Ana Flávia Figueiredo
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1
PROBLEMATIZANDO O CONCEITO DE IDENTIDADES
TRANSNACIONAIS1
Ana Flávia Andrade de Figueiredo
UFPE/ Brasil
Resumo
Em um período de reconfigurações geopolíticas no mundo, um conceito caro à
Antropologia – Identidade – tem ganhado novos ares de discussão através de pesquisas
voltadas à formação de identidades que extrapolem tradicionais fronteiras físicas e
políticas. O estimulante debate da década de 90 entre Identidades Nacionais como
comunidades imaginadas (Benedict Anderson) e o Poder da Identidade (Manuel
Castells) na reconfiguração de Estados e Nações na perspectiva de pertencimento
cultural de uma sociedade em rede, permanece nas reflexões acadêmicas, agora ainda
mais situadas no campo dos impactos das tecnologias da informação e das migrações
fora do eixo sul-norte.
Neste artigo interessa-nos mapear alguns debates a partir do conceito de identidade
transnacional, optando como estratégia metodológica levantar artigos publicados em
dois periódicos científicos nacionais que nos apontassem em seus resumos a temática
que aqui se coloca. A partir destes foram analisados os artigos de interesse buscando
apreender como a noção de transnacionalidade tem se colocado nos debates acadêmicos
e qual o impacto que as viagens e as tensões de encontros e desencontros culturais
exercem sobre a construção de identidades.
Palavras-chave: Identidade, Transnacionalismo, debates acadêmicos.
Introdução
1 Trabalho apresentado na 28
a Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de julho
de 2012, em São Paulo, SP, Brasil.
2
Este trabalho foi motivado primeiramente pela observância da necessidade de ampliação
de estudos da dinâmica de formação identitária de caráter transnacional e suas
potenciais ressonâncias na reconfiguração de fronteiras geopolíticas, ideológicas,
culturais e simbólicas. Tal dinâmica transnacional tem por vezes se estabelecido como
movimentos, até certo ponto, de ruptura a projetos político identitários de Estados-
Nação ultranacionalistas pautados pela exclusão.
Desse modo, busca-se também aqui pensar a formação de identidades transnacionais
contemplando o paradoxo que há entre a abertura de fronteiras ocasionada pelos
avanços tecnológicos e comunicacionais e a expansão de movimentos ultranacionalistas
geradores, por sua vez, de novos muros geopolíticos, ideológicos e culturais.
O contexto social do ocidente vivencia uma socialização marcada por conexões em
escala planetária que propicia relações de forte impacto cultural, ora estatizantes, ora
transculturais, estas últimas tão caras a Tzvetan Todorov. Neste campo, as trocas
simbólicas estabelecidas, mais amplas que meras trocas mercantis, traçam importantes
percursos de reconfigurações nacionais, glocais e globais. As identidades transnacionais
assim estabelecidas - em interface com as múltiplas atribuições de sentido geradas no
debate acadêmico das últimas décadas ao fluxo de pessoas, mercadorias e símbolos, aos
processos de desenraizamento e de estabelecimento e quebra de fronteiras – exigem um
refinamento de sentidos de forma complexa, dinâmica, polissêmica.
Nesta fase de nossa pesquisa, selecionamos três números temáticos publicados entre
2000 e 2009 pelo periódico internacional Horizontes Antropológicos2 (UFRGS) e
quatro números do periódico Anthropológicas (UFPE). No total, foram selecionados 20
artigos a partir da presença nestes de artigos que problematizassem explicita ou
implicitamente o conceito (ou as noções) de Identidades Transnacionais de maneira que
o recorte favorecesse o debate acadêmico sobre o tema.
Após esta etapa, traçamos um diálogo com o texto “Flow” de Stuart Alexander
Rockefeller3 (publicado no volume 52, número 4 de agosto de 2011 do periódico
Current Anthropology), cujo foco centrava-se nos usos do termo nas discussões
2 A revista publicou desde 1995, 36 números temáticos e é considerada uma das principais publicações
internacionais editada por um programa de pós-graduação em antropologia de universidade brasileira. 3 O texto de Rockefeller foi objeto de seminário na disciplina de Método e Técnicas Avançadas,
disciplina obrigatória do Programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal de
Pernambuco.
