Ana Pereira - Escravidão e Inquisição RJ

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1 DOSSIÊ Inquisição e Escravidão. Reflexões em torno do Brasil colonial: Rio de Janeiro, Sécs. XVII-XVIII 1 Ana Margarida Santos Pereira Universiteit van Amsterdam - Países Baixos (Doutoranda). Pesquisa realizada com o apoio da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) - Portugal, por intermédio do Programa POCTI Formar e Qualificar, Medida 1.1. [email protected] Resumo Segundo o que nos ensina a historiografia, a Inquisição Portuguesa não se preocupou grandemente com a ortodoxia religiosa das populações de origem africana, centrando as suas atenções na perseguição aos cristãos-novos, i.e. os cristãos de origem judaica. Ainda assim, o número de indivíduos africanos/de origem africana cujas vidas se cruzaram com o Santo Ofício, uns como vítimas e outros como denunciantes, foi significativo. Os arquivos da Inquisição guardam numerosa documentação cujo estudo é, de facto, essencial para reconstituir a perceção europeia, de base católica, acerca dos africanos e a interpretação dada aos seus rituais religiosos, mas também a forma como os escravos de origem africana apreenderam a religião dos seus senhores e o papel do Catolicismo na integração dos escravos e seus descendentes na sociedade colonial. O artigo centra-se no bispado do Rio de Janeiro, nos séculos XVII e XVIII: partindo das informações colhidas na documentação, apresentamos alguns dados preliminares relativamente aos africanos/afrodescendentes que aí foram processados pela Inquisição, bem como às denúncias a eles referentes, procurando evidenciar a importância da documentação inquisitorial (denúncias e processos) para o estudo das crenças religiosas do grupo, da sua interação com o Catolicismo e do impacto da doutrina e da moral católicas na vida quotidiana dos africanos e seus descendentes no Brasil, bem como a atitude e estratégias da Igreja em relação a este grupo particular. Palavras-chave: Afrodescendentes. Inquisição. Rio de Janeiro. Introdução Apesar de numerosos, os estudos sobre a Inquisição privilegiam, quase sempre, a abordagem da perseguição aos cristãos de origem judaica, em detrimento das outras vítimas. Os cristãos-novos foram, de facto, o grupo mais duramente atingido pela acção levada a cabo pelo Tribunal mas, embora com maior ou menor intensidade, o seu impacto foi sentido em 1 Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada ao 52º Congresso Internacional de Americanistas Pueblos y Culturas de las Américas: Diálogo entre Globalidad y Localidad (Simpósio: «La Diáspora Africana su Historia y sus Retos Hoy»), Sevilha, 17-21 de julho de 2006, sob o título Unveiling history. Afro- brazilians and the Portuguese Inquisition: cultural confrontation in the New World”. O texto agora publicado é uma versão modificada do que foi publicado em espanhol: PEREIRA, Ana M. Inquisición y esclavitud. Reflexiones en torno al Brasil colonial: Rio de Janeiro, siglos XVII-XVIII. In: MACHADO CAICEDO, Martha Luz (Ed. e Comp.). Diaspora africana: un legado de resistencia y emancipación. Santiago de Cali: National Institute for the Study of Dutch Slavery/NiNsee; Universidad del Valle; Fundación Universitaria Claretiana, 2012. p. 117-131. A autora escreve segundo a norma-padrão do Português europeu.

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Escravidão africana e inquisição: heresia, feitiçaria, cristã-novice, séculos XVII-XVIII.

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1 DOSSI Inquisio e Escravido. Reflexes em torno do Brasil colonial: Rio de Janeiro, Scs. XVII-XVIII1 Ana Margarida Santos Pereira Universiteit van Amsterdam - Pases Baixos (Doutoranda). Pesquisa realizada com o apoio da Fundao para a Cincia e a Tecnologia (FCT) - Portugal, por intermdio do Programa POCTI Formar e Qualificar, Medida 1.1. [email protected] Resumo Segundooquenosensinaahistoriografia,aInquisioPortuguesanosepreocupougrandemente comaortodoxiareligiosadaspopulaesdeorigemafricana,centrandoassuasatenesna perseguioaoscristos-novos,i.e.oscristosdeorigemjudaica.Aindaassim,onmerode indivduosafricanos/deorigemafricanacujasvidassecruzaramcomoSantoOfcio,unscomo vtimaseoutroscomodenunciantes,foisignificativo.OsarquivosdaInquisioguardamnumerosa documentao cujo estudo , de facto, essencial para reconstituir a perceo europeia, de base catlica, acerca dosafricanose a interpretao dadaaos seusrituaisreligiosos,mas tambm aformacomoos escravosdeorigemafricanaapreenderamareligiodosseussenhoreseopapeldoCatolicismona integraodosescravoseseusdescendentesnasociedade colonial.Oartigocentra-senobispadodo RiodeJaneiro,nossculosXVIIeXVIII:partindodasinformaescolhidasnadocumentao, apresentamosalgunsdadospreliminaresrelativamenteaosafricanos/afrodescendentesqueaforam processadospelaInquisio,bemcomosdennciasaelesreferentes,procurandoevidenciara importnciadadocumentaoinquisitorial(dennciaseprocessos)paraoestudodascrenas religiosas do grupo, da sua interao com o Catolicismo e do impacto da doutrina e da moral catlicas navidaquotidianadosafricanoseseusdescendentesnoBrasil,bemcomoaatitudeeestratgiasda Igreja em