade demanifestações e atores da festa: blocos de trio, blocos afro, afoxés, blocos de percussão, mudanças, levadas,trios elétricos independentes, grupos de foliões, pipocas etc.” (Relatório Final da CEI sobre Racismo noCarnaval de Salvador in www.uol.com.br/times/nytimes).

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antecipado’100, conforme descrito em Encontros 3, o “horário nobre” é reservado aos

shows de bandas de axé music, “pagode” e de forró da região nos palcos montados pela

prefeitura ao longo da Avenida Soares Lopes.

Nos anos 80, quando ainda havia um bom número de afoxés, eles eram os primeiros

a desfilar, à tarde. Ainda era dia quando os blocos afro iniciavam seu desfile, logo após os

afoxés. Depois vinham os blocos de arrasto e, no “horário nobre”, as escolas de samba, a

maior atração do carnaval de Ilhéus até o início da década de 90. Em função do horário de

início do desfile dos blocos, nota-se na programação de cada ano uma hierarquia na

apresentação dos grupos afro: os primeiros a entrar na avenida sempre foram os afoxés,

seguidos dos blocos estreantes ou menores. Quando chegava o momento dos “grandes”, já

havia um público maior. Nos últimos anos, o desfile tem ocorrido em dois dias, o que faz

com que os menores grupos sejam distribuídos nos primeiros horários, começando com o

afoxé, com os pauzinhos ou com a levada da capoeira, mas ainda assim, grupos

considerados nem tão pequenos acabam desfilando ainda cedo.

Em algumas ocasiões, os já costumeiros atrasos do Dilazenze nos desfiles, ainda

que em tom de brincadeira, são ‘justificados’ como um ato de resistência à organização do

carnaval; é uma forma de impor-se no horário que se considera o ‘ideal’. Mas um atraso

muito grande também pode acarretar a ausência do público na avenida, já cansado de

esperar, ou uma situação de conflito, como desfilar em frente a um palco já em show, como

aconteceu em 2000. Não houve maiores problemas porque o palco estava localizado num

setor mais esvaziado da avenida, onde o grupo começa a se dispersar, e a banda que tocava

parou por alguns instantes e pediu aplausos para o bloco que passava.

À

100 Ilhéus teve dois carnavais entre os anos de 1997 e 2001. Nos dois anos seguintes, apenas o carnaval‘cultural’ aconteceu. Neste ano de 2004, também houve apenas um carnaval, mas foi antecipado em cerca deduas semanas em relação ao oficial, no qual trios e blocos afro voltaram a se apresentar nos mesmos dias.

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296

Até aqui, este capítulo buscou apresentar os blocos afro a partir dos agenciamentos

que os constituem em seu desejo de diferir através da produção de uma subjetividade

negra. Tal produção se dá na relação dos blocos com o candomblé ou com elementos a ele

vinculados, assim como nas relações estabelecidas ou recusadas com outras religiões,

especificamente com as igrejas católica e evangélicas. A proposta de perceber o mundo por

um viés que se define como ‘negro’ é construída em atividades cotidianas do grupo, mas

principalmente no carnaval, momento propício para produzir um ‘território negro’ e

mostrar-se e, especialmente na visão de analistas, ser percebido como um ‘outro’.

Todo o esforço em conceber uma forma outra de ver, de estar no mundo, de

singularizar-se, faz parte de um movimento que vai na direção de mudanças, de que é

possível “imaginar outras fórmulas de organização da vida social, do trabalho, da cultura.

Os modelos de economia política não são universais.”, como diz Guattari (1986:121). A

isso, pode-se chamar “luta”, “resistência”... Por outro lado, ao organizar-se como entidade

racialmente orientada, o bloco afro corre o risco de sofrer, como instituição, o exercício de

práticas que também são racialmente orientadas, produzidas por outra forma de

subjetividade, justamente aquela contra a qual os grupos desejam produzir uma

“subjetividade dissidente”. O racismo aqui não se dá pela cor da pele, individualmente,

mas por uma postura, um posicionamento enquanto entidade organizada em torno da

questão racial. Este é o tema da próxima seção.

Bloco afro e racismo

A fim de defender o Ilê Aiyê das acusações de racismo que sofria por parte da

imprensa e de intelectuais em função da interdição à participação de não negros em seu

desfile, Risério escreveu que o que há no Ilê é “racismo institucional”, não “racismo

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297

individual”. A distinção é atribuída a Carmichael “numa conferência realizada em Londres,

anos atrás”. Para ‘provar’ que as pessoas do grupo não são racistas, Risério faz uso de

argumentos semelhantes aos que são recorrentes entre não negros quando querem negar

seu racismo (em geral, evidenciado em comentários ou atos anteriores): “membros do Ilê

transam à vontade com pessoas brancas, em relações que vão da amizade ao envolvimento

amoroso e sexual.” (:45).

O parágrafo acima não tem a intenção de introduzir uma discussão sobre a presença

ou a ausência de racismo no Ilê, assim como esta seção não pretende analisar se os

membros dos blocos afro de Ilhéus sofrem racismo individualmente ou se as pessoas com

as quais eles lidam em seu dia-a-dia são racistas ou não. Experiências pessoais e de

pesquisa, de autores e de militantes do movimento negro, atestam que dificilmente as

pessoas admitem que, pessoalmente, sofreram racismo ou que o praticaram, embora relatos

de discriminação racial tenham sido feitos aqui e ali ao longo da pesquisa. A proposta,

então, é oferecer ao leitor descrições de situações em que os blocos afro sofreram práticas

racistas enquanto entidades, tanto como prestadoras de trabalhos artísticos para setores

ligados ao turismo e ao entretenimento, aí incluídos órgãos do governo, quanto na sua

relação com a política partidária, onde novamente se encontra o governo.

Antes de prosseguir, é preciso esclarecer ainda que a definição de que as situações

que se seguem constituem práticas racistas é oriunda do meu entendimento sobre elas e

sobre a própria concepção de racismo. Como foi adiantado na discussão anterior a respeito

dos horários dos blocos no desfile, o reconhecimento de que o grupo afro é

‘menosprezado’ ou ‘maltratado’ não significa necessariamente reconhecer que há aí uma

situação de discriminação racial, e é possível que algumas das pessoas que protagonizaram

os exemplos abaixo não concordem com essa forma de qualificá-los. Elas poderiam

argumentar que bandas de pagode ou de reggae também são formados por pessoas negras

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298

e, em inúmeras vezes, elas ocupam o lugar do outro termo nas comparações que levam os

grupos afro a afirmar que a forma de tratamento que lhes dão é pior do que a dispensada a

‘outros’. Todavia, ainda que não possa discutir absolutamente nada a respeito de bandas de

reggae e de pagode, sustento a formulação com base nos argumentos de que: (i) esses

grupos podem ter pessoas negras em sua composição mas isso não é determinante de sua

definição, que se dá a partir do estilo musical, que nem sempre é concebido como ‘negro’;

(ii) as bandas afro, ainda que estejam constituídas apenas como grupos musicais, ou seja,

não se expressem como pertencentes a um movimento negro, apresentam em suas músicas

e em sua estética uma concepção negra, assim apresentada e assim percebida; (iii) a

argumentação está fundamentada num entendimento de racismo como uma visão de

mundo e uma prática que estabelecem lugares para pessoas, para ‘culturas’ em função do

quanto elas não são ‘o padrão’ ou do grau de seu afastamento frente ao padrão. Desse

ponto de vista, práticas que contribuam para manter os grupos afro numa posição de

minoria, que evitem seu movimento em direção a mudanças, são práticas de racismo.

À

Os blocos afro surgiram inicialmente como grupos carnavalescos, assim, desfilar no

carnaval era seu único objetivo. Mas os elementos que compõem o momento de desfile dos

blocos, como a dança afro e a música, foram ao longo do tempo ganhando autonomia em

relação ao carnaval, a ponto de alguns grupos nascerem antes como bandas afro ou grupos

de dança para só depois se tornarem blocos afro. A autonomia dessas atividades fez com

que fosse possível transformar esses subgrupos no interior do bloco em grupos artísticos,

que estabelecem relações de prestação de serviços com agências de turismo, hotéis, casas

de show, produtoras de eventos e a própria prefeitura nas mais diferentes ocasiões101. Essas

101 Mesmo quando não há essas subdivisões oficialmente e é o grupo que fecha o contrato, não é o bloco quese apresenta, mas uma seleção de pessoas que compõem o bloco.

Page 300: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

299

relações são especialmente etnicizadas, pois se baseiam na compra e venda de uma forma

de arte gestada a partir de elementos entendidos como ‘cultura negra’.

Como já ressaltado anteriormente, a política de turismo em Ilhéus não apresenta

grande investimento numa ‘cultura afro-baiana’, como em Salvador. Como aposta num

turismo diferencial a fim de não competir com a capital, o investimento turístico da cidade

dirige-se para Jorge Amado e suas obras, perfeitamente articulados com o cacau, produto-

imagem de Ilhéus102. Apesar disso, há algum espaço para os grupos afro, especialmente

porque, turisticamente, a cidade precisa também ser ‘baiana’ e as imagens da Bahia,

definidas por Salvador, também devem estar aí disponíveis. Mas esse espaço é limitado e

determinado por quem gerencia o turismo na cidade, o que faz com que o mercado de

trabalho para os grupos afro seja escasso e bastante competitivo. Essas condições

justificam ‘economicamente’ os baixíssimos cachês, o que não significa negar o caráter

racista envolvido nessas situações, explicitado também por uma série de comportamentos e

discursos que atingem os grupos.

Os relatos feitos pelos dirigentes dos grupos afro sobre suas apresentações nos

hotéis da cidade são todos bem semelhantes e parecem não mudar muito ao longo dos

anos. Os blocos afro da cidade são contratados, ainda que cada vez mais raramente, pelos

grandes hotéis de luxo para apresentações noturnas para os hóspedes, especialmente na alta

temporada de verão. Grupos maiores ou menores seguem um modelo semelhante de show,

formado por percussionistas, cantores e dançarinos. Logo que conheci o Dilazenze, seu

presidente comentou essas apresentações com orgulho, como sinal do sucesso do grupo.

Com o passar do tempo, foi possível perceber que elas constituíam um trabalho para o

grupo, necessário, mas muito longe de ser um orgulho. A começar pelos cachês,

extremamente baixos. Entre 1997 e 2001, eles não mudaram muito de valor: sempre entre

102 Ver Menezes 1998.

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300

cem e cento e cinqüenta reais, a serem divididos, em geral, para um número que variava de

dez a quinze pessoas por apresentação, sendo às vezes ainda necessário usar uma parte

para a manutenção dos grupos, por exemplo, com reposição de peles dos instrumentos ou

variação do guarda-roupa dos dançarinos. Esse valor correspondia, em geral, a quatro

horas de show, que poderiam se multiplicar em muitas mais, considerando o tempo entre o

momento em que o grupo saía da sede (ou do local marcado) e o retorno. Num dos hotéis,

um dos mais caros e badalados do país, era preciso esperar que todos os funcionários

terminassem seus trabalhos, já de madrugada, pois o ônibus que traria o grupo seria o

mesmo que fazia o transporte dos empregados. Outro motivo de reclamação dos grupos era

a estrutura para seus shows: péssimas acomodações nos camarins, comida de qualidade

ruim – sempre abaixo do que pedido pelos grupos na assinatura do contrato – e desrespeito

às exigências dos grupos quanto aos locais de apresentação, o que constitui um problema

em especial para dançarinos, obrigados a correr riscos em pisos inapropriados.

Apesar de tudo isso, no verão os hotéis ainda representam (ou representavam) uma

fonte de trabalho para os grupos, cujas péssimas condições de trabalho são garantidas pela

competitividade entre eles: quando um grupo reclama e não as aceita, outro é convidado e

assume o lugar, até que também aquele passe a questionar a situação e outro seja chamado,

chegando novamente ao primeiro. Assim, a maior parte dos blocos afro de Ilhéus já

passaram em momentos alternados por todos os hotéis que costumam contratá-los.

Um outro ‘trabalho de verão’ dos grupos são os ‘receptivos’, que consistem na

apresentação de pequenos shows para turistas que desembarcam no porto. Para esses

trabalhos, os grupos são contratados por agências de turismo em convênio com a Ilheustur,

sendo esta última a responsável pelo pagamento do cachê, o dobro daquele pago pelos

hotéis, mas que, em compensação, pode atrasar em um ano ou mais, ou mesmo não ser

Page 302: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

301

pago em função de acordo de um novo trabalho. Condições ruins de transporte e infra-

estrutura – “às vezes nem água tem” – também são reclamações constantes dos grupos.

Em algumas ocasiões, quando os grupos afro são procurados pela própria Ilheustur

para outro tipo de trabalho, por outros órgãos da prefeitura e até por empresas ou pessoas

que supõem ter uma relação com algum tipo de afinidade com eles, o que era ‘compra’ e

‘venda’ de serviços, pode se transformar em ‘troca’. A prefeitura pode oferecer passagens

para Salvador, peles para os instrumentos, ‘som’ para os ensaios dos grupos, divulgação de

programação... Mas, diante de argumentos que alegam a existência de ‘poucos recursos’ ou

que um projeto, que deverá ser lucrativo, ‘está só começando’ ou que os grupos devem

‘ajudar’ a pessoa ou a instituição tal, a ‘moeda de troca’ mais oferecida aos grupos são

“umas cervejinhas”. Ao longo da pesquisa, foram inúmeros os momentos em que os mais

variados grupos, desde os maiores até outros formados recentemente, eram convidados

para uma apresentação e quando perguntavam pelo cachê, a resposta era que seria dada

uma “caixa de cerveja” e, muitas vezes, isso ainda era dito sem muita certeza de que se

poderia consegui-la. Segundo o presidente do Dilazenze, “isso só acontece com bloco

afro”.

Mas a situação pode ser ainda pior. Além das inúmeras vezes em que se oferece

algo ‘em troca’ dos serviços dos grupos, ainda que sejam ‘cervejinhas’, há outras em que

não se oferece absolutamente nada. Na verdade, o grupo deve “se sentir honrado por ter

sido selecionado” para aquele evento, o que lhe ‘dá’ a “oportunidade de divulgar o seu

trabalho”, mesmo quando o interlocutor está se referindo ao Dilazenze, ao Rastafiry ou até

mesmo ao Miny Kongo, os três considerados grandes e este último, na época da pesquisa,

com quase vinte anos de existência.

Os exemplos seriam inúmeros entre aqueles que presenciei e aqueles que me foram

relatados, mas alguns são especialmente reveladores da visão que se tem dos grupos. Em

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302

1999, pessoas importantes no ‘meio cultural’ ilheense, o diretor do Teatro Municipal de

Ilhéus e um diretor/produtor de teatro, chamaram o Dilazenze para uma reunião. Elas

disseram que estavam planejando uma “cena” como parte das atrações oferecidas pelo

governo municipal para o réveillon. A ‘cena’ envolveria percussão e dançarinos dos blocos

Dilazenze e Rastafiry – “só negros” – e cantores consagrados da cidade, sendo o repertório

composto de “cantos da raça negra”, como “músicas de candomblé”, sugestão de uma das

pessoas. Os grupos deveriam usar roupa branca, sendo os próprios blocos responsáveis

pelo ‘guarda-roupa’, já que “não é possível que os grupos afro não tenham roupa branca”,

disse um dos responsáveis pelo ‘convite’. Aliás, não se tratou de um ‘convite’, pois em

momento algum foi perguntado se os grupos gostariam de participar. Na conversa, um dos

responsáveis disse que “as pessoas [entenda-se os habitantes ilheenses] não gostam de

bloco afro, mas apreciam as apresentações que os grupos fazem nos eventos da cidade”. A

“cena” imaginada por eles exigia um grande contingente de participantes, em torno de

trinta, que deveriam ser recrutados em ambos os blocos. Não houve nenhuma menção a

cachê, mesmo sendo um ‘trabalho’ na noite do Ano Novo. Perguntei por que eles pensaram

nos grupos afro para essa apresentação. O diretor do Teatro Municipal falou sobre Ilhéus

ser uma cidade muito preconceituosa – “herança do cacau” –, que “é preciso brigar com

muita gente” para dar espaço para os grupos afro e, com um trabalho como esse, ele queria

“mostrar para a cidade o quanto o trabalho dos negros é bonito”.

Outro episódio ocorreu na entrega do Troféu Jorge Amado de Cultura, um prêmio

anual do governo municipal que homenageia quem trabalha pela ‘cultura’ na cidade. No

ano de 2001, a produtora do evento procurou o Dilazenze no dia mesmo em que ele

aconteceria porque queria um percussionista “alto e forte, tipo negão mesmo” para tocar

atabaque para Oxóssi, orixá de Jorge Amado. O presidente do grupo propôs um de seus

irmãos e perguntou sobre o cachê. Um pouco espantada, a produtora disse que se ele

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303

quisesse um cachê, ela veria o que seria possível conseguir. Até o momento do espetáculo,

‘nenhum cachê foi possível’ e o percussionista não foi.

Até mesmo na inauguração do Memorial da Cultura Negra103, um espaço que

deveria funcionar para e pelos grupos afro, eles se sentiram discriminados. Durante toda a

programação da noite, as atrações principais eram bandas de pagode, deixando que os

blocos afro se apresentassem apenas momentos depois da assinatura do contrato de aluguel

do local, logo em seguida voltaram as bandas de pagode. Segundo dirigentes dos grupos

afro, as bandas de pagode tinham uma ‘topic’ como transporte, enquanto eles tinham uma

caminhonete; as bandas de pagode tinham cerveja e cachorro quente, enquanto os blocos

afro tinham refrigerante e um “sanduichinho” de manteiga ou maionese, e um dos grupos

afro nem ficou sabendo que teria direito a água e refrigerante. Como disse o presidente do

Dilazenze, “os donos da festa foram só convidados”. Numa segunda inauguração naquele

mesmo ano, no dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, novamente a programação

foi basicamente de bandas de pagode. Contra os protestos dos dirigentes dos grupos afro, o

secretário de administração municipal, responsável pelo evento, tentou justificar dizendo

que “pagode também é coisa de negão!”

Em datas de comemorações importantes para o movimento negro, como o Dia de

Zumbi dos Palmares, mas também em outras datas, como o Dia das Crianças e na Semana

do Folclore, entidades filantrópicas e colégios, mesmo particulares, costumam solicitar que

os grupos se apresentem e apelam para ‘a causa’, digamos assim, para não pagar por isso.

Às vezes, oferecem um lanche e o trabalho é quase sempre aceito. Em alguns casos, há

uma relação de cooperação entre as entidades ao longo do tempo, não sendo o lanche a

103 Na verdade, tratava-se da assinatura do contrato de aluguel do espaço, mas o evento foi chamado deinauguração. Ver-se-á adiante que esta inauguração, ocorrida em maio de 2000, foi só a ‘primeira’ dealgumas outras.

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justificativa para o trabalho. Em outros, ele se justifica pela própria apresentação, uma

forma de “ensaiar” em tempos de trabalho escasso.

A seguir, serão apresentados dois casos que podem, como quase tudo, ter mais de

uma leitura. O primeiro deles, costuma ser elaborado como um dos momentos mais

importantes dos blocos afro na cidade, quando fizeram muito sucesso. Trata-se do que

ficou conhecido como a Usina. O segundo, a Caminhada Cultural de Ilhéus, em 2001,

assim como a de 2000, mostra a importância dos grupos afro quando se pensa em ‘cultura

popular’ na cidade. Sem eles, o evento não aconteceria. Todavia, aqui ambos são exemplos

bastante concretos de exploração do trabalho dos blocos por uma elite que domina os

espaços e recursos da ‘indústria do entretenimento’.

Os “bons tempos” da USINA

Nos anos 80, o sucesso dos blocos afro em Ilhéus estava concentrado nos grupos de

dança. Nos anos 90, especialmente depois do estouro internacional do Olodum, foram as

bandas afro que passaram a ocupar a cena de atividade principal dos blocos fora do ‘tempo

de carnaval’. No início dos anos 90, e durante toda a década, os grupos surgiam a partir de

bandas, e não mais de grupos de dança, como na década anterior. E, como bandas, o

‘grande momento’ dos grupos de Ilhéus foi a “época da Usina”.

A “Usina” foi como ficou conhecido um projeto de apresentação de bandas afro às

terças-feiras num galpão de uma antiga fábrica, onde atualmente funciona uma igreja

evangélica, em frente ao Terminal de Ônibus de Ilhéus. Segundo um panfleto do projeto104,

Usina era o nome da primeira fábrica de chocolates do Brasil, fundada em 1928, na rua

conhecida como Rua da Usina. O panfleto informa que o Espaço Usina, inaugurado em

1994, seria um centro cultural, com oficinas de artesanato, arte, exposições, além de

104 O acesso a um exemplar foi possível graças ao ótimo acervo pessoal de Marinho Rodrigues, ondeencontra-se preservada boa parte da história do movimento afro-cultural de Ilhéus.

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lanchonete funcionando durante todo o dia, um bar à noite e um palco para shows variados.

Na verdade, a apresentação dos blocos era um projeto do Espaço Usina e chamava-se

“Terça do Reggae”. A cada semana, duas bandas eram convidadas a tocar e, embora se

chamasse ‘Terça do Reggae’, as atrações eram as bandas afro. Segundo dizem pessoas que

pertenciam aos blocos ou que vivenciaram aquele momento, o evento foi um grande

sucesso, ou para usar o termo de um dirigente, foi um “grande modismo”: “todo mundo

ia”. A estimativa de público era de duas a três mil pessoas. “E o lugar estava sempre cheio,

em plena terça-feira, para ver bandas afro.” Com exceção dos eventos envolvendo shows

da Semana da Consciência Negra, quando diversos grupos se apresentam no mesmo dia,

por exemplo, este foi o único momento em que componentes de todos os grupos afro se

reuniram para assistir uns aos outros. “Era arena neutra” e, informação considerada

importante para que isso viesse a acontecer, o projeto foi organizado por “pessoas

brancas”, ou seja, não se tratava de um evento produzido por um dos blocos, o que seria

motivo para os demais não comparecerem, do ponto de vista de alguns dirigentes.

Embora tratasse de um projeto de “pessoas brancas”, havia um quê afro, tanto no

logotipo do panfleto quanto no texto que diz que o lugar “ganhou (...) a ginga dos ritmos

negros.” De acordo com as informações que obtive, o projeto começou com o investimento

de capital de umas pessoas que, naquele momento de sucesso dos blocos de Salvador,

como o Olodum e o Ara Ketu, “sacaram que os blocos afro eram um grande lance, um

grande negócio”. Produziram o local para a realização de shows e convidaram as bandas

dos blocos, que recebiam um cachê fixo por apresentação. A cada dia, havia uma banda

principal e uma banda convidada, com cachês maiores e menores respectivamente. Além

do cachê, as bandas recebiam o transporte e “uma cota de cravinho” (bebida alcóolica).

Não é possível dizer quanto tempo durou o projeto, quantas bandas se apresentaram. O que

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306

se diz é que a Usina lotava enquanto não havia cobrança de ingressos, justamente porque

era freqüentada pelos moradores das comunidades dos blocos.

Depois de algumas semanas de entrada gratuita, quando o projeto já havia se

tornado um ‘sucesso’, os organizadores começaram a cobrar ingressos, “a um ou dois reais,

dependendo da banda”. Segundo o presidente do Dilazenze, os organizadores do evento

tinham um grande lucro com ele: recebiam pelos muitos ingressos vendidos, faturavam

com a venda de cerveja e pagavam um pequeno cachê às bandas, cujo valor era de sessenta

reais, de acordo com uma cópia do contrato firmado entre as bandas e os organizadores105.

O projeto acontecia justamente no momento em que os grupos afro estavam em seu melhor

momento. O presidente do Dilazenze conta que no dia marcado para o show do grupo, por

exemplo, ainda ficaram muitas pessoas do lado de fora, sem conseguirem ingresso, porque

o “local estava lotado”. Nessa época, em função de seu sucesso na cidade e na região, o

grupo era chamado de “Olodum de Ilhéus”: “teve fama, fazia muitos shows, ganhava

dinheiro com isso”. Na verdade, o início dos anos 90 é considerado o melhor momento

para todos os blocos em termos de realização de shows, de promoção artística. Alguns

chegaram a ter música tocada em rádios da região a partir de fitas ‘demo’.

Naquele momento da Usina, no auge do projeto, os grupos acreditavam que

poderiam ser mais valorizados e reivindicaram condições diferentes de contrato. Quando

eles perceberam que apenas os organizadores levavam vantagem com o evento às custas de

seu trabalho, mas que pouco recebiam por isso, desistiram de tocar. As atrações passaram a

ser bandas de reggae e, com pouco tempo, o espaço foi desativado. “Acabou porque o forte

do negócio eram os blocos afro. E o público era de negão.”

105 O texto que consta do contrato não deixa claro se este valor era dado a cada uma das bandas ou se deveriaser dividido entre as duas. Literalmente, a cláusula diz que: “Em cada terça, a Usina compromete-se a pagar aquantia de R$ 60,00 (sessenta reais) para os cachês da banda. A primeira abrirá a noite sempre às 19 horas etocará até as 21 horas; A banda principal entrará às 21 e tocará até as 23 horas, ficando a seu critério se deveestender o tempo de apresentação.” (Projeto Terça do Reggae).

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307

A Caminhada Cultural

Um outro episódio é interessante porque reflete elementos da relação dos grupos

com a prefeitura, com a TV local e com hotéis da cidade. Desde o início da década de 90,

acontece em Salvador um evento chamado “Caminhada Axé”, reunindo grupos afro,

afoxés, academias de capoeira, baianas... Trata-se de um grande desfile das entidades pelas

ruas, caracterizando a abertura do calendário turístico de verão da capital. Em Ilhéus, em

2000 foi a primeira vez que houve a “Caminhada Cultural”, uma espécie de reprodução

local do evento de Salvador organizado pela prefeitura de Ilhéus e pela TV Santa Cruz,

emissora regional sediada na cidade de Itabuna – note-se que não há no nome do evento

nenhuma referência à ‘cultura negra’ como acontece em Salvador, embora os blocos afro

representem quase a totalidade dos grupos que compõem a Caminhada.

Segundo o presidente do Dilazenze, neste primeiro ano de Caminhada, a

organização do evento pediu a participação de todos os blocos afro através do Conselho de

Entidades Afro-Culturais. Os responsáveis disseram que não havia verba, mas que se a

caminhada fosse um sucesso, no ano seguinte seria diferente. Assim, a única forma de

pagamento prometida foi “um retorno da mídia” através da realização de um videoclipe

com todas as entidades que seria apresentado num programa regional da emissora. Mas

isso não aconteceu. Além disso, os blocos afro souberam que outros grupos, como um de

dança da Universidade Estadual de Santa Cruz e um outro chamado “pastorinhas de

Olivença”, por exemplo, foram pagos para desfilar.

No ano de 2001, a organização da Caminhada enviou convites individualmente às

entidades para uma reunião com representantes de todos os grupos participantes. Antes,

porém, os blocos afro se reuniram para combinar o que pediriam como pagamento e

reivindicar um outro tipo de tratamento aos grupos. O primeiro encaminhamento foi que os

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308

organizadores deveriam negociar com o CEAC como entidade de representação dos

grupos. Novamente o presidente do Dilazenze deu como exemplo a relação dos blocos com

o sindicato dos estivadores, responsável pela organização da Lavagem da Catedral. Ele

disse que “antigamente, eles contratavam as entidades e nunca davam nada”. As entidades,

então, foram, aos poucos, deixando de participar do evento, mas “de dois anos para cá, o

CEAC passou a negociar e acabou conseguindo camisas, água e cerveja.” A união das

entidades deveria ser demonstrada na reunião, para que nenhuma ficasse vulnerável, pois

foi dito que no primeiro ano do evento, um representante da prefeitura ameaçou não dar a

verba do carnaval para a entidade que se recusasse a participar do evento.

Os grupos, então, fizeram uma relação de itens a serem solicitados como forma de

pagamento pela participação: camisetas padronizadas; transporte para os grupos; água

mineral, cerveja e refrigerante; retorno real da mídia, ou seja, cobertura televisiva dos

eventos dos grupos, incluindo os ensaios dos blocos; cópias de fitas de vídeo da

Caminhada para todos os grupos e uma grande quantidade de peles para os instrumentos.

Em troca, os grupos ofereceriam a participação de 600 pessoas.

A primeira reunião de organização do evento foi ocasião de um embate direto entre

os grupos afro e os representantes da TV e da prefeitura, embora outras entidades também

estivessem presentes (grupos de dança da UESC, um colégio particular e um curso de

inglês, uma associação de baianas). Num primeiro momento, quando só havia

representantes da prefeitura – o da TV ainda não havia chegado –, as entidades reclamaram

da falta de apoio do governo municipal, que respondeu dizendo que os grupos afro

deveriam trabalhar o ano todo para “não terem que depender da prefeitura, como acontece

hoje em dia”, que eles deveriam “aprender a andar com as próprias pernas”. Este é sempre

o argumento utilizado nas ocasiões em que o poder público é cobrado pelos blocos. Na

verdade, é também o que dizem pessoas ligadas a partidos políticos de oposição ao

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309

governo ou do movimento negro ‘político’, críticos da relação, às vezes muito estreita,

estabelecida entre governo e movimento afro-cultural, a qual impediria, desse ponto de

vista, a independência política dos grupos.

Quando finalmente o representante da TV chegou, os blocos afro cobraram as

promessas de cobertura da mídia. Ele respondeu que isso não aconteceu por “culpa dos

blocos”, pois estes não fizeram as solicitações e que, além disso, as pessoas deveriam “ter

bom senso para mostrar coisas interessantes”, pois a imprensa não poderia “mostrar

qualquer coisa”. À medida que a reunião prosseguiu, as demais entidades foram se

retirando e o clima tornou-se mais tenso. O representante da TV disse que o objetivo da

Caminhada era “social” porque sua intenção era reunir grupos folclóricos – como seria

atestado no próprio evento, praticamente só os grupos afro são os tais “grupos folclóricos”

– e apresentá-los para a comunidade, para os turistas. Diante da argumentação dos grupos

de que a TV poderia conseguir patrocinadores para atender às reivindicações, ele disse que

não se poderia ‘vender’ o evento, pois ele não podia ser econômico. No fim da discussão, o

representante da emissora comprometeu-se apenas com a água mineral e com o “retorno da

mídia” e terminou dizendo que a tarefa de arrecadar recursos para sair na Caminhada seria

dos grupos e que “um dia os grupos daqui [de Ilhéus] conseguirão exigir coisas, mas isso

leva tempo...”.

Depois da reunião, os dirigentes dos blocos conversaram sobre como deveriam agir.

Havia visivelmente uma vontade geral de não participar, mas todos exigiam o consenso,

pois se apenas um ou dois blocos se recusassem, estes ficariam “marcados” pela prefeitura.

Outro consenso era a idéia de que os blocos, mais uma vez, seriam “usados”, pois só eles

faziam a Caminhada acontecer. E falou-se em discriminação contra os blocos, que a TV e a

prefeitura só agiam daquela forma porque estavam lidando com blocos afro. Por fim,

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310

tiraram como encaminhamento que as entidades deveriam estar juntas, pois era certo que a

TV e a prefeitura procurariam por elas, fazendo ofertas para cada uma separadamente.

Esta breve reunião dos dirigentes aconteceu numa praça em frente ao Teatro

Municipal de Ilhéus e próxima à Casa de Jorge Amado, onde ocorreu a anterior. Num café

próximo, estava uma professora da UESC, responsável por um dos grupos de dança

convidados para a Caminhada conversando com uma outra professora e com o

representante da TV. Ela conhece o Dilazenze e chamou o presidente do grupo para junto

de si quando os dirigentes se dispersaram. Apresentou-o, então, formalmente ao

representante da emissora, que elogiou o trabalho realizado pelo Dilazenze, disse-lhe que a

TV sempre dá cobertura ao grupo, que a Caminhada do ano anterior fora muito bonita em

função do Dilazenze e lhe deu seu cartão, dizendo que ele poderia procurar pela TV

quando precisasse. Começou, então, com o próprio Dilazenze o que seu presidente havia

alertado que aconteceria com todos os grupos: eles seriam abordados individualmente. No

decorrer das semanas, outras abordagens da prefeitura oferecendo trabalhos ao grupo

Dilazenze foram interpretadas como formas de pressão, como a indicação do Dilazenze

para realizar a festa de réveillon de um hotel de luxo (no qual o grupo já havia se

apresentado várias vezes) por parte da esposa do prefeito e ofertas para o grupo fazer todos

os ‘receptivos’ por parte do presidente da Ilheustur106.

Ao fim de semanas entre telefonemas e reuniões, nos quais ficou claro que a TV

não cederia em nada (apenas daria água, como já fora firmado desde o primeiro encontro),

os grupos conseguiram que a prefeitura lhes garantisse uma determinada quantidade de

peles para os instrumentos, embora fosse abaixo daquela reivindicada. Assim, os grupos

também combinaram entre si que levariam um número de pessoas muito abaixo do

106 O réveillon no hotel não foi acertado porque o valor oferecido pelo cachê estava bem abaixo do imaginadopelo grupo para um dia tão especial, em que os componentes do grupo teriam de abrir mão de estar com suas

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prometido: cada grupo deveria se responsabilizar por desfilar com pelo menos vinte

componentes, o que daria cerca de 200 pessoas, e não as 600 inicialmente oferecidas. O

número final foi ainda bem abaixo desse, pois alguns grupos levaram ainda menos pessoas

e outros sequer compareceram, mas a constatação final ao assistir à Caminhada Cultural foi

que sem os grupos afro, ela não aconteceria. Além deles, havia uma fanfarra de uma escola

particular e pequenos grupos, em geral de menos de dez pessoas: dois grupos de dança da

universidade, um curso de inglês, uma academia de capoeira, atores trajados como

personagens de uma peça que estava se apresentando no Teatro Municipal e algumas

baianas que pertenciam a uma entidade chamada Centro Afro Brasileiro, na verdade, um

terreiro de umbanda que presta serviços à prefeitura abrigando portadores de doenças

mentais.

Ainda durante o dia da Caminhada, ocorreu um episódio interpretado como racismo

por membros do Dilazenze. Este grupo e o Miny Kongo foram convidados a dar

entrevistas convidando a população de Ilhéus para a Caminhada no noticiário local. A

gravação fora marcada na Praça da Catedral, em frente a um dos hotéis mais famosos da

cidade. Enquanto os grupos se organizavam – os respectivos grupos de dança e alguns

percussionistas – um homem, posicionando-se em nome do hotel, proibiu que a gravação

fosse realizada ali. A equipe da TV chegou a argumentar que seria uma propaganda para o

estabelecimento, mas o homem continuou firme dizendo que aquilo atrapalharia a entrada

dos hóspedes, o que de forma alguma era verdade. Este foi um contra-argumento empírico

à insistência do representante da TV nas negociações com os blocos de que estes deveriam

procurar o patrocínio dos hotéis e pousadas da cidade, ao invés de apelar para a TV ou para

o governo.

famílias para trabalhar. Como relatado anteriormente, dos muitos receptivos previstos, só 2 ou 3aconteceram, pois a prefeitura não teve dinheiro para pagar os demais.

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312

À

Além de apresentações e cachês, há outras situações em que são manifestos o que é

visto como descaso e desrespeito aos blocos afro. Seriam incontáveis os casos de longas

esperas nas ante-salas de pessoas do governo nos mais diversos cargos, de acordos não

cumpridos, de cancelamentos de verbas e de eventos sem avisar previamente... Tudo isso

faz parte do dia-a-dia dos grupos, o que às vezes é percebido como má vontade ou

desprezo de uma determinada pessoa, que pode ser especificamente alguém que “não gosta

de bloco afro” e a ele(a) são atribuídos todos os obstáculos para o sucesso de alguma ação,

mas também pode ser um(a) secretário(a) ou um(a) segurança, de quem pode mesmo se

dizer que é racista ou que quer exercer mais poder do que realmente tem... explicações que

costumam ser aplicadas a funcionários públicos que atendem à população. Outras vezes, os

problemas são vistos como resultado de burocracia, característica da prefeitura: “eles

[governo de maneira geral] são muito enrolados”, dizem... E, em raras vezes, essas atitudes

são percebidas como ‘discriminação’: “isso só acontece porque é com bloco afro”. E, de

fato, seria mesmo muito difícil distinguir quando a razão do desrespeito é uma e não outra.

Por isso, este aspecto das relações será deixado de lado e o foco deste trabalho recairá a

seguir sobre a relação dos grupos com a política partidária.

O assédio de políticos aos grupos afro é sempre muito grande. O artista plástico

colaborador do Dilazenze, cuja trajetória de vida é, desde sua juventude, estreitamente

vinculada à política partidária “de esquerda”, certa vez resumiu bem a razão de todo esse

assédio: “conseguir reunir duzentas, trezentas pessoas, é um ato de extrema habilidade. O

diretor de bloco afro consegue colocar essa quantidade de gente dentro de um único

projeto. É isso que faz todo político ficar doido!”. E é isso que faz também com que todo

dirigente de bloco afro, mesmo aqueles com menor visibilidade, cujo único trabalho é o

desfile no carnaval, seja uma liderança comunitária e, conseqüentemente, seja ‘dono’ de

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313

votos, ainda que apenas em tese. Isso significa dizer que muitas vezes os grupos afro são

procurados por políticos que os concebem tal como se pensa uma outra organização social

qualquer: um time de futebol, uma associação de moradores, um clube esportivo ou de

lazer, uma entidade filantrópica, um terreiro de candomblé, uma igreja etc. Buscam-se os

votos que podem ser controlados por um líder daquele conjunto. No caso dos blocos afro,

esse conjunto pode ser grande e abranger milhares de pessoas, se forem contabilizados os

votos dos componentes e de familiares, amigos... Na contabilidade política anterior à

eleição, há sempre o ‘milagre da multiplicação dos votos’, quando as pessoas costumam

ser ‘donas’ de vários votos além do seu próprio. Há tempos Risério já escrevia que “o que

podemos dizer da classe política institucionalizada – do PDS ao PMDB, passando por PT,

PDT etc. – é que ela percebeu (...) que a penetração nas entidades afrocarnavalescas pode

ser extremamente lucrativa em termos eleitorais”, fazendo de um afoxé ou de um bloco

afro “uma espécie urbana de curral eleitoral” (1981:120).

Mas os blocos afro de Ilhéus oferecem um ‘atrativo’ a mais: a possibilidade,

imaginada tanto por eles quanto por alguns políticos que os procuram, de reunir todos os

blocos em torno de uma única candidatura, já que estes encontram-se organizados no

CEAC, um órgão de representação e, supostamente, de controle dos grupos, o que faria

desta pessoa o ‘candidato do movimento negro’. Virtualmente, esta posição poderia dar ao

candidato os votos de todos os componentes dos grupos, cerca de duas mil pessoas,

número mais do que suficiente para eleger um vereador em Ilhéus, mesmo sem contar com

a multiplicação dos votos.

Concretamente, nunca houve em Ilhéus um candidato a vereador que conseguisse

ser mesmo “o candidato do movimento negro”. O momento em que isso esteve mais

próximo de acontecer foi em 1992, quando Mirinho, ligado ao sindicato dos estivadores e

ao candidato a vice-prefeito, Ronaldo Santana, também negro, tentou reunir todos os

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grupos afro em torno de sua candidatura e da chapa majoritária, encabeçada por Antônio

Olímpio, que veio a vencer as eleições. A narrativa deste processo por parte de dirigentes

dos grupos, inclui a ‘cor’ do candidato a vice como um primeiro fator de aproximação dos

blocos. No entanto, a aglutinação dos grupos afro em torno da candidatura de Mirinho e de

Antônio Olímpio teve como mote principal a promessa deste último de que construiria um

Centro Afro-Cultural para os grupos afro de Ilhéus. Sendo Mirinho o intermediário dos

grupos junto ao prefeito, sua eleição era considerada necessária para a concretização da

promessa. Mirinho não foi eleito, nem mesmo foi publicamente apoiado por todos os

grupos, como disse um dos dirigentes de bloco afro: “Mas quando chegou na hora,

apareceu político com dinheiro e a gente só via os blocos se dispersando.” O Centro Afro-

Cultural não foi construído e essa história só seria retomada anos depois, com o Memorial

da Cultura Negra, assunto a ser tratado adiante107. Em 1996 e em 2000, um outro candidato

ambicionou a posição de representante do movimento afro-cultural: Gurita foi candidato a

vereador e, especialmente na segunda candidatura, tentou articular todos os grupos afro ao

seu redor. Se no caso de Mirinho havia o Centro Afro-Cultural como algo específico para

os blocos, na campanha de Gurita não havia nada que o identificasse com o movimento

afro-cultural, exceto a palavra “cultura” em seu slogan, incluída posteriormente à

divulgação de faixas em que constavam apenas as palavras “juventude” e “esporte”, pois

sendo professor de educação física e diretor da Divisão de Esportes da Secretaria de

Educação, estes seriam os campos nos quais estavam concentradas suas ‘bases’. Embora se

apresentasse como candidato do movimento negro, suas alianças com os grupos nunca

passaram por propostas diretamente voltadas para a população negra ou mesmo para o

movimento, sendo, então, baseadas no que conseguisse ‘ajudar’ ou no que ‘prometesse

ajudar’ a cada um dos grupos, como, em geral, são as alianças que as entidades fazem com

107 Relato e análises mais aprofundadas desse episódio encontram-se em Goldman 2000.

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315

quaisquer candidatos, mesmo os considerados brancos. E assumir essa posição foi tanto

mais possível a partir do momento em que o gerente de ação cultural, que era do PT e do

MNU, deixou o cargo e Gurita passou a ser o intermediário do governo junto aos blocos.