3
antropológicas sobre globalização, circulação, migração, entre outros, no intuito final de
tecermos reflexões de caráter teórico-metodológico acerca do tema.
A perspectiva da identidade transnacional: reflexões de um breve mapeamento
científico
Para Tzvetan Todorov, Ulf Hannerz, António de Sousa Ribeiro e Boaventura de Sousa
Santos, para citar apenas alguns, fluxo, desenraizamento, fronteira, globalizações e
identidades transnacionais passaram de certo modo a oferecer os contextos para nossa
reflexão sobre cultura. Não foi sem apostas que o periódico Current Anthropology
nomeou o “fluxo” (flow no orginal) como uma das palavras-chaves da Antropologia
contemporânea, gerando uma seção especial para tal no ano de 2011.
Neste, o autor enfatiza que embora o termo tenha sido utilizado na história recente da
disciplina de forma ampla, pouca atenção tem sido dada às pressuposições que o termo
carrega por si. Assim, apresenta algumas das maneiras que o fluxo tem sido empregado
na Antropologia e em outras ciências sociais recentemente, traçando uma reflexão a
partir dos trabalhos de Deleuze, Guattari e de Henri Bergson, além de uma revisão em
artigos publicados na Current Anthropology entre novembro de 2003 e agosto de 2005.
O autor traz uma crítica sobre a forma em que vem sendo utilizado o termo, ora como
imagem de movimento em oposição a uma ideia estática de lugares, ora como uma
imagem de movimento sem agente, sem ponto de partida. Rockefeller defende que o
recorrente foco em agências de grande escala pela incapacidade de se reconhecer a
agência individual e o significado da pequena escala, impede a compreensão da natural
dinâmica das interconexões locais e globais.
O autor relata que ao retornar à Universidade de Chicago de um trabalho de campo na
Bolívia e na Argentina, rapidamente percebeu que as pessoas estavam debatendo sobre
conexões internacionais de uma maneira diferente de quando havia saído. Estavam
discutindo termos como desterritorialização tanto quanto transnacionalização e
globalização. ‘Hibridismo’, ‘lugar’ e ‘fronteiras’ haviam adquirido um novo significado
e urgência. E, apesar de do termo ‘Glocal’ para Rockefeller ter uma aparição breve, vale
ressaltar de onde o mesmo fala, pois ‘glocal’ seria um termo difundido por outros
4
pesquisadores fora do eixo americano tais como o professor Boaventura de Sousa
Santos em Portugal e países como o Brasil.
‘Flow’ por sua vez havia se tornado amplamente utilizada nas ciências sociais e na
teoria crítica como parte de um modo de falar de movimentos transnacionais de
dinheiro, pessoas, imagens, commodities. A sua polissemia (multiplicidade) de
significado, para o autor, é uma ferramenta interessante para agregar às reflexões
acadêmicas sobre escala, agência, finanças globais, migrações internacionais, localidade
e mobilidade na cena global, uma realidade complexa e multiforme.
De todo modo, Rockefeller parte da premissa de que naquele primeiro período de
múltiplos usos do termo (meados da década de 90 e início dos anos 2000), não havia
maiores reflexões conceituais sobre o mesmo, levando anos para que ‘fluxo’ se tornasse
uma nova perspectiva social científica sobre a relação de escala, agência, localidade e
mobilidade.
Metodologicamente, Rockefeller traçou caminhos importantes para sua análise:
primeiramente se debruçou por distintas genealogias do termo, levantou seu uso como
palavras-chave, títulos, índices, de maneira usual... em livros que utilizavam fluxo em
seus títulos e em artigos publicados na Current Athropology entre novembro de 2003 e
agosto de 2005:
A palavra ‘fluxo’ ocorre ao menos uma vez em 28 dos 39 artigos que
apareceram durante este tempo4. Doze desses artigos pode-se dizer que em
certo sentido envolvem questões de globalização ou transnacionalismo; 13
incluem menções de "fluxo", cujo amplo sentido se encaixa com a palavra-
chave que estou discutindo. (...) A associação de "fluxo" com as palavras
‘transnacional’ ou ‘global’ é uma marca da palavra-chave; esse par de termos
é uma das características definidoras de muitas discussões da globalização
(ROCKEFELLER, 2011, p. 558- 559, tradução nossa).