relao a este grupo particular. Palavras-chave: Afrodescendentes. Inquisio. Rio de Janeiro. Introduo Apesardenumerosos,osestudossobreaInquisioprivilegiam,quasesempre,a abordagem da perseguio aos cristos de origem judaica, em detrimento das outras vtimas. Os cristos-novos foram, de facto, o grupo mais duramente atingido pela aco levada a cabo peloTribunalmas,emboracommaioroumenorintensidade,oseuimpactofoisentidoem 1 Uma verso preliminar deste trabalho foi apresentada ao 52 Congresso Internacional de Americanistas Pueblos y Culturas de las Amricas: Dilogo entre Globalidad y Localidad (Simpsio: La Dispora Africana su Historia y sus Retos Hoy), Sevilha, 17-21 de julho de 2006, sob o ttulo Unveiling history. Afro-brazilians and the Portuguese Inquisition: cultural confrontation in the New World. O texto agora publicado uma verso modificada do que foi publicado em espanhol: PEREIRA, Ana M. Inquisicin y esclavitud. Reflexiones en torno al Brasil colonial: Rio de Janeiro, siglos XVII-XVIII. In: MACHADO CAICEDO, Martha Luz (Ed. e Comp.). Diaspora africana: un legado de resistencia y emancipacin. Santiago de Cali: National Institute for the Study of Dutch Slavery/NiNsee; Universidad del Valle; Fundacin Universitaria Claretiana, 2012. p. 117-131. A autora escreve segundo a norma-padro do Portugus europeu. 2 todosossectoresdasociedade,nosemPortugal,comonosterritriosultramarinossob domnio portugus. Em termos absolutos, apopulao de origem africana no foi particularmente afetada pelarepressoinquisitorial.Paradoxalmente,asinformaesguardadasnosarquivosdo Tribunalportugussonoapenasvaliosas,comoemmuitoscasosfundamentais,parao estudo da vivncia dos escravos e seus descendentes escala do imprio. Isso mesmo o que aqui procuramos mostrar, tomando como referncia a rea correspondente ao bispado do Rio deJaneiro,noperodocompreendidoentreasegundametadedosc.XVIIeofinaldosc. XVIII.Aabordagempropostanosecircunscreve,porm,aombitolimitadodadiocese: antes de mais, procuramos enquadrar a questo,explicitando alguns dosparmetros que tm vindo a orientar a pesquisa. Assim, o nosso olhar estende-se tambm ao conjunto do territrio brasileiro, abarcando ainda o espao atlntico, de que o Rio de Janeiro e o Brasil faziam parte enoqualatuaramdeformadinmica,integrandoasredesque,porintermdiodooceano, ligaram entre si trs continentes. Adocumentaousadaencontra-senoArquivoNacionaldaTorredoTombo, subfundoInquisiodeLisboa,enasecodeReservadosdaBibliotecaNacionalde Portugal.Paraestetrabalho,basemo-noseminformaesrecolhidasessencialmentenas seguintes fontes: autos da f (listas), Cadernos do Promotor, denncias e processos. Inquisio e escravido Numartigopublicadopelaprimeiravezhpoucomaisdeumadcadaenovamente editadonumacoletneaemquereuniuvriostextosdesuaautoria,Mello(2002,p.127) refere-sepresenadeescravosafricanose/ouafrodescentesnadocumentaoinquisitorial: classificando-acomoralaouquasenula,tantonaqualidadededenunciados,comode denunciantes, ou na de simples testemunhas de factos e episdios alheios por outros levados aoconhecimentodoTribunal,deploraofacto,constatandoariquezadasinformaes proporcionadaspelaInquisiorelativamenteaoutrosgruposeaimportnciada documentao produzida por este rgo para o estudo dos mesmos. Referindo-seespecificamenteaoconjuntodedocumentososprocessos,emnmero considervel,masacimadetudoasconfissesedenncias,cujasomaatingiuasvrias centenasproduzidosnombitodaprimeiravisitaodesencadeadapeloSantoOfcioem territrio brasileiro, por intermdio de Heitor Furtado de Mendona, que se deslocou primeiro BaaedepoisaPernambuco,permanecendonacolniaentre1591e1595(SIQUEIRA, 1978,p.203-265),oautoremcausaapontamesmoalgumasrazesque,nasuaopinio, poderiamexplicaressalacuna,aprimeiradasquaisseriaaprprianaturezadacondio escrava. Sobopontodevistalegal,oescravoconstitua,defacto,umbemmvel,comum estatutosemelhanteaodeumanimaldeusodomstico,comoqualqueroutramercadoria passvel de transao comercial. Ao punir os crimes por si praticados, o ordenamento jurdico portugusreconheciaporm,deformaimplcita,anaturezapeculiardetalbem (FLORENTINO;GES,1997,p.31)e,emltimaanlise,ahumanidadedocativo (GORENDER,1978,p.65),masoseutestemunhonoeraaceiteemtribunal,anoserem condies particulares, especialmente determinadas por lei.2 Segundo Mello (2002, p. 127-128), a Inquisio teria seguido, nesta matria, o critrio adotado pelo Direito Civil, recorrendo ao testemunho de pessoas no livres somente em casos 2 Ordenaes Filipinas, Liv. III, Tt. LVI (Que pessoas no podem ser testemunhas): O escravo no pode ser testemunha, nem ser perguntado geralmente em feito algum, salvo nos casos por Direito especialmente determinados (apud LARA, 2000, p. 96). 