Além disso, a estratégia política de Gurita passou pela fundação de blocos afro, como o

Guerreiros de Zulu, em 2000, já em plena campanha108, e na estruturação de alguns outros

como o Zambi Axé e o Danados do Reggae.

É importante frisar que esta não é uma postura exclusiva de candidatos

considerados “da direita”. Não é possível afirmar com certeza porque seria necessária uma

pesquisa específica, mas é muito provável que nunca tenha havido um candidato em Ilhéus

cuja campanha fosse baseada num programa voltado para, ou que sequer mencionasse,

questões pertinentes à população negra, embora fossem muitos os que buscaram o apoio

dos blocos, que constituem o setor mais expressivo do movimento negro da cidade.

Observando superficialmente a política local109, percebe-se que ao buscar o apoio

dos blocos afro, os candidatos negros estabelecem relações etnicizadas para dentro, para o

conjunto do bloco, como afirmações de valorização da cultura negra ou relato de trabalhos

anteriores no meio afro-cultural. No caso de candidatos sobre os quais pode-se ter dúvidas

quanto à sua cor, apelos ao famoso ‘pé na cozinha’ ou ‘na África’, são constantes. Esses

candidatos pretendem construir uma forma de identificação com o grupo que ajude a

garantir votos para além do apoio dos dirigentes. No entanto, essa identificação não

aparece para fora, pois não há propostas nem discurso voltados para a população negra;

nunca se é, então, um candidato negro, independentemente da cor da pele.

108 Na verdade, a fundação do bloco ocorreu em abril de 2000, durante uma reunião de campanha de Guritana casa de um dos fundadores, os quais ele já conhecia por sua participação anterior no Zambi Axé. O grupojá era uma banda afro e foi sugestão de Gurita que ele se organizasse como bloco, insistindo sobre suacapacidade para tanto. Ele ainda ajudou o grupo na parte mais burocrática de fundação do bloco e levou-opara os primeiros trabalhos em eventos de campanha do governo.109 Um estudo aprofundado dela a partir do ponto de vista dos integrantes dos blocos afro é realizado porMarcio Goldman há vários anos. Até o momento, encontram-se publicados os seguintes artigos sobre o tema:Goldman 2000 e 2001. Encontra-se no prelo um livro como produto de seu extenso trabalho de pesquisa.

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316

Apesar disso, é muito comum a participação artística de blocos afro em comícios,

em convenções, em eventos políticos em geral. Suas apresentações são uma atração ao

mesmo tempo que uma demonstração de apoio àquele candidato, sendo difícil desvincular

uma situação da outra, mesmo quando os grupos insistem que estão ali por trabalho. Esse

trabalho, aliás, é geralmente muito mal pago, assim como todos os outros. E o próprio

apoio dos blocos é baseado em ‘trocas’ que consistem em promessas de emprego para

dirigentes ou familiares destes, cestas básicas para os próprios dirigentes ou para pessoas

do bloco, material para obras, caixas de cerveja para eventos do grupo, camisetas etc., nada

diferente do que se costuma ‘trocar’ por voto em qualquer lugar do país. E é interessante

que seja este o tema das últimas linhas de Risério em Carnaval Ijexá.... Descrevendo o

assédio dos políticos sobre os blocos afro pela proximidade das eleições, o autor diz: “E

não é preciso dizer o quanto esta investida política tem sido, aqui e ali, inescrupulosa, ao

ponto de partidos oferecerem salários a jovens líderes da periferia, em troca de apoio nas

próximas eleições. O que, de resto, nem sempre é recusado.” (1981:156). Mas a oferta de

salário ainda pode ser muito: certa vez, em Ilhéus, um vereador ofereceu uma cesta básica

a um dirigente de bloco afro para que ele fosse seu assessor parlamentar. Neste caso, foi o

próprio dirigente em questão que percebeu a atitude como uma prática racista e,

dignamente, recusou a oferta interpretada como ofensa.

É muito recorrente o discurso de que os blocos afro aceitam participar de políticas

de apadrinhamento, de clientelismo e que nunca conseguem ser independentes dos

governantes, submetendo-se a eles o tempo todo. Por mais que cada um dos setores que o

reproduzem pensem estar dizendo algo que identifica o problema dos blocos e propondo

uma solução – a saber: tornar-se independente financeiramente – este é, na verdade, um

discurso dito em uníssono: autores que trabalham com o tema110, integrantes do

110 Ver, só para citar alguns, Ribard (1999:394), Agier (2000:115) e Moura (Moura e Agier 2000:371).

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movimento negro político, os próprios dirigentes dos blocos, comerciantes quando são

solicitados para patrocínio, governo quando é cobrado pelos blocos, e até mesmo políticos

que têm essa prática, especialmente quando vêem outros agindo assim e temem ‘perder

terreno’. É unânime, ao menos em termos de discurso, a opinião de que os blocos afro

devem ser auto-sustentáveis. Mas isso não acontece nem mesmo nos grandes blocos afro

de Salvador, que às vezes são beneficiados com doações de terrenos, subvenção do

governo, patrocínio de ongs internacionais e de grandes empresas, dependendo do bloco e

do formato assumido. Na verdade, a auto-sustentabilidade de um bloco afro é algo inviável

se for considerado que seria preciso imaginar que cada uma de suas apresentações, que

exigem dedicação exclusiva de seus componentes para que a performance seja de alta

qualidade, fosse vendida por um valor altíssimo, capaz de sustentar os integrantes dos

grupos, a manutenção dos equipamentos, a variação do guarda-roupa, os projetos sociais

que acaso houvesse e ainda financiar o carnaval. Poder-se-ia contar ainda com a venda de

fantasias, mas apenas se fosse um bloco para turistas, não um bloco afro situado numa

comunidade de baixa renda. E, ainda assim, aqueles que o fazem, como o Olodum e o Ilê

Aiyê, cujas fantasias saem pelos mesmos preços dos abadás dos caros blocos de trio, não

são auto-sustentáveis, pois também precisam doar fantasias para suas comunidades, cujos

moradores não têm como pagá-las.

A observação feita no início desta seção de que é difícil qualificar de racismo

algumas atitudes dirigidas aos blocos afro como grupos artísticos vale com ainda mais

ênfase no que diz respeito às práticas envolvidas nas relações entre grupos afro e a política,

ou mais exatamente, os políticos. A criação e a manutenção de um bloco afro é uma luta

que já é desigual em sua essência: sem condições de auto-sustentação, formado, em geral,

por pessoas com pouca renda e, na maioria das vezes, desempregada – até porque para que

um grupo seja realmente ativo, ele precisa que algumas pessoas estejam disponíveis para

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ele – e no meio de comunidades muito carentes. Isso faz com que se dependa sempre de

outrem, o que torna os blocos afro um espaço extremamente favorável para a atuação da

política partidária, tanto no intuito de angariar votos quanto no de formar lideranças que

reproduzam localmente a estrutura de poder existente. E é preciso mantê-los assim para

garantir que essa estrutura continue a existir. Dessa forma, utilizando o mesmo raciocínio

anterior, sustento que práticas que visem parar o movimento dos grupos, mantê-los no

lugar que lhes foi imposto como seu, são práticas racistas.

Os blocos afro são, pelos motivos expostos acima, extremamente dependentes dos

órgãos governamentais. E quanto mais ativos e maiores, mais dependentes são. Os

pequenos grupos, aqueles que “só aparecem no carnaval”, utilizam os recursos da

prefeitura apenas nessa ocasião, enquanto os demais buscam verbas e apoios em diversos

momentos do ano, intensificando muito a relação entre o bloco e o governo, ou com

determinadas pessoas no governo. Ao longo dos últimos anos, desde o início da década de

90 quando os grupos afro começaram a se organizar em conjunto, algumas pessoas negras,

ora mais, ora menos vinculadas ao movimento afro-cultural, foram colocadas ou se

colocaram em posições estratégicas de mediação entre os grupos afro e o governo.

Invariavelmente, essas pessoas não obtiveram sucesso no que se propuseram a fazer, ou

seja, não conseguiram fortalecer os grupos e melhorar suas condições de negociação com o

governo. O primeiro dessa lista é Mirinho, principal articulador do apoio dos grupos afro à

eleição de Antônio Olímpio em 1992 e candidato a vereador derrotado. Por sua ligação

com Ronaldo Santana, vice-prefeito eleito, Mirinho ganhou um cargo na prefeitura e

deveria ser o representante dos blocos junto ao governo, tanto mais porque, no mesmo

período, ele foi eleito presidente do CEACI. Mas não houve ganho algum para os blocos

na gestão de Antônio Olímpio; ao contrário: em seus últimos dois anos de governo, os

grupos não tiveram nem os subsídios para desfilar no carnaval. Anos depois, dirigentes do

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movimento consideraram Mirinho um obstáculo para chegar ao governo: era preciso passar

por ele para qualquer solicitação que os grupos viessem a fazer; o governo não lhe cedia

nada, assim, os grupos também não obtinham nada.

Em 1997, em função da aliança do PT com o PSDB nas eleições majoritárias do

ano anterior, Moacir Pinho, petista, militante do movimento pela posse da terra e do

movimento negro, em Ilhéus desde 1993 e considerado o principal representante do MNU

na cidade, recebeu o cargo de ‘gerente de ação cultural’. Apesar do título abrangente de

seu cargo, sua função era tratar das relações entre o governo e os grupos afro, até porque

todos os outros setores da ‘cultura’ necessariamente estavam nas mãos da “equipe de

Adriana”, primeira-dama e uma espécie de ‘chefe-maior’ de toda a política cultural do

município. E, no caso de Moacir, havia um agravante em sua relação com os blocos afro:

ele nunca havia pertencido a um deles. Não é leviano afirmar que ele “não entendia nada

de bloco afro” como alguns dirigentes costumavam dizer – ele mesmo reconheceu isso

uma vez ou outra. Ainda mais do que nos tempos de Mirinho, ele era oficialmente

designado para atender aos grupos, tentar resolver e encaminhar seus problemas. Mais de

uma vez Moacir foi comparado a Mirinho como um obstáculo aos grupos. Mais de uma

vez, foi lembrado que tanto quanto Mirinho, o governo não apoiava nenhuma ação de

Moacir: ele não tinha autonomia de recursos – e mesmo aqueles solicitados eram negados

–, ele não tinha funcionários à sua disposição, ele não tinha uma sala própria... Seu cargo

era figurativo. Em entrevista a Vale de Almeida (2000), Val, militante do movimento

negro político, embora não vinculado ao MNU, diz que é uma forma de racismo dar cargos

políticos, dar visibilidade a quem seria do movimento negro e não repassar recursos, pois,

dessa forma, ‘queima-se’ a liderança – e ele referia-se justamente a Moacir: “É racismo, é

uma forma de queimar, porque aí os negão (sic) vão procurar Moacir e ele tem que dizer

que não tem dinheiro para fazer nada.” (:117). A análise de Val é corretíssima e a situação

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já era assim percebida tanto pelo próprio Moacir quanto pelos dirigentes dos grupos. E

parece ser este o mesmo racismo que atualmente dá a Marinho Rodrigues, presidente do

Dilazenze, o cargo de diretor do Memorial da Cultura Negra e não lhe repassa nenhum

recurso, assunto a ser abordado adiante.

Da lista de intermediários dos blocos afro junto ao governo, ainda resta fazer

referência a Gurita. Desde 1997, ele se mantém em cargos com relativo poder na

prefeitura, que lhe dão visibilidade e trânsito em diversos setores ligados ao esporte e à

cultura negra. Apesar de suas tentativas de se eleger vereador terem sido frustradas, ele é

visto e/ou se comporta como representante dos grupos afro nas negociações com o

governo, o qual costuma contar com ele quando deseja ter os grupos para alguma

atividade, por exemplo. Ao mesmo tempo, vê-se claramente que Gurita não possui o apoio

que desejaria ter do governo. Mesmo contando com seu intermédio, as solicitações dos

grupos não são atendidas, audiências com o prefeito não são marcadas, os recursos não são

disponibilizados. No governo, atualmente Gurita é a pessoa mais próxima dos grupos, mas,

tanto quanto os outros, não possui poder – e não brigaria por ele, senão já teria perdido o

emprego – para mudar coisa alguma. O papel exercido por ele num caso exemplar de

tentativa de uso dos grupos afro pelo governo é bem revelador.

O Caso John

No dia 20 de julho de 2000, o deputado estadual do PT/BA, Paulo Anunciação,

estava em Ilhéus (havia passado também por Itabuna) reunindo-se com sindicalistas,

especialmente com servidores municipais. Havia uma reunião na sede da Secretaria de

Serviços Públicos e o deputado estava acompanhado de um candidato a vereador do

mesmo partido, também sindicalista. Quando soube da assembléia o secretário municipal

de Serviços Públicos, John Ribeiro, irmão do então prefeito Jabes Ribeiro, dirigiu-se ao

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local e consta que agrediu física e moralmente Paulo Anunciação. O deputado conta que

foi ameaçado de morte, pois John apontou-lhe uma arma e o ofendeu racialmente. Uma

jornalista que acompanhava a assembléia, segundo foi noticiado por um boletim

informativo eletrônico do PT, relatou que John disse a Paulo que ele era um vagabundo.

Quando Paulo se identificou como deputado, o secretário duvidou e disse: “deputado não

tem esta cara”, talvez por Paulo Anunciação ser negro e usar cabelo rasta. A Polícia Militar

foi chamada e, em seguida, Paulo Anunciação fez queixa contra John Ribeiro.

O episódio pouco repercutiu no noticiário de Ilhéus. Eu mesma só soube porque no

dia 24 encontrei um militante do PT que me contou o que acontecera. Dois dias depois,

Gurita ligou para o presidente do Dilazenze solicitando sua presença para uma reunião com

todos os blocos afro no dia seguinte. Nesse primeiro telefonema, o motivo da reunião não

fora divulgado. Gurita apenas dissera que era de interesse dos blocos. Quando contei ao

presidente do Dilazenze o que soubera, ele percebeu que se tratava de uma reunião para

pedir o apoio dos grupos a John e disse que não iria, mostrando-se, então, muito indignado

com Gurita, tanto por estar se sentindo usado quanto pela situação de ver “um candidato

que se diz do movimento negro, ao invés de ficar do lado do que foi agredido por racismo,

fica do lado de quem agride”.

No dia da reunião, Gurita novamente ligou para confirmar a presença do Dilazenze.

Marinho disse que não compareceria para apoiar a John. Gurita disse que a reunião não

tinha somente este objetivo e que seriam tratados vários outros assuntos, inclusive o

Projeto Batukerê. Como será visto no próximo capítulo, aquele era um momento crucial

para o Batukerê: ele havia começado há alguns meses, mas a verba que fora prometida pela

prefeitura até então não havia sido liberada e a cada dia as relações entre a prefeitura e o

Dilazenze tornavam-se mais tensas, especialmente com as pessoas do governo mais

envolvidas nas negociações da verba: Gurita e um funcionário importante da Ilheustur.

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Diante da ‘pressão’ feita por Gurita alegando que se trataria também do Projeto

Batukerê, Marinho hesitou bastante e ficou em dúvidas quanto a ir ou não à reunião. Se o

Dilazenze fosse, certamente seria acusado pelos mais diferentes setores de ser um bloco

afro defendendo alguém que estava sendo acusado de racismo. Por outro lado, temia perder

o apoio da prefeitura ao projeto. Acabou não indo.

No dia 30 de julho, foi publicada nos jornais locais uma “nota de esclarecimento”,

que ocupava uma página inteira, assinada por John Ribeiro. Evidentemente, a nota dava

uma outra versão para os fatos, negava as acusações do uso de arma de fogo e de palavras

racistas e terminava dizendo: “Quem me conhece, conhece a minha história de vida, de

homem negro e trabalhador, sabe que seria incapaz de tal atitude.” (A Região, 30/07/00).

Em alguns momentos, o prefeito Jabes Ribeiro já disse ter um ‘pé na cozinha’, ou seja, ter

ascendência negra, mas nunca se auto-classificou como seu irmão nesta oportunidade.

Dias depois, o presidente do Dilazenze foi comprar açúcar num pequeno comércio

ao lado de sua casa e encontrou uma pilha de panfletos emoldurados com desenhos de

motivo afro, cujo título era “O Movimento Negro Está com Jabes”. O panfleto não citava o

episódio com o irmão do prefeito, mas dizia que as entidades do movimento negro de

Ilhéus estavam apoiando Jabes, então candidato à reeleição, e relacionava o que Jabes teria

feito pelo movimento, citando inclusive a criação do Conselho Municipal do Negro,

tentativa frustrada de criação de um conselho em 1997 que não foi à frente. Os panfletos

deveriam ter sido entregues a Marinho, como este não estava, o portador deixou-os no

balcão desse comércio. Ele foi enviado para todos os grupos, a fim de que estes os

distribuíssem em suas comunidades.

Segundo Gurita, o documento fora aprovado pelas pessoas que compareceram

àquela reunião (representantes de dois grupos) e que ele sabia que as entidades estavam

mesmo com Jabes, ou seja, não era necessário consultar ninguém. O presidente do

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Dilazenze, com o auxílio de outras pessoas, especialmente financeiro, redigiu um

documento assinado pelo CEAC, do qual ele ainda era o presidente, que se não chegava a

afrontar e negar o apoio ao prefeito, pelo menos reiterava a autonomia do CEAC e dizia

que até aquele momento, a entidade não havia se decidido por nenhum candidato. Foram

impressos mil exemplares e o panfleto foi distribuído pela cidade, gerando muitos

comentários. No dia seguinte, logo cedo, Gurita compareceu à sua casa. Inicialmente,

atribuiu o panfleto a lideranças do MNU e do PT. Como o presidente do Dilazenze

assumiu inteiramente ‘a culpa’, caso contrário estaria afirmando, como Gurita parecia

querer dizer, que ele fora manipulado, Gurita desculpou-se pelo que fez, deixou cinqüenta

reais para “ajudar” na merenda do Batukerê – até então era impossível conseguir sua

colaboração, solicitada em mais de uma vez – e despediu-se dizendo que tentaria liberar

junto ao prefeito uma parte da verba prometida para o projeto. O fato foi que naquele

mesmo dia, à tarde, o Dilazenze recebeu um telefonema com a liberação de mil reais, um

terço da primeira parcela do convênio. Todos relacionaram o panfleto divulgado pelo

Dilazenze ao dinheiro liberado. E era bom pensar assim. Aquela era uma das poucas vezes

em que parecia que uma batalha havia sido ganha, ainda que não fosse esta a intenção do

documento.

Cerca de duas semanas depois, haveria uma reunião de pais do Projeto Batukerê.

No lançamento do projeto, em maio daquele mesmo ano, Gurita prometera doar cestas

básicas para todas as famílias participantes como parte de sua campanha política. A

reunião teria, então, este objetivo. Diferentemente das vezes anteriores, John Ribeiro

também compareceu. Entre discursos e pedidos de voto para Jabes e para Gurita, John

afirmou que tinha um “voto de gratidão” com o Dilazenze, cuja diretoria “mesmo sem

querer saber se era verdade”, o “apoiou publicamente”. Terminou seu discurso pedindo

votos para “o negão” Gurita, “o candidato das áreas negras da cidade.” Como a TV e

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especialmente as rádios, quase todas ‘do governo’, não exploraram muito o assunto da

acusação contra John, ninguém pareceu entender muito bem do que ele estava falando.

Este caso, pelo receio do presidente do Dilazenze de ter os recursos do Batukerê

negados por não ir à reunião convocada por Gurita, assim como aquele da Caminhada

Cultural quando, diante da proposta de recusa ao desfile, era necessário garantir que todos

os grupos cumpririam o acordo para que nenhum deles fosse punido pela prefeitura,

mostram o quanto a dependência dos blocos em relação ao poder público orienta grande

parte de suas ações. Ameaças em relação à não liberação da verba do carnaval são

constantes e, ao menos uma vez, que perdurou por alguns anos, foi cumprida. O Bloco

Afro Gangas surgiu no Alto do Basílio, um dos mais pobres de Ilhéus, sob a liderança de

Pelé, também líder comunitário. Logo em seus primeiros anos de organização, o grupo

acompanhou a comunidade numa manifestação reivindicando água para o bairro que

ocorreu na Praça da Prefeitura, no centro da cidade. Durante todo o governo daquele

prefeito, o bloco não recebeu mais os recursos para sair no carnaval.

A observação de campo, assim como relatos de membros dos grupos sobre

acontecimentos anteriores e posteriores ao período da pesquisa, poderiam fornecer diversos

exemplos de desprezo e de subestimação dos grupos afro por parte da grande maioria dos

políticos locais, de outros setores sociais, como o comércio e o turismo, e até mesmo de

algumas pessoas que se colocam no campo do movimento negro político. Por razões

óbvias, é claro que estas últimas não desvalorizam os blocos afro porque seus componentes

são negros, contudo, ao afirmarem que os grupos afro só “sabem tocar tambor”, que “são

manipulados pelos políticos” e, até mesmo em poucos casos, que “não gostam de estudar”,

estão dizendo que a grande maioria das pessoas negras age dessa forma, enquanto aqueles

‘politizados’ do movimento negro político, em geral pessoas com níveis de escolaridade

mais altos, que lêem e discutem com muito mais freqüência, são como os outros deveriam

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ser. Não há nessa observação um desejo de apologia à recusa ao estudo ou à discussão

política. O problema é que, muitas vezes, pessoas que se consideram mais ‘esclarecidas’

também entendem que, por isso, são mais ‘capazes’, e acabam caindo na lógica da ‘lei de

mercado’ que afirma que ‘vence quem se esforça’.

Todos esses setores compartilham uma série de estereótipos a respeito dos grupos

afro, muitos também compartilhados por estes últimos, especialmente quando se trata de

acusações mútuas através das quais um grupo imputa a outro características que costumam

ser utilizadas por quem os qualifica como uma totalidade. Assim, os motivos dos

‘fracassos’ políticos dos grupos afro são, em geral, atribuídos a seu “imediatismo”, seu

“individualismo”, à “desunião” entre os grupos – às vezes legitimada em função da

dificuldade de recursos –, à “facilidade de ser enganado”, de se “aceitar qualquer coisa” em

troca de apoio... Enfim, os problemas dos grupos são gerados por suas incapacidades ou

por seus defeitos, os quais são indissociáveis da imagem de blocos afro que só querem

“tocar tambor”, “fazer música”, que é o que ‘o negro sabe fazer’, segundo outro estereótipo

reproduzido em toda a diáspora africana. E é pela existência socialmente compartilhada

desses estereótipos que relações efetivas de dominação são forjadas, anulando o

movimento afro-cultural enquanto potencial oposição e minimizando seu poder de

pressionar o governo e os demais setores por melhores condições de trabalho e de respeito.

O estereótipo é sempre uma “arma discursiva de poder” (Herzfeld 1996:157), pois

contribui para garantir a manutenção de uma tal relação de dominação. Entretanto, sabe-se

que esta, por definição, não é unilateral e os atores sociais reagem às ações baseadas em

estereótipos “em uma variedade de maneiras informadas tática e etnograficamente

interessantes” (:164). Essas reações fazem desses blocos um movimento no sentido

inicialmente proposto, aquele do mobilizar-se para mudar, de mover-se de um lugar ou de

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uma situação em que não se está satisfeito em direção a outros melhores, ainda que sejam

concebidos assim apenas a priori.

Todas as atividades até aqui relacionadas com a proposta de diferir realizadas pelos

grupos afro são parte desse movimento, pois trata-se do desejo de mudança de uma dada

concepção de mundo. Mas esse movimento pode se estabelecer em formas consideradas

mais efetivas por também serem organizadas a partir da atribuição de estereótipos: porque

os blocos afro são ‘politicamente fracos’, ‘facilmente manipulados’, ‘desunidos’,

‘individualistas’, é preciso fortalecê-los, o que pode acontecer unindo-os em torno de uma

entidade de representação, por exemplo, como o Conselho de Entidades Afro-Culturais. O

desejo de ter um Centro Afro-Cultural sob o controle dos grupos tem o mesmo sentido.

Esses são dois exemplos a serem detalhados a seguir de movimentos dos blocos afro de

Ilhéus. No entanto, a idéia de ‘movimento’ não significa melhor ou pior. Os encontros são

muitos e, a cada agenciamento, há ganho ou perda de potência, para um, para outro, para

muitos ou para todos.

O Conselho de Entidades Afro-Culturais

É muito difícil precisar datas e acontecimentos no que se refere ao surgimento das

primeiras formas de organização das entidades afro de Ilhéus. Todos os documentos se

perderam e só se pode contar com as ‘memórias’ das pessoas. Estas às vezes são confusas;

outras vezes, a confusão provém das diferentes prioridades que cada uma delas deu aos

acontecimentos e da forma como os registrou. Não é intenção deste trabalho homogeneizar

as lembranças e propor uma ‘história’ ‘coerente’ do movimento, contudo, buscar-se-á

apresentar as informações de forma a permitir que se forme um suposto fio ligando os

acontecimentos.

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327

No carnaval de 1987, em Salvador, acontecia o estouro do Olodum com a música

“Faraó” e, através dele, os blocos afro ganhavam mais espaço na mídia e passavam a ser

conhecidos nacionalmente. Em Ilhéus, os grupos começavam a se fazer mais presentes e

também buscavam mais espaço, no carnaval e fora dele. Naquele ano, desfilaram sete

blocos contra quatro em 1986. Os três estreantes na Avenida Soares Lopes foram o

Rastafiry, o Dilazenze e o Gangas. Com exceção do primeiro, fundado ainda em 1982, os

outros haviam surgido no ano anterior.

O ano de 1987 foi também de expectativas e preparação para o Centenário da

Abolição, que aconteceria no ano seguinte. Por todo o país, grupos ligados aos movimentos

negros começavam a se organizar, fosse para comemorar, fosse para refletir e/ou protestar.

O ano de 1988, então, foi de grande efervescência também no meio afro de Ilhéus, quando

surgiram duas organizações que dariam origem ao Conselho de Entidades Afro-Culturais

de Ilhéus.

A primeira dessas organizações denominava-se Movimento Negro Unificado do

Sul da Bahia. Ao contrário do que seu nome indica, não havia nenhuma relação desta

entidade com o Movimento Negro Unificado, o MNU, a essa altura já constituído

nacionalmente. Embora a entidade tenha conseguido agregar todos os blocos afro então

existentes e pessoas que não se sentiam vinculadas a nenhum bloco, mas que desejavam

participar da discussão a respeito do movimento negro na cidade, apenas duas pessoas são

apontadas como responsáveis por sua organização, ambas não mais moradoras de Ilhéus e,

na época, integrantes do Axé Odara, mais exatamente seu então presidente e um outro

homem que, segundo dizem alguns, era uma espécie de ‘empresário’ do grupo. Como já

observado antes, talvez pela presença inicial de Mário Gusmão, o Axé Odara tinha um

caráter mais ‘politizado’ do que os demais grupos. Um dos seus ex-integrantes afirma que

havia uma divergência interna acirrada entre aqueles que pretendiam fazer do grupo uma

Page 329: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

328

entidade de discussão e ação política do movimento negro e outros que preferiam o

formato de bloco afro e de grupo de espetáculos. A presença de uma pessoa identificada

como ‘empresário’ do grupo denota que a segunda opção predominou.

O ‘empresário’ do Axé Odara chamava-se João Carlos e era conhecido como

‘Gaúcho’, apelido que revela uma característica importante: ser ‘de fora’ da cidade.

Gaúcho chegara a Ilhéus havia pouco tempo e, aparentemente, não tinha muitos vínculos

com a cidade, tanto que a deixaria pouco tempo depois. A cor de Gaúcho é uma outra

característica que costuma ser ressaltada pelas pessoas: ‘branca’ para alguns e “quase

mulato” para outros. Essas informações poderiam ser irrelevantes não fosse pelo destino da

entidade, atualmente lembrada mais pelas acusações que pesam sobre seus organizadores,

especialmente sobre Gaúcho, do que por seus possíveis feitos.

Além de Gaúcho, Caíto, presidente do Axé Odara, e Mirinho, que naquele

momento não pertencia a nenhum grupo mas que viria a ser uma pessoa muito importante

para o movimento negro de Ilhéus, são considerados os organizadores do MNU-Sul da

Bahia. A responsabilidade de cada um deles varia de acordo com o interlocutor e de sua

opinião sobre a entidade. O próprio Mirinho afirma ter efetivamente participado dela, cuja

sede era o sindicato dos estivadores de Ilhéus, no qual ele militava111. Embora não

pertencesse a nenhum grupo, Mirinho tinha “acesso a todos”, por amizade e porque

assessorava os blocos na organização burocrática preparando atas, ofícios, documentos112.

Cumprindo este tipo de assessoria também para a nova entidade, ele foi seu secretário.

Afastado do movimento negro desde meados da década de 90, no momento da pesquisa

111 Mirinho formou-se em direito pela universidade local há não muito tempo, mas, segundo conta, foi‘universitário’ por muitos anos, talvez desde essa época. Em sua entrevista, ele diz que freqüentou colégiosparticulares em Ilhéus, condição rara para pessoas negras, certamente por ser de família de estivadores, quechegaram a formar uma pequena classe média negra na cidade durante várias décadas do século XX,enquanto o cacau sustentou o município. Seus avôs materno e paterno foram fundadores do sindicato dosestivadores em 1919, profissão seguida pelos demais homens da família e por ele mesmo.

Page 330: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

329

Mirinho pertencia ao Partido Liberal (PL) e era assessor de um vereador. Meu contato com

ele se limitou a uma entrevista, e talvez por isso, ele não levantou nenhum ‘problema’ em

relação à organização. Segundo conta, seu fim deveu-se à criação do CEACI de dois a três

anos após o surgimento do MNU-Sul da Bahia por esta entidade ser de caráter regional,

enquanto a nova teria um compromisso exclusivamente com os blocos afro de Ilhéus, o

que seria uma necessidade destes. Porém, há outras formas bem diferentes de se falar sobre

o Movimento Negro Unificado do Sul da Bahia.

Algumas pessoas com as quais conversei consideram Gaúcho o “mentor”, o

“idealizador” da entidade, e já haveria em sua proposta inicial “objetivos escusos”,

“pessoais”, enquanto Caíto, do Axé Odara, seria uma espécie de “laranja”, alguém que

estava sendo “usado” por Gaúcho, assim como Mirinho, que dava o suporte técnico e a

infra-estrutura cedendo o espaço do sindicato e tinha a confiança de todos os grupos.

É difícil fazer afirmações a respeito das atividades do Movimento Negro Unificado

do Sul da Bahia: ora parece um grupo de discussão, ora parece formado exclusivamente

para promover apresentações dos grupos e gerar dinheiro para os principais organizadores,

ou somente para Gaúcho, dependendo da versão. De toda forma, com exceção do

depoimento feito por Mirinho, o fato mais recordado por todas as pessoas que fizeram

referência à entidade foi o grande show do Ginásio de Esportes.

Em 1988, o MNU-Sul da Bahia convocou todos os blocos afro então existentes para

uma grande apresentação no Ginásio de Esportes. Havia a proposta de que o dinheiro

arrecadado com os ingressos seria dividido entre os grupos para “fazer caixa”, ou seja,

financiar o carnaval. Segundo conta o presidente do Dilazenze, ele pressentiu que “havia

armação” e o grupo não participou. Algumas outras pessoas dizem ter pensado o mesmo,

112 Além de Mirinho, outras pessoas com nível de escolaridade mais elevado cumpriam este mesmo papeljunto aos grupos afro. Na verdade, ainda hoje os grupos necessitam e desejam poder contar com pessoas quecolaborem nessas tarefas que exigem uma maior habilidade com a escrita e com procedimentos burocráticos.

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330

comentava-se na época sobre as “más intenções” do presidente daquela entidade. Apesar

disso, os grupos participaram e o Ginásio estava lotado: era período de campanha eleitoral

e grande parte dos ingressos foi comprada por candidatos para distribui-los, carimbando

seu nome atrás. De acordo com a estimativa do presidente do Dilazenze, haveria ali cerca

de cinco mil pessoas. O show foi mesmo um sucesso, mas nenhum grupo teve qualquer

participação na receita do evento: segundo contam, Gaúcho fugiu da cidade com ela. Isso

torna relevantes as informações dadas anteriormente de que ele não era da cidade e de que

não pertencia ao movimento – era apenas ‘empresário’ –, não sendo nem mesmo

considerado negro. Depois desse evento, como era de se esperar, o MNU-Sul da Bahia foi

desarticulado.

No mesmo ano de 1988, uma outra entidade foi articulada em Ilhéus buscando o

engajamento do movimento negro da cidade nas reflexões e eventos do Centenário da

Abolição. Na verdade, tratava-se de uma comissão coordenada por Luiz Carilo, presidente

do Lê-guê Depá, e formada por representantes de blocos afro, por componentes do MEPI

(Movimento Estudantil Promocional de Ilhéus) e por outras pessoas interessadas na

discussão113. Essa comissão manteve contato com pessoas em Salvador, especialmente

com Mário Gusmão, que na época trabalhava com Gilberto Gil na Secretaria de Cultura.

Seu objetivo básico era tomar conhecimento dos eventos promovidos, do material

elaborado para as discussões e repassar aos grupos em Ilhéus, promovendo debates e

eventos na cidade. Por não contarem com nenhum tipo de apoio financeiro, as viagens à

capital eram pagas por pessoas da própria comissão que possuíam recursos. E, também por

falta de apoio, quase nada foi realizado na cidade no ano do Centenário da Abolição.

113 Tanto Marinho, presidente do Dilazenze, quanto João César, ex-presidente do Força Negra e consideradorepresentante da vertente mais ‘política’ do movimento negro ilheense, comentam terem participado de umacomissão nos mesmos moldes, embora citem integrantes bem diferentes. Tais informações me fazemacreditar que se trata do mesmo grupo de pessoas.

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331

Essa comissão funcionou como um “embrião” do futuro CEACI. A partir dela, uma

outra comissão seria formada, desta vez para articular uma outra entidade a exemplo do

Conselho de Entidades Negras da Bahia, o CENBA, de Salvador. Foram realizadas

reuniões na Catedral, no Terreiro Tombency, no Colégio Vitória (os dois últimos situados

no bairro da Conquista)... O Conselho das Entidades Afro-Culturais de Ilhéus, o CEACI,

teria sido fruto dessa articulação, formalizado em 1989 com a eleição de Bob Jal, do Miny

Kongo, para presidente, e Gilmar Rodrigues, que, embora fosse irmão dos fundadores do

Dilazenze, considerava-se sem grupo na ocasião, segundo conta. Apesar de haver

informações divergentes, a eleição de Bob Jal não foi consensual; havia uma outra chapa

formada por Caíto, do Axé Odara, e por César, do Rastafiry. Aparentemente, depois de

perder a eleição, Caíto levou seu grupo para a cidade de Porto Seguro e não retornou mais

a Ilhéus.

Por motivo de doença de sua esposa, Bob Jal teria se afastado da presidência do

CEACI, cargo então assumido por Gilmar. Seis meses depois, o primeiro presidente teria

tentado retornar, mas o Conselho não permitiu e Gilmar permaneceu no cargo até 1993,

quando houve a segunda eleição da entidade.

Assim, o carnaval de 1990 foi o primeiro cuja responsabilidade de dividir os

recursos repassados pela prefeitura entre os blocos coube ao Conselho. O mesmo

aconteceu em 1991. Antes da existência do Conselho, a prefeitura repassava os recursos a

cada entidade, mas os representantes dos grupos então considerados menores dizem que

havia controle das grandes entidades sobre a verba. Elas determinavam que grupos

poderiam receber e quanto a partir do que fosse disponibilizado pela prefeitura. Os

recursos para o primeiro carnaval do Dilazenze, por exemplo, em 1987, foram conseguidos

diretamente com o então presidente da Ilheustur por intermédio de um dos irmãos mais

velhos dos organizadores, naquele momento não participando mais de nenhuma entidade.

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332

Segundo o presidente do Dilazenze, o Rastafiry também foi beneficiado (e possivelmente

também o Gangas) e esses grupos receberam cerca de dez por cento do valor então

destinado ao Lê-guê Depá, ao Miny Kongo e ao Axé Odara.

No carnaval de 1992, o então prefeito João Lírio, sucessor de Jabes Ribeiro, não

teria liberado recursos para os grupos, segundo afirmam alguns representantes do blocos

afro. A ausência de informações sobre desfile dos blocos no Jornal Diário da Tarde desse

ano ratifica a informação, assim como a movimentação do CEACI nas eleições de 1992,

embora esta seja mais uma especulação do que uma afirmação, já que nunca ouvi ninguém

vincular os fatos.

Naquelas eleições para prefeito, Jabes Ribeiro era novamente candidato. Se

vencesse, seria seu segundo mandato e a continuação de um mesmo governo, já que João

Lírio fora o sucessor escolhido por ele (naquele momento, ainda não era permitida a

reeleição do Executivo). Anteriormente, Jabes governara de 1983 a 1988, liberando

recursos para os grupos em todos os anos. Mas em 1992, por uma articulação em torno do

candidato a vice-prefeito de Antônio Olímpio, adversário de Jabes Ribeiro, os grupos em

peso fizeram oposição a Jabes, ‘história’ a ser melhor contada adiante. Mirinho, que fora

secretário da primeira tentativa de organização das entidades, o Movimento Negro

Unificado do Sul da Bahia, foi o principal articulador do apoio dos grupos a Antônio

Olímpio e foi também candidato a vereador naquelas eleições. Até então sem pertencer a

nenhum grupo, em 1992 Mirinho participou da fundação de um novo bloco afro, o

D’Logun, numa iniciativa conjunta com pessoas que integravam o Raízes Negras, bloco

fundado em 1990. O D’Logun deu a Mirinho uma base comunitária para a campanha,

embora ele conte que já realizava trabalhos comunitários via igreja católica, e lhe deu um

grupo para que ele pudesse ser candidato à presidência do CEACI no ano seguinte.

Page 334: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

333

Antônio Olímpio venceu as eleições, mas não Mirinho. Ele tornou-se suplente de

vereador e passou a ocupar um cargo na Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio,

cujo secretário era o vice-prefeito. E, apesar de nem todos os grupos terem feito campanha

para Mirinho, aparentemente o CEACI encontrava-se unido, pois não houve a formação de

uma outra chapa. Em 1993, as três grandes entidades já não eram Lê-guê Depá, Axé Odara

e Miny Kongo. Só esta última continuou em atividade. Na nova formação do Conselho, o

D’Logun ocupou a presidência com Mirinho – a entidade era pequena, mas Mirinho era a

grande liderança do momento; a vice-presidência ficou com o Dilazenze; o tesoureiro e o

diretor de patrimônio eram do Rastafiry e o secretário pertencia ao Miny Kongo.

Mirinho considera que a concomitância entre estar participando do governo e ser

presidente do Conselho foi muito interessante para o movimento. De fato, os anos de 1993

e 1994 foram de grande visibilidade para os blocos afro de Ilhéus, são seus “bons tempos”.

De acordo com o ex-presidente do CEACI, sua presença no governo e mesmo a ocupação

da cadeira de vereador em algumas ocasiões – quando o titular entendia que ele teria mais

condições de discutir questões ligadas ao movimento negro ou ao Porto –, pode não ter

sido forte o suficiente para garantir o cumprimento de algumas ‘promessas de campanha’,

como o Centro Afro-Cultural e empregos para integrantes dos blocos, mas pôde garantir

que os grupos tivessem acesso a recursos de infra-estrutura para shows – “havia dois

palanques à minha disposição para os grupos, além de gambiarras, som e outras coisas” – e

passagens para participar de encontros em Salvador114.

Todavia, não se pode esquecer que o sucesso dos blocos afro de Ilhéus era um

reflexo do que ocorria em Salvador. Este era um momento que os blocos afro estavam em

alta no país e o Olodum já era conhecido internacionalmente. 1993 foi o ano da reforma do

Pelourinho, da inauguração da Fábrica de Carnaval do Olodum (Guerreiro 2000:166), do

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334

lançamento de seu disco que viria a receber o Disco de Ouro no ano seguinte (Schaeber

1998:152), também lançamento de um disco do Ara Ketu (Guerreiro 2000:296)... Enfim, a

identificação entre os blocos afro de Ilhéus e o Olodum significava trabalho e visibilidade

para os primeiros.