E essencialmente inseriu em uma roda de pesquisadores alguns autores importantes
como Arjun Appadurai, Manuel Castells, Ulf Hannerz, Marc Augé entre outros.
Discutiu a partir de seus posicionamentos a relação tensa entre fluxo e os limites que
(não podem) conter, lugares em uma perspectiva limitante como estáticos e movimentos
de pessoas.
4 Exclue alguns artigos que contêm somente palavras relacionadas, como por exemplo, "estouro".
5
No que tange à nossa investigação na Revista Horizontes Antropológicos foram
selecionados três números temáticos: Relações Interétnicas, organizado por Daisy
Macedo de Barcellos e Denise Fagundes Jardim e publicado em 2000 (no qual foram
trabalhados seis dos 9 artigos da publicação a partir de palavras-chaves contidas em
seus resumos que os aproximassem de nossa discussão); Imigração e Fronteiras (3
artigos selecionados), publicado em 2003 e organizado por Denise Fagundes Jardim e
Carlos Alberto Steil; Circulação Internacional, publicado em 2009 e organizado por
Ruben George Oliven, Bela Feldman-Bianco, Denise Fagundes Jardim e Cristiana
Bastos (aqui, dos 10 artigos presentes, foram destacados 7. Vale ressaltar que alguns
dos artigos nesta edição publicados são frutos de projetos de cooperação científica entre
órgãos e instituições acadêmicas portuguesas e brasileiras). A seguir, de maneira que
optamos por sistematizar, apresentamos alguns pontos de destaque em cada um dos
artigos. Após esta relação retomaremos nosso diálogo entre estes que por ora
apresentamos sinteticamente e o artigo de Stuart Rockefeller.
Relações Interétnicas:
1) Em Plural identities among youth of immigrant background in Montreal Deirdre
Meinel apresenta uma pesquisa voltada à identidade étnica de jovens de 18 a 22
anos – que foram entrevistados - descendentes de imigrantes (gregos,
portugueses, chilenos, vietnamitas e salvadorenhos, em comparação com grupos
de jovens quebecois de origem francesa) em Montreal, Canadá. O autor traz uma
crítica sobre os contextos de análise que este tipo de pesquisa tem gerado e
apresenta resultados que, segundo ele, não coincidem com as perspectivas
essencialistas correntes. A partir de entrevistas semiestruturadas com jovens e
seus pais e, ainda, observações do tipo participante realizadas por alunos de
graduação nos grupos de imigrantes incluídos no estudo, aponta: os jovens
possuem identidade étnica que o mesmo nomeia como fluidas e com múltiplas
formas de pertencimento étnico, incluindo como “fonte de enriquecimento ao
invés de conflito ou sentimento de inferioridade”. A transnacionalidade é
entendida no artigo como algo vantajoso e que ocorre a partir de evidências
de laços com o grupo cultural de origem “seja no país de origem ou outro
lugar e a trans-etnicidade, solidariedade com outros grupos étnicos em
Montreal que são vistos como culturalmente ou estruturalmente similares”. E
problematiza: “devemos questionar a conceitualização de identidade étnica
especialmente no que diz respeito a jovens de origem migrante”.
2) Denise Fagundes Jardim da Universidade do Rio Grande do Sul trata em
Diásporas, viagens, e alteridades: as experiências familiares dos palestinos no
extremo-sul do Brasil da experiência da diáspora em si e de como esta tem se
tornado uma categoria utilizada para reivindicações de um Estado Palestino.
6
O fluxo em seu artigo tem uma conotação de movimento migratório e
aparece sendo utilizado ao longo do texto, mas não como termo chave. No artigo
de Denise, a diáspora seria este termo, assim como Identidade e, semelhante
às reflexões de Rockefeller sobre fluxo, discute o fato de que estes termos
congregam uma complexidade de sentidos, exigindo um novo olhar sobre
seus conceitos e ressonâncias. Sobre seus caminhos metodológicos: entrevistou
cerca de 60 pessoas no período de dois anos de observação direta e participante
das famílias. A autora insere trechos das falas dos entrevistados e traça reflexões
de modo a fazer-nos aproximar da realidade de pesquisa experenciada.