3 excecionais.Ainvisibilidadedoscativoseasuadesqualificao,enquantomembrosda camada mais nfima da sociedade na hierarquia da colnia, explicariam, por outro lado, a sua ausnciaentreoelevadonmerodehabitantesquecompareceramperanteovisitadorpara denunciarpecadosalheiosenalista,tambmelaextensa,dosqueviramosseusnomes denunciados.Asbarreirasqueseopunhamintegraodosescravos,particularmente notriasquandosetratavaderecm-chegados,muitosdosquaisnemsequerdominavamo Portugus, e a lentido do processo de aculturao; o seu desconhecimento relativamente aos princpiosdoCatolicismoeoapegoaprticasreligiosasdematrizafricana;adeferncia manifestadapelaprpriainstituioinquisitorialrelativamenteaosproprietrioscoloniais, cujosbensseriampoupadosembenefciodaeconomialocal,dominadapelosinteresses metropolitanos,3eramoutrostantosmotivosquejustificariamaindiferena,alegadamente demonstradapelosresponsveisdoSantoOfcio,noquetocavasprticasreligiosasdos cativos e aos comportamentos adoptados pelos mesmos em questes de moral. Nofinaldosc.XVI,quandotevelugaraprimeiravisitaoaoNordeste,aforade trabalhonosengenhoseraaindamaioritariamenteconstitudaporndiosemamelucos.4A transio para a mo-de-obra africana, que, segundo as estimativas, correspondia ento a um tero do efetivo total de trabalhadores, completar-se-ia nas duas primeiras dcadas do sculo seguinte.Osargumentoscujainventariaoacabamosdefazersoporm,desdehmuito, tidos como vlidos no s para o sc. XVI mas para todo o perodo colonial. AoanalisarosacontecimentosquetiveramlugarnoarraialdeParacatu(Minas Gerais),emmeadosdosc.XVIII,comodesmembramentodeumgrupoconstitudopor negrosdeambosossexos,forrosecativos,alegadamenteenvolvidosnumcultodeorigem africana,cujaocorrnciachegouaoconhecimentodosinquisidoreseporestesfoiignorada, Mott (1986, p. 131) constatou que os inquisidores estavam mais interessados em perseguir os abastados judeus e cristos-novos, do que gastar tempo e dinheiro com batuques da negrada, acrescentandoqueoscasosdefeitiariaoufolguedosebatuquesdenegroserammaisda alada do Bispo do que da Inquisio. Emboratenhatidoumpapelpioneironoquetocautilizaodadocumentao inquisitorialparaoestudodasprticasreligiosase/ouculturaisdosafricanoseseus descendentes no Brasil,Mott defende, na verdade, que os mesmos se mantiveram, emgeral, aoabrigodasinvestidasaquilevadasacabopeloTribunaldaF,nosemvirtudedo policiamentomenosefetivoaqueestavamsujeitososindivduospertencentesscamadas subalternas,comotambmaomenorgraudecontrolosobreelesexercidopelaprpria sociedade. Vivendo, pela sua maior parte, isolados nas fazendas e engenhos que se estendiam em redor das povoaes muitas vezes, distncia de alguns dias de caminho os escravos encontravam-se, por isso mesmo, a salvo do olhar vigilante dos funcionrios do Santo Ofcio. Omesmonosepassavacomoscolonosdeorigemeuropeia,queconstituamoalvo preferencialdosinquisidores,nosporseremmaisvisveissocialmente,comopor representarempresamaisinteressanteparaoTribunal,postoqueosbensdos[condenados] revertiam parte para os delatores, parte para a Coroa Del Rey (MOTT, 1988, p. 28). 3 A posio assumida pela Igreja na colnia a propsito da escravido e a anuncia tcita da instituio, relativamente ao cativeiro de indivduos com origem no continente africano, so questes, alis amplamente debatidas, que com esta se relacionam. Souza (1986, p. 87-88) defende, a este propsito, a existncia de uma religiosidade especificamente colonial, por oposio cristandade romana das monarquias catlicas europeias, chamando a ateno para o papel, tambm ele muito discutido, do Padroado que, ao permitir a intromisso do poder temporal no domnio espiritual, pautava a evangelizao antes por razes de Estado do que pelas da Alma. Na sua opinio, a originalidade da cristandade brasileira residiria [...] na mestiagem, na excentricidade em relao a Roma e no eterno conflito representado pelo fato de, sendo expresso do sistema colonial, ter que engolir a escravido: uma cristandade marcada pelo estigma da no-fraternidade. 4 Mameluco (DICIONRIO, 2001) - 2 (Sc. XVII) Regionalismo: Brasil. mestio de branco com ndio ou de branco com caboclo; mamaluco. 4 AopinioexpressaporMottnointeiramentepartilhadaporoutrospesquisadores, comoCalanho(2000,p.199-200):5aoestudarafeitiariaafricanae,deummodogeral,as manifestaes de religiosidade negra em Portugal, no decurso da poca moderna, esta autora constatou,defacto,queoolharatentodoSantoOfcioarrastouvriosnegrosescravose forrosparaoscrceresdatemidaCasadoRocioonde,porvezes,muitosperdiamsua sanidadementaleataprpriavida,emborasendocertoqueasinvestidasdaInquisio voltaram-sesobretudoparaoscristos-novos,tendoumaaocomparativamentebrandaem relao feitiaria, [fosse] de brancos ou negros. Sweet (2003), cuja anlise contempla, para alm da realidade metropolitana, o conjunto das possesses portuguesas no mundo, incidindo no s sobre o aspecto religioso mas tambm nas questes relacionadas com a moral sexual, sob o pano de fundo de uma discusso mais ampla, que aborda as relaes raciais no seio do imprioportugus,afirma,porsuavez,queasprticasafricanasnoconstituramuma preocupaoparticularparaosinquisidores.Acorrobor-lo,sublinhaaexistnciadeuma enormediscrepnciaentreaquantidadededennciasquechegaramaoconhecimentodo Tribunal,envolvendotaisprticas,eoscasos,muitomenosnumerosos,queefetivamente vieram a dar origem a processos (SWEET, 2003, p. 9). Contrariamenteaoutrosautores,entreosquaisMello,cujaposiojfoiporns mencionada,Sweet(2003,p.9)assevera,porm,queaInquisioproporcionouaos indivduosdeorigemafricanatantolivres,comoescravosumfrumnoqualpuderam fazer ouvir a sua voz, no s para confessar culpas prprias mas tambm como denunciantes defaltasalheias,cometidaspornegrosouno,ecomotestemunhaschamadasadepor,quer