Ao longo do governo Antônio Olímpio, o CEACI foi sendo desmobilizado e

perdendo sua força. Em primeiro lugar, porque não foi cumprida a principal promessa de

campanha do então candidato para os blocos afro e sua principal motivação para

mobilização, o Centro Afro-Cultural. Depois, vieram os problemas com os carnavais. No

ano de 1994, a prefeitura transferiu o carnaval da Av. Soares Lopes para a Av. Litorânea,

no bairro do Malhado, o que já provocou um primeiro esvaziamento deste. Nos dois anos

seguintes, o governo municipal não só não liberou recursos para os grupos, como também

só realizou o chamado ‘carnaval antecipado’. Além disso, desde 1994, Mirinho afastou-se

da presidência do CEACI e Marinho Rodrigues, o vice-presidente, assumiu o cargo, mas

com a entidade totalmente desarticulada. Afinal, não havia nem mesmo o dinheiro do

carnaval para mobilizar os grupos afro em torno de algum objetivo comum.

Se no início dos anos 90, os blocos afro de Ilhéus refletiram o sucesso dos grupos

de Salvador, especialmente do Olodum, em meados da década eles passaram a refletir

também a decadência do mais famoso bloco afro do país. O Olodum passou por uma grave

crise institucional que gerou a saída de Neguinho do Samba, mestre de bateria do grupo e

reconhecido como o inventor do samba-reggae, em 1996, e o afastamento de João Jorge da

presidência do grupo, que saiu da mídia, perdeu credibilidade, desativou seus trabalhos

sociais e passou a ter mais sucesso no exterior do que na Bahia115. Além disso, as bandas

de axé ou pagode explodiram e tomaram todos os espaços. Os blocos afro já não eram

114 Em 1993 ocorreram pelo menos dois encontros de dirigentes de blocos afro em Salvador, um estadual eoutro nacional, já citado anteriormente, dos quais representantes dos grupos de Ilhéus compareceram.115 Ver entrevista de João Jorge Rodrigues no Jornal Correio da Bahia, 27/04/99.

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requisitados para apresentações. Some-se a isso a falta de apoio aos blocos afro do governo

municipal ilheense e ter-se-á uma idéia da conjuntura extremamente desfavorável em que

estes se encontravam no ano eleitoral de 1996.

Sem poder de articulação e, conseqüentemente, de negociação, os grupos afro se

dispersaram e ‘apoiaram’ ou “trabalharam para” os mais diferentes candidatos. Jabes

Ribeiro, candidato a prefeito, contava naquele momento com o apoio de duas pessoas que

poderiam estabelecer relações com o movimento negro: Gurita, então candidato a

vereador, que até conseguiu o apoio de alguns grupos para sua própria candidatura; e

Moacir Pinho, liderança do Movimento Negro Unificado em Ilhéus, dessa vez sim, uma

subseção do MNU estadual existente no município desde 1993, com a chegada de Moacir,

mas sem estabelecimento de relações com os blocos afro até a campanha eleitoral de 1996.

O apoio de Moacir e do MNU a Jabes se deu em função da coligação entre seus partidos,

PT e PSDB, respectivamente. Se as presenças de Gurita e de Moacir não foram decisivas

para que Jabes tivesse o apoio da maioria dos blocos afro, essas pessoas serão importantes

para a relação posteriormente estabelecida entre o novo prefeito, então eleito para seu

segundo mandato, e os grupos afro, especialmente no primeiro ano de governo e na

rearticulação do Conselho de Entidades Afro-Culturais.

Já no início de seu novo mandato, em 1997, Jabes Ribeiro ‘reativou’ os grupos afro

voltando a realizar o carnaval oficial, agora chamado de “cultural”, e liberando recursos.

Não à toa, ele foi chamado de “Carnaval do Resgate”. Poucos grupos tiveram condições de

desfilar em função da desmobilização experimentada nos anos anteriores e alguns se

uniram a outros116.

Dirigentes dos grupos afro disseram que a distribuição dos recursos foi muito

confusa, principalmente porque ficou a cargo de Moacir, nomeado gerente de ação cultural

116 Cf. Anexo 4.

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336

da Fundação Cultural de Ilhéus, cuja função seria a de intermediar a relação entre governo

e blocos afro. Dado que Moacir não tinha contato com os grupos e eram poucas as

informações que possuía a respeito do movimento, a distribuição da verba do carnaval foi

uma negociação com cada entidade e destas com pessoas que consideravam influentes no

governo e que, de fato, intervieram no processo, gerando vários problemas entre elas e em

sua relação com Moacir Pinho.

A partir dessa experiência do carnaval de 1997 e, evidentemente, com base no

desejo do movimento, tornou-se uma espécie de demanda do governo a rearticulação do

Conselho. Segundo diziam Moacir e Gurita, agora mais próximo dos blocos por fazer parte

da ‘equipe de Adriana’ – esposa do prefeito que controlava o que fosse pertinente à

‘cultura’ de Ilhéus –, Jabes Ribeiro avisara que só negociaria os recursos do carnaval com a

entidade, não mais com cada um dos grupos. Porém, haja vista que os documentos do

CEACI não poderiam ser recuperados, pois estavam desaparecidos havia alguns anos,

optou-se por criar uma nova entidade, que passaria a ser chamada de CEAC – Conselho de

Entidades Afro-Culturais. Assim, ao longo daquele ano, mais intensamente nos meses de

setembro e outubro, foram realizadas reuniões com representantes de todas as entidades

reconhecidas como blocos afro, mesmo algumas que nunca haviam desfilado, dois afoxés e

uma academia de capoeira, cuja participação no Conselho foi “defendida” pela primeira-

dama. Apesar do nome do Conselho referir-se a um conjunto de ‘entidades afro-culturais’,

desde que começou a ser elaborado, ainda na década de 80, seu objetivo foi o de reunir

blocos afro e não qualquer organização que pudesse ser descrita pelo termo ‘afro-cultural’.

A participação dos dois afoxés no novo Conselho foi uma concessão porque eles não

poderiam ser abrigados em nenhuma outra entidade e porque atendiam aos requisitos

básicos de terem relação com ‘cultura negra’ e de serem entidades carnavalescas.

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337

O estatuto do CEAC define-o como “uma entidade de representação das entidades

afro-culturais na organização do carnaval de Ilhéus”, o que significa dizer que, para

pertencer ao Conselho, é preciso que o grupo em questão seja um bloco afro, isto é, que

tenha o carnaval como prioridade de sua existência. No momento de elaboração do estatuto

para a nova entidade, chegou-se a debater intensamente se bandas afro também poderiam

compor o Conselho. Enquanto uns alegavam que não deveriam porque bandas não

desfilam no carnaval e, portanto, não realizam trabalhos comunitários, outros defendiam o

‘trabalho social’ das bandas. Na verdade, tratava-se de uma discussão em torno da

integração ou da exclusão de determinadas pessoas que pertenciam a determinadas

entidades, pois todas as bandas em questão desejavam tornar-se bloco afro, tão logo

dispusessem de recursos para comprar instrumentos suficientes para uma bateria. E foi o

que aconteceu. Por outro lado, em algumas ocasiões, instituições que realizam trabalhos

sociais com crianças pobres de bairros periféricos de Ilhéus já manifestaram desejo de

desfilar como bloco afro no carnaval, integrando-se ao CEAC. Essas entidades são, em

geral, ignoradas, embora nenhuma delas tenha realmente investido na empreitada. Isso

acontece porque elas podem até ‘sair como’ bloco afro, mas não o são, elas não são

prioritariamente carnavalescas.

Concluído o novo estatuto, houve então a eleição da diretoria, proposta sob a forma

de uma “coordenação executiva” por Moacir Pinho, que desejava aplicar no CEAC uma

estrutura organizacional semelhante à do MNU. Além da ‘coordenação executiva’,

constava dessa estrutura um Conselho Fiscal e a Assembléia Geral, composta por dois

representantes com direito a voto de cada entidade filiada. A participação do governo na

eleição do novo Conselho não se restringia ao fato de ter sido uma demanda sua e por ter

Moacir coordenando o processo. Membros do MNU, Moacir entre eles, assumiram o Força

Negra em função da conversão de seu ex-presidente. O MNU desejava aproximar-se dos

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338

blocos afro e desenvolver um trabalho mais ligado à ‘cultura’ através de um bloco. Assim,

muitas vezes, Moacir parecia estar mais presente como Força Negra ou como MNU do que

como ‘Fundação Cultural’. O governo tinha, na verdade, Gurita como alguém que o

representava mais efetivamente. Toda a discussão a respeito de bandas e blocos visava

incluir ou excluir Gurita, que se apresentava como representante de blocos recém-criados,

ainda considerados bandas afro, já que não haviam desfilado. Além das presenças de

Moacir e de Gurita, o governo cedeu os espaços de discussão, a estrutura para a elaboração

do estatuto117 e um coquetel para o dia da posse da nova diretoria, realizado no mesmo dia

da eleição.

A nova composição da diretoria foi a seguinte: a coordenação executiva coube ao

Dilazenze; a coordenação de finanças ao Miny Kongo; a de organização, ao Rastafiry; a de

comunicação ao Força Negra e a coordenação de eventos ao Zambi Axé, representado por

Gurita. Naquele momento, o Conselho possuía 15 entidades filiadas: 12 blocos afro (entre

blocos e bandas que viriam a sair como blocos), 2 afoxés e a levada da capoeira.

A posse da nova diretoria ocorreu no dia 25 de outubro. Durante algumas semanas,

enquanto buscavam formas de angariar recursos para o carnaval, as assembléias

mantiveram-se cheias. Além da imposição de que só negociaria com o CEAC, outra

determinação do governo é que ele não ‘daria’ mais recursos para os grupos e sim

estabeleceria uma “parceria” com eles, ou seja, o governo poderia auxiliar os grupos na

geração de recursos, mas estes deveriam se auto-financiar. E contra o discurso do prefeito

que dizia não querer mais ser “paternalista” para com os grupos, estes afirmavam que não

se tratava de paternalismo, mas de um contrato, pois ao liberar recursos para o desfile dos

117 A digitação final do estatuto, a impressão e as fotocópias foram feitas com muita dificuldade e pode-seclassificar todo esse processo como racismo nos moldes expostos em seção anterior por ter sido, por parte dapresidência da Fundação Cultural, um boicote ao trabalho de Moacir e dos blocos afro. Por não terfuncionários à sua disposição, todas essas tarefas simples e, supostamente, fáceis, eram tratadas como favoresque a Fundação estava prestando, sendo necessário fazê-las depois do expediente. Eu mesma cheguei a

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grupos, o governo municipal estava pagando por suas apresentações. Por outro lado, como

afirmei anteriormente, buscar independência do governo é um desejo constante dos grupos,

mas está longe de ser tarefa fácil. Logo os grupos se dispersaram e só voltaram a se reunir

nas proximidades do carnaval de 1998 para estabelecer a divisão dos recursos, a qual foi

novamente confusa, pois as decisões tomadas em conjunto pelo CEAC com a Fundação

Cultural foram atropeladas tanto por Moacir, que sem ter condições de colocar o Força

Negra na Avenida distribuiu seus recursos entre grupos que não pertenciam ao Conselho,

quanto pelo presidente da Ilheustur que mudou valores a fim de beneficiar grupos sob sua

proteção118.

Em 1998, Moacir Pinho deixou o governo, assim como fizeram as demais pessoas

do PT que ocupavam cargos em função da coligação, pois esta foi desfeita pela

aproximação de Jabes Ribeiro de Antônio Carlos Magalhães e pelo seu apoio à reeleição

de Fernando Henrique Cardoso à presidência e não a Lula, candidato pelo PT. Os anos de

1998 e 1999 foram de pouca atuação do CEAC e os planos de articulação das entidades em

torno de uma série de projetos não foram realizados. No ano 2000, o CEAC voltaria a

ganhar destaque na política local e na mídia pelo retorno do Centro Afro-Cultural à cena. E

não se pode desconsiderar que era, novamente, ano de eleições municipais.

Como será descrito adiante, o processo de implantação do Centro Afro-Cultural,

que acabou recebendo o nome de Memorial da Cultura Negra de Ilhéus, começou em abril

de 2000 e ‘terminou’ (as aspas serão entendidas posteriormente) em dezembro de 2002.

Ainda na gestão de Marinho Rodrigues, presidente do Dilazenze, como coordenador

executivo do CEAC, ocorreram a assinatura do convênio entre a prefeitura e o Clube 19 de

ajudar, digitando e revisando o estatuto, além de insistir junto aos funcionários responsáveis que as tarefasfossem cumpridas.118 Uma descrição mais detalhada da rearticulação do CEAC encontra-se em Silva 1998.

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Março que seria alugado para este fim e, meses depois, a primeira inauguração, já com a

promessa de que o presidente do Dilazenze seria o administrador do espaço.

Rege o estatuto do CEAC aprovado em 1997 que o mandato da coordenação

executiva é de três anos. No final de 2000, houve uma primeira tentativa de eleição

organizada pelo presidente do Rastafiry, ainda coordenador de organização da entidade

pela eleição anterior. Por irregularidades, reais ou assim interpretadas, a convocação para

esta eleição não foi válida. Uma nova eleição foi marcada para março do ano seguinte, com

duas chapas concorrendo, uma encabeçada pelo Rastafiry e outra pelo D’Logun, que já não

desfilava há alguns anos mas seu representante era alguém atuante na política partidária

local como assessor de um vereador (como Mirinho, que também foi presidente do então

CEACI pelo D’Logun e vinculado a um partido político). A estrutura organizacional e

administrativa que consta do estatuto do CEAC não foi seguida pela chapa do D’Logun,

que acabou vencendo a eleição. Na verdade, ela nunca foi, de fato, considerada e, desde os

primeiros momentos, Marinho, eleito coordenador executivo em 1997, já era chamado de

‘presidente’. Assim, em 2001, o CEAC passou a ter a seguinte composição: a presidência

coube ao D’Logun; a vice-presidência ao Dilazenze; a tesouraria ao Zambi Axé e a

secretaria ao Leões do Reggae. Esta é a atual composição do Conselho119, que

recentemente voltou a ser chamado de CEACI por alguns, já que a nova entidade não foi

regularizada. O extrato de seu estatuto foi publicado no Jornal Oficial do município logo

após a eleição de 1997, mas não houve o registro em cartório. Na realidade, até há pouco

tempo, o Dilazenze era o único grupo em situação regular entre os blocos afro de Ilhéus,

situação alcançada em função da realização do Projeto Batukerê, da necessidade de captar

recursos e das exigências burocráticas daí advindas.

119 Recentemente, já em 2004, houve uma nova eleição para o CEAC, em que o presidente do D’Logun foireeleito contra uma outra chapa encabeçada pelo Dilazenze na pessoa de seu vice-presidente. Desde a sua

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341

A atual gestão do CEAC foi, sem dúvida, a que teve a maior visibilidade na mídia.

Em 2001, ocorreu na cidade o I Encontro de Dirigentes de Entidades Afro-Culturais que,

embora não tenha sido organizado pelo presidente do Conselho, a entidade apareceu como

promotora e, como resultado do encontro, foi elaborada uma carta de reivindicações ao

governo municipal que teve uma “boa repercussão”, como disseram120. Foi um dos raros

momentos de afrontamento dos grupos ao governo municipal, pois a carta pedia apoio e o

cumprimento de promessas. Mas o CEAC também foi para a mídia, especialmente para as

emissoras de rádio121, pelas denúncias de corrupção feitas por membros de alguns grupos

afro contra a diretoria do Conselho. Contudo, o longo processo de implantação do

Memorial da Cultura Negra, com suas várias inaugurações, contribuiu muito para deixar o

Conselho em constante evidência.

O Memorial

A intenção desta subseção é reunir informações que se encontram espalhadas ao

longo do texto e tentar tornar mais inteligível o que é e o que representa atualmente o

Memorial da Cultura Negra para os grupos afro de Ilhéus.

Aparentemente, a história do Memorial começa na campanha eleitoral de 1992 para

a prefeitura de Ilhéus com a promessa de construção do Centro Afro-Cultural. Quando essa

‘história’ começa a ser contada pelos integrantes dos blocos afro, o relato não apresenta um

autor para a idéia do espaço, trata-se de um “compromisso” assumido por um dos

candidatos a prefeito com os grupos afro através de Mirinho, então candidato a vereador.

fundação, ainda como CEACI, esta é a primeira vez em que o Dilazenze não participa da diretoria doConselho.120 Uma nota sobre a realização do encontro chegou a sair num jornal de circulação estadual.121 Episódio descrito por Sílvia Nogueira em sua comunicação “Falar na Rádio como Estratégia Política: UmRetrato Etnográfico do Racha entre Entidades Afro-Culturais de Ilhéus”, apresentada no Fórum de Pesquisa“Políticas e Subjetividades nos ‘Novos Movimentos Culturais’”, na 24ª Reunião Brasileira de Antropologia(Olinda, 12 a 15 de junho de 2004). A autora, também doutoranda do PPGAS/Museu Nacional – UFRJrealizou pesquisa sobre as emissoras de rádio de Ilhéus e sua tese encontra-se em fase de redação.

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342

Goldman (2000) faz uma descrição detalhada de todo esse processo e, a partir das

informações obtidas, apresenta o Centro Afro-Cultural como

“um prédio destinado a abrigar, expor e vender a ‘cultura afro’ local,onde academias de capoeira, blocos afro, vendedores de artesanato,mães e pais-de-santo jogando búzios, dividiriam um espaço quereceberia uma grande quantidade de turistas. Além de dar visibilidadeà ‘cultura afro’ local, o Centro funcionaria, pois, como umaimportante fonte de renda para os grupos e pessoas que fazem parte domovimento afro-cultural de Ilhéus.” (:320).

Ronaldo Santana, então candidato a prefeito que assumiu esse compromisso com os

grupos afro, aliou-se a Antônio Olímpio, considerado com mais chances de se eleger e

tornou-se seu vice-prefeito. O apoio dos grupos permaneceu porque o compromisso de

construção do Centro Afro-Cultural foi mantido por Antônio Olímpio. Integrantes de

diferentes grupos afro que participaram daquele processo, invariavelmente, afirmam que os

grupos trabalharam unidos pela eleição de Antônio Olímpio e que teriam sido responsáveis

por cerca de oito mil votos.

Apesar de Mirinho, principal articulador do apoio das entidades afro a Antônio

Olímpio, ter sido eleito presidente do CEACI em 1993 e ter participado do governo com

um cargo na secretaria destinada ao vice-prefeito, especialmente a partir do segundo ano de

mandato, aqueles foram anos difíceis para o movimento afro-cultural de Ilhéus. Somente

em 1995, depois de muita pressão dos grupos afro, segundo contam, o então prefeito doou

aos grupos um terreno que pertenceria ao governo municipal para a construção do Centro.

A doação foi um grande fato político: a prefeitura e os grupos organizaram uma grande

festa, a imprensa foi convocada e o prefeito fez, como pessoa física, a primeira doação em

dinheiro a fim de iniciar uma campanha de arrecadação para a compra do material para a

construção do Centro Afro-Cultural de Ilhéus. No entanto, a doação do terreno foi feita

antes de passar pela Câmara de Vereadores, que vetou o projeto. O Centro teria sido a

primeira grande conquista do movimento negro de Ilhéus a partir de um projeto político

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343

único, através do qual os grupos teriam demonstrado poder de mobilização e seriam

considerados uma força política importante no município.

A frustração do projeto do Centro e a falta de apoio do governo Antônio Olímpio

ao carnaval e aos grupos, dispersou o movimento. Nas eleições de 1996, os grupos foram

procurados pelos candidatos a prefeito. Algumas pessoas contam que numa reunião de

negociação de apoio a Jabes Ribeiro, o candidato que venceu aquelas eleições, os grupos

apresentaram seus ‘oito mil votos’ como capital e foram desafiados por ele a mostrá-los

elegendo um vereador que fosse seu representante, justamente Gurita, que se apresentava

como membro do movimento negro e que teria o apoio do prefeito para reapresentar o

projeto da construção do Centro na Câmara de Vereadores ‘se eleito fosse’. Alguns grupos

até apoiaram Gurita, mas também “trabalharam” para outro candidato a prefeito.

Gurita não obteve os votos necessários para sua eleição e ficou como suplente de

Gildo Pinto, candidato eleito que assumira a base eleitoral do D’Logun, que apoiou

Mirinho nas eleições de 1992. Gurita disse que se conseguisse assumir a cadeira em algum

momento, encaminharia o projeto do Centro. Mas Gildo Pinto também pretendia fazê-lo.

Contudo, consta que o projeto teria sumido da Câmara, dessa forma, nenhum dos dois o

apresentaria.

Ainda em 1997, o Centro Afro-Cultural voltou a ser comentado numa Sessão

Especial da Câmara por ocasião da Semana da Consciência Negra, sessão esta convocada

pelo único vereador eleito pelo PT e foi dele mesmo que veio a notícia de que a construção

do espaço estaria prevista no orçamento do município para o ano seguinte, segundo lhe

informou Moacir Pinho, ainda no cargo de gerente de ação cultural da Fundação Cultural

de Ilhéus.

Em 1998, nada aconteceu em relação ao Centro Afro-Cultural, a não ser que o

vereador Gildo Pinto, de acordo com o presidente do Dilazenze, teria conseguido encontrar

Page 345: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

344

o projeto de 1995 e desarquivá-lo, o que motivou uma nova conversa com o prefeito, que

teria se comprometido a levá-lo adiante. Em 1999, em nova conversa a respeito do tema, o

prefeito teria dito que a Petrobrás estaria construindo um Centro Cultural em Ilhéus e que

um bom espaço em seu interior poderia ser utilizado pelo CEAC provisoriamente como o

Centro Afro-Cultural, enquanto este não era construído pela prefeitura. Mais uma vez,

nada aconteceu, até porque nem mesmo a Petrobrás construiu seu Centro Cultural.

Em abril de 2000, a idéia do Centro Afro-Cultural começou a ficar mais concreta.

No dia 26 de abril, representantes de todos os grupos que compunham o Conselho, as

academias de capoeira e os terreiros de candomblé foram convidados a participar de uma

reunião convocada pela prefeitura cujo assunto seria a “potencialização social da cultura

afro”. Quinze minutos após o horário marcado, havia apenas representantes de três grupos

do CEAC, entre eles seu presidente, um representante do governo, Gurita, e um fotógrafo

da Assessoria de Imprensa esperando para fotografar o prefeito, além de mim. Pela

presença do fotógrafo, deduz-se que o anúncio de que a prefeitura estava para alugar um

espaço para a promoção de atividades afro-culturais deveria se tornar um fato político, mas

para isso seria preciso que todos os convidados comparecessem. A reunião foi adiada e

marcada outras duas vezes, e acabou acontecendo no dia 02 de maio, ainda que com

poucos participantes: cinco representantes de grupos do Conselho e dois de terreiros de

candomblé. Nesta reunião, houve também a participação do então secretário de

administração. Na ocasião, o governo revelou que já havia um acerto com o proprietário do

Clube 19 de Março para alugá-lo.

O Clube 19 de Março é originalmente um clube de dominó, ou seja, lugar onde as

pessoas se reúnem para jogar dominó, ao que parece, uma organização comum no interior

da Bahia e uma prática bastante difundida na cidade. Ao fim da tarde, em função talvez do

grande número de desempregados, é muito comum ver grupos de pessoas, especialmente

Page 346: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

345

homens, nas praças ou mesmo nas calçadas das ruas, jogando dominó e um outro tanto

deles assistindo ao jogo. Propriedade de família negra, com a maior parte de seus sócios

negros, o Clube 19 de Março é, ainda hoje, um espaço de lazer voltado para a população

negra. Sua localização, nas imediações da Av. Itabuna e no início de uma das ruas que

sobem para o bairro da Conquista, é privilegiada desse ponto de vista, pois não está longe

do Centro da cidade ao mesmo tempo em que pode ser facilmente freqüentado pelos

moradores do bairro ‘mais negro’ da cidade. O espaço possui dois andares e até hoje não se

sabe ao certo se a prefeitura alugou todo o clube ou só o andar inferior – nenhum membro

dos grupos afro nunca viu o contrato. Na prática, o Memorial, que até este momento ainda

não tinha este nome, funciona no andar térreo e as atividades do clube no superior.

Numa outra reunião com um outro representante do governo, desta vez em função

da implantação do Projeto Batukerê, integrantes do Dilazenze tomaram conhecimento de

que o espaço estava sendo denominado de “Casa da Cultura Afro”. No dia 19 de maio,

cerca de duas semanas após a reunião com os grupos, houve um evento relativamente

grande para a assinatura do contrato de aluguel. Vários telefonemas dos representantes do

governo diretamente envolvidos no projeto para o presidente do CEAC insistiam que ele

deveria convocar e apelar para presença do maior número possível de integrantes dos

blocos afro. No entanto, a programação do evento foi toda de bandas de pagode.

Um palanque foi armado em frente ao Clube. Em torno dele, faixas que não foram

confeccionadas pelos grupos agradeciam em seu nome: “Jabes é Axé – Entidades Afro”

(assinando); “Dilazenze – Rastafiry – Miny Kongo – Zambi Axé – Danados do Reggae –

Filhos de Ogum agradecem ao Pref. Jabes Ribeiro o Memorial da Cultura Negra”;

“Obrigado Jabes pelo Centro da Cultura Negra – Moradores da Av. Itabuna” (assinando);

Maria de Lurdes 2000 parabeniza o Pref. Jabes Ribeiro pela iniciativa do Memorial da

Cultura Negra”; “Obrigado Prof. Gurita por nos representar – Assoc. Desportiva das Ruas

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346

A B C” (assinando)... Só as faixas já seriam capazes de mostrar que o evento foi um grande

comício, mas além delas houve presença de vereadores e candidatos ao cargo e discursos

de alguns deles, além do secretário de administração e, é claro, do prefeito. Em nome dos

blocos afro, o presidente do CEAC foi convidado a assinar o convênio, mas foram

requisitadas também as assinaturas de pais e mães-de-santo presentes, cuja participação no

processo foi restrita a esse momento.

As faixas também revelam que ainda havia uma certa confusão entre os nomes

propostos para o espaço, mas o de Memorial da Cultura Negra já estava decidido pelo

secretário de administração. E de nada valeram os protestos posteriores de membros dos

grupos afro, pois parece que o nome já constava do convênio e não poderia ser mudado.

Nos meses subseqüentes, pouco aconteceu em relação ao Memorial. O lançamento

da candidatura de Gurita, no próprio Clube 19 de Março em julho de 2000, foi uma

oportunidade para o prefeito referir-se ao Memorial como algo em prol do movimento

negro de Ilhéus que seria plenamente viabilizado em seu segundo mandato. Os meses se

passaram e a campanha eleitoral também. Praticamente todos os grupos afro apoiaram

Jabes Ribeiro, que foi reeleito. Quanto ao Memorial, a única iniciativa tomada a seu

respeito foi uma pintura externa com motivos afro. Sua inauguração, ou a primeira delas,

ocorreu no dia 20 de Novembro daquele ano, Dia da Consciência Negra.

Em fevereiro de 2001, em reunião com o prefeito, o presidente do Dilazenze foi

informado de que seria o administrador do Memorial, cuja nomeação sairia no fim do mês,

mas nesse momento não se sabia a que órgão do governo o espaço ficaria ligado. Dizia-se

que poderia ser à Fundação Cultural. Por outro lado, uma nova secretaria que começava a

funcionar no novo mandato requisitava o Memorial para si. Tratava-se da Secretaria de

Esportes e Cidadania, cujo secretário era um político antigo da cidade, ex-presidente da

Câmara e com cinco mandatos de vereador, mas que não havia sido reeleito no pleito de

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347

2000. Além disso, um outro interessado no Memorial, Gurita, também não eleito, era o

subsecretário de Esporte dessa secretaria. Segundo um dos dirigentes dos blocos afro, a

secretaria teria sido concebida em substituição a uma promessa de campanha do prefeito ao

deputado federal Pastor Reginaldo, que tem as cidades de Ilhéus e Itabuna como base

eleitoral. Este teria solicitado a Jabes que implantasse em seu governo uma Secretaria de

Assuntos Afro, a ser chefiada pelo mesmo político, seu aliado na cidade. O prefeito, então,

propôs esta outra, que seria mais abrangente, mas que poderia atender ao público desejado

pelo deputado.

Desde sua inauguração, o Memorial passou a ser utilizado para aulas de capoeira de

uma academia e para aulas de dança afro dadas por um componente do Leões do Reggae a

crianças de sua comunidade. Esta foi a informação do presidente do bloco, que afirmou

que as aulas faziam parte de seu ‘trabalho social’. Também passaram a ser realizadas nele

algumas reuniões do CEAC. Durante todo o ano de 2001, foram feitas promessas de obras

no espaço e de nomeação do presidente do Dilazenze como seu administrador. Sua

preocupação, além de seu emprego, evidentemente, era que houvera primeiramente um

evento de assinatura do convênio, depois o espaço fora pintado e inaugurado e ainda não

estava funcionando. Isso poderia denotar “incompetência” dos grupos afro “para a

sociedade”, já que ninguém sabia o que estava acontecendo. Nesse momento, era a

Secretaria de Esporte e Cidadania a responsável pelo Memorial, mas por ser uma secretaria

nova, alegava que não tinha recursos disponíveis para dar encaminhamento às obras

necessárias e muito menos à contratação do administrador.

A carta resultante do I Encontro de Dirigentes de Blocos Afro de Ilhéus fazia

referências ao Memorial e informava a população das condições em que este se encontrava

e do não cumprimento das promessas de obras feitas pelo governo. Aparentemente, isso

fez com que a primeira dama fosse até o espaço e solicitasse uma vez mais – isso já havia

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348

acontecido outras vezes – um relatório sobre o que ainda era necessário fazer para que o

Memorial começasse a funcionar. O prefeito disse ao presidente do Dilazenze que havia

determinado que a cozinha – uma das propostas é que houvesse um restaurante de comida

afro-baiana no Memorial – fosse instalada até o dia 20 de Novembro. Isso alertou os

grupos afro de que o prefeito desejaria, com a instalação da cozinha, fazer uma nova

inauguração e que o movimento afro-cultural já estava “virando piada” na cidade. A

cozinha não foi instalada e apenas uma feijoada foi realizada no Memorial durante a

Semana da Consciência Negra daquele ano, com pouca participação do governo.

As obras imprescindíveis para o funcionamento do Memorial – instalação da

cozinha e banheiros, além de ‘boxes’ para que cada grupo afro pudesse expor e vender

produtos – só foram mesmo realizadas no ano seguinte. No aniversário da cidade, em

junho de 2002, com a presença de autoridades importantes do Estado da Bahia, como o

governador César Borges, o senador Antônio Carlos Magalhães, além do então candidato a

governador, Paulo Souto – 2002 foi novamente ano de eleições –, o Memorial foi

reinaugurado. No entanto, ele permaneceu fechado até janeiro de 2003, pois só em

dezembro o presidente do Dilazenze foi finalmente nomeado administrador do lugar,

embora com salário 50% menor do que o recebido por pessoas com cargos equivalentes ao

seu. E, diferentemente do que fora acertado, desde a real abertura do Memorial, a

prefeitura não repassou sequer um centavo para o seu funcionamento.

Pela falta de investimento da prefeitura, por rixas internas ao movimento negro,

pela ausência de uma política deliberada de mobilização dos grupos e pela própria falta de

estrutura destes, o Memorial tem funcionado, mas está longe de alcançar os objetivos

inicialmente propostos para o Centro Afro-Cultural. Depois de uma primeira tentativa de

administrar em conjunto o restaurante, os grupos então responsáveis desistiram dele, que

foi “assumido” pelo Dilazenze. Na verdade, apenas este grupo tem feito uso do Memorial

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349

com exposição de produtos e promovendo boa parte de suas atividades nele. Outros grupos

ocuparam seus boxes com fotos, mas apenas isso. Muito pouco para algo tão desejado.

À

Conforme anunciado na introdução deste capítulo, seu objetivo foi apresentar os

blocos afro de Ilhéus como ‘territórios negros’, mas no sentido de ‘territórios existenciais’,

nos quais se produz um modo de subjetivação negro a partir de sua relação com o

candomblé como ‘fonte’ de ‘cultura negra’ e das diversas atividades promovidas pelos

blocos, especialmente aquelas que objetivam a preparação para o carnaval e o próprio

desfile, no qual mais se expressa seu desejo de singularidade. Esta forma de se colocar no

mundo permite aos grupos afro sua constituição enquanto movimento, ou seja, enquanto

produtor de uma vontade de sair de um lugar em direção a outro vislumbrado como

melhor. Contudo, também torna possível que a maioria aja sobre eles impedindo tal

movimento a partir de sua singularidade de grupos racialmente organizados. A isso

denomina-se racismo.

A própria apresentação dos processos de singularização produzidos pelos blocos

afro como territórios negros permitiu entrever que outras formas de subjetivação são

produzidas nos mesmos processos, como as que geraram o Projeto Batukerê e a formação

dos blocos como grupos de dança ou bandas, que fazem de seus componentes artistas. A

idéia de que as atividades, a estética, a música, enfim, os blocos afro surgiram a partir do

desejo de diferir, da produção de uma “subjetividade dissidente” (Guattari 1986),

encaminha a discussão para pensar sobre que desejos e modos de subjetivação estão em

jogo nessas outras formas de conceber o bloco afro. Em termos gerais, este é o objetivo do

próximo capítulo.

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350

Encontros 5

BLOCO AFRO: CAPTURAS

“Criatividade. Delito cada vez menos freqüente.”(Galeano 2000)

O Grupo Cultural Olodum, de Salvador, constitui o exemplo mais extremo de uma

tensão que afeta todos os blocos afro que conseguem atuar além do período carnavalesco e,

de maneira especial, aqueles que possuem uma base comunitária. O caso do Olodum pode

ser chamado de extremo não só porque ele é o bloco afro mais conhecido do Brasil, mas

principalmente porque ele se tornou famoso pelas duas vertentes seguidas e expôs a tensão

entre elas, criando mesmo a idéia de que aí existe uma oposição. Entre os grandes blocos

afro de Salvador, o Ilê Aiyê é tido como o representante mais famoso da vertente

associativa, comunitária e o Ara Ketu é o grupo musical, são os artistas1. É provável que

haja uma tensão também nesses blocos, mas eles fizeram opções claras, a partir das quais

criaram imagens de si que direcionam suas ações e fazem-nos manter uma linha em nome

da própria sobrevivência do bloco2, ainda que tenham de ceder vez por outra: o Ilê Aiyê,

1 Numa entrevista publicada no Jornal Correio da Bahia (27/04/99), pergunta-se a João Jorge se o “Olodumestaria hoje mais próximo da visão de negritude do Ilê Aiyê ou do Ara Ketu”, o que demonstra umreconhecimento dessa oposição.2 Penso ser legítimo especular que se o Ilê Aiyê introduzisse instrumentos eletrônicos e adotasse o formato detrio elétrico, por exemplo, ele perderia muito do que garante seu sucesso, que é sua singularidade baseadanuma idéia de ‘pureza’.

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351

por exemplo, criou um bloco alternativo para turistas e pessoas brancas e o Ara Ketu,

diferenciando-se das bandas de axé music, mantém uma escola comunitária. O caso do

Olodum é especial porque ele já fez opções distintas e tanto na forma associativa –

investindo nos ‘trabalhos sociais’ com a comunidade – quanto como grupo artístico, o

bloco alcançou sucesso, embora não tenha conseguido mantê-lo de maneira estável. A

experiência do Olodum mostra que as duas posições são dificilmente conciliáveis: no

momento em que uma está em alta, a outra parece cair. É preciso fazer escolhas sempre.

Embora opostas, ambas as opções são produzidas por uma mesma forma de

subjetivação. Tanto no caso dos ‘trabalhos sociais’ dos grupos afro quanto na vontade de

seus membros de obter renda com suas atividades artísticas, têm-se aí formas do que

Guattari chama de “subjetividade capitalística” (Guattari e Rolnik 1996:15) produzindo o

desejo de ‘incluir’ quem supostamente está ‘fora’, ou seja, aqueles que estariam excluídos

do ‘sistema’ e de seus ‘benefícios’, assim como o desejo de ‘estar incluído’, de buscar

esses mesmos benefícios para si e para outros através do trabalho como artista e/ou dos

imaginados prestígio e poder de ser ‘dono de bloco’, ou ainda fazendo do bloco uma

empresa que produz lucro.

É preciso deixar claro que a afirmação de que tais desejos são produzidos por um

modo de existência ‘capitalístico’ não significa negar a atuação de outras formas de

subjetivação. Retomando ainda mais uma vez o que já foi bastante ressaltado ao longo

deste trabalho, tudo é produzido a partir de encontros, agenciamentos dos mais diversos

fluxos que são, por sua vez, produzidos a partir de tantos outros agenciamentos. Entretanto,

é próprio do capitalismo agir por sobrecodificação e integração diferencial através da

captura de modos de subjetivação dissidentes3. Assim, agenciamentos produzidos pelo

candomblé, por uma idéia ampla de família, pela criação de um novo território existencial

3 Questão a ser retomada adiante.

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352

ou simplesmente por uma dada concepção de lazer geram desejos de ‘solidariedade’, de

‘comunidade’; tais desejos podem vir a ser capturados por uma visão de mundo ou

subjetividade definida pela idéia de onguização4 do mundo, fruto da subjetividade

capitalística tanto quanto ‘o mercado’, que captura desejos de ‘arte’, de ‘música’, de

diferir. O que é interessante notar e guardar neste momento da exposição é que, como não

poderia deixar de ser, a subjetividade capitalística transforma todos esses desejos em

trabalho: trabalhos que podem ser chamados de ‘artísticos’ – embora sejam comumente

chamados apenas de ‘trabalho’ – ou ‘trabalhos sociais’.

A proposta deste capítulo é, então, descrever os agenciamentos que constituem os

blocos afro tanto em seu caráter ‘associativo’ quanto ‘artístico’ ou ‘empresarial’. A

primeira seção apresentará os elementos que são levados em conta por membros do bloco

para concebê-lo como um ‘coletivo’, como um ‘grupo’ de fato. Desse ponto de vista, um

bloco afro é definido por suas atividades comunitárias, as quais, como pode ser percebido

na trajetória do Dilazenze, vão ganhando novos significados à medida que o grupo entra

em novos agenciamentos. Assim, uma mesma atividade que num primeiro momento

acontecia pela ‘festa’ ou para angariar recursos para o bloco, no momento seguinte pode

ganhar o objetivo de ‘aumentar a auto-estima’ da comunidade e ser pensada como um

‘trabalho social’ do grupo e, algum tempo depois, pode ser uma estratégia para ‘promover

a inclusão social’ de crianças e adolescentes – ‘forma’ pensada a partir da implantação do

Projeto Batukerê.

A segunda seção deste capítulo será dedicada, então, ao Projeto Batukerê: que

encontros o produziram, como se deu seu desenvolvimento, que relações e tensões

4 Estou chamando de ‘onguização’ a uma forma de subjetivação que homogeneiza a ação, fazendo com queos mais diversos tipos de organização, não apenas as denominadas ‘organizações não-governamentais’, taiscomo entidades filantrópicas, religiosas, comunitárias e governamentais, formulem suas práticas e objetivossegundo um modelo considerado característico dessas organizações. Sendo uma forma de subjetivação, elatambém atinge a mídia – e é maciçamente propagada por ela – e a todos nós, fazendo-nos pensar o mundoatravés de valores como ‘voluntariedade’, ‘solidariedade’, ‘participação’ etc. O tema será retomado adiante.

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353

decorrentes do projeto perpassam o Dilazenze. Nesse caso, o grupo não é percebido apenas

por seu caráter ‘associativo’, mas, fundamentalmente, ‘social’ no sentido de um grupo que

trabalha para uma coletividade e não diretamente por si mesmo.

A princípio, a definição de um bloco afro por seu caráter coletivo (associativo ou

social) pode parecer ‘natural’ já que ele geralmente surge de uma coletividade, de um

“espaço social”, como ressaltado no capítulo anterior. Entretanto, os blocos afro também

costumam ter um ‘dono’ e podem privilegiar seu desenvolvimento como um grupo de

artistas ou como fonte de renda para alguns membros. Nesse caso, são enfatizados seus

aspectos ‘artístico’ ou ‘empresarial’, investimentos que costumam gerar tensões com o

bloco como coletividade ou para cuidar da coletividade. Apesar desses aspectos serem tão

‘naturais’ aos grupos afro quanto seu caráter associativo, já que um bloco afro surge como

entidade carnavalesca e necessariamente artística, eles costumam ser moralmente

reprovados. Algumas das implicações dessas posições serão enfocadas na terceira seção.

Bloco afro: “forma associativa”

“Eu estou falando essas coisas porque, como o Olodum é muito citadocomo exemplo de sucesso, é preciso que a gente saiba exatamente queo sucesso tem um preço5. Sucesso tem as dificuldades, sucesso tem asperdas. À medida que o Olodum cresceu, se organizou, andou pelomundo inteiro, ganhou muitas coisas, mas perdeu muito. Muitaspessoas que chegaram ao Olodum pela forma associativa, pelo seucaráter de uma organização do movimento negro, de cultura afro-brasileira, depois continuaram no Olodum pensando no Olodum comoum emprego público.” [grifo meu] (Vários 1999:62).