3) Tomke Lask, da Universidade de Liege, Bélgica, em Imigração brasileira no
Japão: o mito da volta e a preservação da identidade, trata essencialmente das
questões que envolvem as estratégias conscientes de preservação da
identidade brasileira por emigrantes no Japão. Ao longo de seu texto publicado
em 2000, o termo fluxo não aparece, constituindo eixo central de sua análise os
conceitos de identidade e transnacionalismo. A autora, alemã, após descrever
as atividades desenvolvidas pelas associações “Grupo Brasil” e Oizume e o foco
destes na manutenção da língua brasileira, visto a perspectiva colocada, pondera
a necessidade de aprofundamento dos estudos sobre a construção das
identidades em contextos de migração.
4) Giralda Seyferth, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, problematiza em
Identidades dos imigrantes e o melting potnacional os elementos solo e
sanguíneo na formação do ideal de nação brasileira. A autora discute formas
diferenciadas de pensar a nacionalidade, a etnicidade e a pluralidade
cultural na primeira metade do século XX. Seu referencial empírico se
sustenta em levantamento documental e bibliográfico relacionados à “elaboração
de identidades étnicas produzidas no contexto da imigração no sul do Brasil e
sua articulação com o processo de colonização voltado a ocupação de terras
públicas”. Fluxo é um termo presente ao longo do texto, mas sempre no sentido
de movimento de pessoas (migração). Em trabalho anterior (Seyferth, 1986)5,
vale destacar, assim como a própria autora o faz, desenvolve análise
comparativa sobre o surgimento da identidade étnica entre descendentes de
imigrantes italianos, alemãs e poloneses para mostrar ligações entre fé (religião)
e etnicidade, língua materna e ethos do trabalho.
5) José Carlos dos Anjos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul busca
desvelar em Cabo Verde e a importação do ideologema brasileiro da
mestiçagem a relação entre a formação de elites intelectuais e lutas em torno
da definição da identidade nacional em Cabo Verde. Para intelectuais cabo-
verdianos, nas duas primeiras décadas do século XX, uma identidade atlântica
emergia concorrente à identidade lusitana imposta pela colonização. Com a
censura política imposta pelo regime Salazar, o artigo conclui “sugerindo que
identidades (africanas, mestiças, crioulas, européias) disputadas em nível
transcontinental e estratégias geopolíticas transatlânticas adquiriram sentidos
inesperados nesse contexto e conjuntura determinada”. Seu foco permanece ao
longo de todo o texto no debate sobre a formação (ou invenção) de uma
identidade nacional cabo-verdiana que se sustenta entre elementos africanos e
desafricanizantes Transnacionalismo ou fluxo são termos que não aparecem
7
em seu texto, carregado de debates sobre elementos pertinentes como
tradição, ideologia entre outros.
6) Ellen Fensterseifer Woortmann, da Fundação Universidade de Brasilia, em
Identidades e memória entre teuto-brasileiros: os dois lados do atlântico,
analisa dimensões da memória acerca da colonização alemã no sul do Brasil
entre 1824 e 1932. Silêncios em contraste com detalhamentos de fatos
relacionados à travessia e instalação desses imigrantes nas colônias são pensados
relacionando-os ao quadro de sua formação identitária. O foco do artigo assim
como na grande parte dos materiais investigados - neste número da Horizontes
Antropológicos - está no conceito e desdobramentos da formação identitária,
mais do que nos fluxos ou movimentos migratórios por si, tanto que a
presença de termos como fluxo e transnacionalidade não são comuns neste
período de investigação de publicações.
Imigração e Fronteiras:
Segundo os organizadores, "Imigração" e "fronteiras" são os dois conceitos-chave
polissêmicos que não se restringem à dicotomias como território/imigração, remetendo
a leituras mais amplas, em prol da superação da “porosidade da noção de fronteira; a
mestiçagem entre agentes sociais e os conflitos que produzem unidades sociais, e
desafiando pesquisadores a transpassar limites do conhecimento”.