durante as averiguaes preliminares, quer mesmo no mbito de um processo em curso. Adocumentaoinquisitorial,defacto,umafonteindispensvelparaoconhecimentodas dinmicasinerentesorganizaoescravistaasrelaesforjadasnointeriordoprprio sistema, o papel desempenhado por cada um dos seus segmentos e o fluxo das trocas culturais no mbito de uma realidade cuja estrutura assentava no binmio dominante/dominado. OselementosdisposiodopesquisadornosarquivosdaInquisioconstituemum repositrionico,cominformaesvaliosase,emmuitoscasosinsubstituveis,sobreas verdadeirascondiesdevidadosafricanoseseusdescendentesnosterritriossobdomnio portugus;osseushbitosecrenas;asrelaesqueosuniamentresieainteraocom outrosindivduosegruposmarginalizados,talcomoelespertencentesscamadasinferiores da sociedade; a perceo da sua prpria condio e o papel que a si mesmos se atribuam no sistema de cuja engrenagem faziam parte; a imagem por eles construda do mundo dominante easestratgiasdasquaislanavammo,nassuasrelaescomomesmo;osprincpiosque ditavamaatitudedossenhoresparacomosseusescravos,avisodoafricanonaculturade matriz crist europeia e as posies assumidas pelo mundo letrado relativamente ao fenmeno servil.Numapalavra:ascaractersticasdaescravidonoimprioportuguseo funcionamentodoprpriosistemacolonial,porumlado,eporoutro,osmecanismos ideolgicosquesustentavamasduasrealidades,justificando-assobopontodevistaterico (LAHON, 2004, p. 29-30). Os processos: crena na Lei de Moiss e outras dissidncias AocontrriodoqueseverificounosterritriospertencentesAmricaespanhola, ondehouvetrstribunaisemfuncionamentoodeLima(Per),criadoem1570;odo Mxico,em1571;eodeCartagenadendias(Colmbia),em1610oBrasilnopossuiu 5 Por motivos de ordem prtica, as referncias inseridas no nosso texto remetem para a tese de Doutorado da autora, a qual foi, entretanto, publicada, cf. referncias documentais, no final. 5 uma Inquisio residente, mantendo-se durante quase trs sculos sob a alada do Tribunal de Lisboa.6 Criadoem1539,estetribunaldetinhaajurisdiosobreumareaalargada,que compreendia as dioceses de Lisboa, Leiria e Guarda, estendendo-se igualmente aos territrios portuguesesdoAtlntico:almdoBrasil,tinhatambmaseucargoaspraasconquistadas pelos portuguesesem Marrocos, acosta ocidental de fricaat ao cabo da Boa Esperana e osarquiplagosdosAores,Madeira,CaboVerdeeSoTom(SIQUEIRA,1978,p.115-126; BETHENCOURT, 1994, p. 44-46). Lisboa,capitaldeumimprioescalapluricontinental,exerciaassimtambmo controlodopoderpunitivoemmatriadeobservnciareligiosa,chamandoasiadefesada ortodoxia, com os objetivos de instituir uma comunidade de crentes que se estendesse a todo o imprioedeuniformizaroscomportamentossobagidedoCatolicismo.Aofaz-lo, reforava a sua posio de domnio, j que de fora da sua jurisdio ficaram apenas as regies controladas pelos portugueses no Oriente: a distncia que as separava da metrpole constitua um obstculo que s foi possvel ultrapassar, em 1560, com o estabelecimento do tribunal de Goa, no por acaso o nico a juntar-se aos trs existentes no interior do territrio continental portugus. OimpactodaaoinquisitorialnoBrasilfoicertamentemenosdramticodoquese aqui tivesse havido um tribunal mas nem por isso deixou de se fazer sentir. Pelo contrrio, a sua presena na colnia prolongou-se at ao sc. XIX, afetando praticamente todo o territrio, desdeaszonascosteiras,maisdensamentepovoadaseporissotambmmaisduramente atingidas, at aos confins do serto. Naausnciadeumaestruturapermanente,existiaumarededefuncionrios comissriosefamiliarescujafunoconsistiaessencialmenteemvigiarapopulao, auxiliandoosinquisidoresnatarefadezelarpelamanutenodaortodoxia;e,detemposa tempos,oSantoOfcioprocediaaoenviodeumvisitador,i.e.umdeputadoespecialmente nomeado para avaliar o ambiente espiritual da colnia, atravs dos depoimentos (confisses e denncias)recolhidosduranteoperodomaisoumenosbrevedasuapermanncia-tanto quanto sabemos, o Brasil foi visitado pelo menos quatro vezes, entre o final do sc. XVI e os meados do sc. XVIII, e as Capitanias do Sul uma nica vez, em 1627-28. Almdisso,osinquisidorescontavamcomaassistnciadosjesutasqueforam,sem dvida, os mais ativos colaboradores do Tribunal na colnia, e de alguns membros de outras ordens;comaestruturadoclerosecular,que,apesardassuasdeficincias,tinhauma implantaoescaladoterritrio,encontrando-semaisprximadaspopulaes,e,porisso mesmo,exerciaumaespciedetriagem,julgandoalgunscasoseenviandoao conhecimento dos inquisidores aqueles que, por serem mais graves, recaam sob a sua alada; por ltimo, e no menos importante, aInquisio apoiava-se tambm na prpria sociedade e na capacidade da mesma para se auto-regular, fomentando a delao, num clima de vigilncia mtuaquesetraduzianopoliciamentodetodosportodos(edecadaumporsi),tendoem vista um ideal de pureza da f que justificaria a recolha de milhares de denncias ao longo de quase trs sculos (NOVINSKY, 1984, p. 18-19). Num universo calculado em cerca de 40 000 processos, correspondentes ao nmero de indivduosqueforamefetivamentejulgadospeloTribunaldeLisboa,estima-sequeo contributo do Brasil noteria atingido seno pouco mais de um milhar de processos 1076, segundo a contagem efetuada por Novinsky 7 correspondendo, grosso modo, a 2.7% do total. 