A “forma associativa”, termo pinçado da citação acima de João Jorge Rodrigues,

presidente do Olodum, é como, em geral, nasce o bloco afro: fruto do desejo de pessoas

que compartilham um espaço social de família, de vizinhança, de futebol, de associação de

5 Trecho retirado de um debate sobre a economia do carnaval do qual João Jorge participava em 1998. Nessedebate, a intervenção de João Jorge seguiu-se à de Marcelo Dantas, possivelmente o autor mais citadoquando se trata de pensar sobre o “sucesso” do Olodum como uma empresa. Assim, vários trechos de sua

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354

moradores ou mesmo de amigos que saíam juntos no carnaval em algum outro tipo de

bloco ou até em outro bloco afro. Mas o termo pode significar mais do que um ‘formato’ se

estiver fazendo referência a um bloco afro, especialmente depois que “a crise de

identidade” do Olodum estabeleceu que pode haver ‘formas’ diferentes de orientar o bloco,

o que fica claro nas palavras de seu presidente:

“A base do Olodum é a cultura, a educação, a cidadania e umamúsica originária de tudo isso. (...) No semestre passado, voltamos afazer ensaios gratuitos aos domingos, no Largo do Pelourinho,realizamos uma vasta programação sobre os 200 anos da Revoluçãodos Búzios, começamos a publicar de novo o Jornal do Olodum,gratuitamente, e acabamos de inaugurar o prédio novo da EscolaCriativa Olodum.

(...) Não é possível se aproximar da visão do Ara Ketu, hoje, poisisso significaria o fim do Olodum como organização. Falo isso porquepassamos recentemente por uma crise de identidade. Sempre noscaracterizamos como um bloco de negros com mestiços e brancos, queatua como um braço forte do movimento negro brasileiro, para fazerduras denúncias sociais, ter uma ligação na luta contra a violênciapolicial e ser uma expressão da população negra pobre e sem voz.Esse é o nosso perfil.

(...) No show business, negritude significa possibilidade de ganhardinheiro e se dar bem. Essa palavra, no entanto, deveria significaroutra coisa: consciência negra, atitude, gesto político, diferencial decomportamento, visão estratégica para a população negra...” (Correioda Bahia, 27/04/99).

A citação acima é composta de trechos selecionados de uma entrevista de João

Jorge quando ele voltava a ocupar o cargo depois de alguns anos afastado da presidência6.

Sua ‘missão’ seria reerguer o bloco, que na década de 90 foi “abalado por uma crise

organizacional que esvaziou suas pretensões socioculturais”, conforme consta da

apresentação da entrevista. Percebe-se nesses trechos que João Jorge evidencia uma

oposição entre o Olodum enquanto associação, organização e o Olodum como uma

empresa; entre o Olodum constituído como um movimento social e o Olodum grupo

musical.

fala, como o supracitado, constituem respostas às colocações anteriores de Dantas (Vários 1999:51-6). Vertambém Dantas 1994; 1996 e Fischer 1993.6 Note-se que João Jorge Rodrigues nunca se afastou totalmente da direção do Olodum.

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355

Em 1997, era discussão recorrente entre os blocos afro de Ilhéus a aprovação ou

não das mudanças ocorridas no Olodum: dever-se-ia buscar os caminhos do Olodum

conhecido pelos trabalhos comunitários ou do Olodum daquele momento, famoso por se

tornar uma empresa geradora de empregos, mas também de renda e de lucro, e por ser uma

banda que excursionava pelo país e pelo mundo, vendia muitos discos e ganhava altos

cachês? A opção pela segunda tendência parecia bem mais atraente aos blocos afro de

Ilhéus, embora qualquer declaração nesse sentido estivesse sempre cercada de muitas

ressalvas. Mas naquele momento, essas escolhas eram apenas especulativas, pois nenhum

dos blocos precisava realmente fazê-las: ser um grupo musical de sucesso ou investir em

trabalhos sociais não eram caminhos excludentes porque havia poucas possibilidades de

realização de um ou de outro.

O momento atual é um pouco diferente, ao menos para o Dilazenze, que se encontra

frente a duas propostas de investimento que correspondem a formas distintas de concepção

de bloco afro: por um lado, há um trabalho social com crianças e adolescentes da

‘comunidade’ através de oficinas de atividades concernentes ao grupo, como dança afro e

percussão; por outro, um grupo de samba/pagode formado por componentes do Dilazenze

que se apresenta em shows. Na disputa por espaço no interior do bloco, cada um desses

projetos foi assumido como prioritário por grupos diferentes, opondo, como no caso do

Olodum, o bloco afro como movimento comunitário e voltado para os ‘trabalhos sociais’

ao bloco afro como grupo formado por artistas que almejam fazer dele um meio de

sobrevivência financeira. Por ser o único bloco afro de Ilhéus a apresentar tais

possibilidades, ainda mais do que nos capítulos anteriores o Dilazenze será o foco das

descrições e análises desta última parte do trabalho.

Apesar da ‘forma associativa’, com raras exceções, os blocos afro possuem ‘donos’.

Em geral, o dono de um bloco é seu fundador (ou um deles) ou alguém que o herdou ou

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356

“assumiu”; sua função no interior do bloco comumente é a de presidente, além de ser seu

representante na maioria das situações de encontro dos blocos afro. Alguns ‘donos’

afirmam que seus blocos estão mesmo “registrados” em seus nomes, ou seja, o grupo é de

sua propriedade, como se fosse uma empresa.

A longevidade do bloco afro geralmente depende da capacidade de seu ‘dono’ de

geri-lo com eficácia e de garantir sua base comunitária. É claro que há grupos que já

nascem com alguns elementos, ao menos em tese, favoráveis a uma vida longa, como uma

família extensa ou com uma ligação estreita com um terreiro de candomblé, ou ambos,

como o Ilê Aiyê e o Dilazenze. Porém, estes blocos são exemplares para mostrar que nada

é determinante e o que é apontado como algo que pode ajudar o bloco num momento,

como a família, pode também ser considerado prejudicial ao seu desenvolvimento.

Bloco afro e família

No capítulo anterior, ao definir os blocos afro como ‘territórios negros’, busquei

enfatizar que antes de serem “espaços sociais negros” no sentido proposto por Agier

(1992:71), os grupos afro são espaços sociais7. Em geral precedido por algum outro tipo de

organização, ainda que apenas de um grupo de amigos, o bloco já costuma nascer com um

caráter associativo forte, tanto mais se sua base de sustentação for uma família numerosa e

moradora da mesma região, o que não é raro nas comunidades situadas em periferias. Os

casos do Ilê Aiyê, em Salvador, e do Dilazenze em Ilhéus, são exemplares desse tipo de

situação e se assemelham nas vantagens e nos problemas que a presença intensa da família

pode provocar.

Agier (2000) conta que Mãe Hilda, mãe do presidente do Ilê Aiyê, instalou-se na

rua do Curuzu com seus pais em 1938, no mesmo lugar que se encontra até hoje. Ela teve

cinco filhos, sendo Vovô, presidente do grupo, o mais velho deles e, aparentemente, todos

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357

são moradores do local, onde ainda habitam netos, outros familiares e amigos (:113). Na

mesma casa funcionava até recentemente a sede do grupo8 e o terreiro de candomblé Ilê

Axé Jitolu, do qual Mãe Hilda é a mãe-de-santo.

No caso do Dilazenze, não posso datar exatamente quando a antiga chácara onde

hoje estão situados o terreiro Tombency Neto, a sede do grupo e as moradias da mãe-de-

santo, seus irmãos e filhos foi comprado por seus pais, mas é certo dizer que a família o

ocupa desde, pelo menos, finais dos anos 30. Ela teve quatorze filhos, dos quais,

atualmente, doze habitam o mesmo terreno ou suas imediações, que também constituíam a

chácara antes do desmembramento dos terrenos. Além disso, alguns netos já constituíram

família e também moram no local. O mesmo se passa com alguns dos irmãos da

‘matriarca’ do Dilazenze, o que significa dizer que uma grande parte da vizinhança guarda

relações de parentesco entre si.

Essas informações têm o propósito de enfatizar que nos casos do Dilazenze e do Ilê

Aiyê, há, anteriormente à formação do bloco, uma base comunitária que é tanto familiar

quanto dada pelo candomblé. No Dilazenze, qualquer atividade de reunião da família

torna-se uma grande festa. E isso dá ao grupo a garantia de ter sempre um bom público em

suas atividades, especialmente se forem para crianças: filhos, sobrinhos, primos e filhos de

sobrinhos e primos dos diretores do grupo já formam um contingente considerável.

A base familiar do Dilazenze é apontada por muitas pessoas, inclusive por

dirigentes de outros grupos afro de Ilhéus, como a responsável pela longevidade do grupo.

Quando ocorrem conflitos internos, eles são resolvidos com a intervenção materna – ou

divina nos casos mais difíceis9. E, diferentemente do que ocorreria numa outra situação, o

fato de tratar-se de uma família faz com que o rompimento de alguém com o bloco

7 Ver Encontros 4.8 Uma nova sede de amplas dimensões foi inaugurada há poucos meses em frente à antiga.9 Ver Encontros 4 para um exemplo que permite essa afirmação.

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358

provoque o afastamento da pessoa, o que costuma ser momentâneo, mas não uma

segmentação que levaria à formação de um novo grupo e, assim, a um rompimento

definitivo.

A análise que Agier faz da importância da família para a longevidade do Ilê Aiyê

cabe perfeitamente para o Dilazenze. O autor diz que:

“O ancoradouro da rede nessa casa (de Vovô) é um dos nós da históriado Ilê Aiyê. A família tende a fechar o grupo num movimentocentrípeto – freando de uma certa maneira a tendência ‘natural’ dasredes a se expandir em estrelas sucessivas – tudo nele dando uma basesólida, estrutural, para durar. Esse dilema entre a rede e a família, aabertura e o fechamento – e, de uma certa maneira, entre a alteridade ea identidade – se reencontrará em toda a vida da futura associação IlêAiyê, provocando comentários críticos, conflitos, rupturas, masassegurando também a perenidade do bloco.” (Agier 2000:67).

Ainda de acordo com Agier, o sentimento de unidade numa associação

carnavalesca depende da eficácia de “grupos rituais” de “criar identidade e ligações sociais

fortes” entre seus membros. Termos como “casa”, “comunidade” e “família” teriam essa

função (2000:87). Para Agier, parte do sucesso do Ilê Aiyê vem de sua capacidade de se

fazer conceber como uma grande família, uma “família simbólica”. A composição dessa

imagem de ‘família’ dar-se-ia em função, entre outras coisas, da “figura ritual e social” de

Mãe Hilda (:105), da numerosa presença feminina que daria ao Ilê uma forte idéia de

tradição e ênfase nos valores morais, ou seja, “uma respeitabilidade moral e um ambiente

familiar” (:103) e de uma relação familiar dos membros entre si – em 1992, 72,8% dos

associados possuíam ao menos um parente no bloco (:105).

Entretanto, Agier também atribui à forte presença familiar a existência de uma

tensão no Ilê Aiyê entre permanecer ligado ao lugar, às relações e aos valores de origem e

tornar-se, de fato, uma “instituição” “econômica (uma empresa no sentido liberal), social

(uma associação direcionada a seu bairro) e política (um componente do movimento negro

brasileiro)” (2000:114). Seu argumento é que o mesmo “espírito de família” que envolve

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359

os associados em função do caráter indissociável entre o grupo, o terreiro, as casas em que

vivem o presidente e sua família, também representaria um obstáculo à presença da

entidade “na vida da cidade”, ou seja, como uma instituição atuante em relações que

estariam para além da família e do bairro. Aliás, especialmente no que concerne às relações

políticas do bloco, para Agier a tensão estaria representada na permanência de

“características familiares” tais como “personalização de poder, luta das redes, atração

pelas soluções clientelistas, economia sem transparência”10 que estariam em oposição aos

“princípios universalistas da política”. Tais características ‘explicariam’ “as dificuldades

políticas, assim como estratégicas e organizacionais dos agrupamentos de base associativa,

local ou familiar, em geral.” (2000:115)11.

No Dilazenze, quando se deseja homenagear ou agradar alguém, diz-se que a

pessoa “já faz parte da família Dilazenze”. E se é alguém que passa a colaborar com o

grupo, brinca-se dizendo que a pessoa “é um agregado”, ou seja, alguém que vive no grupo

como se fosse da família. Assim como no Ilê, também no Dilazenze essas declarações

remetem a uma ‘família simbólica’, embora nem tão simbólica assim: neste grupo, a quase

totalidade da diretoria e dos principais membros são da mesma família; nos anos 80, entre

os quinze diretores do Ilê, estavam Vovô, sua mãe (“madrinha do bloco”), sua irmã, seu

irmão, sua esposa e um cunhado (Agier 2000:67) e em 1995, além do próprio Vovô e de

sua esposa, também sua mãe, um irmão e uma irmã ainda faziam parte da diretoria do

bloco e duas irmãs trabalhavam como professoras na Escola Mãe Hilda (Agier

2000:100;113).

10 No original “l’économie souterraine”.11 A atribuição de Agier de “características familiares” a relações políticas que, segundo sua argumentação,claramente deveriam ser diferentes, é uma forma usual de produzir explicações para práticas sociais que nãoseguem os ‘modelos’ esperados. As práticas políticas são especialmente propícias para essa forma deabordagem, na qual se afirma que ‘a política’ deveria funcionar conforme regras e conceitos que compõem ‘osistema’ e, diante de uma outra forma de ‘funcionamento’, esta é explicada por características muitoparticulares dos agentes sociais (ver Goldman e Sant’Anna 1999 para uma crítica a este tipo de abordagemnos estudos sobre o voto no Brasil).

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360

Costuma-se dizer que o sucesso do Dilazenze deve-se, em parte, à sua “forte base

familiar”. Por outro lado, a organização do grupo sobre uma estrutura totalmente familiar

pode ser apontada como um problema. Uma situação paradigmática ocorreu durante um

curso de formação de lideranças promovido por uma empresa privada em parceria com a

prefeitura de Ilhéus12. Especificamente neste dia, o Grupo Dilazenze estava representado

por três pessoas: o presidente, o vice-presidente – seu irmão – e o artista plástico que

costuma colaborar com o grupo13. Uma das dinâmicas consistia em que representantes das

entidades apresentassem o que entendiam como os pontos forte e fraco de sua organização.

O artista plástico do Dilazenze repetiu o que é uma espécie de senso comum sobre o grupo

a respeito dos benefícios de sua “forte base familiar”. A apresentação do que seria o ponto

fraco seria após um intervalo, durante o qual o presidente do grupo fez uma pequena

repreensão ao artista plástico dizendo-lhe que o enaltecimento da família poderia dar a

entender que o Dilazenze é um grupo fechado, que dificulta a inserção de não membros da

família, ao que este último retrucou dizendo ser ele mesmo um exemplo do contrário.

Entretanto, ambos, em diferentes situações, reconheceram o quanto é difícil para alguém

não pertencente à família interferir na direção do grupo. O próprio artista plástico só

conseguiu fazê-lo por algum tempo por ter se tornado o principal interlocutor do presidente

do Dilazenze. Acrescente-se ainda que nos momentos de conflito interno, é relativamente

comum as pessoas que não fazem parte da família serem acusadas de provocar intrigas

entre os familiares, o que, em geral, acaba por afastá-las do grupo.

12 Trata-se do “Projeto Maxitel Comunidade Líder”, um curso promovido por essa empresa telefônica emconvênio com prefeituras e organizado por uma empresa de consultoria em administração. A Secretaria deAção Social em conjunto com a empresa de consultoria selecionou dez entidades do município para o curso,desenvolvido em módulos ao longo do segundo semestre de 2001, sendo o Dilazenze o único grupo afro, naverdade, o único grupo ‘cultural’, embora ele tenha sido escolhido claramente em função do Batukerê. Asdemais entidades eram filantrópicas ou associativas, como a de diabéticos ou das associações de moradoresde Ilhéus.13 Tratava-se do primeiro dia do curso. Tendo chegado em Ilhéus naquela semana para o último período detrabalho de campo, fui convidada pelos participantes do Dilazenze a ocupar a quarta vaga a que eles tinham

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361

No retorno do intervalo do curso, foi solicitado que as entidades falassem sobre seu

ponto fraco. O vice-presidente do Dilazenze declarou que também era a família,

argumentando que, no caso do Projeto Batukerê, muitos pais das crianças são irmãos ou

primos dos dirigentes do grupo e não dão apoio ao projeto: “a própria família não apóia

como deveria”. Mas esta não foi a única ‘queixa’ em relação à ‘família’ colocada pelo

vice-presidente. Por ocasião de uma reunião da diretoria do Dilazenze, ele também disse

que o fato de serem todos da mesma família “atrapalha[va]” muito o grupo, pois “ninguém

se sente na obrigação de ser formal, profissional... Fica um ti-ti-ti e ninguém conversa

direito”, disse ele numa crítica direta ao presidente.

Em suma, dependendo do ponto de vista, a família pode mesmo ser o ‘ponto forte’

– “base”, público nos eventos, obstáculo para a segmentação – ou o ‘ponto fraco’ do

Dilazenze – dificuldade de integração de pessoas de fora, informalidade excessiva, intrigas

familiares, indissociação entre os espaços do grupo e da família.

Além da “base familiar” do Dilazenze, também o Terreiro Tombency Neto costuma

ser apontado como um elemento importante para perenidade do grupo e de sua forte

relação com a comunidade. A representação do terreiro como local de abrigo, de caridade e

de família não é exclusividade do candomblé; ela é própria da maior parte dos templos

religiosos. Mas a figura da mãe-de-santo extrapola o domínio religioso. Assim, tanto o Ilê

Aiyê quanto o Dilazenze, como outros diversos grupos afro, foram beneficiados pela

aglomeração de pessoas e pelas relações estabelecidas a partir do candomblé. As idéias de

família e de solidariedade mútua necessariamente permeiam a organização dos terreiros. E,

dada a indivisibilidade dos espaços entre eles e os blocos citados, além das presenças

muito ativas das mães-de-santo na formação desses, é presumível supor que ambos já

tenham nascido com redes suficientemente numerosas capazes de garantir suas existências

direito: seria uma forma de observar o curso – vontade que eu manifestara – e de me capacitar para auxiliá-

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362

e o público de qualquer atividade. Referindo-se ao Ilê Aiyê, Moura chama a atenção para a

relação com a estrutura organizacional do candomblé que faz com que algumas funções

sejam abarcadas pelo bloco, como “distribuir comida a crianças mais pobres, manter uma

pequena escola com subsídios governamentais ou não-governamentais e, sobretudo,

garantir uma referência forte de identificação para seus associados históricos.” (Moura e

Agier 2000:371).

Bloco afro e trabalhos sociais

Retomando uma das citações do presidente do Olodum, a afirmação de que “a base

do Olodum é a cultura, a educação, a cidadania e uma música originária de tudo isso”

(Correio da Bahia 27/04/99), dá a entender que ‘cultura’, ‘educação’ e ‘cidadania’ seriam

uma forma de ‘resultado’ da música, algo gerado por ela. As cobranças feitas aos blocos

afro de Ilhéus por parte de representantes de organizações não-governamentais, do

governo, de partidos de esquerda e de movimentos negros chamados de políticos têm essa

concepção como premissa, como se a proposta original dos diretores do Olodum fosse a

realização de trabalhos com a comunidade, sendo o bloco afro a forma de fazer a

intervenção. Tratando-se do bloco afro mais famoso e importante do país, o Olodum torna-

se, então, o modelo do que é um bloco afro e de como ele deve agir.

Antes do Dilazenze implantar o Batukerê, o Olodum era a principal referência do

que um bloco afro deveria ser em função do trabalho social realizado pela entidade com

crianças e adolescentes da comunidade do Maciel/Pelourinho em Salvador. Pessoas não

pertencentes aos blocos afro de Ilhéus costumavam cobrar destes que tivessem o mesmo

trabalho feito pelo Olodum, sem sequer levar em consideração as diferenças de estrutura

entre os grupos de Ilhéus e o mais famoso bloco afro do Brasil. A fim de refutar a idéia de

que esse trabalho seria inerente à definição de bloco afro, o que é recorrentemente

los na redação do projeto final de captação de recursos para a entidade previsto pelo curso.

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363

argumentado nas críticas aos grupos ilheenses, o presidente do Dilazenze lembra e enfatiza

que os trabalhos sociais do Olodum começaram por uma “necessidade” do bloco de

garantir a segurança dos freqüentadores dos ensaios, ameaçada pela violência local.

O primeiro trabalho social do Olodum foi a Banda Mirim que, de acordo com um

depoimento reproduzido por Nunes (1997:93), teria sido uma iniciativa de Neguinho do

Samba, mestre de bateria do bloco e ‘inventor’ do samba-reggae14. A Banda Mirim passou

a fazer parte do projeto “Rufar dos Tambores”, o primeiro do grupo, criado em 1984 pouco

depois do Bloco Olodum passar a ser chamado de Grupo Cultural Olodum. Em 1991 foi

criada a Escola Criativa do Olodum como um desenvolvimento do projeto anterior, que em

1994 chegou a implantar o ensino formal de 1a a 4a séries (:53). Esta foi uma experiência

de curta duração, pois a partir de 1997, “em virtude das muitas dificuldades”, a Escola

voltou a oferecer somente cursos informais, como teoria musical, dicção de voz, percussão,

dança, teatro de bonecos, mas também inglês, fotografia e informática (:130).

Entre dirigentes dos blocos afro de Ilhéus, também costuma-se dizer que os

primeiros convênios do Olodum teriam beneficiado bastante o grupo e garantido parte de

sua infra-estrutura de bloco e banda através, por exemplo, do uso de instrumentos

adquiridos pela Banda Mirim. Nesse caso, é notória a intenção de atribuir um interesse

outro além da preocupação social às ações do Olodum. Já nos anos 90, o que se vê é que o

sucesso do ‘Olodum empresa’ inverteu a situação e os projetos sociais é que passaram a

depender dos recursos gerados pela banda e foram, assim, colocados em segundo plano15.

14 Ver Encontros 1.15 Em sua dissertação de mestrado sobre o grupo, Nunes mostra que os problemas financeiros gerados pelaEscola Criativa trouxeram à tona a seguinte polêmica: “as ‘empresas comerciais’ (Fábrica, Boutique) devemsustentar a ‘empresa social/cultural’? (Escola)” (1997:130). Importa ressaltar que sua pesquisa foi realizadanum bom momento do Olodum como empresa e como grupo musical: justamente em 1996, quando MichaelJackson, um dos artistas mais famosos do mundo, gravou parte de um clipe com o Olodum no Pelourinho soba direção de Spike Lee. A autora conta que depois do clipe o Olodum foi convidado a participar deprogramas na TV e todo o seu estoque de mercadorias acabou, sendo as camisetas utilizadas pelo ‘astro pop’durante a gravação as mais procuradas. O próprio Spike Lee, diretor de cinema norte-americano engajado naluta anti-racista e dono de uma loja ‘étnica’, teria encomendado cem camisetas (:115).

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364

Isso acabou gerando uma crise no grupo. Em 1996, Neguinho do Samba afastou-se do

Olodum alegando a falta de interesse deste nos projetos sociais: “na realidade, todos os

blocos afro mudaram. Deixaram de lado o social e partiram para o comercial.” (A Tarde

10/08/96 apud Nunes 1997:128). Em 1999, quando João Jorge voltou a ocupar o cargo de

presidente do grupo, sua principal tarefa era reativar os trabalhos socioculturais do

Olodum.

Apesar das críticas ao ‘Olodum empresa’ e da retomada de um perfil mais social do

grupo em fins dos anos 90, tornou-se importante para os dirigentes dos blocos afro de

Ilhéus ressaltar o que seria um “outro lado” dos projetos sociais do Olodum – que eles

traziam benefícios diretos para o grupo – como parte do argumento de que os blocos afro

não se definem pela realização de trabalhos sociais. Invariavelmente, dirigentes dos grupos

afro de Ilhéus manifestam a vontade de realizá-los – mesmo aqueles que mal conseguem

organizar-se para desfilar no carnaval dizem que gostariam de fazer algum trabalho com

sua comunidade –, mas concordar que um bloco afro tem essa obrigação seria admitir

fracasso ou incompetência na própria constituição como bloco afro no caso daqueles que

não promovem tais trabalhos.

O Dilazenze é o único bloco afro de Ilhéus reconhecido por pessoas ligadas a

partidos de esquerda, ao movimento negro político, a organizações não-governamentais e

também ao governo municipal como promotor de “trabalhos sociais”. Mas tal

reconhecimento só foi adquirido depois que o grupo conseguiu implementar e manter o

Projeto Batukerê. A partir dessa iniciativa, o bloco tornou-se uma referência para essas

mesmas pessoas do que se espera de um bloco afro. A frase “todos os blocos afro deveriam

ter um projeto como o do Dilazenze” e outras de sentido semelhante passaram a estar

presentes em todos os discursos dirigidos a blocos afro e a respeito deles. O padre

responsável pela pastoral afro, por exemplo, disse que em função do Batukerê, o Dilazenze

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365

estaria “fazendo, pensando como o Ilê Aiyê e o Olodum”16, o que para ele significa “estar

preocupado com a questão de ser negro e defender sua identidade”. Em Ilhéus, assim como

em outras cidades brasileiras, a existência de uma elite branca bem marcada em relação a

uma população majoritariamente negra faz com que a pobreza seja ainda mais negra, ou

seja, ‘ser negro’ é ainda mais identificado com ‘ser pobre’. Assim, atualmente, nas falas de

representantes do movimento negro político, do governo ou de outras entidades, é implícita

a idéia de que quando o movimento negro se organiza, exige-se que seja para tratar da

pobreza, da miséria social e que ‘defender a identidade negra’ é dar assistência à população

negra. Ver-se-á adiante neste trabalho a defesa de que este é um discurso relativamente

recente e fruto de uma nova visão de mundo regida pela idéia de inclusão.

Apesar da posição de destaque assumida pelo Dilazenze, seu presidente continua a

insistir que “os blocos afro não têm a obrigação de realizar trabalhos sociais. Como o

Olodum começou a fazer isso, passaram a achar que todo bloco afro tem de fazer trabalho

comunitário. Bloco afro é entidade carnavalesca.” E não há nenhuma contradição entre a

opinião do presidente do Dilazenze, um dos mais enfáticos defensores de que os blocos

afro “não têm a obrigação de realizar trabalhos sociais” e a posição assumida por este

grupo em função do que o Projeto Batukerê passou a representar. Sua ênfase na negação da

obrigatoriedade do bloco afro realizar trabalhos sociais reflete sua preocupação de garantir

a autonomia dos blocos afro, pois defini-los a partir de sua relação com a comunidade, de

seus trabalhos sociais é uma forma de lhes impor o que ser e o que fazer: “eu defendo que

[o trabalho comunitário] seja uma coisa do próprio processo de organização, de

crescimento [do bloco] junto à comunidade (...).” Contudo, se esta colocação for associada

às mudanças ocorridas no Dilazenze após a implementação do Projeto Batukerê e a uma

visão de que mesmo as apresentações da banda e do grupo de dança, assim como as

16 O Olodum mantém a Escola Criativa, fundada em 1991, e o Ilê Aiyê trabalha diversas atividades

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366

atividades de preparação para o carnaval, podem ser definidas como “trabalhos sociais”, tal

como argumenta o presidente do Dilazenze, conclui-se que um grupo afro não pode ser

definido a partir deles, mas ele se torna um grupo melhor se puder realizá-los.

Os “trabalhos sociais” do Dilazenze

As aspas duplas no título desta subseção indicam que a expressão ‘trabalho social’

é realmente usada pelos membros do Dilazenze. Os significados que lhe são atribuídos

podem ser bem variados e incluem desde a própria existência do bloco afro até o Projeto

Batukerê, este sim amplamente reconhecido como tal. De maneira geral, costuma-se

empregar a expressão para designar quaisquer atividades realizadas pelo grupo que visem

“elevar o sentimento de auto-estima’ e a melhoria da qualidade de vida da comunidade

e/ou dos membros do bloco” (Silva 1998:138)17.

Pela definição acima, sob a rubrica de ‘trabalho social’ encontra-se toda atividade

realizada pelos blocos afro. Sua própria existência já seria um ‘trabalho social’ em função

do bloco conseguir aglomerar um certo número de pessoas em torno de ações – tais como

tocar, dançar, cantar etc. – que valorizam uma ‘cultura’ concebida como diferente da

dominante e, portanto, específica da maioria da população que compõe aquela

comunidade. O principal benefício do bloco afro seria, então, o de promover a elevação do

sentimento de auto-estima das pessoas com as quais atua.

Em 1997, quando estive em Ilhéus pela primeira vez para a pesquisa de campo que

resultaria em minha dissertação de mestrado, a relação entre bloco afro e ‘promoção de

educativas no Projeto de Extensão Pedagógica, iniciado em meados dos anos 90 (Silva 1997).17 A título de ilustração de que as categorias sociais podem assumir significados bastante distintos, aexpressão ‘trabalhos sociais’ já fizera parte de uma pesquisa anterior realizada por mim e por MarcioGoldman sobre a campanha eleitoral de um candidato a vereador num município do interior do Estado do Riode Janeiro. Nesse contexto, ‘trabalho social’ era definido pelo candidato e por seus assessores como“serviços” que o candidato prestava à comunidade: “se uma pessoa morre, ele [o candidato] consegue a urna;se alguém está com fome, ele consegue uma cesta básica... Isso é trabalho social.” A “doação de remédios, otransporte de doentes, a instalação de água corrente” também eram ‘trabalhos sociais’ (Goldman e Silva1999:153).

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367

auto-estima’ era o argumento central evocado pelo presidente do Dilazenze para afirmar

que todo bloco afro realiza “trabalhos sociais” em suas atividades de preparação para o

carnaval, mesmo que estes se resumam aos ensaios da bateria e do grupo de dança, além do

próprio desfile. Desse ponto de vista, até as apresentações da banda de show do bloco afro

são uma forma de fazer ‘trabalho social’, desde que sua música seja ‘negra’, que valorize a

‘cultura’ e a ‘população’ negras.

Porém, há atividades que são mais diretas em seu objetivo de promover a auto-

estima da população negra e que nem todos os blocos afro praticam. A ‘Noite da Beleza

Negra’, por exemplo, é um momento bastante especial nesse sentido por valorizar os

aspectos fenotípicos, os ‘alvos’ mais explorados pelo racismo. O Festival de Música que

antecede o carnaval também é especial pela valorização de ritmos e temas ligados à

população negra e/ou à comunidade do bloco. Mas esses eventos são também um ‘trabalho

social’ por proporcionarem lazer para a vizinhança do bloco. O mesmo pode ser dito em

relação a apresentações de bandas afro, festivais de sorvete ou de cachorro-quente,

comemorações do Dia das Crianças e os próprios ensaios do grupo.

Também constitui um ‘trabalho social’ a oferta de atividades de lazer para a

comunidade em função da ausência de oportunidades e de locais próprios para isso nos

bairros onde estão situados os blocos. Mas não apenas por isso. Como visto

anteriormente18, o acesso ao lazer é restrito àqueles que possuem recursos e que

freqüentam as áreas centrais da cidade, o que constitui uma forma de segregação – espacial

e visivelmente racial – e contribui para diminuir a auto-estima da população que habita os

bairros periféricos. Assim, quando o lazer proporcionado pelo bloco afro é justificado

também pela elevação da auto-estima de sua comunidade, a atividade ganha a conotação de

produtora do desejo de diferir a partir da perspectiva de que aí existe uma forma de

18 Ver Encontros 2.

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368

segregação e, como tal, deve ser transformada numa proposta de singularização, do bloco

afro espacialmente proposto como um território existencial no sentido definido no capítulo

anterior. Nesse caso, mais do que oferecendo opções de lazer a quem não as tem, o

‘trabalho social’ do bloco afro estaria na valorização da comunidade, na afirmação de sua

importância e de sua singularidade frente a uma cidade que a discrimina e segrega.

Seguindo esse mesmo raciocínio, o sucesso do bloco nas atividades promovidas e o

afluxo de pessoas de outros bairros, assim como a divulgação do nome do bloco na

imprensa, também são concebidos como um “benefício social” do grupo à sua

comunidade, como disse um dirigente de bloco afro de Ilhéus, pois torna-a conhecida e faz

com que as pessoas “tenham orgulho do lugar onde se vive”, aumentando-lhes, assim, o

‘sentimento de auto-estima’ (Silva 1998:122).

Promover o sentimento de auto-estima é um objetivo presente na maior parte das

atividades dos blocos afro, mas há algumas em que a idéia de ‘trabalho social’ como uma

contribuição, uma ajuda do grupo à sua comunidade é ainda mais explícita. No Dilazenze,

antes da implantação do Batukerê, a formação e a manutenção das bandas mirim e juvenil

ensaiando durante todo o ano era uma forma de “ocupar” as crianças e os adolescentes, que

“se não estivessem ensaiando, estariam na rua roubando, usando drogas ou se

prostituindo”, de acordo com o presidente do Dilazenze (Silva 1998:120)19. O mesmo

argumento vale para as oficinas de dança afro e de percussão por manterem os jovens

próximos do bloco e “afastados da marginalidade”.

A carência dos bairros onde os blocos estão localizados também justifica várias das

atividades relacionadas acima, pois um grupo afro “deve ajudar sua comunidade”. Além de

“dar ocupação” a crianças e adolescentes, aumentar a auto-estima da população e oferecer

momentos de lazer, há outras formas do bloco ‘ajudar’. Uma delas é atuando “em nome da

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369

comunidade”, ou seja, reivindicando melhorias e serviços para a região ou sendo um ponto

de apoio para intervenções governamentais no bairro. Quanto ao primeiro aspecto, trata-se

de algo concebido mais na chave da possibilidade do que efetivamente praticado em

Ilhéus. O único exemplo concreto que costuma ser citado em função desse tipo de atuação

entre os blocos afro da cidade ocorreu logo no início dos Gangas, grupo do Alto do Basílio,

em finais da década de 80, quando o bloco participou de uma manifestação de

reivindicação por água para o bairro e sofreu represálias por parte do governo municipal na

ocasião, deixando de receber recursos para desfilar no carnaval por alguns anos.

Por outro lado, a atuação dos blocos afro como apoio para intervenções

governamentais no bairro é bem mais freqüente (embora estas não o sejam tanto),

sobretudo no caso do Dilazenze em função deste possuir uma base comunitária e uma sede,

a qual funciona como espaço para reuniões, para a execução de programas educativos com

crianças etc. Não é raro a sede do grupo ser solicitada para distribuição de cestas básicas,

para cadastramento de moradores para algum programa social ou, por exemplo, para a

realização de programas da Secretaria Municipal de Saúde.

Além das formas de atuação citadas acima, o Dilazenze ainda promove – ou

concebe como uma proposta de atividade viável, embora poucas vezes realizada – eventos

que têm a ‘caridade’ como um motivador importante. Exemplos desse tipo de atividade são

as gincanas – “sempre beneficentes” –, cujas tarefas envolvem arrecadação de alimentos e

de agasalhos para alguma instituição ou campanha. Ajudar a comunidade em função de sua

carência é uma das justificativas mais comuns da maioria dos blocos afro para esse tipo de

trabalho social. Contudo, no caso do Dilazenze, a “vontade de ajudar as pessoas” é uma

“herança familiar”, um “ensinamento” deixado por D. Roxa, mãe e antecessora da atual

mãe-de-santo do Terreiro Tombency, tanto por sua “bondade”, por sua “solidariedade”,

19 Outros blocos afro de Ilhéus têm ou tiveram em algum momento bandas mirim e juvenil com base no

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370

quanto pelo fato de ser um terreiro de candomblé. Segundo relata o presidente do

Dilazenze, seu neto, D. Roxa fazia distribuição de cestas básicas para famílias carentes do

Alto dos Carilos, dava “esmolas às segundas-feiras” e “ajudava qualquer um que chegasse

no terreiro”. A caridade era uma qualidade pessoal de D. Roxa, mas também algo que é

dito existir – ou “deveria existir” – naturalmente num terreiro de candomblé.

À

Retomando a discussão com a qual iniciei o capítulo anterior, os blocos afro

costumam ser definidos como entidades carnavalescas de valorização, preservação e

divulgação de ‘cultura negra’. Seu surgimento foi gerado a partir de agenciamentos

produzidos em diferentes encontros, que por sua vez também geraram outras formas de

movimentos negros. O que havia de comum entre esses grupos era o desejo de diferir

através de um modo de existência negro. ‘Assumir a negritude’ era, então, singularizar-se.

E, tal como foi defendido antes neste trabalho, valorizar, preservar e divulgar ‘cultura

negra’ valem pela singularização que produzem, sem que seja necessário haver uma outra

finalidade.

A experiência de alguns anos de pesquisa com dirigentes de blocos afro de Ilhéus

mostrou que, se por um lado, defende-se que o bloco afro seja uma entidade carnavalesca

no sentido proposto no parágrafo acima, por outro lado é cada vez mais notória a

necessidade de atribuir outras funções ao bloco. ‘Realizar atividades recreativas e

beneficentes’, ‘ajudar as pessoas’ e ‘dar ocupação a crianças e adolescentes’ são práticas

antigas que “os blocos afro sempre fizeram”, como diz o presidente do Dilazenze. Práticas

e discursos permanecem aparentemente semelhantes ‘ao que sempre foi feito’, mas é

possível perceber novas formas de subjetivação dando-lhes novos significados.

mesmo propósito de ‘ocupar as crianças e os adolescentes’, como o Rastafiry e o Guerreiros de Zulu.

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371

Documentos do Dilazenze e conversas com seus membros mostram que desde que

foi fundado, o grupo vem realizando ensaios, apresentações, gincanas, comemorações de

Dia das Crianças, oficinas de percussão e de dança afro etc. Cada uma dessas atividades

possuiria um objetivo em si mesma: o ensaio prepararia o bloco para o carnaval e

promoveria a arrecadação de recursos, assim como as apresentações; as gincanas e as

comemorações poderiam ser atividades recreativas e beneficentes, afora o fato de que

qualquer atividade no Dilazenze, especialmente se for dirigida a crianças, é uma grande

festa de família e vale por isso; as oficinas também preparariam as pessoas para o carnaval

e para as apresentações do bloco, além de aglutinar outros membros e/ou comprometer

melhor os já simpatizantes.

Em 1997, uma determinada conjugação de acontecimentos provocou uma mudança

na concepção dessas atividades. Como foi ressaltado antes, as opções do Olodum e suas

conseqüências para a definição de bloco afro eram intensamente discutidas pelos grupos de

Ilhéus; a elaboração de um novo estatuto do Conselho de Entidades Afro-Culturais

(CEAC), que estava sendo ‘re-fundado’, também obrigava a refletir sobre o que era

pertinente a um grupo afro ou não; e a aproximação do Movimento Negro Unificado

através do gerente de ação cultural da prefeitura que coordenou todo o processo de

rearticulação do CEAC e que tentava direcionar a discussão para uma concepção de bloco

afro política e socialmente engajada, foram acontecimentos que afetaram as percepções

que se tinha do que deveria ser um bloco afro.

Não se trata de afirmar que a percepção de que as atividades do bloco têm por

objetivo elevar a auto-estima da população tenha surgido naquele momento. Aprender a

gostar de si e a se valorizar, rejeitando a imputação de inferioridade – inerente à prática do

racismo –, são pressupostos básicos para ‘assumir a negritude’, lema dos movimentos

negros, pelo menos, desde os anos 70. A mudança estaria no desejo de relacionar as

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372

atividades do bloco afro, e sua própria existência, com idéias como “trabalho social”,

“trabalho comunitário”, “contribuição com a comunidade”, “projeto político”, cujos

significados são abarcados por uma concepção ampla de cidadania que, especialmente a

partir dos anos 90, se impôs como uma forma de estar no mundo que todos deveriam

‘praticar’.

Como procurei mostrar em trabalho anterior (Silva 1998), ainda que naquele

momento os grupos afro de Ilhéus não utilizassem o termo ‘cidadania’ para definir o

objetivo de suas atividades, estas seriam práticas que, embora sob outros nomes, poderiam

ser também assim denominadas. O conceito de cidadania circula em diferentes espaços e

interage com os atores sociais, fazendo com que estes se apropriem dele – não exatamente

da categoria – e dêem significado a práticas distintas que, no caso do movimento afro-

cultural de Ilhéus, podem, simultaneamente, ser abarcadas por outras categorias, como as

que passaram a denominar as atividades dos grupos afro justificadas pelo objetivo de

elevar a auto-estima da comunidade: “trabalho social”, “trabalho comunitário”,

“militância” etc. Reflexões posteriores àquele trabalho levam agora a concluir que é certo

que os blocos afro de Ilhéus, assim como os representantes do movimento negro chamado

político, como o então gerente de ação cultural da prefeitura e dirigente do MNU local,

estavam sendo afetados pelo que pode ser chamado de processo de cidadanização.

Simplificada e resumidamente, pode-se afirmar que a categoria cidadania pode

abrigar muitos significados conforme o contexto histórico20, porém, de qualquer forma,

esses são sempre sustentados pela noção de igualdade: ser cidadão é fazer parte de um

mundo de iguais, ainda que definido de diferentes formas. Os direitos básicos, que

20 A noção de cidadania é um objeto historicamente construído e passível de ser observado em uso naspráticas sociais e, por isso mesmo, perdeu e agregou significados ao longo do tempo. A obra de T. H.Marshall (1967) é a principal referência quando se trata de reconstituir a forma como se deu a construção doconceito hegemônico de cidadania, definido pela posse de ‘direitos básicos’ classificados em civis, políticos esociais.