1) Fabricio Pereira Prado, doutor em história e professor da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, no artigo intitulado Colônia do Sacramento: a situação
na fronteira platina no século XVIII reflete sobre a experiência de fronteiras
múltiplas vivenciadas pelos habitantes da colônia de Sacramento, atual Uruguai,
na primeira metade do século XVIII, onde coexistiam espanhóis, portugueses e
diferentes grupos indígenas. Estabelece como foco de pesquisa as redes sociais
construídas a partir de vínculos sociais e comerciais existentes entre os
habitantes de Sacramento e Buenos Aires.
2) Rolando Silla da Universidade Federal do Rio de Janeiro em San Sebastián de
Las Ovejas: pureza perdida y revitalización en el norte neuquino (Argentina),
reformulação, segundo o autor, de sua dissertação de mestrado na Universidade
Nacional de Misiones, irá descrever as mudanças ocorridas no festival San
Sebastian, em Lençóis, Neuquén, perto da fronteira com o Chile. Em termos de
linha teórica, destaco a passagem em que Rolando relembra que autores como
Enzo Pace (1997) argumentam que o processo de globalização anuncia o fim
das nações e do nacionalismo, e a transnacionalização econômica implica
uma indefinição dos estados de fronteira e nos direitos sociais e culturais.
Uma das palavras-chaves de seu resumo é turismo, contudo, ao longo do texto,
não encontramos nenhuma menção ao termo. Apesar de inicialmente gerar uma
expectativa de maiores discussões acerca de fluxos de mudança e relações
transnacionais, o autor não desenvolve argumentos mais diretamente
relacionados às questões centrais deste trabalho.
8
3) Denise Fagundes Jardim, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ao
escrever Palestinos: as redefinições de fronteiras e cidadania objetiva discorrer
acerca do tema das redefinições territoriais e de cidadania – tema caríssimo
aos estudos sobre Identidade e Identidades Transnacionais. Como suporte
empírico retoma a história recente de conflitos entre nações, redefinições de
fronteiras e embates diplomáticos relacionados diretamente à Palestina e, do
ponto de vista de seu campo de estudo, aos imigrantes palestinos que vivem no
Brasil. Para a autora, vale destacar:
Os estudos sobre imigrantes normalmente se pautam pelo aspecto pragmático
de uma sociedade que quer entender os "outros", estrangeiros, e de como os
"outros" deixaram de ser diferentes de "nós" e passaram a ser assimilados por
locais ou como parte da sociedade local. Todavia, uma reflexão sobre uma
autodenominação pode significar um distanciamento da situação de
"estrangeiro" (aos olhos dos outros), permitindo compreender os fluxos da
vida social e a capacidade de se inserir nas relações locais em seus mais
diversos níveis, através da ambigüidade de ser "de origem", de uma outra
coletividade, e, ao mesmo tempo, estar "entre os locais", como parte dos
jogos identitários nesse novo mundo social.
Denise ao longo do artigo posiciona-se perante seu campo de estudo não
deixando de esclarecer seus próprios pontos de partida etnográficos (suas
inquietações, motivações etc). Ainda, levanta reflexões bastante pertinentes
acerca de fronteiras simbólicas e afetivas. Trabalha o termo fluxo, assim como
outros artigos investigados na Horizontes, do ponto de vista da migração, mas –
como na citação acima – pensa sobre os fluxos também como movimentos,
dinâmicas da vida e relações sociais.
Circulação Internacional:
1) A antropóloga Bela Feldman-Bianco da Universidade Estadual de Campinas em
Reiventando a localidade: globalização heterogênea, escala da cidade e a
incorporação desigual de migrantes transnacionais, esclarece que este é uma
versão modificada de um artigo a ser publicado em uma coletânea em inglês. Em
seu resumo, apresenta sujeitos de pesquisas (migrantes portugueses em New
Bedforr, EUA), seu foco (práticas locais e transnacionais dos sujeitos à luz
dos reposicionamentos de New Bedford e de Portugal na economia política
global), e reforça que seu interesse é, mais do que adotar o grupo de migrantes
como unidade de análise, centralizar-se na cidade americana e na política ao
nível local para explicar as relações entre globalização, escala de cidade e a
incorporação de imigrantes. Apresenta resultados da pesquisa, o que a autora
coloca como sendo desvendamentos de “aparentes paradoxos subjacentes
aos projetos neoliberais em curso que se apoiam na organização flexível do
trabalho, em políticas migratórias restritivas de segurança nacional e decorrente
criminalização de imigrantes, bem como em ideologias de diversidade cultural”.