6 Sobre a questo da inexistncia de um tribunal da Inquisio no Brasil e as tentativas que nesse sentido foram feitas, sobretudo durante o sc. XVII, veja-se Pereira (2006, p. 63-76). 7 Esta contagem no deve ser considerada definitiva mas o nmero final no andar longe do que referido pela autora. Sabemos, por experincia prpria, que muitos documentos arquivados como processos so afinal meras denncias. Alm disso, como lembra Novinsky (2002, p. 25), os processos no esto classificados de acordo 6 Noquedizrespeitopopulaodeorigemafricana,osquantitativosquetmvindoaser divulgados constituem estimativas meramente parcelares. No entanto, os elementos at agora apurados apontam para um nmero de processos relativamente baixo, que deveria ter rondado o meio milhar. Lahon (2004, p. 30) identificou nos tribunais de Lisboa, Coimbra e vora perto de 300 processos relativos a indivduos de cor preta e mulata, nascidos e/ou domiciliados no Reino; relativamente ao Brasil, a sua estimativa aponta para cerca de 150 processos, o que, tomando comorefernciaonmeroapontadoporNovinsky,corresponderiaa13.9%dototal,8mas para a frica sub-sahariana no indicado qualquer valor. Mott, por seu lado, estabelece um clculode200a300processos;nosabemos,porm,seserefereaoconjuntodoimprio portugus ou apenas ao territrio brasileiro (cf. CALANHO, 2000, p. 199-200). Osnmerospornsapurados,relativamenteaoTribunaldeLisboa,apontampara cerca de 140 processos no perodo compreendido entre 1671 e 1790. Desses, mais de metade corresponderia ao Brasil, onde as Capitanias do Sul foram as mais afetadas, com um nmero superior a meia centena de processos para a rea correspondente ao bispado do Rio de Janeiro (at ao momento, foram identificados 54).9 Para este valor contriburam, em larga medida, as prises efetuadas no Rio de Janeiro duranteaprimeirametadedosc.XVIII,emvirtudedeumaofensivaquetevecomoalvo principaloscristos-novosaliresidentes(AZEVEDO,1926,p.679-697;SILVA,1995).No mbito da mesma, foram efetivamente presos diversos mulatos: produto de relaes mais ou menos fortuitas entre senhores de engenho cristos-novos e as suas escravas, o facto de terem sido acusados da prtica de ritos judaicos , quanto a ns, bastante significativo. ProcessoscomoodopadreFranciscodeParedes,filhodeLusdeParedes,um abastadosenhordeengenho,edeLeonordaCosta,suaescrava,10ouodeLusDique,que confessou ter sido instrudo na religio judaica por Lus Dique de Sousa, seu pai, no engenho dequeesteerapossuidor,11encontram-se,defacto,repletosdeinformaessobreavida social e familiar dos mulatos, escravos e forros, os mecanismos ao seu dispor e as estratgias por eles desenvolvidas, fornecendo-nos indicaes valiosas sobre as relaes entre os cristos-novoseosseusescravos;otratamentoporelesdispensadoaosfilhosnascidosde relacionamentosilegtimoscommulheresdecor;aligaodestesfamliapaternaeo modocomogeriamumaheranaculturalhbridaouopapeldareligionestecaso,o Judasmo como mecanismo integrador e at mesmo legitimador, de indivduos e situaes. A adeso crena paterna deve ter constitudo, seno em todos pelo menos em muitos casos, um instrumento de promoo social para os mulatos, filhos de cristos-velhos ou de cristos-novos.Aostentaoporestesltimosdohbitopenitencial,smbolodasuapassagempelos crceres do Rossio, conferia-lhes uma legitimidade acrescida, como membros de pleno direito deumgrupocujaidentidadesedefiniatambmemfunodaperseguiomovidaaosseus integrantes (NOVINSKY, 2001, p. 67-75; WOLFF; WOLFF, 1987).

com o lugar de origem dos rus, pelo que seria necessrio percorrer todos os processos para se chegar a um resultado definitivo quanto ao nmero de brasileiros efetivamente presos pelo Santo Ofcio. Este trabalho tem vindo a ser realizado por alguns pesquisadores, aguardando-se a divulgao de resultados. 8 As percentagens obtidas pela autora encontram-se aqum desta mas correspondem tambm a uma estimativa parcelar: numa amostra constituda por 778 homens e 298 mulheres, os rus de origem africana (pretos e mulatos) corresponderiam a 27 homens e 10 mulheres ou 3.47% e 3.36%., respectivamente. No que diz respeito aos homens, apenas 7 (0.9%) aparecem classificados como escravos (NOVINSKY, 2002, p. 33-37). 9 Elementos obtidos sobretudo (embora no exclusivamente) em: Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Inquisio de Lisboa, Autos da F, liv. 7, e Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) Seco de Reservados, Coleco Moreira, cd. 863. Os nmeros aqui apresentados foram apurados no mbito de uma pesquisa em curso, encontrando-se ainda em fase de verificao, pelo que no nos possvel apresentar valores definitivos mas apenas os totais aproximados. 10 ANTT, Inquisio de Lisboa, Processos, n. 8198. 11 ANTT, Inquisio de Lisboa, Processos, n. 4958. 