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373

constituem a noção, são o que garante a participação dos indivíduos que possuem o status

de cidadão nos sistemas econômico e político vigentes, mas também determinam como se

dará tal participação. Por isso, a cidadania é o maior “mecanismo regulador” do Estado

(Santos 1997:240). Primeiramente passando a abranger grupos sociais que estavam

excluídos das relações de produção, cada vez mais a cidadania foi invadindo as relações

cotidianas e o status de cidadão deixou de ser atribuído apenas àqueles que se enquadram

em determinadas características – como possuir documentos, por exemplo – e passou a

designar também modelos de comportamento: ‘respeitar o trânsito’, ‘não jogar lixo no

chão’, ‘fazer trabalho voluntário’, ‘doar alimentos para campanhas beneficentes’, ‘fazer

sexo seguro’... tudo isso faz alguém ser cidadão. É esse processo que torna todas as ações

passíveis de serem observadas pelo prisma do ‘fazer a sua parte’ para o bem coletivo que

está sendo chamado de cidadanização21.

Afirmar, então, que grupos afro de Ilhéus, assim como grupos ligados ao

movimento negro político, foram afetados pelo processo de cidadanização significa dizer

que eles passaram a ter a preocupação de que suas atividades pudessem ser observadas

desse ponto de vista. Ainda que sob outras designações, isto é, sem utilizar a palavra

cidadania, as atividades dos grupos deveriam resultar em práticas de cidadania. Assim

sendo, ‘elevar a auto-estima da população negra’ é um ‘trabalho social’ do bloco afro

porque é uma forma de ‘contribuir com a comunidade’, de ‘fazer algo’ por ela22.

No decorrer desse processo, intensificaram-se os agenciamentos dos grupos afro,

especialmente do Dilazenze, com o que vou chamar, por ora, de ‘forma-ong’. Ainda em

1997, houve uma tentativa de formar uma organização não-governamental envolvendo os

21 A noção de cidadania pode ser pensada, assim, como um dos principais dispositivos da “sociedade decontrole”, termo usado por Deleuze para designar o mundo em que vivemos atualmente (Deleuze 1992).22 É preciso frisar que não se trata de ‘cálculo’ ou de ‘consciência’ ou ‘inconsciência’ do grupo afro em suapreocupação com os resultados de suas ações. ‘Ser afetado’ diz respeito a entrar em agenciamentos queproduzem novas formas de viver o mundo, involuntariamente.

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374

quatro blocos afro sediados no bairro da Conquista. Tendo tomado conhecimento de que o

Dilazenze e o Rastafiry possuíam projetos para oferecer oficinas de dança afro, percussão,

artesanato e outras atividades para crianças e adolescentes, o idealizador da ong – alguém

não pertencente a nenhum dos blocos – propôs a criação da entidade unindo esses grupos e

ainda o Raízes Negras e o D’Logun. A ong seria formada por representantes dos quatro

grupos e por ele como assessor. Segundo sua proposta, ao invés de buscar recursos para

implementar os projetos de cada um dos blocos, a ong deveria propor um grande projeto

como uma creche ou um pré-escolar, o qual facilmente obteria recursos das agências

financiadoras em função da necessidade desse tipo de serviço na comunidade e da

realidade carente do bairro. O projeto não foi à frente por diversos motivos23, mas vale

ressaltar que o desinteresse dos blocos pela entidade, entre outras coisas, devia-se ao fato

de que as atividades propostas não possuíam nenhuma afinidade com os objetivos dos

grupos. Além do mais, a idéia da formação de uma outra entidade não parecia fazer muito

sentido senão como emprego para o assessor, que esperava ser remunerado por isso. Os

dirigentes dos grupos almejavam obter recursos para suas entidades individualmente, a fim

de desenvolver seus projetos junto às suas comunidades.

Ao longo dos dois anos seguintes, eu e Marcio Goldman fizemos algumas consultas

junto a instituições nacionais e internacionais para saber como seria possível obter

financiamentos para o Dilazenze. Essa experiência revelou que para entrar no mundo das

ongs é preciso uma competência bastante específica, a qual não possuíamos (e não

possuímos)24.

23 Uma descrição detalhada do episódio encontra-se em Silva 1998:127-131.24 Sem querer aprofundar questão a respeito das relações travadas entre pesquisadores e pesquisados, nossaparticipação foi uma solicitação do grupo a partir da interação durante e após nossos diferentes momentos depesquisa de campo e deve ser lida na mesma chave exposta no capítulo anterior a respeito da dificuldade dosgrupos afro de acesso aos meios, no caso, contatos que nos forneceram nomes de instituições, computadores,boa redação em português e em inglês.

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375

As exposições acima a respeito da proposta de fundação da ong e da busca por

agências financiadoras tiveram o propósito de mostrar que aos poucos uma proposta

alternativa de atuação dos blocos afro foi sendo percebida cada vez mais próxima. Não se

deve esquecer ainda as campanhas televisivas que apelavam para a cidadania ou para a

solidariedade, muitas vezes encabeçadas por grandes organizações não-governamentais, e

a chegada e/ou divulgação do trabalho de entidades desse tipo em Ilhéus. Se o Dilazenze já

tinha a preocupação em ‘contribuir com a comunidade’, a cada vez mais intensa

aproximação com a ‘forma-ong’ vai indicar o que e como fazer. Desses novos

agenciamentos, vai surgir o Projeto Batukerê, assunto da próxima seção.

O Projeto Batukerê

O Projeto Batukerê começou a tomar corpo em novembro de 1999, ainda sem nome

e sem muita clareza do que se pretendia fazer; não se sabia nem mesmo se seria um projeto

com crianças. Pensava-se na busca de recursos para desenvolver alguma atividade que já

fizesse parte do Dilazenze e que atendesse a alguma de suas necessidades. Pensava-se

também que o que quer que fosse desenvolvido, isso deveria gerar renda tanto para o

Dilazenze quanto para as pessoas que se envolvessem no projeto. Os critérios de

necessidade do grupo e de geração de renda estavam sempre juntos, pois imaginava-se que

se uma tal coisa fosse necessidade do Dilazenze, certamente seria de outros blocos e,

assim, o grupo teria a quem vender – um ‘mercado’. A partir desse raciocínio, foram

inicialmente imaginadas uma escola de música, incluindo uma fábrica de instrumentos

musicais que poderiam vir a ser adquiridos pelos demais blocos e por outros grupos, e uma

academia de dança, não somente dança afro, mas especializada nela, que cobraria

mensalidades módicas de quem pertencesse a grupos afro e preços mais altos de pessoas de

classe média e de turistas.

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376

A vontade de promover projetos sociais ou profissionalizantes no Dilazenze não

nasceu em 1999. Outros já haviam sido formulados, embora sem sucesso. Sua realização

dependia de doações que eram solicitadas ao governo e ao comércio local através de

ofícios, cujo modelo básico era constituído de uma rápida descrição da atividade proposta e

do orçamento, no qual eram incluídos o material necessário a ser utilizado e remuneração

para os instrutores. Na verdade, tratava-se do mesmo modelo usado pelo Dilazenze para

solicitar patrocínio para seus eventos. Projetos e cursos mais longos eram difíceis de pôr

em prática, mas o grupo sempre conseguiu realizar oficinas, em geral de dança afro e de

percussão, além de seminários, ‘mostras culturais’, festas em comemoração ao Dia das

Crianças, gincanas etc. Contudo, transformar essas atividades em ‘projeto social’ deveu-se,

ainda que não exclusivamente, a novos encontros que possibilitaram novas formas de se

pensar sobre isso, os quais serão descritos a seguir.

Em novembro de 1999, o presidente do Dilazenze encontrava-se envolvido, direta

ou indiretamente, em três projetos sociais que passavam pela Secretaria Municipal de

Assistência Social, mas eram financiados pelo governo federal ou pelo Unicef (Fundo das

Nações Unidas para a Infância e Adolescência). Também o artista plástico que colabora

com o grupo, principal interlocutor do presidente do Dilazenze, começava nesse mesmo

momento a participar de um projeto social com crianças de um distrito de Una, município

vizinho a Ilhéus. Financiado pela prefeitura e vinculado à Secretaria Municipal de

Educação, o projeto oferecia oficinas de arte, capoeira, dança... e foi importante como

modelo para ajudar a pensar na estrutura que o Projeto Batukerê viria a ter.

Um dos projetos promovidos pela prefeitura de Ilhéus do qual o presidente do

Dilazenze participou chamava-se ‘Capitães de Areia’, em homenagem ao romance

homônimo de Jorge Amado, e era realizado no bairro Teotônio Vilela, um dos mais pobres

do município e, depois de um crescimento rápido e muito recente, um dos mais populosos

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377

também. O gerenciamento do projeto estava a cargo da secretária de Assistência Social,

nesse momento cotada para ocupar a vice-prefeitura na chapa de reeleição do então

prefeito Jabes Ribeiro25. A indicação do presidente do Dilazenze para o cargo de instrutor

de percussão foi feita por Gurita, então candidato a vereador apoiado pela secretária. Esta

concedeu-lhe parte das indicações dos instrutores assim como das crianças que seriam

atendidas pelo projeto. Uma outra parte seria indicada por um outro candidato, também

apoiado por ela.

As pessoas mais próximas do presidente do Dilazenze costumavam dizer que seu

trabalho era “muito bom”, pois tinha um salário de trezentos e cinqüenta reais para

trabalhar por duas horas por dia, quatro dias por semana, fazendo algo que “gostava muito”

e que ainda dava tempo para “cuidar do Dilazenze”. Esse trabalho trouxe-lhe a expectativa

de “entrar no circuito”, pois a secretária garantiu que o indicaria para outros projetos

semelhantes até que tivesse “condições de [lhe] conseguir um emprego fixo”.

O projeto Capitães de Areia deveria atender a crianças que estivessem fora da

escola, inclusive aquelas com dependência química, dando-lhes ocupação durante todo o

dia, alimentação e uma cesta básica para cada família, benefício que prosseguiria no ano

seguinte apenas se a criança fosse matriculada na escola. A idéia era que através do

fornecimento de alimentação, cesta básica e atividades, o projeto conseguiria evitar que as

crianças fossem ou voltassem para as ruas.

O projeto foi inaugurado com grande pompa, presença do prefeito, matérias nos

jornais locais. No entanto, quase um mês após seu início, somente a oficina de percussão,

cujo instrutor era o presidente do Dilazenze, e a de futebol, a cargo do ex-dirigente do

grupo Força Negra que se tornou evangélico, estavam funcionando com regularidade. E,

embora tenham trabalhado por alguns meses, receberam apenas um salário. Além disso, as

25 A secretária de Assistência Social acabou não sendo candidata à vice-prefeitura e candidatou-se ao cargo

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378

crianças que freqüentavam o projeto não eram aquelas para as quais ele fora criado.

Tratava-se de filhos e filhas de pessoas ligadas ao coordenador do projeto.

A participação do presidente do Dilazenze no Capitães de Areia foi um grande

estímulo para que ele começasse a pensar que o grupo teria condições de fazer algo

semelhante. O desejo cresceu depois que ele teve acesso ao projeto em sua forma escrita e

avaliou que não seria “tão difícil assim” redigir uma proposta. No mesmo novembro de

1999, o Dilazenze foi procurado para fornecer um instrutor de percussão para um outro

projeto promovido pela prefeitura, mas desta vez em convênio com um orfanato localizado

no bairro da Conquista. O instrutor indicado foi o mestre de bateria do grupo, mas a

participação do Dilazenze deveria ir além: novamente a secretária de Assistência Social

sugeriu que Gurita indicasse as crianças a serem atendidas e o presidente do Dilazenze, que

conhecia melhor o bairro, deveria ajudar na tarefa de escolhê-las.

Nesse mesmo momento, o Dilazenze também foi procurado para participar de um

projeto financiado pelo Unicef em “parceria” com a prefeitura, sendo os blocos afro do

bairro da Conquista e a associação de moradores os demais “parceiros”. O nome do projeto

era “Bem-Viver” e sua “clientela” seriam crianças carentes das comunidades dos blocos

afro da região – Dilazenze, Rastafiry, D’Logun e Raízes Negras –, envolvidos no projeto

através de um morador do bairro e amigo de uma das representantes do Unicef em

Salvador, o mesmo que propôs a fundação da ong que uniria os blocos afro sediados na

Conquista alguns anos antes. Ele afirmava ter poder de articulação e mobilização junto aos

blocos afro, o que lhe possibilitou ser um dos coordenadores do projeto em Ilhéus,

recebendo remuneração pela função26, juntamente com funcionários da Secretaria de

Assistência Social. Além disso, ainda de acordo com os dirigentes dos blocos, consta que

de vereador, mas não foi eleita. Sobre o processo eleitoral de 2000 em Ilhéus, ver Goldman 2001.

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379

ele elaborou ou ajudou a redigir o projeto e se colocou como intermediário entre a

secretaria e os blocos afro. Segundo teria dito aos dirigentes dos blocos, o objetivo do

projeto seria “combater as drogas” através da oferta de atividades para as crianças, as

quais, inicialmente, deveriam ser profissionalizantes e de “reforço escolar”, ou seja, o

projeto não previa oficinas de dança ou percussão, capoeira e outras coisas que os blocos

estariam acostumados a fazer, o que logo foi identificado pelos dirigentes dos blocos com a

mesma posição assumida por ele no episódio da fundação da ong. Para um dos dirigentes,

mais uma vez essa postura revelava que ele “não gosta de blocos afro”.

Também não foi bem vista pelos dirigentes dos blocos a recusa do coordenador do

Bem-Viver de repassar o projeto em sua forma original para seu conhecimento sob a

alegação de que eles não “entenderiam a linguagem”. E, embora fosse dito que havia

dinheiro para o projeto, o valor a ser pago aos blocos afro era ínfimo, pois cada um deveria

ceder dois instrutores, mas o pagamento seria feito à entidade: cem reais mensais para cada

uma.

As negociações entre o coordenador do projeto e o Dilazenze continuaram entre o

bimestre final de 1999 e todo o primeiro semestre de 2000, sem nunca chegar a um

consenso. Com o tempo, foi aceito que o Dilazenze trabalhasse com oficinas de percussão

e de dança afro, as mesmas que já faziam parte do Projeto Batukerê, a essa altura já em

andamento. Mas para atender a um número maior de crianças além daquelas já inscritas no

Batukerê, o Dilazenze exigiu que o Bem-Viver fornecesse o material para as aulas e

merenda também para o Batukerê como forma de compensar o trabalho, o que continuou a

ser negado pelo projeto. A situação chegou ao limite quando o coordenador do Bem-Viver

afirmou que não poderia comprar material algum e pediu que a esposa do presidente do

26 Sendo professor da rede municipal, ele pôde ser cedido para essa função, contudo, segundo diziamdirigentes dos blocos afro participantes, seu salário quase triplicou durante o período em que se dedicou aoprojeto.

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380

Dilazenze ficasse responsável pela merenda, oferecendo uma cesta básica pelo serviço.

Esta atitude foi a ‘gota d’água’ para o interrompimento das negociações.

Em resumo, apenas o Rastafiry trabalhou para o projeto por pouco tempo com uma

oficina de construção de instrumentos musicais, mas não havia dinheiro para a compra de

material e logo também não havia merenda. De qualquer forma, a aproximação do

Dilazenze do Projeto Bem-Viver, que não possuía concretamente uma base, uma estrutura,

mas conseguira financiamento do Unicef, fez alguns de seus membros imaginarem que um

projeto bem feito teria grandes chances de obter recursos.

Ainda em novembro de 1999, ocorreu a visita a Ilhéus, e mais especificamente ao

Dilazenze, de uma pessoa atuante no movimento negro carioca, próxima do mundo das

ongs e naquele momento no processo de fundação de sua própria entidade voltada para

assuntos relativos à população negra27. Sua visita gerou uma grande expectativa em função

do seu know-how para escrever um projeto e dos seus possíveis contatos junto a agências

financiadoras de grande porte28, com os quais o Dilazenze esperava poder contar. No

entanto, as conversas iniciais logo deixaram expostas as diferenças das concepções ali

presentes: enquanto o presidente do Dilazenze sugeria uma academia de dança e uma

escola de música para gerar “emprego e renda” para quem faz dança e música no bloco, o

representante da ‘forma-ong’ sugeria uma fábrica de reciclagem de plástico, que geraria

“emprego e renda para a comunidade”.

O resultado dessa primeira troca de idéias foi a formulação de um projeto que

recebeu o significativo nome de OGAM – “Organizando Através da Música”, sugerido

pelo visitante carioca, evidentemente, pois era ele o representante da ‘forma-organização

27 Essa primeira visita acabou gerando um vínculo importante junto ao terreiro, pois em menos de um ano elejá era ogã confirmado da casa.28 Entre suas experiências de trabalho estavam o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas –IBASE, uma das organizações não-governamentais mais importantes do país, e o Grupo Cultural AfroReggae, entidade conhecida por sua atuação como grupo musical (Banda Afro Reggae) e por seu trabalhojunto a crianças e adolescentes em grandes favelas da cidade do Rio de Janeiro.

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381

não-governamental’. O projeto seria constituído em três fases: uma primeira de

estruturação administrativa do Dilazenze, outra de aulas e seminários com consultores

convidados29 dirigidos a futuros monitores, e uma terceira de multiplicação de

conhecimento, quando os monitores ofereceriam oficinas a jovens da comunidade. Essas

oficinas podem ser classificadas em profissionalizantes e de formação, entendendo-se por

este último termo o que é concebido como importante que membros de uma entidade do

movimento negro saibam. Eram assim classificadas as oficinas de história, da África e do

Brasil, e de religião, com enfoque sobre o candomblé angola. As oficinas de caráter

profissionalizante eram as de música, de dança afro, de arte e de montagem de espetáculo.

Pode-se dizer que as três primeiras eram freqüentemente realizadas no Dilazenze, mas

ganharam o perfil de ‘profissionalizantes’ em função do que foi proposto como ementa

para elas, algo bem diferente do que era comum se fazer no bloco: no caso da oficina de

música, as aulas abordariam noções teóricas, harmonia percussiva e técnicas de registro; no

caso da dança afro trabalhar-se-iam noções de argumento, roteiro e coreografia; a oficina

de arte ensinaria a trabalhar com escultura, gravura, fotografia artesanal e serigrafia. E a

oficina de montagem de espetáculo, esta nunca antes pensada no grupo, daria noções

básicas de iluminação, sonorização e cenografia.

O projeto acima não saiu do papel, mas ele foi a base para que um outro começasse

a ser pensado, pois, pela primeira vez, fora discutido no Dilazenze um projeto dentro do

modelo reconhecido como ‘correto’ para as agências financiadoras. Foi assim que em

março, logo depois do carnaval, o Batukerê começou a ser formulado. Mas antes de

descrevê-lo, é preciso passar pelo carnaval de 2000 e pela disposição manifesta pelo

governo de patrocinar esse tipo de projeto, o que, sem dúvida, foi um grande estímulo

naquele momento.

29 A maior parte de acadêmicos ou de técnicos já envolvidos com organizações não-governamentais de

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382

O Dilazenze foi o campeão do carnaval de 2000. No sábado seguinte, o governo

municipal ofereceu um almoço às agremiações carnavalescas, durante o qual o grupo foi

bastante homenageado por seu bicampeonato (é preciso lembrar que no atual carnaval de

Ilhéus, só os blocos afro concorrem entre si). Em seu discurso, o prefeito valorizou o

carnaval cultural, com o qual disse ter “um compromisso”, e convidou os blocos afro para

uma “parceria”: “[aqueles] que quiserem fazer trabalhos sociais, podem contar com a ajuda

da prefeitura.”

Dias depois, teve início uma série de reuniões entre o Dilazenze e um funcionário

importante da Ilheustur, que ficara encarregado pelo prefeito, segundo disse, de organizar

os blocos afro para eventos comemorativos pelos 500 anos do Brasil. Foram concebidos

dois eventos de participação dos blocos afro: um deles seria uma semana de “cultura afro”,

cujo nome seria “Mama África Festival” e durante a qual ocorreria o 2o Encontro de

Entidades Afro de Ilhéus, no mês de junho; e o outro seria uma exposição sobre o

movimento negro de Ilhéus no Centro de Convenções na semana de comemorações do

aniversário da cidade, entre os dias 28 de junho e 02 de julho. Nenhum dos dois eventos foi

concretizado, mas essas reuniões foram uma espécie de ratificação do interesse do governo

em “colaborar com os blocos afro” declarado pelo prefeito durante o almoço após o

carnaval. O texto abaixo é bastante elucidativo de como a “parceria” entre o governo e o

grupo estava sendo concebida, ao menos para o primeiro; ele foi redigido pelo mesmo

funcionário da Ilheustur quando da inauguração do Projeto Batukerê como um release

enviado aos meios de comunicação. O texto afirmava que

“o Projeto Batukerê é [era] fruto de uma iniciativa do prefeito JabesRibeiro, que durante o último carnaval, propôs que a beleza e a forçado Dilazenzi (sic) (campeão do carnaval 2000) fosse (sic) colocada aserviço de um projeto social capaz de mudar a difícil realidade dacomunidade dos Carilos.”

grande porte.

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383

Aos poucos, o Projeto Batukerê foi, então, ganhando forma30. É claro que havia um

desejo de realizar um bom trabalho com as crianças da comunidade, ocupá-las e ‘formá-

las’ também para o Dilazenze. Mas havia também uma preocupação muito grande em

garantir que as pessoas envolvidas no projeto, os instrutores, tivessem uma remuneração,

pois o grupo poderia acabar perdendo seus “profissionais”, já que, como disse seu

presidente, “as pessoas têm oportunidades fora do Dilazenze e ele não tem como

competir”. Assim, seria preciso dar “condições para que as pessoas trabalhem: estrutura e

condições financeiras para que as pessoas possam se dedicar”. Com base nesse raciocínio,

o Batukerê deveria ser constituído pelo que os principais “profissionais” do Dilazenze

pudessem oferecer e ser remunerados por isso. Dessa forma, o Projeto Batukerê ofereceria

as seguintes oficinas: dança afro, sob a responsabilidade da coreógrafa e diretora do grupo

de dança e de uma outra bailarina fundadora do grupo; percussão, a cargo do mestre de

bateria e também vice-presidente do grupo; arte, a ser dirigida pelo artista plástico do

grupo e capoeira em função da proximidade de um mestre de capoeira angola que se dispôs

a fazer esse trabalho mesmo antes do Batukerê. Além dos quatro profissionais, o projeto

ainda deveria prever remuneração para o coordenador, que seria o próprio presidente do

Dilazenze e que já cumpriria naturalmente a função; para a esposa do mestre de bateria que

já atuava como secretária do grupo e faria o trabalho pelo projeto, e para a esposa do

presidente, que atuaria na preparação da merenda, por ser reconhecidamente uma ótima

cozinheira e pela experiência de trabalho em lanchonetes e restaurantes.

Naquele momento, o que levou à concepção do Batukerê foi a idéia de que

formalizar um projeto e conseguir patrocínio para ele seria a única forma de ser

30 Aquele momento foi favorável à formulação do Projeto Batukerê também pela possibilidade de acesso adeterminados recursos, como o computador, por exemplo. Pelo já exposto no capítulo anterior, é de seimaginar que, a partir do momento em que esse acesso torna-se possível e há alguém disposto a colaborar,haja uma mudança da relação dos grupos com a produção escrita que os projetos exigem. Assim, eu e meucomputador também participamos do processo.

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384

remunerado pelo que já se fazia; seria uma forma de obter uma renda para sobreviver

através do trabalho que seria feito de qualquer jeito, que já era voluntário há anos, muito

antes disso virar “cidadania”. Mas esse ponto será retomado adiante.

Batukerê e governo municipal

Nas conversas iniciais entre o Dilazenze e a prefeitura, representada pelo

funcionário da Ilheustur, ficou estabelecido que o governo municipal sustentaria o projeto

com valores que variavam de dois a três mil reais por mês e ainda forneceria cestas básicas

através de um programa social da prefeitura, implantado naquele ano – e que teve a

duração de poucos meses – chamado Cesta-Escola, sobre o qual é fácil deduzir que se

tratava da doação de uma cesta básica mensal a cada família que possuísse crianças na rede

municipal de educação. Além disso, o Dilazenze fez um orçamento solicitando oitocentos

reais para o lançamento do projeto. Uma parte da verba seria usada na confecção de

bermudas e de camisas com o símbolo do projeto para as crianças e adolescentes, enquanto

uma outra parte cobriria as despesas do coquetel de lançamento, para o qual seriam

esperadas quase duzentas pessoas entre os participantes, seus familiares e convidados.

Já num segundo momento, a prefeitura mudou a proposta inicial do convênio,

oferecendo um montante total de dez mil e quinhentos reais para a realização do Batukerê,

que seria dividido em três parcelas, com a seguinte distribuição: três mil reais em maio,

três mil e quinhentos reais em junho e quatro mil reais em julho. Havia, ainda, a proposta

de que os salários dos instrutores viriam de ‘bolsas’ fornecidas pela universidade através

de um convênio já existente com o governo municipal, o que logo foi descartado pois,

evidentemente, era preciso ser universitário para ter direito às bolsas. A solução possível

seria tirar o valor dos salários da verba da prefeitura, diminuindo a compra de material

inicialmente previsto para o projeto.

Page 386: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

385

Prevista inicialmente para o fim de abril, a inauguração foi adiada numa primeira

vez para o dia 11 de maio devido à dificuldade de fazer com que a prefeitura liberasse o

recurso solicitado para a sua realização, o que acabou só acontecendo quando o grupo

conseguiu que a encomenda das camisas fosse feita em nome da própria Ilheustur, que se

viu, então, obrigada a pagar. As bermudas foram confeccionadas pelas costureiras do

Dilazenze mediante uma promessa de pagamento com o mesmo recurso da prefeitura. O

material utilizado foi uma sobra de tecido comprado para as fantasias do carnaval.

No dia 13 de maio, a secretária de Assistência Social compareceu ao Dilazenze

levando cestas básicas para serem distribuídas às famílias já cadastradas do Batukerê.

Nesse momento, ela ainda era pré-candidata à vice-prefeitura31 e estava apoiando Gurita

para vereador, que também aparecia como ‘distribuidor’ das cestas.

Uma nova data para o lançamento do projeto foi acertada. Seria no dia 26 de maio,

com a presença do prefeito. No dia marcado ele não compareceu, mas estiveram presentes

a então secretária de Assistência Social, Gurita, o funcionário da Ilheustur encarregado das

negociações iniciais e duas pessoas ligadas ao Serviço de Apoio às Micro e Pequenas

Empresas (SEBRAE) de Ilhéus, sendo uma delas Luiz Carilo, ex-dirigente do Lê-guê Depá

que trabalhava como consultor da entidade, cuja presença foi uma surpresa muito festejada.

O convite à participação do SEBRAE fora proposto e articulado pelo funcionário da

Ilheustur a partir de sua expectativa e concepção de que um trabalho como o Batukerê

geraria “emprego e renda” para a comunidade, ou como disse em seu discurso: “esse é um

caminho profissional para essas crianças porque a Bahia é exportadora de cultura.” O

discurso do representante do SEBRAE seguiu pelo mesmo caminho, porém, com ainda

mais ênfase na idéia de trabalho social como gerador de emprego: “cada um de vocês

[apontando para as crianças] se veja como um empreendedor, como um empresário. Eu

31 O nome da vice-prefeita só foi publicamente anunciado no dia 28 de junho de 2000 (Goldman 2001:64).

Page 387: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

386

estou vendo vários futuros empresários aqui.” Gurita também ressaltou que o Dilazenze, a

prefeitura e o SEBRAE estariam “dando profissionalização” àquelas crianças. A palavra

‘cidadania’ também foi repetida algumas vezes por essas pessoas, sempre acoplada à idéia

de ‘emprego e renda’. O funcionário da Ilheustur, por exemplo, afirmou que o próximo

carnaval seria a “comemoração da cidadania”, com o desfile das crianças do Batukerê

como uma ala do Dilazenze.

Diferentemente das demais pessoas que discursaram, o presidente do Dilazenze não

se referiu a ‘emprego e renda’ e ‘cidadania’ como objetivos do projeto naquele momento.

Seu enfoque foi sobre a violência que atingia o bairro, especialmente a sub-região do

Dilazenze, e de como o Batukerê poderia ser útil dando “ocupação” às crianças e aos

adolescentes, tanto mais porque a ‘violência’ vinha de pessoas próximas, adolescentes que

os organizadores do projeto viram crescer32. Manter as crianças ocupadas, passando

manhãs e tardes na escola e no projeto era uma forma de evitar que elas tivessem mais

contato com aqueles rapazes, dos quais algumas crianças eram irmãs. Ao longo do projeto,

as pessoas realmente se preocupavam em manter as crianças mais próximas daqueles

adolescentes “debaixo da vista” para que elas não viessem a ter o mesmo comportamento.

O Projeto Batukerê efetivamente começou a funcionar no dia 29 de maio, ainda

sem a liberação da verba prometida pelo governo municipal. Nas primeiras semanas, o

projeto contou com doações e com alguns ingredientes das cestas básicas levadas por

Gurita e não distribuídas na ocasião porque as famílias não compareceram. Ao longo de

todo o mês de junho, houve várias tentativas inúteis de conseguir a liberação da primeira

parcela do convênio que, na verdade, nunca foi assinado. Ele só existiu como proposta da

prefeitura.

32 Episódios freqüentes de violência protagonizados por esses adolescentes vinham dominando as conversas eas preocupações de todos ao longo de várias semanas.

Page 388: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

387

Ao mesmo tempo em que buscava o financiamento do governo, o Dilazenze

também procurava por empresários e comerciantes. Foram redigidos inúmeros ofícios

solicitando material para as oficinas e auxílio em dinheiro ou em mercadoria para a

merenda. Dos mais de vinte ofícios distribuídos, somente uma papelaria atendeu doando

algum material. A essa altura, em meados de julho, já havia uma dívida com a padaria, que

fornecera pão para o projeto por alguns dias e não havia mais cestas básicas. Somente

poder-se-ia contar com as doações, que já não sustentavam o projeto. Comentando sobre o

auxílio de grandes empresas aos blocos afro de Salvador, Ribard (1999) diz, em nota, que

os pequenos comerciantes ajudam os grupos “em nome da solidariedade étnica” (:396). No

caso específico do Batukerê, o que se poderia dizer sobre o fato de os comerciantes locais

não ajudarem? Seguindo o raciocínio de Ribard, poder-se-ia falar de ‘racismo’ ou de

‘rivalidade étnica’, já que não existiria a “solidariedade étnica”? Difícil dizer isso sobre os

que não ajudam e mesmo sobre os que ajudam em outras ocasiões. O Dilazenze, assim

como outros blocos afro, está sempre demandando auxílio e muitas vezes os comerciantes

cedem mercadorias porque isso faz parte de uma relação estabelecida com o bairro ou com

as entidades locais, o que os faz doar pães tanto para o grupo afro quanto para o asilo de

idosos sustentado pela igreja católica. Mas eles também podem ajudar em função de quem

solicita a ajuda – às vezes, discute-se no grupo quem vai procurar por que comerciantes, se

existe uma relação de amizade ou de consumidor que poderia facilitar a negociação...; e

ainda porque os comerciantes podem vir a ser beneficiados se houver alguma perspectiva

do grupo obter algum recurso, o que lhe possibilitaria pagar por algum produto.

No dia 23 de julho, deu-se o lançamento da candidatura de Gurita no andar superior

do Clube 19 de Março, o mesmo onde foi abrigado o Memorial da Cultura Negra. Durante

um discurso de apoio ao candidato, o presidente do Dilazenze voltou a falar do Projeto

Batukerê como forma de combater a violência e disse que contava com a ajuda do prefeito,

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388

ali presente e também candidato à reeleição. Sua fala converteu-se, então, em mote para o

discurso do prefeito, que elogiou o Dilazenze e seu presidente e disse que “violência não se

resolve com polícia, mas com capoeira, com samba, com movimento afro, com escola... e

com o Batukerê do Dilazenze.” Ao despedir-se do presidente do grupo, o prefeito lhe disse

que o dinheiro seria liberado no dia seguinte. Mais uma vez isso não aconteceu.

O funcionário da Ilheustur que vinha intermediando o processo desistiu dele e disse

que se afastaria. A partir daquele momento, seria preciso falar diretamente com o prefeito.

Tentativas de audiência sucederam-se em vão. Até que em fins de julho e início de agosto,

ocorreu o episódio descrito no capítulo anterior sobre a acusação de racismo contra o

secretário de Serviços Públicos municipal, e irmão do prefeito, seguido da distribuição de

um panfleto de apoio ao secretário elaborado pela prefeitura em nome das entidades afro.

Como resposta, o presidente do Dilazenze, também presidindo o CEAC, elaborou um outro

documento negando o “apoio incondicional” ao governo que fora atribuído ao Conselho no

panfleto anterior redigido pela prefeitura. O desfecho do episódio foi a liberação de mil

reais para o Batukerê no dia seguinte ao lançamento do panfleto, logo que o governo

constatou que a autoria era do presidente do Dilazenze. Quando o grupo soube da

liberação, entendeu que se tratava de um “cala boca” e relutou um pouco em aceitar, com

medo de que se tornasse ainda mais difícil reivindicar o restante da verba prometida. E o

que o grupo temia, foi o que aconteceu: durante o ano de 2000, nenhum outro recurso foi

conseguido pelo Batukerê.

Apesar da verba liberada pela prefeitura ter sido muito abaixo do necessário para a

continuação do projeto, ele prosseguiu até o fim do ano, ainda que sem merenda e sem

material para as oficinas. Nos meses de janeiro e fevereiro de 2001, as crianças e os

adolescentes do Batukerê foram reunidos para desfilar como uma ala do Dilazenze,

freqüentando oficinas especialmente voltadas para esse fim, com ensaios para a coreografia

Page 390: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

389

da ala, percussão e confecção de suas próprias fantasias. A participação das crianças no

desfile havia sido planejada como uma forma de mostrar o resultado do trabalho do ano

todo; seria o Dilazenze na forma de ‘bloco afro como entidade de trabalhos sociais’, tão

valorizada em tantos meios. Seria também uma espécie de ‘contrapartida’ do grupo para a

verba doada pela prefeitura, uma forma de fazer propaganda desta. E apesar da pouca

contribuição dada pelo governo municipal, o fato do grupo ter conseguido manter o

Batukerê e fazê-lo desfilar, acabou sendo mesmo uma propaganda, pois a realização do

projeto foi totalmente vinculada à ajuda da prefeitura, pelo menos assim foi percebido

pelos outros blocos afro.

Em 2001, o Projeto Batukerê foi retomado em abril, novamente a partir do

compromisso do governo municipal de colaborar com ele. Desta vez, o intermediário foi o

então secretário de Esporte e Cidadania, que fora procurado pelo presidente do Dilazenze e

pelo novo presidente do Conselho de Entidades Afro-Culturais, que lhe era politicamente

próximo. Segundo o próprio secretário, ele teria se “encantado” com o projeto quando o

visitou em março, num dia em que as crianças foram reunidas especialmente para a sua

visita já que o projeto ainda não havia sido retomado. E, embora sua secretaria não tivesse

recursos próprios por ter sido criada naquele ano e, portanto, não houvesse orçamento

previsto para ela, ele conseguiria fechar um convênio entre a prefeitura e o Dilazenze.

Na verdade, o Projeto Batukerê seria o primeiro projeto apoiado pela Secretaria de

Esporte e Cidadania, que até aquele momento apenas patrocinava alguns eventos

esportivos, mas nada além disso. Segundo disse o secretário, o Batukerê seria “o pontapé

inicial (...) da parte [da secretaria] relativa à cidadania”, que estaria “inserida” em todas as

oficinas do projeto. Assim, no dia 08 de abril, durante a posse da nova diretoria do CEAC,

que ocorreu no Terreiro Tombency, o secretário garantiu a assinatura do convênio nos

seguintes moldes: ele teria a validade de seis meses, renovável por mais seis, e seriam

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390

repassados três mil reais ao Dilazenze, em três parcelas de mil reais nos meses de maio,

junho e julho. Na ocasião, o então secretário fez um discurso muito elogioso ao Dilazenze

e ao Projeto Batukerê, levantando as mesmas idéias tantas vezes ressaltadas quanto à

importância de se ter um projeto social para que o bloco afro não seja apenas carnavalesco.

Disse que quando viu o nome do projeto, pensou que seria “mais uma entidade que tratava

única e exclusivamente do carnaval”, porém, a partir de sua leitura e posteriormente de sua

visita, ‘abraçou-o’ e fez sua defesa perante o prefeito, argumentando que a prefeitura não

gastaria muito, posto que “a maior parte do custo desse projeto está, efetivamente, sob a

responsabilidade de Marinho [presidente do Dilazenze] e dos seus familiares e da equipe

que o ajuda.” Ou seja: a viabilização do projeto é estreitamente vinculada ao trabalho

voluntário.

Apesar dos esforços do secretário de Esporte e Cidadania, o convênio só foi

efetivamente assinado em junho e, em função do atraso na liberação dos recursos, a parcela

correspondente aos três primeiros meses foi de mil, seiscentos e setenta reais. A segunda

parcela, prometida para agosto, teve o valor de mil, seiscentos e trinta reais e só veio a ser

liberada em fevereiro de 2002.

Ao longo dos anos seguintes, o Batukerê continuou em atividade, embora muito

precariamente, pois nenhum outro recurso foi obtido, afora uma doação de instrumentos

musicais e de um sistema de som em outubro de 2003. Esta foi feita por uma fundação com

sede em Salvador vinculada a um banco. Quando do primeiro contato com a instituição, o

Dilazenze solicitou o que havia de mais urgente para a manutenção do projeto: recursos

para a merenda, material para as oficinas e salários para os instrutores. Porém, seguindo

uma espécie de regra geral das agências financiadoras desse tipo de projeto33, a fundação

33 Bartholdson (2000) faz uma rápida análise de duas organizações não-governamentais de Salvador e de suarelação com agências financiadoras. Ele mostra que a que adere aos programas das agências sempre obtémrecursos, enquanto a outra, que deseja preservar sua autonomia, tem muito mais dificuldades para receber

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391

alegou que só financiaria recursos permanentes, o que excluía merenda e, principalmente,

salários. Foi iniciativa sua a doação dos instrumentos e do sistema de som, cujo valor total

ficou em cerca de dez mil reais.

O Dilazenze vem estabelecendo contatos com agências financiadoras de projetos e

organizações não-governamentais já há algum tempo e torna-se cada vez mais clara a

impossibilidade de financiamento do trabalho das pessoas, que é, na linguagem usual do

mundo das ongs, chamado de “contrapartida” do grupo. A idéia de ‘contrapartida’ revela

que o desejo de realização de um trabalho social, desse ponto de vista, deve ser um desejo

do grupo de ‘contribuir com a sociedade’, de ‘promover cidadania’, de ‘ajudar sua

comunidade’ etc. O trabalho voluntário seria a forma de ‘fazer a sua parte’, numa espécie

de jargão existente no meio, e as agências entrariam com os recursos estritamente

materiais e, às vezes, de formação: é preciso ensinar aos grupos como eles devem agir.

Apesar de todas as dificuldades, o Batukerê permaneceu em atividade, o que se

deve menos ao trabalho voluntário dos instrutores do que à sua capacidade de criar um

desejo de continuidade do projeto desencadeado entre as próprias crianças e adolescentes.

Embora nunca o tenham abandonado definitivamente, os instrutores originais foram

deixando de trabalhar regularmente no Batukerê logo que este começou a se desestruturar

com a falta de merenda e de materiais para as oficinas e, evidentemente, quando as

esperanças de remuneração foram se esvaindo. Contudo, o pouco tempo de bom

funcionamento do projeto foi suficiente para gerar nas crianças e adolescentes participantes

uma vontade de que ele não deixasse de existir, e talvez este tenha sido seu grande mérito.

Aos poucos, especialmente os adolescentes foram assumindo as funções de instrutores. No

caso da percussão, por exemplo, inicialmente um sobrinho do mestre de bateria, de cerca

de vinte anos, foi designado para ocupar o seu lugar, mas quando este também não pode,

financiamentos e, quando isso acontece, ela sofre a intervenção direta das agências, que tentam moldá-la

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392

um outro sobrinho adolescente, ainda mais novo, cumpre a função. Porém, no caso das

oficinas de dança e de criatividade, esse desejo ficou ainda mais claro porque elas foram,

de fato, assumidas pelas crianças, numa organização própria, sem interferências de adultos.

É bem verdade que o instrutor responsável pela oficina de criatividade, por exemplo, de

vez em quando realiza algum trabalho específico direcionado para algum evento, mas a

oficina permanece em atividade mesmo em sua ausência. As crianças e adolescentes

compõem músicas, criam coreografias, montam e ensaiam peças de teatro com temas

sociais... Pode-se especular que uma tal disposição seja gerada pelo agenciamento de

fluxos produzidos pelas próprias atividades de percussão e de dança afro realizadas pelo

Dilazenze, das quais as crianças almejam, um dia, participar34, mas também por terem sido

afetadas por um novo modo de subjetivação, o mesmo que fez com que o Batukerê viesse a

existir.

