Ana Cristina Cesar - a vocação do abismo

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Ana Cristina Cesar: a vocação do abismo 1 Ivan Junqueira Ana Cristina Cesar viveu pouco, talvez pouco demais. É possível que, por isso mesmo – já que certos indícios premonitórios nos autorizam a pensar dessa forma –, tenha começado a escrever muito cedo, aos quatro anos de idade, quando ditava seus poemas para a mãe. Seus primeiros textos foram publicados no suplemento literário da Tribuna da Imprensa entre 1958 e 1959, ou seja, no período compreendido entre oito e nove anos. Dessa época consta apenas nos Inéditos e Dispersos (ed. póstuma, 1958) o poema que leva o título de A terceira noite. E aqui tem início o pungente e assombroso trajeto poético de Ana Cristina. O poema é no mínimo inacreditável para uma menina que apenas concluíra a segunda infância: Era uma terceira noite. o giroscópio girava girando. Minha gravata balouçava no ar. Meus guizos tocavam tocando. Meu coração batia batendo. Subi as escadas da noite. Desci as escadas do dia. Fui descendo para cima. E subindo para baixo! Mas num dado momento, eis que sibila o vento As escadas se corrompem O quarto dia despenca E a nova noite aqui fica 1 Publicado em O Estado de São Paulo, em 03 de janeiro de 1987, p. 37.

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Ana Cristina Cesar: a vocao do abismo[footnoteRef:1] [1: Publicado em O Estado de So Paulo, em 03 de janeiro de 1987, p. 37.]

Ivan Junqueira

Ana Cristina Cesar viveu pouco, talvez pouco demais. possvel que, por isso mesmo j que certos indcios premonitrios nos autorizam a pensar dessa forma , tenha comeado a escrever muito cedo, aos quatro anos de idade, quando ditava seus poemas para a me. Seus primeiros textos foram publicados no suplemento literrio da Tribuna da Imprensa entre 1958 e 1959, ou seja, no perodo compreendido entre oito e nove anos. Dessa poca consta apenas nos Inditos e Dispersos (ed. pstuma, 1958) o poema que leva o ttulo de A terceira noite. E aqui tem incio o pungente e assombroso trajeto potico de Ana Cristina. O poema no mnimo inacreditvel para uma menina que apenas conclura a segunda infncia:

Era uma terceira noite. o giroscpio girava girando.Minha gravata balouava no ar.Meus guizos tocavam tocando.Meu corao batia batendo. Subi as escadas da noite.Desci as escadas do dia.Fui descendo para cima.E subindo para baixo!Mas num dado momento,eis que sibila o ventoAs escadas se corrompemO quarto dia despencaE a nova noite aqui fica