7 Almdosprocessosporjudasmo(44ou81.5%dototal),encontramosoutros, correspondentes a atentados moral sexual, designadamente a bigamia (7.4%); acusaes de feitiaria,adivinhaesecurandeirismo(5.6%);ealgunsmais,alegadamentepraticadospor indivduosdeorigemafricana.Oestudoquetemosvindoadesenvolver,tomandocomo objeto a rea correspondente ao bispado do Rio de Janeiro, procura estabelecer a tipologia das acusaesnaAmricaespanhola,osindivduosdecorsonormalmentejulgadospela prticadedelitosmenores,comoablasfmia,asuperstioouabigamia;osdadosat agora disponveis, relativamente ao Brasil, sugerem uma diviso menos ntida das acusaes, comumelevadonmerodeprocessosporjudasmotambmentreosindivduosdeorigem africana. Almdisso,pretende-sedeterminaraorigemdosrus,senascidosemfrica,no Brasilouateventualmentenoutrolugar(osdadospreliminaresapontamparaumalarga prevalnciadosnascidosnoBrasil,com87%dototal);omodocomosoclassificadosnos documentos, com a indicao da percentagem relativa de negros(14.8%) e mulatos (83.3%); e,entremaiscoisas,oseuestatutolegal,tendoemcontaadivisodosmesmosemtrs categorias,escravos(11.1%),livres(0%)ouforros(27.8%)(BETHENCOURT,1994,p. 281).Umaveznapossedetodososelementos,estaremosemcondiesdeextrairdeles indicadores que, segundo nossa convico, podero contribuir de forma significativa para o conhecimentodosmecanismosimplicadosnadisporaafricana:oprocessodeaculturaoa queforamsubmetidososescravoseseusdescendentesnoBrasil(enos);opapel desempenhadopelareligioquercomoinstrumentodedominaoaoserviodopoder metropolitano, quer como estandarte da resistncia por parte dos oprimidos; o funcionamento do prprio sistema colonial e a sustentao ideolgica do mesmo. As denncias: feitiaria e demonizao dos africanos no Novo Mundo Apesar de relativamente pouco numerosos o que no deixa de ser significativo, tanto mais que o mesmo se verificou naAmrica espanhola, onde, como tivemos oportunidade de referir, havia nada menos do que trs tribunaisos processos respeitantes aos indivduos de origem africana fornecem-nos, portanto, diversos dados (CEBALLOS GMEZ, 1994, p. 21). Asuautilizaoparaefeitosdepesquisa,comportapormalgumaslimitaes,desdelogo decorrentesdareduzidaquantidadedosmesmos.Sobestaperspetiva,asdenncias apresentamummaiorgraudefiabilidade:oseunmero,emtermosabsolutos,earepetio de situaes que nelas se verifica, permitem, de facto, uma avaliao mais correta e prudente, nosentidodedeterminaraimportnciaespecficadasproblemticasreveladaspelos processos,eaformulaodenovasquestesque,deoutromodo,passariamdespercebidas (LAHON, 2004, p. 31). Tantoquantosabemos,noexistequalquerestimativaemrelaosdennciasque chegaramaoconhecimentodosinquisidoresnoTribunaldeLisboa.Onmeroaelas correspondente foi, com toda a certeza, muito superior ao dos processos mas a sua proporo relativa ainda, em grande medida, por ns desconhecida. No que diz respeito populao de origem africana, Mott aponta para a existncia de ummilhardeindivduosdenunciados;maisumavez,ficamospormsemsaberseeste nmero se refere unicamente ao territrio brasileiro (cf. CALANHO, 2000, p. 199-200). Os elementos por ns recolhidos, para o perodo compreendido entre 1671 e 1790, apontam para umnmeroquerondariaas300dennciasnobispadodoRiodeJaneiro(ataomomento, apurmos 280), a juntar s seis centenas que corresponderiam aos indivduos denunciados no 8 resto do Brasil, nos outros territrios do imprio e na prpria metrpole, durante o perodo em questo.12 Aidentificaoprecriadosindivduos,muitasvezesidentificadosapenaspelo primeiro nome, e a prpria organizao burocrtica do Tribunal, com a acumulao de papis referentesaumamesmapessoaemdiferentesseces,dificultamoapuramentofinaldos dados,exigindoumtrabalhodedepuraoqueimplicaocruzamentodediversasfontes.A tarefa,morosa,encontra-seactualmenteemcursomas,nestemomento,parece-nosjseguro afirmarque,noqueserefereaoRiodeJaneiro,cercademetadedasdenncias(53.2%) envolveumconjuntodeprticasadivinhaes,compraevendadebolsasdemandingae outrosamuletos,curandeirismo,magiaesupersties,participaoemcalundsque genericamente se enquadram na designao de feitiaria.13 Osdocumentosemquestosofundamentaisparaacompreensodasprticas religiosas/culturaisdosafricanoseseusdescendentesnoNovoMundo,dosseusvalorese crenasedoscaminhostraadospelosmesmos,nodilogoentreasuaprpriaherana ancestral e a cultura de matriz europeia, imposta pelo setor dominante. Ao mesmo tempo, as denncias relativas a casos de feitiaria, produzidas na sua maioria por brancos, testemunham de forma eloquente a viso da sociedade em relao ao grupo constitudo pelos indivduos de origemafricana,escravosenos,eoprocessodecoisificao,paganizaoe demonizao das suas prticas culturais, com que estes se viam continuamente obrigados a lidar (MAYA RESTREPO, 1998). Casos como o de Antnio e a sua mulher, Maria, escravos deAndrMachado,naturaldasilhasemoradoremMaric,nosarredoresdoRiode Janeiro, atestam, por outro lado, a circularidade de culturas e crenas (SOUZA, 1993, p. 47-57), cuja ocorrncia se verificou no interior do imprio portugus: um e outro foram, de facto, acusadospordiversastestemunhas,asquaisseriamunnimesemafirmarqueambos praticavofeitisariascomconsitimentodeseusenhoreindahojeestandoenterceiro pessuidor [iam] a caza do mesmo senhor que foi, praticar as mesmas artes mag[i]cas. Mais, a acreditar nos depoimentos, Andr Machado no s consentia nas atividades dos dois escravos, como participava ativamente nos calunds por estes organizados em sua casa.14 A anlise das dennciasaqui mencionadas e de outras, em menor nmero, relativasa casosdebigamia(5%),sodomia(22.1%)oublasfmia(2.1%),fornece-nosumvasto