O espaço de funcionamento do Batukerê também deve ser levado em conta na

composição dos agenciamentos que produziram esse desejo de continuidade do projeto nas

crianças e adolescentes. As oficinas são realizadas tanto na quadra do Dilazenze, que é

aberta, quanto no barracão do Terreiro Tombency, especialmente para as aulas de dança

em função do piso – mais apropriado do que o da quadra – e quando está chovendo.

Ambos são espaços ‘quase’ públicos: o primeiro por ser local de passagem para várias

moradias e o segundo pelo livre acesso às crianças da família. Além disso, é preciso

observar, tanto a quadra quanto o barracão são ótimos locais para se estar e para brincar.

Assim, um outro mérito do projeto foi o de ter tornado o espaço do Dilazenze ainda mais

‘social’ do que já o era. Desde o início do Batukerê, a quadra e o terreiro estavam sempre

ocupados por muitas crianças, o que ora era comentado com orgulho pelos adultos como

segundo seus padrões.

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393

um efeito positivo do projeto, ora constituía uma reclamação, pois era preciso ‘mandar as

crianças para suas casas’. O Batukerê tornou-se parte do cotidiano dessas crianças e

adolescentes como um momento de sociabilidade e de lazer, o que, sem dúvida, é muito

bom para o futuro do Dilazenze.

As relações de vizinhança e de parentesco entre os participantes do Batukerê

também favorecem esse desejo de continuidade. Em 2001, pôde-se constatar que cerca de

80% dos freqüentadores do projeto moravam na própria Av. Brasil, onde estão situados o

Dilazenze e o Terreiro Tombency, ou em suas imediações, e que 70% deles ingressaram no

projeto no ano anterior. De modo geral, são filhos e filhas de pessoas que guardam relações

entre si de parentesco ou de amizade ou de proximidade do Dilazenze ou do terreiro. Como

foi ressaltado antes, a base familiar que sustenta o Dilazenze também é a base do Batukerê.

Deve-se considerar ainda nessa disposição das crianças, tanto para assumir o

Batukerê quanto para aceitar que outras crianças o assumam, um modo de subjetivação

produzido pela escola. Há um desejo de organização baseado na ‘forma-escola’ a partir do

binômio aluno-professor, que é a forma de organização que se conhece, que assegura a

continuidade do modelo que já estava implantado no projeto. Algumas crianças assumiram

o lugar dos instrutores e outras aceitaram os ‘novos’ professores.

Concepções do Batukerê

O modelo escolar do Batukerê já estava presente em sua concepção a partir da

exigência de que os participantes deveriam estar freqüentando a escola para fazerem parte

do projeto. Essa exigência costuma ser característica de grande parte dos projetos sociais

de mesmo tipo, pois acredita-se com essa medida estar contribuindo para a diminuição da

34 Para que esses adolescentes continuem à frente das oficinas do Batukerê, foram tomadas duas providênciasem 2003: a primeira foi mudar o limite da idade máxima de quatorze para dezesseis anos; a segunda foiincorporar esses adolescentes nos grupos de dança afro e de percussão do Dilazenze.

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394

evasão escolar, problema grave que afeta a população mais pobre do país inteiro35. Na

primeira reunião de pais do Projeto Batukerê, cerca de dois meses após o seu início, foram

dados exemplos tanto de crianças que passaram a freqüentar e a ter melhor rendimento na

escola, quanto daquelas que “pioraram” e por isso recebiam ameaças dos pais de que se

não “melhorassem” seriam obrigadas a sair do projeto.

No entanto, no caso do Batukerê, a ‘forma-escola’ se impôs também por outras

vias. Especialmente entre as mulheres ligadas ao projeto (instrutoras de dança afro, a

secretária e a responsável pela merenda), era cultivado um jeito de ser bastante professoral,

com alguns dos dispositivos disciplinares da escola, como a ‘lista de chamada’ ou ‘diário’,

‘notas’ em redações e pequenos trabalhos, exigências de comportamento... Uma das

instrutoras chegou a ir até a algumas das escolas freqüentadas pelas crianças para saber

sobre seu “comportamento” e “rendimento” junto aos professores.

Encaixa-se também nessa ‘forma-escola’ uma idéia levantada em diversas ocasiões,

tanto por parte dos próprios instrutores como também de pessoas do governo ou próximas

ao Dilazenze, de que o projeto deveria oferecer, além das oficinas, aulas de ‘reforço

escolar’ ou ‘redação’. Desse ponto de vista, caberia a ele funcionar como um complemento

à escola. Evidencia-se o mesmo sentido nas propostas feitas por militantes do MNU

graduados em história e professores desta disciplina que se aproximaram do projeto

dispostos a dar aulas sobre história da África, ausente dos currículos escolares. Aqui, como

na proposta do projeto elaborado em 1999 pelo Dilazenze junto com o militante do

movimento negro do Rio de Janeiro descrita anteriormente, enfatiza-se o caráter ‘étnico’

35 Sem querer entrar no mérito da discussão, mais apropriada para especialistas em educação, essa exigênciaparece baseada na suposição de que ela pode funcionar como uma forma de ‘compensação’ ou de ‘castigo’: aescola é ruim, mas se a criança for capaz de suportá-la, ela poderá participar dos projetos, que costumamoferecer atividades mais agradáveis; ou a escola é ruim e se a criança não conseguir suportá-la, então,também não poderá participar dos projetos.

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395

que deveria ter o Batukerê por ser promovido por uma entidade do movimento negro. O

modelo escolar favorece a preocupação com a educação formal.

Mas a ‘forma-escola’ é só uma das vertentes de concepção do Batukerê. Uma outra

que não se opõe propriamente a essa é a do Batukerê como um espaço de

profissionalização. Não há dúvidas de que de todas as oficinas originalmente oferecidas

pelo projeto, a de percussão é a que pode ser melhor encaixada na proposta de formar

profissionais, especialmente em Ilhéus, onde as oportunidades para dançarinos são bem

mais raras do que para percussionistas, que podem ser contratados por bandas de pagode,

de axé ou de forró, sem deixar de levar em conta a esperança de que as bandas afro farão

sucesso novamente e proverão sustento financeiro para seus percussionistas. E o mestre de

bateria do Dilazenze, instrutor da oficina de percussão do Batukerê, ainda que nem sempre

esteja empregado, é um exemplo de profissional da percussão, tendo trabalhado em

diversas bandas na cidade e formado algumas outras, inclusive aquela em que está atuando

no momento (formada exclusivamente por componentes do Dilazenze).

Essa diferença entre concepções foi o que provocou a mudança do nome da oficina

de ‘artesanato’, pensado inicialmente, para ‘criatividade’. A idéia de oficina de artesanato

pressupunha a produção de artefatos que poderiam vir a ser vendidos pelas crianças. Em

geral, é de onde se espera que venha a tal ‘geração de emprego e renda’ e de ‘auto-

sustentabilidade’ de projetos sociais como esse. Justamente o responsável pela oficina,

artista plástico que costuma colaborar com o Dilazenze, possui uma concepção bastante

diferente do que deveria ser o Batukerê. Para ele, o projeto não deveria ser nem

profissionalizante nem um complemento à escola, mas uma alternativa a ela. Assim, sua

proposta de trabalho não pretendia ensinar a fazer objetos que pudessem ser vendidos

posteriormente, mas proporcionar às crianças um certo investimento na estética a partir da

pintura, do manuseio de diferentes materiais, de diferentes formas... A ampliação da idéia

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396

de oficina de artesanato para criatividade também lhe permitiu trabalhar com teatro e

expressão corporal, especialmente diante da falta de materiais básicos como papel, tesoura,

cola, tinta etc.

Um exemplo muito claro de choque entre essas concepções ocorreu no início de

2001. O coordenador do Batukerê foi procurado por uma moça que ensinava a fazer

artesanato em cerâmica. Ela ensinaria às crianças a técnica de se fazer um tipo de

artesanato muito comum nas lojas dos locais turísticos de Ilhéus, cujos motivos, em geral,

são produtos da região como o cacau, ou da Bahia, como o coco e o berimbau, por

exemplo. Ela ofereceu seus préstimos, mas não gratuitamente. Mesmo sabendo que o valor

do recurso prometido pela prefeitura não seria muito alto e que a contratação da artesã

desagradaria aos demais instrutores, pois até aquele momento eles não haviam recebido

nenhum pagamento por seu trabalho, o coordenador do Batukerê optou por contratá-la

baseado na idéia de que seu curso seria útil tanto para as crianças do Batukerê quanto para

os adultos do Dilazenze. Era a concepção do Batukerê profissionalizante se sobrepondo às

demais36. Haja vista que a verba prometida pela prefeitura não só atrasou como foi

reduzida a pouco mais da metade e que as dívidas já eram grandes com alguns

comerciantes, o descontentamento das pessoas que recomeçaram o trabalho no Batukerê

esperando receber alguma coisa por isso foi ainda maior quando perceberam que uma parte

do pouco dinheiro recebido pelo projeto seria pago à artesã. E, no fim das contas, a oficina

pouco valeu para as crianças, que nem mesmo ficaram com os objetos produzidos nas

poucas aulas.

Apesar das diferentes concepções dos responsáveis pelo Batukerê, a proposta

profissionalizante é a que mais parece adequá-lo às idéias presentes na mídia, no governo,

36 Nessa época, uma matéria sobre o Batukerê publicada no jornal da Fundação Cultural de Ilhéus –FUNDACI (Pauta, junho/2001) informava que o projeto contava com oficinas de criatividade e de artesanatoe cerâmica, valorizando seu caráter profissionalizante.

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nas organizações não-governamentais e até mesmo no movimento negro político sobre o

que deve ser um projeto social. Por isso, no release enviado aos meios de comunicação

quando do lançamento do Batukerê, foi essa a concepção que prevaleceu. Nele constava

que o objetivo do Batukerê seria: “fornecer alternativa ocupacional, educacional e

profissionalizante para crianças e adolescentes dessa comunidade [dos Carilos],

desenvolvendo neles conhecimentos artísticos e práticos que possam proporcionar-lhes

futura capacitação profissional.”

A profissionalização é uma característica inerente aos projetos sociais. Quando se

trata de projetos com crianças carentes, a arte é o principal recurso empregado, seja como

‘cultura popular’ sob o argumento de que já faz parte do mundo daquela comunidade – se

forem projetos ligados a blocos afro ou escolas de samba, busca-se formar percussionistas

–, seja como ‘cultura erudita’, com base na proposta de que é preciso oferecer o que

aquelas crianças não teriam acesso por si mesmas – nesses casos, costuma-se ensinar balé

ou música clássicos.

Entre os blocos afro, é também o Olodum o grande exemplo de sucesso dessa

concepção:

“(...) pode-se dizer que o Olodum apresentou-se, para algunsmoradores do Pelourinho, como uma alternativa de vida, umapossibilidade de ascensão social, de status e prestígio. Muitosmeninos, hoje integrantes da Banda Show Olodum, moravam noPelourinho ou arredores, não tinham perspectivas de trabalho e, nodizer do Maestro Neguinho do Samba, muitos deles, que poderiam“estar cheirando cola ou então roubando, fazem música. Nuncasonharam nem com Feira de Santana e, hoje, conhecem Nova York,Miami, conhecem o mundo quase inteiro e ainda recebem seu cachêcomo artista.” (05/03/96)” (Nunes 1997:56).

Contudo, sabe-se que, apesar dos esforços dos responsáveis por esses projetos, um número

insignificante de pessoas conseguem tornar sua profissão aquilo que lhes foi ensinado, já

que não é possível para o ‘mercado’ absorver tantos artistas. Como não se trata de

revolucionar, mas de incluir, é preciso dar ao mercado o que se supõe que ele esteja

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398

procurando. Mais uma vez o Olodum, antenado com os imperativos da ‘forma-ong’, é

referência. Como disse seu presidente quando reassumiu o grupo em fins da década de 90:

“Queremos que a Escola Criativa Olodum seja de cultura e tecnologia.Não queremos mais formar pobreza. Não vamos dar mais nenhumcurso em que as pessoas não possam vir a trabalhar depois. Não dámais para ser só percussionista ou dançarino. Vamos oferecer cultura?Sim, mas com inglês, informática, administração...” (Correio daBahia, 27/04/99).

E há sempre quem reivindique que o Projeto Batukerê seja semelhante.

O Projeto Batukerê na mídia

Em meados de julho de 2000, o Dilazenze enviou informações (releases) para

emissoras de rádio e TV locais sobre o Projeto Batukerê com a intenção de divulgá-lo, mas

também de tornar mais eficiente a pressão sobre o governo municipal para a liberação da

verba prometida. Alguns dias depois, foi marcada a primeira matéria com uma das

emissoras de TV e no mesmo dia, à tarde, o presidente do Dilazenze daria entrevistas em

duas rádios. Depois, outras rádios e uma emissora de TV contribuíram na divulgação do

projeto, embora nem sempre favoravelmente, especialmente no caso das TVs, quando não

se pode, no momento da gravação, ter controle sobre o que vai ao ar.

Na primeira matéria da TV, a repórter procurou enfocar o projeto como uma

realização não só do Dilazenze, mas também do terreiro, solicitando, inclusive, que se

montasse um “altarzinho” com imagens de orixás no barracão, onde parte da matéria foi

gravada. Não se pode dizer se em função de um preconceito contra o candomblé ou contra

blocos afro, houve uma primeira conseqüência desagradável por parte de um pai que,

separado da esposa e morando em outra cidade, reconheceu a filha na TV e ameaçou pedir

a guarda desta sob a alegação de que sua ex-esposa estaria permitindo que a menina

freqüentasse “ambientes ruins” como o Batukerê. Como era de se esperar, a menina deixou

de participar do projeto.

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399

A segunda matéria para a TV é exemplar de uma distorção grave, mas significativa

em relação à forma como esses projetos sociais são usualmente concebidos para lidar com

“crianças em situação de risco social”, segundo a linguagem utilizada pela mídia e por

ongs e agências financiadoras. A matéria foi feita por uma outra emissora que entendeu e

descreveu o projeto como atendendo a “crianças carentes” que seriam “vítimas da droga ou

da prostituição infantil”. E mesmo diante da negação de que o projeto envolvesse crianças

nessa situação, o repórter insistia em querer entrevistar um menino ou uma menina que

tivessem sido “tirados” dessa “vida” pelo Batukerê. Nenhuma criança foi entrevistada, mas

a matéria foi ao ar com esse viés, o que fez com que vários responsáveis procurassem pelos

instrutores do projeto para esclarecimentos37. E o Dilazenze chegou mesmo a ser

insistentemente procurado por instituições de atendimento a meninos e meninas de rua para

que estes fossem inseridos no Batukerê, o que era sempre recusado, tanto porque o

presidente do grupo não queria ver o projeto vinculado a esse trabalho quanto porque ele

considerava necessário que houvesse profissionais capacitados para isso.

Especialmente ao longo de seus dois primeiros anos, o Projeto Batukerê e,

conseqüentemente, o Dilazenze ganharam projeção na mídia e o trabalho do bloco passou a

ser valorizado em função do projeto. A citação a seguir, retirada de uma matéria sobre o

projeto num jornal publicado pela Fundação Cultural de Ilhéus, é só um registro de algo

que passou a ser repetido por membros do governo, por pessoas ligadas ao movimento

negro político e outras ligadas a entidades filantrópicas ou organizações não-

governamentais: “[o Dilazenze] não limita suas atividades apenas ao carnaval, mas

multiplica-as o ano inteiro, através desta grande iniciativa, possibilitando aos jovens

37 O Olodum teve um problema semelhante quando fez um convênio com o Projeto Axé, sendo que este eramesmo o objetivo do trabalho: inserir meninos e meninas de rua na Escola Criativa do Olodum. SegundoNunes (1997:60), mães de crianças que já participavam do Olodum “não queriam que seus filhos fossemconfundidos com meninos de rua.”

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400

daquela comunidade a construção coletiva da cidadania e a esperança de um futuro

melhor.”38

O Batukerê para o Dilazenze

A projeção que o Batukerê deu ao Dilazenze foi importantíssima para provocar

mudanças em suas relações com o governo e com outros setores sociais de Ilhéus. Mas é

preciso pensar também sobre os efeitos do projeto para dentro do grupo. Dependendo do

contexto, ele pode ser mais ou menos valorizado, a ele podem ser atribuídos benefícios ou

problemas do Dilazenze, e uma tal variação pode ocorrer a partir de um mesmo

interlocutor.

Logo que começou a funcionar, o Batukerê foi muito valorizado, especialmente

pelos moradores próximos e pelos pais das crianças e dos adolescentes atendidos. Não era

a primeira vez que o Dilazenze realizava um trabalho com crianças, mas o fato de ser um

projeto diário, em que as crianças usavam uniforme, que possuía uma placa com o nome,

que foi inaugurado com a presença de autoridades do governo municipal, foi mostrado na

TV... Tudo isso dava ao projeto uma dimensão diferente daquela que se costumava ter nas

atividades do Dilazenze.

Por outro lado, principalmente no início, não era incomum ouvir comentários que

tornavam o Batukerê equivalente a outros projetos já desenvolvidos pelo grupo,

especialmente diante de pessoas ou situações que o valorizavam de maneira excessiva, ou

seja, frente a afirmações que ao engrandecerem muito o novo projeto, acabavam

minimizando demais o que já havia sido feito até então. Era como se só a partir do

Batukerê o Dilazenze tivesse ganhado ‘consciência’, tivesse se tornado um bloco afro tal

como todos deveriam ser. Nesses momentos, o presidente do Dilazenze costumava dizer

38 Pauta, junho/2001.

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401

que o Batukerê tinha apenas uma aparência de algo mais organizado, mas não era muito

diferente de outras atividades que o grupo já realizara:

“eu não sei se o que o Dilazenze faz hoje não é o que o Dilazenzefazia há anos. Só porque se criou um projeto que a gente colocou:‘esse é o projeto social do Dilazenze’, que é o Batukerê... Mas opessoal continua achando que a percussão do Dilazenze, que otrabalho de dança... que isso não é projeto social.”

Em termos de objetivos, o Batukerê pode não ser muito diferente de outros

projetos, como o da banda mirim por exemplo; porém, sua aparência – como bem disse o

artista plástico colaborador do Dilazenze, “o Batukerê é um projeto que tem as

características de todos os projetos, então, aí eles enxergam como social” – e a visibilidade

ganha tornaram o Projeto Batukerê realmente importante para o Dilazenze. Isso pode ser

constatado, em primeiro lugar, na continuidade do projeto apesar de todas as dificuldades.

Ele está em seu quarto ano de funcionamento e entrando agora em novas relações com

organizações não-governamentais que poderão projetá-lo ainda mais e lhe fornecer

recursos como merenda e materiais para as oficinas39. Mas dentre muitas outras situações,

duas podem ilustrar bem a dimensão da importância que o projeto tomou para as pessoas

do Dilazenze.

Em 2001, o Dilazenze completou 15 anos. Como visto anteriormente, não é muito

comum no grupo que a escolha do tema do carnaval seja por votação, mas isso aconteceu

num encontro do Dilazenze em novembro daquele ano, quando se decidiu que no carnaval

de 2002 o bloco exaltaria sua própria história em seus 15 anos de existência. Dado que o

tema era de conhecimento de todos os possíveis compositores, não foi elaborada

exatamente uma apostila, mas um pequeno texto. Nele, ressaltavam-se os trabalhos do

Dilazenze na ‘comunidade’, mas não especificamente o Batukerê, como se pode ver neste

39 Além disso, tal como em 2000, quando o Batukerê foi criado, este é novamente um ano de eleiçõesmunicipais. Assim, o governo voltou a oferecer cestas básicas, ausentes desde antes das eleições de 2000, enegociações com um candidato a vereador devem resultar em novos uniformes para os participantes doprojeto.

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402

trecho retirado do texto: “outro importante aspecto do trabalho do Dilazenze é sua

profunda ligação com a comunidade onde atua. Diversos projetos sociais foram e

continuam sendo desenvolvidos pelo grupo em benefício dos moradores da Conquista,

especialmente de suas crianças e adolescentes.” (Grupo Cultural Dilazenze 2001).

Contudo, das cinco músicas que concorreram no Festival de Música do Dilazenze em

2002, cuja vencedora seria cantada durante o desfile, quatro fizeram referência ou citaram

o Batukerê como um momento importante da história do grupo. E esta não foi a primeira

vez que o projeto foi ‘cantado’. No carnaval de 2001, cujo tema era “Dilazenze – Angola –

Bahia”, um dos compositores também mencionou o Batukerê40.

Uma outra situação em que a importância do Projeto Batukerê foi muito destacada

pelos membros do Dilazenze ocorreu no mesmo encontro citado acima em que se escolheu

o tema do carnaval 2002. O encontro ocorreu no dia 03 de novembro de 2001 com a

presença de cerca de trinta pessoas entre diretores, componentes do grupo de dança e da

bateria e colaboradores. Segundo seus organizadores, o resultado esperado do encontro

deveria ser a identificação dos problemas enfrentados pelo Dilazenze e a apresentação de

propostas visando soluções e novas perspectivas que orientariam o planejamento do grupo

para o ano seguinte. Assim, como primeira atividade, foi proposta uma dinâmica de

grupo41 cujo objetivo seria identificar os principais problemas do Dilazenze. O item “falta

de verba para o Batukerê” foi eleito como o principal problema do grupo, sendo que os

40 As letras dessas músicas encontram-se no Anexo 5. Agradeço mais uma vez a Vincenzo Cambria que mecedeu as letras das músicas produzidas pelo Dilazenze, compiladas por ele para sua dissertação de mestrado(ver Cambria 2002).41 A dinâmica consistiu na divisão da plenária em quatro grupos que deveriam discutir a respeito dosproblemas enfrentados pelo Dilazenze. Em seguida, a coordenação solicitou que cada participanterelacionasse dez problemas e elegesse os três mais importantes. De volta à plenária, cada pessoa citou um dosproblemas selecionados por ela. Depois de uma primeira rodada de intervenções, as pessoas que assim odesejassem poderiam citar outros problemas, o que resultou num total de 45. Estes foram relacionados numquadro e cada pessoa foi convidada a eleger cinco dentre aqueles e lhes conceder notas de 1 a 5, de acordocom a importância que cada um deles tivesse para a entidade. Aqueles que recebessem as maiores pontuaçõesno final da dinâmica seriam considerados os piores problemas do grupo. Essa dinâmica foi aprendida pelosorganizadores no curso de formação de lideranças comunitárias patrocinado por uma empresa de telefoniamencionado anteriormente.

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403

dois seguintes em ordem de prioridade também foram justificados em função do projeto:

“falta de aproveitamento da quadra [do bloco]” e “falta de eventos para arrecadar fundos

para o Dilazenze” eram problemas fundamentalmente porque se o grupo tivesse recursos

próprios não precisaria depender de ninguém para manter o Batukerê.

Um segundo momento do encontro foi dedicado às sugestões de soluções e

propostas de encaminhamentos para o Dilazenze. Novamente as pessoas foram divididas

em grupos para que elaborassem cartazes em que as gravuras escolhidas deveriam refletir

suas propostas e anseios para o bloco. Como era de se imaginar, todos os grupos fizeram

sugestões voltadas para o Batukerê: em todos os cartazes, havia fotos de crianças sorrindo

ou em situação de pobreza que foram ‘explicadas’ pela importância do projeto para as

crianças da comunidade. As propostas dos grupos para o Batukerê foram:

Grupo 1: “Fortalecer o projeto Batukerê para que as crianças da comunidade

tenham melhores perspectivas de trabalho para o futuro.”

Grupo 2: “Procurar o apoio de alguma pessoa influente que seja padrinho (ou

madrinha) do projeto Batukerê.”

Grupo 3: “Enriquecer o trabalho com as crianças do projeto Batukerê com

atividades ligadas ao artesanato, ao esporte e ao reforço escolar.”

Grupo 4: “Expandir os trabalhos sociais do Dilazenze para atender às necessidades

não só das crianças e dos adolescentes, mas também dos adultos da comunidade.”

(Grupo Cultural Dilazenze 2001)

A mesma dinâmica permitiu tornar mais visíveis os desejos dos componentes do

Dilazenze em relação ao seu desenvolvimento enquanto ‘grupo artístico’. Algumas

propostas foram feitas nesse sentido. Entretanto, também nessas percebe-se a imposição do

Batukerê, ou dos trabalhos sociais de modo geral, como prioridade do grupo. É preciso

observar que uma tal ‘imposição’ não é obra de uma pessoa ou de um grupo, ou seja, não

se trata de fazer prevalecer um desejo sobre outros. Há até alguns momentos em que as

diferentes concepções de bloco afro são colocadas em disputa, porém, no caso em questão,

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404

quando o bloco está sendo pensado coletivamente, o que se vê é um novo modo de

subjetivação, é aquele processo de cidadanização, perpassando todo o grupo. Não se trata

também de dizer que as pessoas não desejam ter sucesso, ser reconhecidas como artistas. O

que se passa é que enquanto ideal de bloco afro – e é isso o que uma dinâmica como essa

apresenta –, não há divergências nessas concepções; é como se o desejo de sucesso não

pudesse vir sozinho, como se isso não fosse ‘correto’: as pessoas devem poder sobreviver

de seu trabalho no bloco como artistas que são, mas é bom que isso esteja a serviço de algo

considerado ‘maior’, ou seja, algo como o ‘trabalho com a comunidade’. Nas propostas

formuladas nos grupos visando o crescimento do Dilazenze como grupo artístico percebe-

se que isso significa também “gerar recursos para a entidade” a fim de torná-la

independente, buscando solucionar, assim, os principais problemas apontados na dinâmica

anterior. As propostas formuladas pelos grupos foram as seguintes:

Grupo 1: “Reativar a banda musical para estimular e dar visibilidade ao talento de

jovens músicos e compositores do grupo e, ao mesmo tempo, gerar recursos para os

projetos da entidade.”

Grupo 2: “Resgatar e profissionalizar a banda musical para gerar recursos e ter uma

base já pronta para a bateria do bloco para o carnaval”; e “realizar oficinas de dança

permanentes que, além de fornecer novos dançarinos para o grupo de dança,

possam gerar recursos para a entidade.”

Grupo 3: “Procurar um produtor que possa captar recursos de forma mais eficaz e

vender os trabalhos da entidade”; e “ter uma banda musical permanente tentando

melhorar a qualidade do trabalho desenvolvido (ex. trabalhar mais a voz).”

Grupo 4: “Valorizar o trabalho musical do Dilazenze visando a profissionalização

de seus integrantes mas sem esquecer das oficinas com as pessoas da comunidade.

É importante que essas últimas sejam desenvolvidas durante o ano todo.” (Grupo

Cultural Dilazenze 2001).

Ao longo dos últimos três anos foram realizadas diversas tentativas de obter

recursos junto a diferentes instituições, governamentais ou não, para o Batukerê. À medida

Page 406: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

405

que os recursos não vieram, o projeto perdeu um pouco sua importância, embora nunca

tenha sido realmente interrompido. Parte disso aconteceu também porque os principais

instrutores, assim como o coordenador do projeto, passaram a ter outras ocupações ou

mudaram da cidade. Esse período em que o Batukerê continuou a existir graças, em grande

parte, ao empenho das próprias crianças e adolescentes, corresponde a um momento em

que o Dilazenze passou a ter destaque também sob outros aspectos, um que pode ser

chamado de ‘empresarial’ e um outro ‘artístico’, ambos impulsionados pelo seu

envolvimento no Memorial da Cultura Negra.

Bloco afro: ‘forma’ grupo artístico e ‘forma’ empresa

Em termos sociológicos, o bloco afro é uma organização social de difícil definição.

Em geral, ele é concebido como um movimento social em função do grande número de

pessoas que ele é capaz de aglutinar e, principalmente, porque o foco da análise é jogado,

às vezes exclusivamente, sobre o que seria seu caráter étnico e de luta contra o racismo.

Isso faz com que muitos pesquisadores privilegiem este aspecto e ignorem ou façam outros

parecerem ‘problemas’: como conceber que um grupo do movimento social não tenha a

democracia como objetivo e mantenha o mesmo presidente por anos a fio? Só mesmo

atribuindo-lhe características que não deveriam fazer parte deste “universo”, como as

“familiares” que Agier atribui ao Ilê Aiyê para explicar suas relações políticas (Agier

2000:115).

Também causa estranheza quando alguém que tem essa concepção a respeito de

bloco afro ouve algum dirigente referir-se à sua entidade como “meu bloco” ou algum

outro membro informar que o “dono do bloco” é ‘fulano’. No início da pesquisa, eu mesma

estava incluída entre as pessoas que não compreendiam esse tipo de atitude e presenciei

outras vivendo a mesma experiência. Conhecendo-se melhor o movimento afro-cultural,

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406

percebe-se que não há nada de estranho nisso, pois um bloco afro sempre tem um ou

alguns donos e o termo não é nada incomum no vocabulário dos grupos: tanto Ribard

(1999:334) quanto Agier (2000:111) citam-no em suas obras42, cujas pesquisas foram

realizadas junto aos blocos afro de Salvador.

Ainda que todo bloco afro tenha um ‘dono’ e isso seja reconhecido e aceito pelos

seus membros, dependendo do contexto, o caráter coletivo do grupo pode ser reivindicado

por pessoas que internamente se colocam como oposição ao presidente com o intuito de

produzir mudanças. Por outro lado, esse discurso pela coletividade também pode ser

assumido pelo próprio ‘dono’, fazendo com que seu “trabalho” seja um “sacrifício” pelo

bloco, não um desejo seu. E, recorrentemente, o caráter comercial ou empresarial do bloco

é reprovado por militantes de partidos de esquerda ou do movimento negro político.

A tensão entre o bloco afro como propriedade de alguém e como coletividade ou

concebido como ‘movimento social’ pode ser agravada quando entra em cena o grupo afro

sendo formado por artistas que colocam suas carreiras e o desejo de prover seu sustento

financeiro através deste ‘trabalho’ como prioridade. Esses aspectos e tudo o mais que foi

visto até aqui complicam a definição de bloco afro.

Em diversos momentos ao longo deste trabalho, foi enfatizado que o bloco afro

nasce de um desejo de singularização, de uma vontade de diferir através da produção de

um novo modo de subjetivação, que é dissidente em relação à subjetividade capitalística

porque é negro. Encontros 4 buscou mostrar como o bloco afro produz e é produzido pela

singularidade negra. No entanto, o desejo de produzir um novo modo de existência não

acontece sozinho, pois ele se encontra com ou é capturado por aquilo mesmo de que ele

buscava diferir-se. E, assim, a singularização do bloco afro é transformada em trabalho e,

42 Ambos os autores traduzem a palavra ‘dono’ como ‘proprietário’ ou ‘chefe’, propriétaire ou patron, nosoriginais em francês.

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407

conseqüentemente, em mercadoria, tornando-se ‘reconhecível’, familiar para o modo de

subjetivação capitalista.

Nas seções anteriores deste capítulo, viu-se que as atividades do bloco afro, ainda

que continuem produzindo uma outra forma de viver o mundo, são afetadas por novas

subjetividades, passam a ser concebidas como ‘trabalho social’ e acabam ganhando um

formato próprio, o da ‘forma-ong’. Mas o desejo de singularização do bloco afro, expresso

pela música, pela dança, pela estética, por uma arte singular, também pode ser capturado

pela subjetividade capitalística de uma outra forma, a forma ‘trabalho’, seja artístico ou

empresarial.

Esta seção pretende refletir sobre alguns desses aspectos levantados nos parágrafos

acima pensados na chave do desejo de se estar incluído e nas tensões geradas por ele em

relação com os demais desejos que criam um bloco afro.

Bloco afro como ‘trabalho’

Durante uma reunião relativamente recente, uma discussão entre o presidente e o

vice-presidente do Dilazenze explicitou um impasse que acompanha o grupo há anos – e de

maneira especial os protagonistas da cena: um bloco afro seria um grupo de artistas ou

não? O vice-presidente reivindicava que sim; o presidente dizia que não, que o Dilazenze

era “um bloco que desenvolvia um trabalho artístico, cultural e social”. A questão

levantada está no cerne da discussão sobre que concepção de bloco afro deve predominar

no grupo e volta à tona toda vez que há uma possibilidade de mudança, ou seja, quando há

algum indício de que o Dilazenze poderá vir a fazer sucesso também com sua música, não

somente com seu carnaval e, situação bem mais recente, com seus trabalhos sociais.

O mote para a retomada da questão foi a reativação do Sambadila, um grupo de

samba de roda formado por componentes do Dilazenze. Criado no início da década de 90

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408

meio por acaso quando tocava por lazer num bar perto da quadra do Dilazenze, na época

inexistente, o grupo Sambadila logo passou a ser requisitado para ser atração neste mesmo

bar e em outros, chegando a se apresentar em restaurantes na orla da cidade. “Fazia o

maior sucesso”, contou o presidente do grupo. Com o advento dos “bons tempos” das

bandas afro por volta dos anos de 1993 e 1994, o grupo foi deixado de lado. Em 2003, o

Sambadila voltou a se organizar para tocar na própria quadra do Dilazenze quando o bar do

grupo, que estava fechado havia algum tempo, voltou a funcionar.

Com a nomeação do presidente do Dilazenze para ser o administrador do Memorial

da Cultura Negra de Ilhéus em fins de 2003, o Sambadila começou a se apresentar nas

noites de sexta-feira e tornou-se a principal atração do espaço. Dado que o governo

municipal não faz repasse de verbas para o Memorial, o presidente do Dilazenze entendeu

que ele era pago para ser administrador do lugar, mas os eventos realizados lá seriam de

responsabilidade de quem os propusesse. Assim, a programação das sextas-feiras, chamada

de Sexta Cultural, era um evento do Dilazenze: na sua visão, era o Dilazenze que vendia

bebida e comida; era o Dilazenze que se apresentava no show e, então, era o Dilazenze que

lucrava.

Mas as pessoas que compunham o Sambadila entenderam que o grupo era formado

por pessoas que participavam do Dilazenze, mas não era o Dilazenze. Por isso, o

administrador do Memorial, ou o Dilazenze, deveria lhes pagar um cachê. Ao mesmo

tempo, o grupo passou a ser convidado para se apresentar em outros lugares e levava seus

instrumentos, de propriedade do bloco.

Diferentemente de outros momentos em que problemas semelhantes foram

levantados, aquele era bastante especial e delicado, pois o que estava em jogo era que os

interesses eram realmente conflitantes e envolviam dinheiro e ‘carreiras’. Por um lado, os

artistas do Sambadila acusavam o presidente do Dilazenze de não pensar no grupo, pois

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409

ele estava recebendo um salário como administrador do Memorial em função de “tudo” o

que o Dilazenze havia lhe “dado” e, ao negar ajuda ao Sambadila, ele estaria impedindo

que outras pessoas do grupo também fossem beneficiadas pela ‘boa situação’ do bloco. Por

outro lado, o presidente do Dilazenze acusava o Sambadila de estar “tirando proveito” do

grupo, “usando” seu nome e seus instrumentos, mas não querendo colaborar com ele,

explorando-o como se fosse um contratante qualquer. Além disso, os componentes do

Sambadila estariam “esquecendo” que se o grupo estava sendo chamado para outras

apresentações era porque o Dilazenze havia lhes proporcionado isso.

Em situações bastante específicas, acusados poderiam concordar com acusadores,

isto é, os componentes do Sambadila diriam que o Dilazenze lhes formou e que o nome do

grupo ajuda a conseguir apresentações, enquanto o presidente do bloco diria que se ele está

ocupando o cargo de administrador do Memorial, ele deve isso ao Dilazenze. No entanto, o

discurso do “sacrifício” pelo grupo é muito mais recorrente. Tanto o presidente do

Dilazenze quanto o mestre de bateria podem passar horas comentando sobre todo o seu

“esforço pelo grupo” e o quanto isso nunca lhes “rendeu nada”.

O vice-presidente do Dilazenze é também seu mestre de bateria e é considerado um

dos melhores, senão o melhor, de Ilhéus. É ogã confirmado do Terreiro Tombency desde

pequeno e tornou-se mestre de bateria quando o presidente do Dilazenze assumiu este

cargo, pois, na fundação do grupo, este último era o mestre. Um outro irmão seu já havia

ocupado a função em outro bloco afro e todos os seus irmãos, com exceção de um que foi

feito no santo, também são ogãs, ou seja, tocam atabaques durante as cerimônias e sempre

tocaram em blocos de carnaval, do tipo afro ou não. Apesar de ser de uma família de

percussionistas, só o vice-presidente fez uma carreira como músico, ainda que esta seja

bastante instável. Mais de uma vez ele esteve à frente da criação de bandas não vinculadas

ao Dilazenze e já foi contratado por outras maiores, de axé music ou de forró. Vez por

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410

outra ainda é chamado para participar de alguma apresentação ou substituir algum músico,

mas dificilmente encontra-se empregado.

O presidente do Dilazenze também é percussionista, mas suas atuações costumam

ser limitadas ao bloco, quando necessário, e ao terreiro, também como ogã. Foi vocalista e

percussionista da banda do Dilazenze, mas sua ‘carreira’ aconteceu como presidente do

grupo, cargo que ele ocupa há cerca de dezessete anos e que, se já era um líder do

movimento afro-cultural, ganhou ainda mais notoriedade com a visibilidade que o

Batukerê deu ao Dilazenze. Atualmente ele é administrador do Memorial da Cultura

Negra, o que lhe garante um salário enquanto a prefeitura o mantiver contratado. Chegou a

ser cogitado para ser candidato a vereador nas eleições de 2004, mas recusou a indicação.

Os irmãos representam duas concepções distintas de bloco afro, embora possam

compartilhá-las quando não estão em disputa direta e possam ser muito mais abertos para a

concepção oposta do que pode parecer nesta exposição, necessariamente objetiva, portanto,

simplista. Em comum, ambos anseiam por viver de seu trabalho no bloco, seja chamando-o

de ‘cultural’, tal como o presidente do Dilazenze concebe sua função43, seja como ‘artista’,

na visão do vice-presidente. O presidente do Dilazenze pensa o bloco como parte do

movimento negro e como entidade de divulgação da cultura negra, o que inclui eventos

‘culturais’ e ‘sociais’; para ele é importante que o grupo continue realizando trabalhos

sociais e recebendo a ‘admiração’ de outros setores a fim de permanecer como liderança

frente a outros grupos. Sua vida é pensar e dirigir o Dilazenze e o movimento afro-cultural

de Ilhéus, buscando os frutos que a posição de líder pode lhe dar, financeiramente ou não.

O vice-presidente investe principalmente no Dilazenze como grupo musical. Sua

carreira é como artista, como músico. Seu trabalho pelo grupo deveria lhe permitir “viver

43 Segundo Agier (2000), quando Vovô, presidente do Ilê Aiyê, assumiu o bloco como seu presidentedefinitivo, ou seja, quando Apolônio, o outro fundador, deixou o grupo, ele saiu de seu emprego numaempresa química e assinou sua carteira como ‘produtor cultural’ (:79).

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411

de música”, não apenas como instrutor, mas com apresentações, que poderia dar emprego a

outras pessoas. Esta deveria ser a prioridade do Dilazenze. Comparando as duas visões

com a discussão colocada no início deste capítulo a respeito do Olodum, poder-se-ia dizer

– ressaltando que não há nenhum juízo de valor nessa proposição – que o presidente do

Dilazenze tenderia para o Olodum dos trabalhos sociais, enquanto o vice-presidente

defenderia o Olodum do sucesso musical.

De forma alguma este é um problema exclusivo do Dilazenze. O capítulo anterior

mostrou que a maioria dos blocos afro de Ilhéus nasceu a partir da formação como grupos

de dança e outros como bandas afro. É importante notar que mesmo sendo prioritariamente

entidades carnavalescas, a maior parte do tempo e do esforço dos grupos afro é investida

com vistas a incrementar suas atividades ‘artísticas’ ao longo de todo o ano. Os grupos afro

são necessariamente formados por artistas ou artistas são formados nos grupos afro, e eles

esperam fazer de sua arte sua profissão. Esse desejo pode gerar diferentes conseqüências,

sendo responsável por muitos movimentos do movimento afro-cultural.

Mais uma vez, o grande exemplo para a concepção de bloco afro como grupo

musical é o Olodum. Alguns de seus componentes, especificamente aqueles que fizeram

parte da banda principal ou da diretoria do grupo no auge do sucesso, tornaram-se o

modelo de carreira para todo músico de bloco afro. Através deles, os grupos afro passaram

a representar uma chance de mobilidade social, mesmo que membros do movimento afro-

cultural de Ilhéus comentem que alguns poucos músicos, de fato, tenham conseguido

‘ascender socialmente’44.