9
2) Cristiana Bastos, do Instituto de Ciências Sociais de Portugal, em Maria Índia
ou a fronteira da colonização: trabalho, migração e política no planalto sul de
Angola, artigo que integra um projeto mais amplo de pesquisa na área de
Circulação do Conhecimento Médico, assim como pode ser considerado uma
versão posterior de pesquisas relacionadas a outro projeto desenvolvido no
âmbito de uma parceria com o CEMI – UNICAMP intitulado Circulação
Transnacional, Fronteiras e Identidades. Em seu resumo, a autora apresenta o
tema da pesquisa: um episódio da colonização ocorrida no Sul de Angola na
década de 1880, percorrendo de forma sensível elementos relacionados à
migração portuguesa, ora utilizada pelo governo “como bandeira de propaganda
num jogo que mantinha com outras nações europeias, e, por outro, no terreno, os
tratava como subgente”. A autora perpassa pela construção da noção de
identidade, de fronteira pessoal e do projeto colonial de nação.
3) Adriana Piscitelli, da Universidade do Estado de São Paulo, neste texto
Trânsitos: circulación de brasileñas em el âmbito de la transnacionalización de
los mercados sexual y matrimonial, desenvolvido a partir de trabalhos de campo
apoiados pela Guggenheim Foundation e pela Capes no Brasil, está vinculado ao
projeto “Gênero, Corporalidades”, apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo. Toma-se aqui como foco a migração brasileira à Europa
sendo os espaços da pesquisa localizados entre o Brasil, a Itália e a Espanha. A
investigação foi baseada na trajetória de 22 mulheres analisadas sob uma
perspectiva antropológica (a autora destaca o papel do método etnográfico em
seu artigo através de um tópico dedicado especialmente a ele) e uma abordagem
qualitativa. Possui o objetivo de compreender os direitos políticos, econômicos e
culturais relacionados com a migração, analisando a noção de
transnacionalismo no debate sobre prostituição e estudos de migração e dando
atenção às redes de relacionamento operadas durante o processo de
migração e ao grau de participação dessas pessoas na vida social nos países
de origem e destino.
4) José Lindomar C. Albuquerque, da Universidade Federal de São Paulo, em A
dinâmica das fronteiras: deslocamento e circulação dos “brasiguaios” entre os
limites nacionais”, retoma reflexões sobre fronteiras nacionais a partir de um
estudo sobre o deslocamento de brasileiros para a fronteira leste do Paraguai.
Albuquerque dá indícios de uma pesquisa documental e de trabalho de campo na
fronteira pelos trechos de entrevista que insere no desenvolvimento do artigo.
Como “conclusão” da pesquisa aponta que as “relações entre os "brasiguaios" e
a população paraguaia têm produzido novas formas de identificações étnico-
nacionais e produções de diferenças sociais e de hibridismos culturais”.
5) Denise Fagundes Jardim, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em As
mulheres voam com seus maridos”: a experiência da diáspora palestina e as
relações de gênero, foca na reflexão sobre o papel das mulheres muçulmanas/
árabes no debate ideológico acerca de integridade e autenticidade cultural
no mundo pós-colonial. Reflete ainda sobre questões de gênero e critica o
10
modo como é comumente analisado o protagonismo dessas mulheres. Em seu
percurso metodológico, entrevista famílias de imigrantes de origem árabe no
extremo sul do Brasil e, pode-se dizer, o que torna o texto ainda mais
interessante, a autora é tocada pelo campo.
6) José Mapril, do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa –
Portugal, em “Aqui ninguém reza por ele!” Trânsitos fúnebres entre o
Bangladesh e Portugal esclarece seu ponto de partida conceitual – do
“transnacional como os múltiplos e permanentes laços sustentados entre o país
de ‘origem’ e o país de ‘acolhimento’” e a dimensão teórica e etnográfica
crescente que os fenômenos migratórios tem ganhado na última década.
Neste artigo, a partir de um estudo de caso sobre bangladeshianos em Lisboa,
Portugal, realizado entre 2003 e 2007, apresenta dados acerca da gestão da morte
e do morrer revelando estes as “dimensões rituais da produção de lugares em
contextos transnacionais”.