repertrio de informaes, permitindo-nos apreender os motivos que se encontram na origem dos comportamentos adotados por uns e outros, acusadores e acusados, as razes nas quais se sustentam e a teia de conflitos que, pela sua prpria estrutura, caracteriza o funcionamento da sociedadecolonial.Oselementos,decarizantropolgicoenos,recolhidosnodecursoda nossa pesquisa, com a determinao da origem tnico-geogrfica de acusadores e acusados e doestatutoostentadoporambos,oferecem-nosindicaesvaliosassobreaintegraodos indivduos de origem africana no seio da sociedade colonial; as adaptaes por eles sofridas e ocontributoquelevaramconsigoparaaAmrica:numapalavra,oprocessode transculturao,15nombitodoqualosescravoseseusdescendentesforam simultaneamente vtimas e atores, e as dinmicas implicadas na formao e desenvolvimento 12ANTT,InquisiodeLisboa,CadernosdoPromotor,liv.248-324e818;Denncias,liv.65-67.Algumas dennciasforamrecolhidasapartirdaconsultadosprocessosedeoutrasfontes,comoosregistosde correspondncia da Inquisio de Lisboa e os maos de documentao avulsa do mesmo tribunal. 13Calunds(DICIONRIO,2001)Regionalismo:Brasil.Diacronismo:antigo.3(1596-1659)festasou celebraes de origem ou carter religioso, acompanhadas de canto, dana, batuque e que ger. representavam um pedido ou consulta a divindades ou entidades sobrenaturais. 14 ANTT, Inquisio de Lisboa, Processos, n. 3641. 15Termoutilizadoparadesignarlasdiferentesfasesdelprocesodetransicindeuna(s)cultura(s)aotra,es decir, la deculturacin o prdida de una cultura antecedente y la neoculturacin o creacin de nuevos fenmenos culturales (CEBALLOS GMEZ, 1994, p. 15). 9 de uma sociedade, que no sendo j propriamente europeia, adquiria feies originais, que lhe conferiam uma identidade nica e no correspondente mera soma das suas partes. Concluso Nodecursodoprocessoexpansionista,quetevelugarduranteapocamoderna,a religioconstituiuumimportanteinstrumentodedomnioaoserviodopodercolonizador, quedelaseserviuparagarantirasubmissodoelementocolonizadoeareduodo mesmo,comasupressodoscostumespolitestas,polignicosepolilnguesdenegrose ndios,emfricaenaAmrica,eaassimilaoporelesdasprticasmonotestas, monogmicasemonolnguesdosseusnovosamos.Aomesmotempo,avisoreligiosado mundo desempenhou porm um papel fundamental no processo de reconstruo da memria histrico-culturaldosafricanosnadispora,constituindoassimtambmumpoderoso mecanismo de resistncia cultural, na oposio levada a cabo pelos dominados em relao ao poder dominante, europeu e cristo (MAYA RESTREPO, 1998; 2001, p. 179). A Inquisio, criada antes de mais para fazer face ameaa dos judeus convertidos (oschamadoscristos-novos),tendoemvistaamanutenodaortodoxiareligiosaea defesa da ordem tradicional, perante as novas foras em ascenso na sociedade, desempenhou tambm um papel importante na difuso do colonialismo, actuando para garantir a adeso dos habitantesdosterritriosconquistadosaumprojetomonoculturaleurocntricoquevisava domesticarasalmaspararentabilizaroscorpos,comorecursoameiosrepressivosassentes naviolnciafsica,narestriodosatosenocondicionamentodasvontades,medianteo esquadrinhamento das almas (MAYA RESTREPO, 2001, p. 180). AanlisedadocumentaorelativaaosafricanoseseusdescendentesnoTribunalde Lisboaparecerevelar,porm,queosinquisidoresnosemanifestaramespecialmente preocupados em castigar os abusos por estes praticados, tanto em matria religiosa, como no queserefereaoscomportamentos.Orespeitopelosprincpiosdaeconomiacolonial,cujo desenvolvimentoassentava,emlargamedida,naexploraodamo-de-obraescrava;asua indiferena para com o destino da alma dos negros e mulatos; ou a especificidade da vida na colnia, onde a represso espiritual seria mais branda, tm sido algumas das razes invocadas para explicar o comportamento dos inquisidores, cujo desinteresse justificaria, explicando-a, a desproporoverificadaentreasdennciasquechegavamaoseuconhecimentoeonmero, muito menor, dos casosque efetivamente davam origem a processos e, consequentemente, punio dos culpados (CEBALLOS GMEZ, 1994, p. 21). Maisimportantedoquequalquerumdosmotivosexpostos,devetersido,porm,a convico,porpartedosinquisidores,dasuaprpriasuperioridadeeaconsequente desvalorizao pelos mesmos de prticas no reconhecveis luz da herana cultural europeia, aquesejuntavaumavisopreconceituosadonegrotidocomomenos sofisticadoe,como tal, facilmente subjugvel que antecedeu a formulao das teoria racistas nos scs. XVIII e XIX.16Vtimasdeumaintransignciacivilizacional,quesetraduziana incapacidade/indisponibilidadeparasairdesi,perturbandoe,emmuitoscasos, impossibilitando mesmo o dilogo com o outro, os inquisidores deixaram, por isso mesmo, escaparaoportunidadedecercearnascenaumaameaa,cujoalcancenotiveram capacidade para entender. A ignorncia dos responsveis pelo Tribunal portugus em relao ao universo cultural africano,quelevariademonizaodeprticasrituaisnopassveisdedescodificaoluz 16 [...] o racismo cientfico moderno [...] tem uma trajetria histrica e principalmente, seno exclusivamente, um produto do ocidente. Mas teve origem, pelo menos numa forma prototpica, nos sculos XIV e XV, em vez denossculosXVIIIouXIX(como,porvezes,alegado)efoiarticuladooriginalmentenalinguagemda religio em vez de na da cincia natural (FREDRICKSON, 2004, p. 14). 