Na verdade, a expectativa de ‘fazer carreira’ por parte do músico do bloco afro não

está no próprio grupo, mas em outros tipos de bandas, principalmente de axé. Costuma-se

44 Assim, parece um certo exagero Schaeber (1999) dizer que “com o sucesso da música, estes gruposculturais [blocos afro] começaram a oferecer estratégias de sobrevivência para negro-mestiços, com a

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412

dizer que o músico de bloco afro só passa a ser respeitado quando vai buscar outras

bandas. O próprio mestre de bateria do Dilazenze diz que era “discriminado” quando só

tocava em bloco afro e que só teve seu “trabalho reconhecido” quando foi para outra

banda, ainda que antes lhe dissessem que ele era “muito bom”. Em Ilhéus, são inúmeros os

casos, especialmente de vocalistas de bandas afro, que tentam trabalho em outros grupos

musicais. E, quando conseguem, não costumam voltar a cantar em bloco afro, pois isso

significaria “rebaixar-se”, segundo contam alguns dirigentes referindo-se à forma de

pensar desses músicos. Os pequenos blocos afro seriam locais de formação de músicos

para outras bandas, no caso dos blocos de Ilhéus, ou mesmo para blocos maiores, como

acontece com os blocos afro de Salvador (Ribard 1999:354)45.

Nas situações de impasse como a que ocorre no Dilazenze, uma das soluções mais

comuns é a saída dos líderes artistas – especialmente se o ‘dono’ do bloco não o for – para

fundar outro bloco afro, no qual poder-se-ia executar o que era pretendido no anterior46. A

fundação de um bloco afro envolve vários motivos, mas quase todos os grupos têm como

fundadores pessoas que não tinham muito destaque como músicos no bloco anterior e

passam a tê-lo no seu bloco. Ribard constata o mesmo em Salvador: “(...) seguindo o

percurso individual de pessoas ‘formadas’ ou tendo pertencido a esse quadro [do Ilê Aiyê],

pode-se seguir, de maneira mais ou menos direta, o percurso de criação de um certo

número de entidades afro existentes.” (1999:342).

Uma outra solução de trabalho para os artistas dos grupos afro é a formação de

bandas paralelas, às vezes de samba, como no caso do Sambadila, ou mesmo de axé music,

ampliação de atividades fora do circuito de carnaval. Os blocos afro, num primeiro momento, oferecempossibilidades de mobilidade social através das ‘típicas’ carreiras de música e cultura.” (:65).45 Ribard diz ainda que quando um músico formado por um bloco pequeno consegue trabalho num blocogrande, ele se torna um “orgulho” para seu bloco de origem. Além disso, esse dado é usado como argumentodos blocos menores para reivindicarem auxílio por parte dos blocos grandes (1999:355). Talvez isso ocorraem Salvador em função da distância existente entre os cinco maiores e os demais blocos afro.

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413

pois “é o que o povo gosta de ouvir”, como disse um dirigente que acabava de fundar uma

banda assim. Um dos dirigentes de Ilhéus disse que era preciso apelar para esse tipo de

música para se ter trabalho, pois a banda afro só faz sucesso em Ilhéus se estiver fazendo

sucesso em Salvador: “quando o Olodum estoura, a gente tem trabalho”. Um outro

presidente de um bloco cuja atividade além do carnaval resume-se a apresentações de sua

banda em hotéis, disse que era preciso tocar axé porque “é o que o povo pede”, mas que ele

fazia questão de “entremear com o afro para ir mudando o gosto do povo”.

Ver uma banda afro tocando axé pode ser motivo de comentários de reprovação por

parte de militantes do movimento negro e até de outros dirigentes de blocos afro, que

concebem seu trabalho como “voltado para a tradição”, mais “fiel” ao que seria a música

característica do bloco afro. No entanto, mesmo estes reconhecem que seria preciso tornar

o ‘afro’ mais comercial e aqueles que tocam axé dizem que gostariam de tocar somente

‘afro’, mas precisam ‘vender’ seu trabalho. Em todos esses casos, com mais ou menos

convicção, a música do bloco afro é concebida como produtora de subjetividade negra,

mas o desejo de diferir é capturado pelo modo de existência capitalístico, e a música tem

de ser transformada em trabalho para ser vendida, o que se torna possível quando sua

capacidade de diferir é minimizada e ela é incluída e passa a ser reconhecida pelo sistema.

À

A produção da Sexta Cultural no Memorial da Cultura Negra deu ao Dilazenze uma

outra possibilidade até então inexistente para os blocos afro de Ilhéus, a de experimentar a

forma ‘empresa’. Obviamente não se trata de uma empresa nos moldes administrativos,

mas o evento exige que o Dilazenze gerencie diferentes atividades, para as quais é preciso

que ele mobilize um pequeno número de pessoas que têm obrigações como se fossem

46 Conforme visto no início deste capítulo, o Dilazenze apresenta características – como a forte base familiar,a relação religiosa... – que impedem esse tipo de solução para o grupo e o mantêm coeso, o que, de um certo

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414

funcionários e recebem gratificações por isso. Este é um outro aspecto do bloco afro que se

opõe a pensá-lo exclusivamente sob o viés do movimento social, pois dirigentes e

componentes, ao menos aqueles mais próximos que participam do dia-a-dia do grupo,

esperam que ele seja capaz de gerar empregos e de pagar a quem lhe presta serviços.

A novidade da experiência não está no pagamento das pessoas. A exemplo de

outros blocos afro de Ilhéus, aqueles que participam mais intensamente e com maiores

responsabilidades dos preparativos do carnaval recebem uma “gratificação”, cujo valor

depende do orçamento do carnaval e do dinheiro repassado pela prefeitura. Mas esse é

sempre um momento complicado e de muita negociação. Aqueles que defendem o bloco

afro como uma empresa que deve pagar por serviços prestados costumam entrar em

conflito com aqueles que insistem no bloco como uma entidade da qual as pessoas

participam em função de um sentimento de ‘pertencimento’ em relação a ele. No caso do

Dilazenze, o fato de serem essas pessoas da mesma família torna tudo mais difícil, pois,

por um lado, exige-se que o ‘trabalho pelo grupo’ seja ainda mais dedicado; por outro,

argumenta-se que “por ser todo mundo da família”, a ‘gratificação’ deveria ser maior.

A novidade da experiência no Memorial está mesmo na proposta: o trabalho do

Dilazenze deve gerar prestígio para o grupo e para o administrador do espaço, mas deve

mesmo representar uma fonte de renda e de emprego. O presidente do Dilazenze orgulha-

se de poder, pela primeira vez, empregar algumas pessoas no bar, na limpeza e na

segurança do lugar, além de conseguir gerar recursos para pagar uma secretária para o

grupo e manter uma conta telefônica que serve ao grupo e ao Memorial. Disse que desde

da fundação do Dilazenze, sempre sonhou que era possível “sobreviver fazendo cultura”,

“viver daquilo que as pessoas estavam produzindo.”

ponto de vista, tornam a situação do grupo ainda mais complicada.

Page 416: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

415

Apesar da satisfação pela experiência, novamente o Olodum aparece como um

exemplo, sob um determinado ponto de vista, mal sucedido desse caminho. Segundo o

presidente do Dilazenze, a extrema profissionalização do grupo de Salvador teria

provocado o afastamento da “comunidade”: “começaram a entrar pessoas que eram

profissionais, funcionários, que eram pagas para fazer aquilo, não tinham compromisso

com o trabalho do Olodum.” E a partir dessa nova experiência, um problema há tempos

existente torna-se ainda mais explícito: trata-se da posição de ‘presidente’ ou de ‘dono’ do

bloco.

Além de empregar pessoas e de gerar lucros, o bloco afro costuma ter a estrutura

organizacional de uma empresa, obviamente num plano muito superficial. Salvo em alguns

raros casos, seu presidente é seu fundador ou um deles, às vezes com seu nome registrado

em cartório como proprietário do bloco. Ainda que outras pessoas possam geri-lo, as

principais decisões são suas. Esse é o caso, por exemplo, do Miny Kongo, que pode ser

assumido por pessoas diferentes dependendo do momento, mas o ‘dono’ é seu fundador,

que disse já ter pensado em “passar o grupo no cartório para as mãos” do principal

dirigente do bloco na época da pesquisa.

Ainda que o bloco seja registrado como uma ‘associação’ ou ‘grupo cultural’, o que

exige a existência de um estatuto que rege a realização de eleições periodicamente,

dificilmente elas ocorrem de fato. Para atualizar a documentação de um grupo, elas podem

ser simuladas, mas nem mesmo isso acontece. Em Ilhéus, por exemplo, apenas o Dilazenze

possui sua documentação em dia47. Em relação a Salvador, Ribard constata em sua

47 Em função de ser o único grupo em situação legal, em 2003 o Dilazenze recebeu todo o recurso docarnaval em seu nome – cerca de cinqüenta mil reais –, o qual seria repassado para os demais blocos. Porisso, o grupo foi acusado por um vereador de oposição de ser usado pela prefeitura para desvio de verbas. Apartir de então, a prefeitura exigiu que todos os grupos se regularizassem se quisessem receber recursos dogoverno municipal.

Page 417: AnaClaudiaCruzDaSilva - Tese - Agenciamentos Coletivos

416

pesquisa que só o Malê Debalê seria um grupo democrático por realizar eleições para a sua

diretoria (1999:337)48.

Em virtude do bloco afro ser concebido, especialmente entre pesquisadores e

militantes políticos, como uma entidade comunitária, é estranho aos ouvidos a informação

de que um bloco “foi passado” para alguém ou a frase “[fulano] me deu o bloco”, mas

essas situações são muito recorrentes na história do movimento afro-cultural de Ilhéus. Em

geral, exceto em casos como o do Miny Kongo, ser o dono do bloco significa representá-lo

no Conselho das Entidades Afro-Culturais, receber o dinheiro do carnaval, decidir sobre o

desfile do bloco, vender o bloco (ou a banda) para apresentações e organizar outras

atividades recreativas ou de finanças. Por isso, quando se dá o bloco para alguém, cobra-se

que isso seja feito “em cartório” já que envolve dinheiro e o antigo dono pode querer

“tomar o bloco de volta”. Também pode acontecer do dono do bloco querer “deixá-lo nas

mãos” de alguém em quem confie para retomá-lo quando voltar de uma viagem, ou de um

emprego que vai lhe tomar muito tempo... Ao menos em Ilhéus, o modelo de bloco afro

como ‘comunidade’ é a exceção, não a regra.

O Dilazenze é o grupo que apresenta peculiaridades em relação aos demais

blocos49. Isso não quer dizer que sua estrutura organizacional não seja de ‘dono’.

Entretanto, mais uma vez a forte presença da família faz a diferença também nesse aspecto.

O presidente do Dilazenze lembra com orgulho de ter ouvido Mário Gusmão elogiar o Lê-

guê Depá para sua mãe porque ela referia-se ao grupo dizendo “nosso bloco” e não “meu

bloco”. A característica familiar do Dilazenze impede qualquer afirmação de propriedade

do bloco, mas não impede um certo ‘sentimento’ de propriedade, tanto por parte do

48 Nos outros quatro grandes blocos de Salvador, seus presidentes são os ‘donos’ dos blocos, talvez comexceção do Olodum, embora depois da experiência de João Jorge longe da presidência e das conseqüênciasdisso para o grupo, tudo indique que não haverá mudanças tão cedo.49 Entre os outros blocos afro de Ilhéus, talvez o Guerreiros de Zulu não tenha uma estrutura de ‘dono’ etenha uma relação de representação com a comunidade, já que é mais recente e foi fundado por três amigos.Os demais, mesmo aqueles mais novos, possuem líderes que são donos ou herdeiros de donos.

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417

presidente quanto de outros componentes que, na maior parte do tempo, agem como se o

bloco lhe pertencesse. A reivindicação de democracia interna só acontece em momentos

muito circunstanciais. A nova experiência vivida pelo Dilazenze como ‘empresa’ na

produção da Sexta Cultural no Memorial da Cultura Negra é um deles.

O presidente do Dilazenze julga que manter o grupo sob seu controle é a melhor

forma de garantir sua eficiência, haja vista a sua experiência na função e seu

conhecimento. Além disso, sua concepção de bloco afro impediria o grupo de tornar-se

uma empresa nos moldes do Olodum e garantiria sua posição como um grupo de cultura

negra, conforme sua crítica citada páginas atrás. Outros componentes liderados pelo vice-

presidente do grupo, que reivindicam uma mudança na diretoria, pensam que o grupo

poderia ser mais eficiente, poderia lucrar mais se tomasse outras diretrizes.

O interessante nessa contenda é que o presidente do Dilazenze pretende defender o

grupo como bloco comunitário mantendo-se no cargo; por outro lado, em nome da

eficiência do bloco empresa, a ‘oposição’ reivindica a “democracia” do bloco como

movimento social. Mas a ‘democracia’ que pode existir num bloco afro tem de ser bem

entendida: dificilmente o bloco realmente muda de mãos, pois, como diz Moura, “em todo

bloco afro, quando se fala em ‘democratização’, trata-se da divisão de alguns cargos e

encargos entre os notáveis fiéis ao grupo nuclear, que normalmente é aquele que fundou o

bloco ou o resgatou de uma crise histórica.” (Agier e Moura 2000:371). Qualquer disputa

necessariamente vai ocorrer entre aqueles considerados legítimos para assumir a direção do

bloco.

Apesar desses aspectos do bloco como empresa e de ser controlado, em geral, por

uma pessoa, a discussão colocada no final deste capítulo não pretende negar o caráter

comunitário do bloco afro. Em primeiro lugar, a posição de ‘dono’ de bloco tem muito de

sua importância baseada no fato de que dirigir um bloco afro pode implicar uma grande

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418

influência sobre um número considerável de pessoas que se aproximam do grupo. Isso faz

dos dirigentes dos blocos afro líderes e, como ressaltado no capítulo anterior, ‘alvos’

preferenciais para o investimento de políticos, facilitado pelo desejo do dirigente de

perenidade no poder do bloco e que este pode proporcionar. Mas não apenas por isso: tal

como foi enfatizado no capítulo anterior, um bloco afro constitui um território existencial

onde pessoas entram em devir negro e viver isso vale a pena, para componentes e para

dirigentes, ainda que seja somente durante o desfile do carnaval, como acontece com a

maior parte dos grupos de Ilhéus.

À

O bloco afro nasce de encontros de fluxos que produzem uma nova forma de estar

no mundo. É um ‘território negro’ porque produz um modo de existência negro, que é

outro, é dissidente do dominante. Daí, do desejo de dissidência em relação a uma forma de

subjetivação dominante que oprime, que discrimina, que faz sofrer, nascem novas músicas,

novos ritmos, uma nova estética, novas maneiras de usar o tempo, novas concepções do

que está à volta: uma nova possibilidade de vida. Este foi o tema do capítulo anterior.

Este capítulo pretendeu mostrar que a subjetividade capitalística afeta as pessoas

sem cessar, capturando os processos de singularização gerados pelo desejo de diferir que

produzem o ‘território negro’ do bloco afro. Através de outros desejos, o de ‘incluir’

pessoas ou de se sentir ‘incluído’, ela transforma as atividades dos blocos afro em

mercadorias que podem ser vendidas agora ou no futuro (tratando-se da

‘profissionalização’ de crianças e adolescentes). Não se trata aqui de condenar tais ações.

Esta não é uma questão pertinente, pois esses aspectos constituem os blocos afro tanto

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419

quanto sua singularidade50. Se utilizo a idéia de ‘captura’ é porque o desejo de diferir vem

primeiro – afinal, as pessoas poderiam tentar ‘ser incluídas’ por outras vias mais fáceis do

que a do bloco afro –, mas uma vez concebido dessa forma, a venda da arte e das

atividades dos grupos torna-se uma de suas características e, cada vez mais, seus ‘trabalhos

sociais’ também. Assim os blocos afro têm sido definidos.

50 “Há sempre algo de precário, de frágil nos processos de singularização. Eles estão sempre correndo o riscode serem recuperados, tanto por uma institucionalização, quanto por um devir grupelho. Pode acontecer, porexemplo, de um processo de singularização ter uma perspectiva ativa a nível do agenciamento e,simultaneamente, a esse mesmo nível, fechar-se em gueto.” (Guattari e Rolnik 1986:53).

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420

Conclusão

“Acreditar no mundo é o que mais nos falta; nósperdemos completamente o mundo, nos

desapossaram dele. Acreditar no mundosignifica principalmente suscitar

acontecimentos, mesmo pequenos, que escapemao controle, ou engendrar novos espaços-tempos

(...). Necessita-se ao mesmo tempo de criação epovo.”

(Deleuze 1992:218)

Cada um dos capítulos deste trabalho teve o objetivo de descrever o movimento

afro-cultural de Ilhéus, ou mais exatamente o que é um bloco afro no contexto deste

movimento. Para entender seu surgimento em Ilhéus foi preciso começar pela descrição

dos agenciamentos que tornaram possível o nascimento do primeiro bloco afro, assim

como de toda uma nova forma de ver e de viver o mundo a partir dos encontros que

‘reafricanizaram’ o carnaval e a vida de Salvador. Os segundo e terceiro capítulos foram

dedicados a pensar sobre os fluxos que passavam em Ilhéus e que, em agenciamentos com

aqueles de Salvador, produziram o Miny Kongo e o Lê-guê Depá, os primeiros blocos afro

da cidade. Já os dois capítulos seguintes concentraram-se na descrição stricto senso do que

compõe um bloco afro, primeiramente a partir do que o singulariza pela produção de uma

forma de subjetivação negra e, em seguida, de sua captura pela subjetividade capitalística

através da homogeneização de suas atividades: tudo é transformado em ‘trabalho’ –

artístico ou social.

Considerando-se o que foi discutido em Encontros 1 a respeito da novidade do

surgimento do primeiro bloco afro – o Ilê Aiyê – enquanto forma de expressar, de dar

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421

visibilidade a um desejo de mostrar-se diferente e de, assim, propor mudanças na forma de

experimentar o ‘mundo’, a transformação das atividades do bloco afro em ‘trabalho’

representa o aniquilamento dessa produção de singularidade.

Como salientado no primeiro capítulo, os movimentos negros, entre eles os blocos

afro, também foram chamados de “novos movimentos sociais” por proporem a diferença

como base para as reivindicações, para novas lutas fora da esfera da produção. O problema

é que também os movimentos sociais podem ser ‘modelizados’ segundo discursos e

práticas. Isso fez com que desde o início os blocos afro fossem criticados e condenados por

não agirem como se espera de um ‘movimento social’, por enfatizarem a ‘cultura’ em

detrimento da ‘política’. E tem sido assim. A maior parte das críticas ao movimento afro-

cultural de Ilhéus vem de militantes de movimentos negros que concebem a política como

seu campo privilegiado de ação, mas elas também podem ser feitas por políticos de

partidos de esquerda ou de direita, por representantes do governo e por outros setores que

mantêm relações com os grupos afro, como, por exemplo, entidades que desenvolvem

trabalhos sociais que criticam os blocos afro quando estes cobram por suas apresentações1.

Do ponto de vista de sua posição de minoria, tanto o mercado que sobrecodifica as

atividades artísticas dos grupos afro e transforma-as em trabalho – o qual é preciso vender,

isto é, cobrar pelas apresentações – quanto a ‘forma-ong’ que modela e transforma em

‘trabalhos sociais’ suas atividades cotidianas constituem formas de reduzir a potência do

movimento afro-cultural, retirando sua capacidade de entrar em um devir-minoritário, de

devir-negro2.

1 Ver Encontros 4.2 Deleuze e Guattari entendem ‘minoria’ como “conjunto ou estado” (1997:88) em relação a uma ‘maioria’,entendida não como “uma quantidade relativamente maior, mas a determinação de um estado ou de umpadrão em relação ao qual tanto as quantidades maiores quanto as menores serão ditas minoritárias: homem-branco, adulto-macho, etc. Maioria supõe um estado de dominação, não o inverso.” (:87). “Minoritário” é“devir ou processo” (:88); é o meio de singularizar-se e de não ser maioria nem minoria, de escapar doenquadramento por um padrão, seja dentro dele (maioria) ou em relação a ele (minoria).

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422

No entanto, só a primeira forma de captura do bloco afro, que o faz desejar ‘incluir-

se’ no mercado, costuma ser criticada. A segunda captura – efetuada pela ‘forma-ong’ – ao

contrário da primeira, parece adequar o bloco ao que se espera dele, conforme visto no

capítulo anterior a partir da implantação do Projeto Batukerê pelo Grupo Cultural

Dilazenze. Isso ocorre porque também os movimentos negros políticos, os movimentos

sociais, os militantes de ‘esquerda’ tanto quanto os representantes de governo, os

empresários, enfim, todos são (somos) afetados por uma nova forma de subjetivação

produzida pelo capitalismo: a onguização.

A partir de uma rápida análise de como tanto os blocos afro quanto o movimento

negro político de Ilhéus estão sendo afetados pela onguização, ao final deste trabalho cabe

refletir sobre essa nova proposta de atuação dos movimentos negros.

À

Logo no início do Miny Kongo, em 1980, aproximaram-se do grupo pessoas que

pensavam o bloco afro como um meio de aglutinar a população negra para discutir

questões relativas ao racismo e a outras formas de opressão. Não havendo espaço para esse

tipo de discussão no bloco, boa parte dessas pessoas participou da fundação do Axé Odara

que, como visto em Encontros 3, tinha um perfil muito mais ‘político’: foi o primeiro a

promover protestos no ‘13 de Maio’ (data da abolição da escravidão no Brasil), a

comemorar o ‘20 de Novembro’ (aniversário da morte de Zumbi, líder do Quilombo dos

Palmares) e o aniversário de independência de Angola, a oferecer palestras sobre a

temática racial etc.

Após sua fundação, o Axé Odara não tardou a se transformar num grupo voltado

para a realização de espetáculos, o que acabou por afastar os ‘militantes’, ou seja, aqueles

que concebiam o grupo como um veículo de atuação do movimento negro político.

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423

Algumas dessas pessoas ainda participaram de uma primeira tentativa de fundar um grupo

do Movimento Negro Unificado em Ilhéus em 1988, no bojo das comemorações do

centenário da Abolição. Diante do fracasso do empreendimento, alguns militantes

continuaram atuando isoladamente e outros participaram da fundação do MNU de Ilhéus

alguns anos mais tarde3.

Do final dos anos 80 até 1997, dirigentes dos blocos afro e pessoas consideradas

ligadas a grupos do movimento negro político pouco se relacionaram, a não ser em debates

em escolas e outros eventos relativos ao 13 de Maio ou ao 20 de Novembro – as únicas

datas em que a população negra recebe atenção e as entidades negras têm visibilidade.

Nessas ocasiões, quando representantes dos blocos afro e membros do movimento negro

político eram chamados para a mesma mesa, as acusações eram mútuas e de mesmo teor

ano após ano: enquanto o movimento negro político dizia que o movimento afro-cultural

não tinha ‘consciência política’, que só queria ‘fazer festa’, ou seja, que suas atividades

não ajudavam a mudar a realidade da população negra, os grupos afro acusavam o

movimento político de não conseguir atingir a massa, de ser muito intelectual, de só ficar

fazendo reuniões e de querer dirigir e “usar” os blocos... Discussões em tudo semelhantes

àquelas que existiam entre grupos do movimento negro político e grupos chamados de

culturais – ou culturalistas, como forma de acusação – especialmente nos anos 70 e 80 no

Rio de Janeiro, em Salvador ou em outros lugares onde esses grupos estivessem presentes.

As histórias de vida das pessoas ligadas ao movimento negro político têm em

comum uma passagem pelo Partido dos Trabalhadores (PT) ou uma aproximação deste nos

anos 80 e/ou 904, sendo que algumas ainda pertencem a ele, outras estão ou passaram por

3 Além do movimento afro-cultural, do MNU, da pastoral afro da igreja católica e de grupos negros formadosno interior de igrejas evangélicas, em Ilhéus há também uma seção do UNEGRO, mas de reduzidavisibilidade.4 O PT surgiu, e assim continuou por vários anos, com uma imbricação muito forte com o “movimentopopular”, o interior do partido reproduzindo os diversos movimentos existentes na sociedade através dos seus“núcleos de base”.

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424

outros partidos e outras ainda afastaram-se de partidos políticos. De qualquer maneira,

todas eram – e ainda são – identificadas com o PT por membros dos blocos afro. Essa

identificação fazia com que qualquer aproximação dessas pessoas do movimento afro-

cultural fosse entendida como uma aproximação político-partidária: seria o PT querendo

“usar politicamente” os blocos afro.

Por outro lado, pessoas do movimento negro político costumam dizer que os

representantes dos grupos afro são “despolitizados” ou “se deixam usar pelos políticos”,

subentendidos como de partidos de direita, e que praticam com eles uma relação

clientelista, imediatista, ... que, enfim, os dirigentes dos blocos afro não teriam

“consciência política”.

Então, para os grupos afro-culturais, o movimento negro seria “político demais”

porque “mistura tudo com política” e, na verdade, “não gosta e não sabe nada de cultura

negra”; para os representantes do movimento político, os blocos afro “não sabem nada de

política”, “se deixam usar” para poderem “tocar tambor e ter o dinheiro do carnaval”.

Com base em sua pesquisa sobre política “do ponto de vista” do movimento afro-

cultural de Ilhéus, Goldman (2000) conclui que o que se denomina política é, sobretudo, o

que os “políticos fazem”, ou seja, uma “atividade” (:318) que transcorre em qualquer lugar

considerado mais ou menos legítimo. Concordando com o autor, pode-se afirmar que

sendo política algo que se faz, ela constitui, então, um meio para conseguir outras coisas:

para uns ela pode trazer enriquecimento, emprego para amigos e familiares, prestígio junto

a outros políticos mais influentes e outros ganhos pessoais; para outros, a política pode ser

o modo de obter melhorias para uma comunidade ou para um grupo específico de pessoas

(portadores de deficiências, estudantes, trabalhadores de uma tal categoria etc.), por

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425

exemplo5. Quando o próprio dirigente do bloco afro ‘faz política’, seu objetivo pode ser

um emprego para ele ou para alguém da família, a reforma da quadra, o patrocínio do

carnaval ou de algum evento... ‘Fazer política’ não seria algo muito bom, especialmente

nesses casos, quando se admite que “é preciso fazer política” como se fosse um último

recurso no intuito de alcançar algo muito necessário. Por isso, a afirmação por parte de

membros dos blocos afro de que as pessoas do movimento negro são políticas demais é

uma acusação, e sua aproximação é algo que deve ser rejeitado ou tomado com cuidado,

pois todas as suas ações em relação aos blocos seriam para ‘fazer política’.

Já o movimento negro político conceberia a política como uma esfera da vida

social. Sendo um domínio, é preciso desejar ‘participar’ dela a fim de poder influenciar o

aspecto final que ela assume; especialmente ao longo dos anos 80 e 90, demandava-se a

‘participação política’ das pessoas como sua forma de contribuir para um ‘país melhor’,

por exemplo. Assim, política não é algo que se faz, mas uma espécie de lugar onde todos

deveriam querer atuar; não se faz política, participa-se dela para transformá-la. Nesse

sentido, ‘política’ parece poder ser objetivamente definida. Dessa forma, dizer que os

dirigentes dos blocos afro ‘não têm consciência política’, que ‘se deixam usar pelos

políticos’ significa dizer que eles não estão ‘participando’ como seria esperado de um

grupo de movimento social, cujo objetivo deveria ser o de provocar uma mudança na

‘política’ almejando modificar as ‘relações de poder’ e, com elas, a ‘sociedade’. Política,

então, não seria um meio, mas seu próprio fim.

Em relação à cultura, haveria uma inversão na forma como ela é concebida por

esses diferentes movimentos negros. Se para os blocos afro a política é uma atividade, algo

que se faz, ao contrário, a cultura seria um domínio da vida social, o qual é preciso viver.

Quando um bloco afro se define como um grupo de preservação da cultura negra, ele está

5 E, evidentemente, um mesmo ‘político’ pode ‘trabalhar’ por todas essas coisas, o que, aliás, é o que

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426

dizendo que cada uma de suas atividades (desfile de carnaval, músicas, apresentações de

dança, forma de se vestir, temas enfocados...), é uma manifestação de cultura negra – algo

que existe e que os blocos afro mostram para as pessoas como ela é a fim de não a deixar

desaparecer. Este é seu valor. ‘Cultura negra’ seria, então, um modo de vida e as

atividades dos blocos afro são uma forma de criar um novo território existencial que

produz esse modo de vida. Assim, não basta ‘ser negro’ para viver a ‘cultura negra’; é

preciso desejar vivenciá-la, experimentá-la no dia-a-dia do bloco, que deve, por isso e para

isso, existir o ano todo. Partindo dessa perspectiva, representantes dos blocos afro podem

dizer que as pessoas do movimento negro ‘não sabem nada de cultura negra’ porque não a

vivem, já que não vivem sua música, sua dança, sua religião.

Agora, tomando o ponto de vista do movimento negro político, a cultura negra é

que é uma atividade; é alguma coisa que os blocos afro fazem, especialmente quando se

pensa o bloco afro como um grupo formado por pessoas que desejam sobreviver de ‘fazer

cultura’: cultura negra torna-se, então, uma atividade que se vende. Por ser concebida

como uma atividade, a cultura negra é reivindicada pelos movimentos negros políticos

como algo que deveria ser um meio, um instrumento para levar as pessoas a quererem

participar da política e esta deveria ser a sua principal função.

Sistematizando e, é claro, simplificando: para representantes dos blocos afro, a

política seria uma atividade e um meio; enquanto a cultura seria uma dimensão da vida

social e teria uma finalidade em si mesma. Já para o movimento negro político, a política é

que teria uma finalidade em si e seria uma dimensão da vida social; a cultura seria uma

atividade e deveria ser um meio.

Como consta do capítulo anterior, em 1997 o Movimento Negro Unificado (MNU)

de Ilhéus, o grupo de maior expressão do movimento negro político da cidade, aproximou-

geralmente ocorre.

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427

se dos blocos afro através do gerente de ação cultural da Fundação Cultural de Ilhéus, seu

mais importante representante. Essa aproximação influenciou tanto os blocos afro quanto o

próprio MNU, ao menos o representante em questão, considerado seu porta-voz. Seus

discursos apresentaram mudanças sutis, mas estas evidenciaram que ambos os grupos

estavam sendo afetados pelo que chamei de processos de cidadanização no capítulo

anterior.

As ‘mudanças sutis’ fizeram-se notar principalmente na aceitação dos argumentos

do outro grupo, que naquele momento pareciam fazer mais sentido do que antes. Assim, o

MNU ainda insistia na participação política dos grupos afro-culturais, mas sua ênfase

passou a estar na organização das pessoas envolvidas pelo bloco afro através das

atividades que objetivavam ‘elevação de auto-estima’ – argumento dos blocos afro para

justificar sua importância social, ainda que somente por existirem. Além de fazer nascer ou

fortalecer o desejo de ‘ser negro’, de ‘assumir a negritude’, o MNU passou a entender as

atividades dos grupos afro como um meio de levar as pessoas a se valorizarem mais e,

conseqüentemente, a buscarem soluções para seus problemas, que poderiam não passar

pela intervenção na política – o importante é a organização das pessoas em torno do grupo

afro.

Por sua vez, os blocos afro, ainda mais do que antes, passaram a enfatizar a

promoção das atividades culturais que antes eram criticadas pelo movimento negro político

também pela noção de auto-estima: elevar a auto-estima das pessoas era a contribuição que

o bloco poderia dar à sua comunidade. Assim, mesmo que um bloco não promovesse

eventos ‘sociais’ para sua comunidade – o que seria sua ‘função’, de acordo com os

representantes do MNU –, suas apresentações, ensaios e o desfile no carnaval já seriam seu

‘trabalho social’, sua forma de contribuir. O raciocínio de que qualquer atividade do bloco

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428

afro poderia ser concebida como ‘trabalho social’ já era uma forma de admitir que esta

deveria ser uma preocupação sua.

Todo esse processo, cujo início em 1997 corresponde apenas a um momento de

maior evidência, seguiu intensificando-se. A implantação do Projeto Batukerê pelo Grupo

Cultural Dilazenze em 2000 foi produto dos encontros deste, conforme a descrição do

capítulo anterior, com o que chamei de ‘forma-ong’. Seu desenvolvimento, ou apenas o

‘desejo de’ realizá-lo quando ainda era uma idéia, produziu mudanças nas formas de

interação do Dilazenze com outros grupos sociais. A partir do Batukerê, o grupo passou a

ser visto como um modelo, uma referência do que um bloco afro deveria ser, pois agora

estaria “cumprindo sua função social”, como disse o padre responsável pela Pastoral Afro.

As mudanças nas relações do governo, de entidades filantrópicas e principalmente

do movimento negro político com o Dilazenze e nos discursos a seu respeito demonstram

que todos estão sendo afetados por uma nova forma de subjetivação gerada pelo

capitalismo, a onguização.

No caso de militantes do movimento negro político que sempre criticaram os

grupos afro por sua ‘falta de consciência política’, a mudança de perspectiva em relação ao

Dilazenze é notória na procura pelo grupo para propor atividades conjuntas e convênios

com o Batukerê, o que evidentemente só é possível porque esses militantes realizam

atividades semelhantes. Muitos deles estão afastados da militância política stricto sensu e

atualmente dedicam-se a participar de organizações que trabalham com comunidades

carentes, quase sempre em projetos de educação e de geração de emprego e renda.

Tais mudanças nas relações entre o Dilazenze e o movimento negro político não

significam que eles estejam mais próximos ou unidos em torno de objetivos comuns;

tampouco que suas concepções a respeito de cultura e de política mudaram completamente.

A onguização, como uma nova forma de subjetivação, gera novas práticas e agrega novos

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429

significados ao que já existe. Ao serem afetados por ela, esses grupos passam a conceber

suas práticas por outros prismas.

Para o movimento afro-cultural, especificamente para o Dilazenze que tem

experimentado com mais intensidade essa nova forma de subjetivação, a cultura negra

continua sendo vivida e tendo uma finalidade em si mesma, além de ser lembrada como

forma de promover a auto-estima; porém, mais do que isso, à cultura negra é atribuída

capacidade de produzir uma ‘intervenção social’, como se costuma dizer. A ‘inclusão

social’ é o principal objetivo do projeto: o Batukerê “tira as crianças da rua e lhes dá uma

profissão”. E a política ainda é um meio para conseguir outras coisas, mas fazer o Batukerê

continuar a funcionar é prioridade: faz-se política para isso.

Já para as pessoas do movimento negro político, agora envolvidas em entidades

formadas como ‘organizações não-governamentais’ ou em convênios com elas, a cultura

continua sendo um meio, tanto que a ‘cultura negra’ faz parte dos projetos em aulas de

dança afro, percussão e capoeira, que “atraem” e “seguram” crianças e adolescentes – estes

são seus objetivos. Mas a política não é mais somente uma esfera privilegiada da vida

social tendo uma finalidade em si mesma – lugar e razão da luta. Ela também se torna um

meio porque deve ser instrumento para melhorar a vida das pessoas de uma tal

comunidade, atendidas por um tal projeto, organizadas para um tal objetivo, e não mais

para mudar ‘a sociedade’.

À

Se o desejo de singularização que criou o bloco afro relaciona-se com a proposta de

uma forma distinta de experimentar o mundo, os desejos de ‘incluir’ e de ‘estar incluído’

capturam a singularidade e relacionam-se com a idéia de aceitação do mundo tal como ele

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existe6. Luta-se para participar dele ou para fazer outros participarem, não para modificá-

lo. Desejos criados pelo mercado capitalista, que sempre teve na inclusão sua principal

forma de expansão. Ele descodifica os fluxos, desterritorializa-os, para logo depois

sobrecodificá-los, isto é, fazer com que os fluxos descodificados passem por um mesmo

fluxo. É o mesmo que dizer, como o fazem Hardt e Negri, que tudo passa a ser visto de

uma “perspectiva monetária”: “não existe nada, nenhuma ‘vida nua e crua’, nenhum

panorama exterior, que possa ser proposto fora desse campo permeado pelo dinheiro; nada

escapa do dinheiro.” (2001:51). O capitalismo não admite um ‘lado de fora’, nada lhe é

exterior:

“(...) o mercado capitalista é uma máquina que sempre foi de encontroa qualquer divisão entre o dentro e o fora. Ele é contrariado porbarreiras e exclusões; e floresce quando inclui mais e mais em suaesfera. O lucro só pode ser gerado pelo contato, pelo compromisso,pelo intercâmbio e pelo comércio. A realização do mercado mundialconstituiria o ponto de chegada dessa tendência. Em sua forma ideal,não há exterior para o mercado mundial: o globo inteiro é seudomínio.” (Hardt e Negri 2001:209)7.

Sendo as ‘organizações não-governamentais’ produto da subjetividade capitalística,

sua lógica de atuação é a mesma do capitalismo: incluir. Mas ‘inclusão’ significa também

serialização, modelização, não-singularização. Hardt e Negri sustentam que agindo a partir

de “imperativos éticos e morais” (2001:54), as ongs são “as mais poderosas armas de paz

da nova ordem mundial (...). Essas ONGs8 movem ‘guerras justas’ sem armas, sem

6 “O que faz a força da subjetividade capitalística é que ela se produz tanto ao nível dos opressores quantodos oprimidos.” (Guattari e Rolnik 1986:44).7 Reproduzo a seguir a nota que os autores vinculam ao trecho citado por desejar fazer o mesmo tipo deressalva: “Há indubitavelmente zonas de privação dentro do mercado mundial onde o fluxo de capital e debens é reduzido ao mínimo. Às vezes, essa privação é determinada por uma explícita decisão política (comonas sanções comerciais contra o Iraque), e outras vezes é decorrência da lógica implícita do capital global(como nos ciclos de pobreza e inanição na África subsaariana). Em todos os casos, entretanto, essas zonasnão constituem um lado de fora do mercado capitalista; na realidade, funcionam dentro do mercado mundialcomo degraus mais subordinados da hierarquia econômica global” (Hardt e Negri 2001:467, nota 12).8 Os autores referem-se “principalmente às organizações globais, regionais e locais dedicadas a obras desocorro e à proteção de direitos humanos, como Anistia Internacional, Oxfam, e Médicos sem Fronteiras.”(Hardt e Negri 2001:54). É claro que há diferentes tipos e propostas de atuação de organizações não-governamentais e não se trata de desqualificar seu trabalho, no entanto, essas diferenças não são relevantespara a minha argumentação, já que meu interesse é em sua proposta mais ampla de organização socialmovida pelo desejo de intervenção e inclusão social, comum a todas.

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violência, sem fronteiras”; agem em nome de uma ‘cidadania universal’ baseada em

“necessidades universais” e “direitos humanos” (:55), que elas ajudam a estabelecer quais

são diante de um mundo que está dado. Termos como ‘globalização’, ‘mundo globalizado’

ou ‘o mercado’ são recursos que evocam a impossibilidade de se fazer diferente e

naturalizam a forma que as coisas têm, assim como, evidentemente, os valores contidos

nesse mundo. A ‘rede mundial de computadores’, a internet, é o maior símbolo da

globalização; ter acesso a ela é, então, a melhor forma de alguém ou de um grupo se sentir

incluído neste mundo. Depois de outras necessidades consideradas mais básicas, como o

acesso à comida e à escrita, por exemplo, o conhecimento de informática é tomado como

algo essencial para qualquer pessoa, ao menos é o que se pode concluir a partir da

observação de inúmeros programas sociais de “inclusão digital” implantados por ongs ou

por governos, da valorização dos meios de comunicação a esses projetos e, voltando à

experiência de campo, da vontade de diversas pessoas de que o Projeto Batukerê viesse a

oferecer esse ‘cursos de informática’.

Nos anos 60 e 70, os novos movimentos sociais foram o produto de inúmeros

processos de singularização. Como diz Guattari (1986), “o que caracteriza os novos

movimentos sociais não é somente uma resistência contra esse processo geral de

serialização da subjetividade, mas também a tentativa de produzir modos de subjetividade

originais e singulares.” (:45). A onguização, como uma forma de subjetivação que afeta os

blocos afro, o movimento negro político, os movimentos sociais, os governos – e cada um

de nós – paralisa os processos de singularização e diminui a possibilidade de invenção de

outros modos de existência porque ela busca impedir a emergência do intolerável, pois só

ele pode suscitar revoluções:

“Nossas relações habituais com o mundo se revelam convençõesarbitrárias, que nos protegem do mundo e o tornam tolerável para nós:e aí está o compromisso intolerável com a miséria de toda natureza eos poderes que a alimentam e propagam. Nossos interesses se

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inclinam, é claro, sempre para o lado da obediência. Os esquemassensório-motores, respostas totalmente prontas a situações desofrimento sempre singulares e evolutivas, são testemunhas de umainteriorização da repressão [...]. Os clichês da luta ou da compaixãoparecem chegar, hoje, a seu paroxismo, ainda mais vergonhoso pelofato de manifestarem uma fantástica capacidade de adaptação aoodioso e a suas causas (vergonha também de nós mesmos, já que essemundo é o nosso).” (Zourabichvili 2000:349).

Ao contrário dos novos movimentos sociais, a onguização – “interiorização da repressão”,

seguindo a citação de Zourabichvili – modela, serializa, nos diz como ‘reagir’, e sempre da

mesma maneira9, aos problemas do mundo para torná-lo mais tolerável, o que significa um

mundo em que um número cada vez maior de pessoas tenha os mesmos desejos: participar

e fazer participar do sistema capitalista. Nesse aspecto, como salientou Zourabichvili na

citação acima através da idéia de “clichês da luta ou da compaixão”, movimentos políticos

ou filantrópicos – e as organizações não-governamentais se encaixam em ambos os tipos –

criam formas de adaptação ao mundo, não de mudanças.