7) Pedro Martins, da Universidade do Estado de Santa Catarina, em Cabo-
verdianos em lisboa: manifestações expressivas e reconstrução identitária”, se
debruça por imigrantes ou seus descendentes cabo-verdianos na Região da
Grande Lisboa, em Portugal, na busca por apreender algumas de suas
estratégias estéticas e identitárias de adaptação ao contexto local. Suas bases
teóricas encontram nos pressupostos de que “tradições são inventadas
(Hobsbawn), comunidades são imaginadas (Anderson) e que manifestações
estéticas só fazem sentido no quadro social do qual emergem (Duvignaud)”.
Conclui que os imigrantes, “ao reinventarem suas tradições, criam manifestações
expressivas originais e encontram, no mundo do espetáculo, um espaço com
algum nível de democracia em que os estereótipos de ordem étnica são, de certo
modo, sublimados” (grifo nosso).
De certo modo proposital, quisemos traçar este percurso de 2000 a 2009 na Horizontes
Antropológicos na tentativa de perceber a presença de termos chaves aqui discutidos em
trabalhos de autores por coincidência fora do eixo norte americano. As pesquisas no
âmbito de cooperação entre o Brasil e Portugal foram uma grata surpresa e este perfil
dos 16 artigos subsidiaram até certo ponto um contraponto à perspectiva de usos do
termo fluxo em universidades americanas e autores de seu background bibliográfico.
Sobre nossa investigação na Revista Anthropológicas, publicada pela Pós-Graduação
em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, entre 2002 e 2010, foram
selecionados três números não temáticos: o Volume 21, n.02 de 2010, o Volume 18,
n.01 de 2008, Volume 17, n.02 de 2006 e o temático Volume 11, intitulado Série
Imaginário, de 2000. No total foram analisados 05 artigos a partir, novamente, de
palavras-chaves contidas em seus resumos que os aproximassem de nossa discussão.
11
1) Volume 21, n.02 de 2010 - Em Entre fronteiras: identidades e culturas na
modernidade, Carmem Izabel Rodrigues, professora do Programa de Pós-
graduação em Ciências Sociais da UFPA, e Josefa Salete Barbosa Cavalcanti,
professora do PPGA/UFPE, investem em um olhar analítico acerca da
contemporaneidade de relações entre conceitos caros à antropologia, quais
sejam, etnicidade, identidade, cultura. Ao longo do artigo, as autoras, ao
relembrarem a importância das metáforas como expressões polissêmicas e seu
lugar nas ocasiões em que os conceitos científicos não dão conta, tocam em um
dos caminhos chaves de nossa análise: culturas como fluxos (Hannerz, 1997;
Appadurai, 1996). E nesta linha de raciocínio irão questionar em que limites e
fronteiras os atores irão construir uma autodenominação ou autoatribuição de
suas diferenças. A relação entre identidades e culturas estabelecida entre
fronteiras, parece-me aqui, ainda, percebida a partir da interposição lado a lado,
da delimitação de marcos, não como um lócus de encontros transculturais e/ou
transidentitários.
2) Volume 18, n.01 de 2008 - Marjo de Theije, professora no Departamento de
Antropologia Social em Amsterdã, Holanda, apresenta questões da imigração
brasileira ao Suriname como base para suas reflexões acerca de percepções
sobre cidadania e fronteiras geográficas e políticas e, ainda, rediscute o próprio
conceito e formação de comunidades partindo de discussões contextuais sobre
transnacionalismo e problematizando a tradicional visão antropológica que
percebe a comunidade como lócus de segurança, proteção, em contraponto ao
que defende ser uma comunidade de brasileiros garimpeiros no Suriname
“baseada nos aspectos comerciais e numa ligação compartilhada com o Brasil e
com ser brasileiro” e em que a insegurança faz parte de sua própria existência.