Se o transcrevo na ntegra, no julgue o apressado leitor que o fao para aqui insinuar as cintilaes da criana prodgio que talvez haja sido Ana Cristina. Aos quatro anos de idade, Mozart j era um virtuose do piano e, aos sete, comps sua primeira sinfonia. Mas a grande msica do mestre Salzburg s viria depois: Wolfgang Amadeus jamais poderia compor ento a Zauberfloete ou o Concerto para piano e orquestra em si bemol maior, o melanclico e majestoso K. 595, ambos escritos em seu ltimo ano de vida. Fao-o, isto sim, porque amide convm descer s razes, ao substrato a partir do qual se plasma a sensibilidade de algum. E h neste poema espantosas antecipaes, insights de ndole por assim dizer filosficas que nos deixam simplesmente perplexos: a imagem de uma escada que se desce para cima e se sobe para baixo, por exemplo, nos levam dialtica do pensamento de Herclito e feso, mais precisamente ao fragmento 60, recolhido por Diels em seu Die Fragmente der Vorsokratiker: O caminho que sobe e o caminho que desce so um nico e mesmo. ainda inusitada essa outra imagem das escadas da noite, como inusitados so, tambm, na ltima estrofe, o emprego do verbo corromper e a viso de um quarto dia que despenca, enquanto a nova noite aqui fica. E tudo isso no apenas inslito, mas sobretudo premonitrio: percebe-se na autora de Cenas de Abril (1979) um apelo vertigem e uma vocao para o abismo que desde sempre lhe povoaram o esprito e que, segundo supomos, acabaram por induzi-la consumao do ato extremo.Escolasticamente engastada na vertente potica que se cultivou na dcada de 1970, a obra de Ana Cristina no apenas a esgota: transcende-a. E isso porque seu verso, se por vezes tributrio do lirismo cotidiano e atento realidade social, est impregnado de preocupaes algo alheias quela indigente potica da qual j se disse, com maior indigncia ainda, ser alternativa, como se poesia coubesse pespegar rtulos conceituais capaz de defini-la como isso ou aquilo. Como se no bastasse, juzos crticos de outros matizes, alguns dos quais inteiramente descabelados, vm buscando estabelecer paralelismos de todo impertinentes, seno mesmo abstrusos, entre a poesia de Ana Cristina e a de outras autoras, como o que pretende situ-la ao lado de Ceclia Meireles, que com ela no guarda sequer o mais remoto grau de parentesco. Alm disso, a contribuio potica desta ltima o que se poderia definir como obra conclusa e definitiva, enquanto a de Ana Cristina se viu bruscamente interrompida no tpico estdio de uma work in progress.Enganam-se os que supem haver desleixo formal ou discursivismo no verso da autora. Tais caractersticas so antes atributos da m poesia que escreveram quase todos os seus companheiros de gerao. Esse aparente desleixo nada mais que uma estratgia destinada a impedir que se coagulem a fluncia do discurso e o ritmo do verso. Muitas vezes distenso, esse verso no raro cede lugar prosa potica, estabelecendo assim uma difusa modulao do ritmo, como que se pode ver em diversos textos das Cenas de Abril nos quais a prosa como se infiltra no tecido poemtico e como ele harmonicamente convive. A julgar por estes Inditos e Dispersos e pelo que se l em seu livro do estreia, Ana Cristina deixa-se mover muito espontaneamente entre a poetry e a fiction, diluindo assim, como o anteciparam Novalis, no sculo XVIII, Alosius Bertrand, Baudelaire e Rimbaud, no sculo XIX, e aos tericos do New Criticism, no presente sculo, a aparente rigidez fronteiria que se supunha isolar os dois gneros em compartimentos estanques e de todo incomunicveis, o que j se sabia no ter mais sentido algum a partir do Gaspar de la Nuit ou dos Petits Pomes en Prose e, sobretudo, de Une Saison en Enfer e das Illuminations.Por outro lado, Ana Cristina no apenas artes competentssima: tambm, ao contrrio da constrangedora maioria de nossos poetas, artista literariamente bem nutrida. Ao escrevermos sobre as Cenas de Abril, alertamos o leitor para a extrema habilidade com que a autora esgrimia a bricolagem intertextual e o pasticho, elevando este ltimo a um altssimo grau de categoria esttica. Naquela oportunidade chamamos ateno para o trplice pasticho operado pela autora no poema 21 de janeiro, onde ela intertextualizava Baudelaire (Mon Coeur mis Nu, fragmento V, e Recueillement, das Nouvelles Fleurs du Mal), Manuel Bandeira (Belo Belo, da Lira dos Cinquentanos) e o Hino Bandeira. Nos Inditos e Dispersos, ocorrem intertextualizaes de Eliot (Na sala ao lado no h mulheres/ falando de Miguel ngelo, em Senhor A, que nos remete ao clebre dstico rimado de The Love Song of J. Alfred Prufrock: In the room the women come and go/ Talking of Michelangelo) e, sobretudo, de Baudelaire, no poema (excepcional, alis) que leva o bvio ttulo de Flores do Mais e, muitssimo particularmente, na esplndida prosa potica da Carta de Paris, onde Ana Cristina, com diablico talento e extraordinria sensibilidade literria, nos evoca Le Cygne, dos Tableaux parisiens.No so menos magistrais os pastichos daprs Jorge de Lima: sete mosaicos intertextuais que tomam como ponto de partida o texto de cinco dos poemas pertencentes Inveno de Orfeu. Todos excepcionais. Um deles, o segundo dos dois que intertextualizam o de nmero XVIII do Canto I (guas vieram, tarde, perseguidas) da epopia jorgiana, exige transcrio integral, pois obra de poesia maior, embora escrita por algum que nem sequer completara a maioridade:

Gatos vieram noite, perseguindo,deitaram seu hlito sobre o sono.Logo aps o salto imaginriode fatos e palavras misturados

vieram saber de cada gatoo gato que os soubesse, e a todoscompusesse dos restos de desenhoe traos e sexos procurados.

Porque nesse instante perdeu-sea voz que os miasse e desse formae de gatos se fizesse sem engenho

e deformando-os em bichos nunca vistos,no mais linguagens perseguidas,mas gato somente se lambendo.Querer incluir a poesia de Ana Cristina Cesar na indigente e andina aluvio dos anos 70 no apenas descaracteriz-la: ofend-la, a rigor, com o pior de todos os ultrajes. Essa incluso s pode ser admitida do ponto de vista cronolgico, falta de outro critrio que melhor a defina, se que ele existe. Chega mesmo s raias do contra-senso pretender enfiar na mixrdia anacrnica da contracultura uma obra que , acima de tudo, signo vivo daquela literatura maior que T. S. Eliot entendia como fenmeno de cultura. O que desconcerta os crticos , muito provavelmente, o prisma inslito e sardnico atravs do qual Ana Cristina via a modernidade, pois suas lentes deformam a tal ponto qualquer objeto que se torna difcil, seno mesmo impossvel ou at ocioso --, inserir a imagem refletida em algum momento que se suponha dentro do tempo.Bruscamente interrompida quando a autora mal atingira os 31 anos e s ento delineava os traos definitivos de seu perfil potico e humano, a obra de Ana Cristina Cesar ficou como em suspenso, e certas perguntas que caberiam aqui serem feitas ficaro para sempre sem resposta. O que ela deixou insistimos todavia o bastante para situ-la como a maior dentre todas as vozes poticas que surgiram ao longo da dcada de 1970, uma poca negra para a cultura e a arte brasileiras, quando todas as trilhas conduziam ao exlio, ao descaminho e desolao. No seria o impulso de evaso que lhe impregna boa parte dos textos e um reflexo dessa situao humana e social de todo inaceitvel? At que ponto toda uma gerao, a dela, mergulhou no estupor de no ter diante de si a menor possibilidade de escolha? De qualquer forma, no cabe muito aqui essa especulao. Resta-nos apenas um testamento cujas clusulas no sugerem exatamente aquela transmigrao onrica que nos leva a Pasrgada. Foi sobre esse testamento que nos permitimos aqui refletir um pouco. E nada mais. at onde se pode ir. at onde se pode ir repito na vida e na morte de Ana Cristina Cesar.