O modelo de atuação imposto pela onguização é o de supressão de carências,

detectadas, evidentemente, por quem supõe não as ter, pelos já ‘incluídos’. São as

deficiências, ‘o que falta’, que impedem algumas pessoas (mesmo que sejam bilhões) de

participarem desse mundo, então, é preciso cuidar de tais carências a fim de incluí-las.

Como, desse ponto de vista, o mundo é assim e não há outra forma de vida possível fora

dele, ou ao menos uma que seja considerada boa, torna-se uma ‘obrigação moral’ de quem

participa dele ‘ajudar’ os excluídos. Nesse sentido, atuar numa ong passa a ser mais

importante do que ser militante de um partido político.

Uma formulação de Peter Gow (1999) a respeito do desejo de antropólogos de

promover a alfabetização de grupos indígenas ajuda a situar melhor o problema. Sem

entrar no mérito da questão, o fato é que as pessoas que implementam projetos de

9 É a isso que Zourabichvili chama de “clichês”, ou seja, “tudo o que vemos, dizemos, vivemos, e até mesmoimaginamos e sentimos já está, definitivamente, reconhecido; carrega, por antecipação, a marca da

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alfabetização indígena consideram que a aquisição da escrita é uma “coisa boa” para os

grupos e que se trata de uma ação “politicamente desejável” e “eticamente obrigatória”10.

Gow se pergunta, então, qual é a concepção de política que permeia a defesa desse tipo de

ação. Para ele, trata-se de um modelo baseado na visão do mundo como sendo constituído

por problemas sobre os quais é preciso agir; essas ações constituem pessoas como

‘agentes’, aquelas que fazem, e tornam outras ‘pacientes’: umas e outras são

hierarquicamente ordenadas. Os ‘pacientes’ são dados por suas ‘deficiências’ e os agentes

pela ação para ajudar os primeiros a superá-las. Assim, segundo o modelo, a ação política

está na ‘agência’ e negá-la – isto é, questionar tais ações ou recusar-se a agir – é não atuar

politicamente.

Hardt e Negri (2001) sustentam que embora as ongs estejam “fora do poder do

Estado e geralmente em conflito com ele”, elas tampouco estão “do lado dos interesses do

capital” e do projeto neoliberal (:334). No que tange às ongs enquanto entidades concretas,

os autores podem ter razão. Contudo, talvez não se possa dizer o mesmo da visão de

mundo difundida por elas. A multiplicação dessas entidades ao redor do mundo veio na

mesma esteira do crescimento do neoliberalismo e da diminuição do tamanho da

responsabilidade ‘atribuída’ ao Estado na vida de cada um de nós. Assim, faz parte do

vocabulário dessa nova visão de mundo expressões como ‘solidariedade’, ‘compromisso

social’ e ‘cada um deve fazer a sua parte’ unidas numa mesma ‘ação’: um indivíduo se une

a outro indivíduo para ajudar alguns outros, não todos; um indivíduo pode ajudar muitos

fazendo um trabalho social numa escola ou doando sopa para quem mora na rua, mas ele

não pretende melhorar a qualidade de toda a educação do país ou resolver o problema da

recognição, a forma do já visto e do já ouvido. (...): tudo tem, de saída, a forma do que já estava presente, doque já está totalmente feito, do preexistente.” (Zourabichvili 2000:349).10 É interessante que Gow observe que esses antropólogos falem como os “missionários que eles pretendemdesprezar”, pois Hardt e Negri (2001) também assemelham as ongs a religiosos: “como os dominicanos dofim do período medieval e os jesuítas na alvorada da modernidade, esses grupos lutam para identificarnecessidades universais e defender direitos humanos.” (:55).

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habitação ou do desemprego. Esses são problemas do Estado que o ‘cidadão’ não pretende

resolver; seu problema é com a fome das pessoas que moram na rua ou com as crianças da

escola da vizinhança que não sabem informática, pois elas não podem esperar11.

Retomando a análise de Gow, a concepção de política em jogo no contexto da

discussão sobre educação indígena privilegia a ação (“agency”) em detrimento do

conteúdo desta ou de uma reflexão mais aprofundada; importa “fazer alguma coisa”.

Embora os grupos dos movimentos negros de Ilhéus, culturais ou políticos, não se refiram

aos seus trabalhos sociais como ‘política’, a onguização como uma nova forma de

subjetivação pode agregar novos significados ao que é entendido por cultura e por política.

Uma matéria de jornal intitulada “A nova consciência negra” (O Globo 14/09/03) é

exemplar do processo de mudança a partir da afetação por essa nova subjetividade.

Segundo a matéria, a “luta contra o racismo” dar-se-ia agora de “forma diferente”: trocar-

se-ia o “engajamento político pela militância na arte com compromisso social.” E ainda:

“no lugar dos manifestos políticos pró-igualdade racial, estão as letras de músicas e os

grupos de voluntários para melhorar as condições de vida de quem mora no morro”. “Arte

social”, “compromisso social”, “intervenção na comunidade”, “inclusão social”,

“trabalho”, “exemplos” [pessoas negras bem-sucedidas em seus trabalhos como artistas],

são as formas de se lutar pela “igualdade”.

A visão predominante entre os entrevistados da matéria jornalística é a mesma que

Cunha (2000) atribui ao Grupo Cultural Afro Reggae, sendo um de seus líderes um dos

entrevistados. Segundo a autora, a ação do Afro Reggae é dirigida aos “excluídos”, àqueles

moradores da “comunidade”, entendida como “conjunto em torno do qual fronteiras,

11 Diariamente vê-se matérias jornalísticas na TV sobre trabalhos voluntários. Uma delas versava sobre umapessoa (uma mulher por volta dos cinqüenta anos, cuja profissão foi informada como sendo a de “dona decasa”) que distribuía sopa às terças-feiras à noite para moradores das ruas de São Paulo. Ela falou sobre oquanto era “gratificante” e “faz[ia] se sentir bem”, “feliz” “poder dar comida a alguém com fome”. É claroque é preciso reconhecer a generosidade dessa ‘ação’, porém, soa estranho ouvir alguém dizer que fica

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principalmente socioeconômicas e geográficas foram estabelecidas e formuladas como tal”

e que “compartilham dessa identidade imposta pela exclusão e pela marginalização.”

(:366). A ênfase na ‘marginalização’ ou na ‘exclusão’ retira o caráter ‘étnico’ da ação do

grupo – “se a gente trabalhar apenas com negros ou se dedicar apenas a fazer trabalhos

voltados para essa população, vamos continuar isolados”, diz o diretor do Afro Reggae na

matéria do jornal. Da mesma forma, Cunha mostra que o discurso da ‘cidadania’ substitui

o da ‘identidade negra’ na proposta de ação do Afro Reggae:

“Se a ênfase no binômio mobilização/conscientização parecia nãomais ter relevância nem ser objeto de projetos do grupo, sua lógica foirecontextualizada através da utilização da noção de ‘cidadania’. Aidéia era desenvolver atividades que estimulassem aos(principalmente) jovens e crianças envolvidos, auto-estima,oportunidades culturais e educacionais e o acesso a algum tipo deexperiência profissionalizante. Todos esses objetivos se justificavamna necessidade de se diminuírem as distâncias sociais e culturais entreos moradores das favelas e do ‘asfalto’ e dificultar o acesso de jovensàs carreiras criminosas através da criação de oportunidadesculturais/recreativas e profissionais, passos importantes para umaexperiência de transformação do jovem antes marginalizado emcidadão.” (:363).

Voltando à matéria do jornal, em seu depoimento o líder do Afro Reggae diz que se

“orgulha de ter tirado muito jovem do tráfico” – preocupação também do Dilazenze, que

utiliza o Batukerê para dar ‘ocupação’ às crianças e aos adolescentes a fim de ‘tirá-los do

tráfico’. Vê-se, assim, que os objetivos do Afro Reggae são em tudo muito semelhantes aos

do Dilazenze na realização do Projeto Batukerê, e ambos se assemelham a diversos outros

projetos sociais, todos afetados por uma mesma forma de subjetivação.

À

A proposta de ação dos blocos afro, de Ilhéus ou de Salvador, mas também do

movimento negro político e de grupos como o Afro Reggae têm em comum uma mesma

concepção de luta contra o racismo. Guardadas as devidas diferenças acerca do

“feliz” por dar alimento a uma pessoa com fome, pois, nesse contexto, a fome do outro parece um motivo

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investimento na visibilidade da população negra – que é certamente maior entre os blocos

afro do que num grupo como o Afro Reggae –, percebe-se que a ‘inclusão social’ é o meio

privilegiado da mudança, principalmente através da educação e da profissionalização. A

‘arte’, refiro-me especialmente à música, também seria responsável pela ‘transformação da

sociedade’ por sua tripla função: ela seria ‘conscientizadora’ pelas mensagens de denúncia

e porque mostraria ‘a realidade’12 tanto para as pessoas negras quanto para ‘a sociedade’,

atingindo, inclusive, parte da elite branca; seria um meio de mostrar o ‘talento’ de pessoas

negras e, assim, negar os estereótipos que incidem sobre elas, além de, evidentemente,

proporcionar uma vida melhor para quem se destaca; seria também o principal veículo para

a formação de referências, de exemplos de pessoas negras bem-sucedidas, o que

promoveria o aumento da auto-estima da população negra13 e o vislumbre de uma outra

vida14. Sendo assim, boa parte dos projetos sociais tem por base o tripé arte,

profissionalização e educação: enquanto a primeira empenhar-se-ia sobretudo em mudar

‘consciências’, as outras duas cuidariam de melhorar as condições socioeconômicas da

população ‘excluída’, não exclusivamente ‘negra’ na grande maioria dos casos.

A concepção de que a inclusão social é uma forma de combate ao racismo também

constitui a base para a implementação de políticas de reparação, como as cotas nas

universidades, por exemplo. Chamar a atenção para a vinculação entre inclusão social e

combate ao racismo presente tanto nos projetos sociais quanto nas propostas de ação

afirmativa não significa dizer que se trata da teoria de que o preconceito não é racial e que

para deixar alguém ‘feliz’...12 Segundo o presidente do Dilazenze, “a música é o carro-chefe do processo de conscientização.”13 A importância de dar boas referências a crianças negras também estaria no intuito de mantê-las afastadasda marginalidade: “para muitos meninos e meninas, talvez a única referência de pessoa bem-sucedida sejaum traficante.” (coordenador executivo do Afro Reggae, O Globo 14/09/03).14 É muito comum a mídia dar destaque a pessoas negras que fazem sucesso se elas têm ou tiveram umainfância pobre ou participam de um projeto social. Ora concedendo o mérito ao projeto, ora à própria pessoa,o importante é mostrar que uma vida alternativa à da grande maioria das pessoas negras e pobres estaria aoalcance de todos. Além de todas as questões referentes à fama e sua efemeridade, esse tipo de recurso em

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quando as pessoas negras tiverem melhores condições de vida o racismo desaparecerá.

Pessoas ligadas a organizações não-governamentais e a movimentos negros políticos

enfatizam que a promoção de tais projetos não significa o abandono de outras formas de

luta no campo político. Como disse um dos atores entrevistados na matéria citada acima,

“vale tudo na luta contra o preconceito.”

Contudo, como este trabalho tentou mostrar, a inclusão social – que significará

sempre ‘inclusão diferencial’ – é um dispositivo do capitalismo, faz parte de seu processo

de captura. Impedindo a existência do ‘fora’, ele tenta impedir também a produção dos

processos de singularização a partir da conexão dos fluxos que escapam de sua

sobrecodificação, o que poderia resultar em algo diferente dele e ser um obstáculo à sua

expansão. O racismo, conforme a concepção que será defendida aqui, é outro desses

dispositivos na medida em que ele “geralmente aparece como resultado da inclusão

diferencial.” (Hardt 2000:366).

Diferentemente do que às vezes se imagina, o racismo, tal qual o conhecemos, não

é algo que “sempre existiu”. Em seu curso Em Defesa da Sociedade, ministrado em 1976,

Foucault (1999) data o ‘racismo’ e o ‘discurso racista’ no século XIX. Em suas aulas, ele

mostra como o discurso da ‘guerra das raças’ do século XVII – que era contra a soberania,

isto é, contra a monarquia, contra o Estado – transformou-se em discurso racista, melhor

ainda, em racismo de Estado no XIX.

O discurso da guerra das raças nasceu como contra-história porque impunha uma

nova forma de contar a história a partir das relações de força, das batalhas, dos perdedores,

enfim, da guerra e não mais como produto de leis naturais ou de uma vontade divina; o

historiador dividia a sociedade em dois lados e se posicionava num deles (:66-7); seu

interesse não era o da legitimação da soberania, era o da contestação (:76), mas também de

nada se difere do discurso capitalista de que ‘todos podem vencer e que só depende do esforço de cada um’, o

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reivindicação de poder (:84). Tratava-se, sem dúvida, de um discurso contra o dominante –

o rei –, entretanto, não era de propriedade dos oprimidos e subjugados, servindo também à

própria nobreza.

Foucault mostra, então, que o discurso histórico foi reapropriado tanto pelos

movimentos nacionalistas e pela colonização européia na vertente biológica (:71), quanto

como “guerra social” e apareceu como “luta de classes” (:72). Nessa segunda forma, a

contra-história foi apreendida pelo discurso revolucionário, que estava para transformar a

luta das raças em luta de classes. A contra-história foi, então, contraposta por outra contra-

história, que recodificou tudo em luta das raças, mas no sentido médico e biológico do

termo. Como diz Foucault:

“[tem-se] o desenvolvimento de um racismo biológico-social,com a idéia – que é absolutamente nova e que vai fazer odiscurso funcionar de modo muito diferente – de que a outraraça, no fundo, não é aquela que veio de outro lugar, não éaquela que, por uns tempos, triunfou e dominou, mas aquelaque, permanente e continuamente, se infiltra no corpo social, oumelhor, se recria permanentemente no tecido social e a partirdele. Em outras palavras: o que vemos como polaridade, comofratura binária na sociedade, não é o enfrentamento de duasraças exteriores uma à outra; é o desdobramento de uma única emesma raça em uma super-raça e uma sub-raça. Ou ainda: oreaparecimento, a partir de uma raça, de seu próprio passado.Em resumo, o avesso e parte de baixo da raça que aparece nela.”(:72).

A guerra das raças, que tratava da luta de campos opostos, tornou-se uma luta da

raça que detém o poder, que é “considerada como sendo a verdadeira e a única” (:72)

contra aqueles que estão fora da norma imposta por ela (:73). E é dessa conclusão de

Foucault que vem o título do curso: o discurso histórico da ‘guerra das raças’ visava

“defender-se contra a sociedade” – contra a monarquia, contra o Estado; nesse novo

discurso racista, trata-se de “defender a sociedade” da sub-raça, “dos perigos para o

que retira muito do peso que teriam o racismo e a desigualdade na configuração social.

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patrimônio biológico” (:73)15. Resumidamente, a operação de aparecimento dessa contra-

história como racismo dá-se da seguinte forma: a guerra histórica (origem dos povos,

invasões...) é substituída pela luta pela vida, pela seleção do mais forte. A sociedade não é

mais binária e sim “biologicamente monística”, sendo ameaçada apenas pelo que lhe é

estranho, diferente do que é ‘normal’. O Estado, que protegia uma raça da outra, terá a

função de proteger a raça. A idéia de “pureza da raça” substitui a de “luta das raças” (:95).

Segundo Foucault, o racismo não é uma ideologia que se prestou a ser anti-

revolucionária: “o racismo não é, pois, vinculado por acidente ao discurso e à política anti-

revolucionária do Ocidente”. Ele é o discurso revolucionário ao avesso, nascido para

conservar a soberania do Estado através de “técnicas médico-normalizadoras” (:95-6). O

racismo é produto da biopolítica, tecnologia de poder que passa pela eugenia, pela

normalização do saber, pela medicalização da população, mas também pelos seguros de

vida, pela seguridade social, pela poupança etc. Seu objetivo é “fazer viver” (:294) e deixar

morrer, quando necessário, e o racismo funciona como justificativa para isso:

“o racismo, acho eu, assegura a função de morte na economia dobiopoder, segundo o princípio de que a morte dos outros é ofortalecimento biológico da própria pessoa na medida em que ela émembro de uma raça ou de uma população, na medida em que se éelemento numa pluralidade unitária e viva.” (:307-8).

15 “E o problema seria saber como, a partir desse deslocamento (se não dessa decadência) do papel da guerrano discurso histórico, essa relação de guerra dominada assim no interior do discurso histórico vai reaparecer,mas com um papel negativo, de certo modo exterior: um papel não mais constitutivo da história, mas protetore conservador da sociedade; a guerra não mais como condição de existência da sociedade e das relaçõespolíticas, mas condição de sua sobrevivência em suas relações políticas. Vai aparecer, nesse momento, aidéia de uma guerra interna como defesa da sociedade contra os perigos que nascem em seu próprio corpo ede seu próprio corpo; é, se vocês preferirem, a grande reviravolta do histórico para o biológico, doconstituinte para o médico no pensamento da guerra social.” (Foucault 1999:258). E é interessante notar queem seu “O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte”, Marx vá na mesma direção que Foucault quanto à luta declasses ser concebida pela burguesia como a luta de quem é superior, de quem é ‘a sociedade’ contra quem énocivo a ela. Ao escrever sobre as revoluções proletárias de junho de 1848 barbaramente massacradas pelaburguesia, ele observa que “Durante as jornadas de junho todas as classes e partidos se tinham congregado nopartido da ordem, frente à classe proletária, considerada como o partido da anarquia, do socialismo, docomunismo. Tinham “salvo” a sociedade dos “inimigos da sociedade”. Tinham dado como consigna ao seuexército as palavras de ordem da velha sociedade – “propriedade, família, religião, ordem” – e proclamado àcruzada contra-revolucionária: “Sob este signo vencerás!” (Marx 1987:27) (grifos do autor).

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No discurso da ‘guerra das raças’, a ‘diferença racial’ foi a base para a formação de

povos e nações em sua vertente biológica. A partir dela, formou-se o esquema binário, a

sociedade dividida em função do que Foucault chamou de “fatos de nacionalidade”: língua,

país de origem, hábitos ancestrais, espessura de um passado comum, existência de um

direito arcaico, redescoberta de velhas leis” (:131). Não se tratava de racismo, mas de uma

divisão baseada na idéia de alteridade – existência de um ‘outro’ a partir do qual forma-se

uma ‘identidade’.

Na concepção de racismo tal como formulada por Foucault, já no século XIX, não

existe um ‘outro’. Há diferenças em relação a uma normalidade, as quais devem ser

combatidas, sobre as quais se exerce um poder. Assim também Deleuze e Guattari

concebem o racismo. Tal como para o capitalismo, também para o racismo não existe um

‘fora’: “do ponto de vista do racismo, não existem pessoas de fora. Só existem pessoas que

deveriam ser como nós, e cujo crime é não o serem. (...) O racismo jamais detecta as

partículas do outro, ele propaga as ondas do mesmo até a extinção daquilo que não se deixa

identificar (ou que só se deixa identificar a partir de tal ou qual desvio).” (1996:45-6).

Deleuze e Guattari usam a noção de “rosto” e ‘derivados’ (“rostidade”,

“rostificação”) para explicar o racismo, que busca “economia e organização de poder”

(:42). A “máquina abstrata de rostidade” procede sempre por correlação biunívoca em

busca de uma unidade: “é um homem ou uma mulher, um rico ou um pobre, um adulto ou

uma criança, um chefe ou um subalterno, ‘um x ou um y’.” (:44). Quando se depara com

rostos ainda não classificados, não conformes a ela (às suas subjetivações), a máquina

opera por “desvios padrão de desviança”, fazendo com o que não estava incluído nas

categorias da correlação biunívoca, o seja numa segunda, terceira, quarta... enésima

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categoria escolhida pela máquina, sempre numa relação binária com a primeira16. Assim

funciona o racismo. Se o rosto é o Cristo, isto é, o “homem-branco-masculino-adulto-

habitante das cidades-falante de uma língua padrão-europeu-heterossexual” (:52), então,

este é o padrão a partir do qual todos os traços não conformes serão classificados por não

serem como ele. O que importa para a máquina de rostidade é tornar algo reconhecido,

inscrito no quadriculado17 (:45).

O racismo pode ser compreendido, então, como a identificação em quadros de

referências dos processos de singularização (“Tudo o que surpreende, ainda que levemente,

deve ser classificável em alguma zona de enquadramento, de referenciação.” (Guattari e

Rolnik 1986:43). E é preciso que seja assim, pois se é próprio do capitalismo incluir,

integrar, ele não pode conceber ‘outros’, um lugar, alguém fora de seu campo de atuação:

há ‘diferenças’ de grau em relação ao padrão e é sobre elas que se exerce o poder18. Ou,

como diriam Hardt e Negri, trata-se de uma

“estratégia de inclusão diferenciada (...): a subordinação é realizadaem regimes de práticas diárias, que são móveis e flexíveis mas criamhierarquias raciais estáveis e brutais, apesar de tudo. (...) O racismoimperial19, ou racismo diferenciado, integra outros à sua ordem eentão orquestra essas diferenças num sistema de controle.” (Hardt eNegri 2001:213-4).

16 Por exemplo: “A professora ficou louca; mas a loucura é um rosto conforme de enésima escolha(entretanto, não o último, visto que existem ainda rostos de loucos não-conformes à loucura tal comosupomos que ela deva ser).” (Deleuze e Guattari 1996:45)17 E isso não vale apenas para os rostos que a máquina produz. Ela rostifica tudo: corpos, roupas, objetos(:42). E poder-se-ia dizer o mesmo para instituições: a criação da categoria ‘bloco afro’ foi uma rostificação,assim como a onguização rostifica atividades, objetivos e transforma-os em ‘trabalho social’. “Maisgeralmente, nenhuma polivocidade, nenhum traço de rizoma podem ser suportados: uma criança que corre,que brinca, que dança, que desenha não pode concentrar sua atenção na linguagem e na escrita, ela tampoucoserá um bom sujeito.” (:48). A partir desse trecho, uma analogia pode ser feita com relação aos blocos afro:aqueles que ‘só querem tocar tambor’, que não realizam trabalhos sociais, não podem ser ‘bons sujeitos’.18 Como diz Guattari, “é condição para as sociedades capitalísticas se manterem, que elas sejam calcadas emuma certa axiomática de segregação subjetiva. Se os negros não existissem, seria preciso inventá-los dealguma maneira.” (Guattari e Rolnik 1986:77).19 Hardt e Negri denominam o racismo tal como concebido por Deleuze e Guattari de “racismo imperial”(2001:210) em oposição ao “racismo colonial”: este último seria próprio da soberania moderna e estariacalcado nas diferenças biológicas, constituindo um ‘eu’ e um ‘outro’ (:157), enquanto o primeiro estariaconsonante com o Império, uma nova ordem mundial constituída por uma nova forma de soberania efundamentalmente pelo biopoder, que não concebe um ‘outro’ (:12-3).

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É interessante notar que a descrição que Negri e Hardt (2001) fazem do racismo

imperial poderia ser apropriada para descrever o ‘racismo brasileiro’, ou melhor, sua

especificidade frente a outras formas de discriminação racial, como aquelas que vigeram

nos Estados Unidos e na África do Sul, ambos países que costumam ser acionados como o

outro termo da comparação. É comum ouvir dizer que o racismo no Brasil seria mais

brando porque seria mais sutil, menos agressivo, menos explícito. Chega-se mesmo a

argumentar que não haveria racismo, segundo a lógica de que se há ‘casos isolados’ de

discriminação, ela é devida a aspectos socioeconômicos e não raciais; se a grande maioria

da população pobre é formada por pessoas negras, trata-se de uma contingência histórica e,

além disso, também há pessoas brancas pobres.

Segundo Hardt e Negri (2001), a teoria racista imperial nega que haja divisões

raciais da humanidade e localiza as diferenças em termos de “culturas historicamente

determinadas” (:211), como no caso do ‘racismo brasileiro’. Para esses autores, não há

uma hierarquia racial a priori, mas esta se dá como efeito do “desempenho” das culturas

(:212)20. Estas são necessariamente submetidas à “cultura-valor”, termo que corresponde

em Guattari (Guattari e Rolnik 1986) ao núcleo semântico da palavra cultura no sentido

desta como “resultante de um determinado trabalho”, a partir do qual diferencia-se quem

compartilha desse resultado, desse produto ou não, ou seja, quem tem ou quem não tem

cultura (:17). A “cultura-valor” funciona como um “padrão de tradutibilidade geral”, ela é

a referência a partir da qual as culturas – que nessa acepção corresponderiam ao que

Guattari chama de “cultura-alma coletiva”21 (:18) – serão organizadas, isto é, segregadas:

“atrás dessa falsa democracia da cultura continuam a se instaurar – de modo

20 Um exemplo é a afirmação de uma suposta aptidão musical ou para o esporte de pessoas negras e a quasetotal ausência delas em profissões de caráter mais intelectualizado, de níveis de instrução mais altos.Desigualdades sociais tornam-se, assim, questões culturais e, ironicamente falando, ninguém tem culpa senão há mercado para que todas as pessoas negras ganhem muito dinheiro com seu talento.

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completamente subjacente – os mesmos sistemas de segregação a partir de uma categoria

geral de cultura.” (:20)22.

A observação com que Hardt e Negri começam sua descrição do racismo imperial

também revela sua semelhança com o ‘racismo brasileiro’: os autores chamam a atenção

de que “políticos, a mídia e até historiadores continuamente nos dizem que o racismo

retrocedeu nas sociedades modernas” enquanto que “na realidade [o racismo] progrediu no

mundo contemporâneo, tanto em extensão como em intensidade” (:210). Tanto no racismo

imperial quanto no ‘racismo brasileiro’, o ‘segredo’ para que eles pareçam não ser racistas

está na invisibilidade de quem é discriminado, na ausência de um ‘outro’: a cultura – no

sentido de “alma coletiva” de Guattari (Guattari e Rolnik 1986:17) – daqueles que são

afetados pelo racismo é tolerada como um aspecto de sua vida, não como sua vida; produz-

se cultura como se produz outras mercadorias – e aqui trata-se da “cultura-mercadoria” –,

não se vive. Quando se deseja produzir a integração – do país ou do mercado mundial –

esse é um mecanismo absolutamente necessário23.

Assim, talvez a questão não esteja exatamente na semelhança entre o que seria o

racismo brasileiro e o racismo imperial. Talvez o problema esteja em considerar que as

outras formas de racismo – como no Sul dos Estados Unidos ou na África do Sul – sejam,

de fato, muito diferentes dessas. A ‘alteridade’ presente nesses outros regimes racistas

tinha limites muito claros: ela não produziu excluídos de fato. Mesmo nesses casos, o que

havia era ‘inclusão diferencial’, mecanismo que define o racismo segundo Deleuze e

21 “Cultura-alma coletiva” é a cultura como uma esfera da vida social, que “cada alma coletiva (os povos, asetnias, os grupos sociais)” possui: “essa é uma cultura muito democrática: qualquer um pode reivindicar suaidentidade cultural.” (Guattari e Rolnik 1986:17-8).22 Há ainda um terceiro núcleo semântico da palavra cultura na visão de Guattari. Trata-se da “cultura-mercadoria”, isto é, da produção e da difusão de mercadorias culturais: livros, filmes, mas também salas decultura, profissionais de cultura etc. (Guattari e Rolnik 1986:17;19).23 Disse Guattari em sua visita ao Brasil em 1982: “não duvido nada de que, um dia, vocês terão aqui umMinistério das Personalidades Culturais, cuja incumbência não vai ser a de esmagar todos esses modos deexpressão específicos das diferentes regiões brasileiras, mas, pelo contrário, a de desenvolvê-los, incentivá-

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Guattari. Entre as chamadas “sociedades modernas”, o racismo de Estado mais próximo da

“guerra das raças”, ou seja, da idéia de uma raça contra outra, seria a sociedade nazista,

segundo Foucault (1999:97). Contudo, mesmo aí não se trata da idéia de um ‘outro’, mas

de que é possível depurar-se uma raça, torná-la mais forte através do biopoder e do poder

soberano de matar que, no limite, pertence a todos, não apenas ao Estado, que também

pode matar a todos, até mesmo “os seus próprios”: “o Estado nazista tornou absolutamente

co-extensivos o campo de uma vida que ele organiza, protege, garante, cultiva

biologicamente, e, ao mesmo tempo, o direito soberano de matar quem quer que seja – não

só os outros, mas os seus próprios” (:311).

Retomando a questão que levou a toda esta reflexão sobre concepções de racismo, o

fundamento que dá sustentação à maior parte dos projetos sociais, especialmente àqueles

que têm a luta contra a discriminação racial como um de seus objetivos, parece ser a aposta

na idéia de que algum tipo de ‘igualdade’ é possível no capitalismo, seja social ou racial.

Como este trabalho tentou mostrar, o mercado mundial nada mais faz do que gerir suas

diferenças. Estas nada têm a ver com alteridades – a partir do momento em que algo foi

capturado, não se trata mais de um ‘outro’; as diferenças no capitalismo são de ‘grau’ em

relação a um parâmetro, a um padrão.

Assim, se o racismo age pela inclusão e pelo esquadrinhamento, pela organização e

pelo controle de multiplicidades, qualquer forma de identidade, qualquer forma de

reificação de uma subjetividade só facilita seu trabalho. Se não há possibilidade de

igualdade, não há possibilidade de tornar-se ‘outro’, ou seja, não há uma ‘identidade a

construir’ ou ‘um lugar a ocupar’.

Porém, há, sim, a possibilidade da criação, do acontecimento, de novos encontros,

enfim, de processos de singularização que escapam ao esquadrinhamento e que produzem

los, enquanto, é óbvio, eles não interferirem nas coisas sérias, isto é, as coisas da produção e da política.”

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novos territórios existenciais. Nesse sentido, produzindo formas de subjetivação singulares,

os blocos afro podem ser mesmo ‘espaços de resistência’, tomando resistência como

primeira em relação à reação: resistir é fugir dos esquemas, dos “clichês”; é, como diz

Deleuze no trecho que serve de epígrafe a esta conclusão, “suscitar novos acontecimentos,

mesmo pequenos, que escapem ao controle” (1992:218); singularizar-se.

E, a partir daí, isto é, da resistência, é preciso buscar novas formas de reagir,

formas capazes de produzir mais mudanças no mundo do que adaptações a ele, pois a

possibilidade do novo reside sempre nas tentativas de escapar à regulação. A criação do Ilê

Aiyê se deu num processo de singularização, pela entrada num devir-negro, e fez surgir os

blocos afro. Mas não se pode parar, deixar-se capturar por inteiro. Retomando o que disse

um dos fundadores dos primeiros blocos afro de Ilhéus, estes surgiram porque “começou a

aparecer por aqui um movimento.” Um tal movimento que não se sabia bem o que era,

tanto que gerou toda a “polêmica” em torno de qual teria sido o primeiro bloco afro da

cidade. Tratava-se, pois, de um movimento diferente. E esta é a melhor definição de bloco

afro: é ‘movimento’ e é ‘diferente’. Como foi visto ao longo deste trabalho, há muitas

‘paradas’ e ‘capturas’ no caminho, mas se os blocos afro de Ilhéus ainda ‘resistem’, isso

acontece porque existe o desejo em seus dirigentes e membros de moverem-se em direção a

novos encontros com outros processos de singularização. E é por acreditar nisso que, ao

final de um trabalho que foi guiado por desejos, deixo aqui também o meu: que os grupos

afro-culturais de Ilhéus continuem a ser ‘movimento’, a ser ‘diferentes’; que, retomando a

epígrafe de Deleuze que deu início a este trabalho, eles busquem bons encontros e que se

reinventem como blocos afro permanentemente.

(Guattari e Rolnik 1986:72).

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ANEXOS

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ANEXO 1

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ANEXO 2

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449

ANEXO 3

Miny Kongo

Zimbabuê

Axé Odara

Rastafiry

ForçaNegra

Danadosdo Reggae

Dilazenze

Raízes Negras

D’Logun

Lê-Guê DePá

Gangas

Malês

Zambi Axé

Guerreiros de Zulu

1980

1982

1984

1986

1988

1990

1992

1994

1996

1998

Leões do Reggae

(1)(2)

(3)

(4)

(6)

(14)

(5)

(8)

(9)

(12)

(10)

(15)

(13)

(7)

(11)

2000

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ANEXO 4

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451

ANEXO 5QUADRO RESUMO DA PARTICIPAÇÃO DOS BLOCOS AFRO

NOS CARNAVAIS DE ILHÉUS (1981-2004)

ANO LOCAL BLOCOS CONCURSO CAMPEÃO

1981* Av. SoaresLopes

Lê-guê Depá

1982 Av. SoaresLopes

Lê-guê Depá e Miny Kongo X Miny Kongo

1983 Av. SoaresLopes

Lê-guê Depá e Miny Kongo X Miny Kongo

1984 Av. SoaresLopes

Lê-guê Depá e Miny Kongo X Lê-guê Depá

1985 Av. SoaresLopes

Lê-guê Depá, Miny Kongo e Axé Odara X Lê-guê Depá

1986 Av. SoaresLopes

Lê-guê Depá, Miny Kongo e Axé Odara X Axé Odara

1987** Av. SoaresLopes

Zimbabuê, Gangas, Rastafiry, Dilazenze, Miny Kongo, AxéOdara e Lê-guê Depá

1988 Av. SoaresLopes

Lê-guê Depá, Zimbabuê, Rastafiry, Axé Odara, Dilazenze eMiny Kongo

X Rastafiry

1989 Av. SoaresLopes

Rastafiry, Dilazenze, Miny Kongo, Zimbabuê e Axé Odara

1990 Av. SoaresLopes

Gangas, Dilazenze, Zimbabuê, Miny Kongo, Axé Odara eRastafiry

1991 Av. SoaresLopes

Gangas, Miny Kongo, Dilazenze e Rastafiry

1992 Av. SoaresLopes

Rastafiry

1993 Av. SoaresLopes

Obatalá, Malês, Raízes Negras, D’Logun, Força Negra,Miny Kongo, Gangas, Dilazenze, Zimbabuê e Rastafiry

1994 Av. Litorânea D’Logun, Obatalá, Malês, Raízes Negras, Zimbabuê,Rastafiry, Força Negra, Gangas, Dilazenze e Miny Kongo

1995*** Av. Litorânea Rastafiry (como “levada”)

1996*** Av. Litorânea Miny Kongo, Rastafiry e Dilazenze (como “levada”)

1997**** Av. SoaresLopes

Rastafiry, Dilazenze, Miny Kongo, Zimbabuê, AfroCentro(Raízes Negras e D’Logun) e AfroNorte (Malês e Gangas)

Rastafiry (verobservaçãoabaixo)

1998**** Av. SoaresLopes

Dilazenze, Rastafiry, Miny Kongo, Raízes Negras, ZambiAxé, Zimbabuê e Danados do Reggae

1999**** Av. SoaresLopes

Dilazenze, Miny Kongo, Rastafiry, Malês, Raízes Negras,Zambi Axé

X Dilazenze

2000**** Av. SoaresLopes

Dilazenze, Rastafiry, Zambi Axé, Danados do Reggae,Raízes Negras e Miny Kongo

X Dilazenze

2001**** Av. Dois deJulho

Danados do Reggae, Miny Kongo, Dilazenze, Rastafiry,Raízes Negras, Zambi Axé, Guerreiros de Zulu e Leões doReggae

X Dilazenze

2002 Av. SoaresLopes

Dilazenze, Miny Kongo, Rastafiry, Zambi Axé, Guerreirosde Zulu, Malês, Leões do Reggae, Raízes Negras,Zimbabuê e Danados do Reggae.

X Dilazenze

2003 Av. SoaresLopes

Dilazenze, Miny Kongo, Rastafiry, Zambi Axé, Guerreirosde Zulu

X Dilazenze

2004*** Av. SoaresLopes

Dilazenze, Miny Kongo, Zambi Axé, Guerreiros de Zulu,Rastafiry, Leões do Reggae, Danados do Reggae, RaízesNegras

X Miny Kongo

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452

*Todos os blocos participantes receberam o Troféu do Centenário.

** Não houve julgamento porque os blocos não concordaram com o corpo de jurados(Diário da Tarde 06/03/87).

*** Somente o carnaval antecipado foi realizado.

**** Foram realizados o carnaval antecipado e o carnaval cultural.

Observação: não houve julgamento oficial, mas o grupo foi “aclamado” como campeão docarnaval e assim se considera.

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453ANEXO 6

DILAZENZE DE ANGOLA A BAHIA (2001)

Compositor: Gilvane Rodrigues – Interprete: Kaká

Do jeito que envolvenosso sentimentoe o Dilazenzecom sua históriaque vem apresentar

Do jeito que envolve ê ênosso sentimento laiá laiáé o Dilazenzecom a sua históriaque vem apresentar

Dilazenze, Angola, Bahiaos negros trazidos ao Brasilsão nativos da Áfricade diferentes regiões

Hoje na Bahiaa influência bantosamba, candomblé e capoeiraculinária e o folclore baianotestamento do boina luta africana o batuque é agora

Cadê minha AngolaAngola ê

Cadê minha Angola

Dilazenze Malungosignifica força para iaôfoi Hipolito Reisque tudo isso começounascido da nação Angolasoberana força e resistênciaTombency fundamentocom mãe Mukalê na quarta geraçãoCadê minha Angola

Angola êCadê minha AngolaAngola

Atinando um sonho de criançarevelando seu potencialé lindo de ver o reflexodo projeto Batukerêmergulha na história de Angolainfinito poder culturaleu sou Dilazenzeo bloco envolventedo carnaval

Angola

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IDILÉ OBA KAÒ (2002)

Compositor: Valério Bonfim – Interprete: Menina G’leu

História de amore confiançatrabalho, esperança,lutas e dor

Dilazenze lutouem todas as frentesmostrou a essa genteo que da África herdou

Dilazenze Malungoafricano lutadornação Tombencyaqui iniciou

Mãe Roxa Isabelbandanelungamostrou para o mundoreligião nagô

De Angola ao Brasilfoi que chegamosem Ilhéus para fincar

raízes de uma arvorearvore frondosacheira cravo, cheira rosaela é Kizunguirá.

REFRÃO: Kaó Kabiecy odilê odilá (bis)

Por isso que hojesomos florestacom marrombas ensabascom azeite de dendê

Kabocla Jupirarainha do Juremamameto Mukalêpronta a nos defenderEwá Tombency

unzo de inkissequarta geraçãocom seus filhos e nação

Nação Angolacongo, tupyde tudo temos aquipai Ogun do Kariri

REFRÃO

Nascido nos Carilosem fevereirobloco pioneiroem salvar os seus erês

tirando das ruassua criançasensinando culturaesperança, arte e dança

Para que todos agoravejam e possam creritan batukerênetos de Oxumarê

São 15 anosque os Carilos mudoucom as bençãos de Xangôsomos paz e muito amor

REFRÃO

Missão Dilazenzepreservar, valorizaragregar, expandire também disseminarCultura, belezaforça e união

Dila não é racismonem discriminação

Kaó nosso patronoé o rei da justiçajustiça que a gente faz

Aqui vamos agoragritar alto e dizerque crianças nas ruasnunca mais iremos ver

Com axé de KaóOlorum e os orixásidilé obaque nos traga toda paz

REFRÃO

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455

FALANDO DO DILA (2002)

Compositores: Gilsonei Rodrigues Santos e Gilson Rodrigues SantosInterprete: Gilsonei Rodrigues Santos

Eu quero me sentir a vontade pra falar do DilaEu quero penetrar no mundo dessa famíliaPor favor, me deixe entrar meu amor

E quando eu falo do Dila eu lembro Toinho BrotherEu lembro Nerisvaldo, Dilazenze Malungo e Dona MiriamEsta gente de fora não pode ficar

Cantando, dançando, preservando a cultura negraVocês não saem das nossas cabeçasEssa imagem eu hei de guardar

Me leva com vocêREFRÃO: Pra ver o Dilazenze passar Quero sentir esse calor 15 anos de história pra contar

Tudo começouem 1986Jovens astutos e marotosDisseram chegou a nossa vez

No Terreiro Tombencye protegido por XangôComeçou a trajetóriaque Mucalê abençoou

REFRÃO

Hoje sou Batukerê,sou a esperança do amanhãPreservando a nação Angola,já faço parte dessa história

REFRÃO

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FUTURO DA NAÇÃO (2002)

Compositor: Joilsom

Quinze anos de históriaDilazenze criouprojeto Batukerêdando esperança pra todas as crianças

Dizendo a verdadedo que é o amore dando educaçãoque nas ruas eles não tinham não

Mostrando ao Brasiltoda verdadecrianças nas ruasabandonadas como animais

Cadê meu Brasil

REFRÃO: Cadê meu Brasil como é que é? vamos tirar crianças das ruas ela é o futuro de nossa nação

A natureza criou, criou, crioua beleza negraDilazenze mostrouo que é ser negro de verdade

Quinze anos de históriacom raça e pudorhoje no Dilazenzetemos rainhas e princesas

REFRÃO

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ANEXO 7

FOTOS