10 dosprincpioscristos,impedi-los-iatambmdeprestaradevidaatenoaessasprticas, investigandooscasoscujaocorrnciachegavaaoseuconhecimento,demodoapuniros faltosos:aonoalcanaremopotencialrevolucionriocontidonasreferidasprticaseoseu papel, enquanto elemento agregador da cultura africana, os inquisidores permitiram, de facto, aaberturadeumabrechanosistema,contribuindoassim,ironicamente,paracriaras condiesquefacilitaramodesenvolvimentodasmanifestaesdereligiosidadeafricanano Brasil, e a institucionalizao dos cultos, numa fase mais tardia da histria do pas. Alm deste, existem outros aspectos que podem ser tidos como paradoxais, nagesto feita pelo Santo Ofcio da sua relao com as populaes de origem africana: ao classific-las comofeitiaria,oTribunalcontribuiuparaademonizaodasprticasreligiosaseculturais oriundasdocontinentenegro,contribuindodamesmamaneiraparaaalienaosocialdos africanos e seus descendentes, por intermdio da aplicao dos estatutos de pureza de sangue, queimpediamoacessoaoscargosdoSantoOfcioaqualquerindivduocomantepassados decor,mas,poroutrolado,aoadmitircomovlidosostestemunhosprestadospelos escravos,aInquisiodeuvozaumsegmentopopulacionalquedelaseencontrava totalmenteprivado,querpeloseuprprioestatuto,querporqueageneralidadedosseus membrosnodominavaaescritae,muitos,nemsequeraprprialngua(LAHON,2004,p. 30).Adocumentaoinquisitorialconstitui,portanto,umdospoucostestemunhosquenos permitem ter acesso directo (ainda que por intermdio de um notrio) vivncia dos africanos e seus descendentes na dispora iniciada com o trfico de escravos. Graas a ela, a memria dessavivncia,amuitosttulostraumtica,pdeserpreservada,chegandomaisoumenos intacta at aos nossos dias. Tendoemcontaoqueacabadeserdito,pensamos,porltimo,queseonmerode denuncianteseodeconfitentesforambastantesreduzidosentreosindivduosdeorigem africana (identificmos 22 confitentes para o Rio de Janeiro, entre 1671 e 1790; o nmero de denunciantes foi de pouco mais de 100), isso pode ser visto, antes de mais, como um indcio dasuafracaaculturao.Muitoshouve,noentanto,mesmoescravos,quenosforam ouvidos,comosouberammanobrarasrdeasdaInquisioparalograrosseusprprios intentos,procurando,porexemplo,enalgunscasosconseguindo,atenuarasuasentenae, at,ver-selivresdeumamoindesejado(CALANHO,2000,p.103-104;MELLO,2002,p. 127-146). Referncias documentais Biblioteca Nacional de Lisboa Seco de Reservados Coleo Moreira cd. 863 Arquivo Nacional da Torre do Tombo Inquisio de Lisboa Autos da F liv. 7 Cadernos do Promotor liv. 248-324 e 818 Denncias liv. 65-67 Processos n. 3641, 4958, 8198 Slavery and inquisition. Reflections on Colonial Brazil: Rio de Janeiro, 17th-18th Centuries Abstract ThePortugueseInquisition,ithasbeenalongestablishedbeliefinhistoriography,didnttakemuch interestinthereligiousorthodoxyofthepopulationsofAfricandescent,preoccupiedasitwaswith theso-calledNewChristians,i.e.ChristiansofJewishancestry.Nevertheless,therewasarelevant 11 number of Africans/Afro-descendants whose lives came to intersect with the Holy Tribunal, not only as victims but also as denouncers. The Inquisition archives hold numerous documents whose study is indeed vital in order to understand the European, Catholic-based perception of the Africans and their religiousrituals,thewaysinwhichtheyapprehendedthereligionofthemastersandtheroleof Catholicism in the integration of the slaves and their descendents into the colonial society. The paper focusesonthebishopricofRiodeJaneirointhe17thand18thcenturies:startingfromthedata collectedinthedocuments,wewillpresentsomepreliminaryconclusionsontheAfricans/Afro-descendantsprosecutedbytheInquisitionwholived/werebornthere,aswellastheaccusationsof whichtheywerevictims,revealingtheimportanceoftheInquisitionrecords(denunciationsand lawsuits) in order to study the religious beliefs of this particular group, its interaction with Catholicism andtheimpactoftheCatholicdoctrineanditsmoralvaluesinthedailylivesofAfricansandtheir descendents in Brazil, as well as the attitude and strategies of the Church in dealing with them. Keywords: Afro-descendants. Inquisition. Rio de Janeiro. Referncias AZEVEDO, Joo Lcio de. Notas sobre o judasmo e a Inquisio no Brasil. Revista do Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro, Rio de Janeiro, t. 91, v. 145, p. 679-697, 1926. BETHENCOURT, Francisco. Histria das Inquisies: Portugal, Espanha, Itlia. Lisboa: Crculo de Leitores, 1994. CALANHO, Daniela Buono. Metrpole das mandingas: religiosidade negra e Inquisio Portuguesa no Antigo Regime. 2000. 299 f. Tese (Doutorado) Programa de Ps-Graduao em Histria, Universidade Federal Fluminense, Niteri, 2000. CALANHO, Daniela Buono. Metrpole das mandingas: religiosidade negra e Inquisio Portuguesa no Antigo Regime. Rio de Janeiro: Garamond, 2008. CEBALLOS GMEZ, Diana Luz. Hechicera, brujera y Inquisicin en el Nuevo Reino de Granada: un duelo de imaginarios. Bogot: Universidad Nacional de Colombia, 1994. DICIONRIO ELETRNICO HOUAISS DA LNGUA PORTUGUESA. [S.l.]: Instituto Antnio Houaiss; Objetiva, 2001. 1 CD-ROM. 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