3) Volume 17, n.02 de 2006 - Jean Carlos de C. Costa discute o valor das noções
sobre identidade nacional, raça e etnicidade na formação da sociedade moderna
em A modernidade e o problema nacional: hermenêutica histórica das noções
de ‘nação’ ‘etnia’ e ‘raça’ na teoria social clássica e contemporânea. O autor
argumenta que nas últimas décadas que certas preocupações relativas ao
nacional têm sido revisitadas, seja pelo impacto da globalização, assim como
pela incorporação de novas reorientações teóricas. E destaca: “No sentido
12
empregado por Weber e Mauss, a nação é definida menos como uma estrutura
política, econômica, administrativa, jurídica e militar substancializada em um
território autônomo – estrutura essa cada vez mais referenciada como “Estado” –
e passa a ser entendida como uma realidade subjetivamente montada em função
da diferentia specifica que atribui identidade a essa estrutura: sua cultura”
(grifo nosso). No artigo, ainda, Jean Costa faz ainda clara referência a Benedict
Anderson e suas “comunidades imaginadas” e à relação direta entre cultura e o
sentido de comunidade e compartilhamento gerado internamente às noções de
etnicidade produzindo a nação.
4) Volume 11, Série Imaginário, de 2000 – Edgard de Assis Carvalho discute o
conceito de polifonia cultural como forma de diálogo transcultural em Polifonia
Cultural e Ética do Futuro. Defende neste artigo a necessidade de múltiplas
vozes como possibilidade transpolítica que supera o limite territorial da
diversidade. Ao invés de relativizá-la, a problematiza pelos vieses da autonomia
individual e coletiva (Castoriadis) e pela hiperrealidade do ciberespaço (teremos
na profusão da relação homem/máquina, já simbiótica e identitária, colaboração
entre culturas ou novas formas de hierarquização de castas transnacionais?).
Apesar de Flow ter sido publicado em 2011, o autor traz reflexões que percorrem
justamente as duas últimas décadas. Lembra, por exemplo, que na abertura de uma das
edições da Revista Public Culture, então co-editada por Appadurai e Breckenridge
(1988, p.1) declaravam que a revista pretendia ser “an intellectual fórum for interaction
among those concerned with global cultural flows” (1988, p.1 apud ROCKEFELLER,
2011, p. 560). Em 2009, na abertura da edição de Circulação Internacional, os
organizadores afirmavam esperar que o número contribuísse aos debates em curso sobre
“circulação de pessoas entre localidades e países, suas motivações, mobilizações e
estratégias, bem como a organização e os significados de suas experiências de
deslocamento”. Ou seja, a polissemia dos sentidos e vozes relacionadas a termos como
fluxo e identidades transnacionais têm encontrado espaço de reflexão em veículos
acadêmicos, entrecruzando contextualizações particulares a um universo mais amplo de
estudos da antropologia, tais como migração, identidade, comunidade.
13
Fica clara a conexão temporal dos temas, o que as leituras distanciam talvez esteja mais
na perspectiva dos termos e usos. Rockefeller pondera: o fluxo é tanto o problema
quanto a solução, a causa e os meios de investigação antropológica na era da
globalização. Neste sentido, nos artigos analisados, o fluxo estaria realçado, muito
embora em alguns deles não mencionado explicitamente, nos meios de investigação.
A revisão de uma construção teórica sobre os fluxos em Rockefeller somada aos
caminhos investigativos apresentados pelos artigos aqui analisados nos oferece uma
compreensão significativa de como podemos repensar a noção de identidade e mais
especialmente de Identidade Transnacional – que me parece ainda não conter uma
definição mais consensual – a partir de um olhar complexificado sobre elementos
presentes em nossas investigações.
Percorremos uma trajetória instigante dos percussos teóricos e metodológicos
empreendidos por importantes pesquisadores em espaços tradicionais e reconhecidos de
publicação na área. O que se constatou foi a presença ao longo do tempo da noção de
transnacionalidade problematizando as percepções acerca dos temas correlatos aos
impactos que exercem as viagens/ migrações e as tensões entre encontros e
desencontros culturais estabelecidos. Permanecemos na construção de uma genealogia
das noções de identidades transnacionais embebidas sobre as esferas dos fluxos,
espaços, fronteiras... de modo que possamos – para além de uma busca por consensos e
convergências teóricas absolutas – nos conectar com imagens mais complexificadas e
próximas dos contextos intensos e embricados das dimensões sócio-técnicas em rede
(dialogia entre local e global) hoje cada vez mais presentes em nossos estudos.
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