AMPLIANDO OS HORIZONTES DE DEUS: A CRISTOLOGIA PLURALISTA DE JOHN HICK

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FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 609 Resumo: este é um comentário crítico do livro ‘A metáfora do Deus encarnado’ , de John Hick (2000). Hick busca rever axiomas cristológicos, tentando reinterpretá-los no intuito de fazê-los signi- ficativos para o diálogo inter-religioso. Propõe uma cristologia pluralista, deconstruindo tradicionais premissas e dando novos sig- nificados ao evento Jesus. A partir de uma nova cristologia, oferece uma soteriologia que transcende o evento crístico. Palavras-chave: cristologia, soteriologia, diálogo inter-religio- so, teologia contemporânea Rodrigo Portella AMPLIANDO OS HORIZONTES DE DEUS: A CRISTOLOGIA PLURALISTA DE JOHN HICK Q ual o significado religioso da figura de Jesus? Como o significado a ele conferido pode influenciar, facilitando ou dificultando, o diálogo com as religiões não-cristãs? Durante os séculos foram dadas algumas respostas a tais questões, vindo o dogma de Calcedônia a dar o esteio ortodoxo de como se deveria compreender Jesus: Deus encarnado, embora também plenamente humano. Recentemente houve (e há) a discussão em torno do significado religioso de Jesus, particularmente de seu status divino, ou do dogma da encarnação. “Ortodoxos” e “liberais” – assim dito de forma genérica – se degladiaram, através de livros e artigos, sobre o tema, particularmente na Europa. A partir da visão/versão teológica do teólogo e filósofo da religião, Jonh Hick, britânico de origem anglicana, mas convertido ao presbiterianismo 1 , procuraremos tecer, seguindo sua linha de pensamento, alguns comentários sobre a (re)interpretação do dogma cristológico calcedoniano. Para facilitar a leitura e torná-la mais ágil, as referências ao texto do livro analisado não estão em notas de rodapé, mas no próprio corpo do artigo

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Este é um comentário crítico do livro ‘A metáfora doDeus encarnado’ , de John Hick (2000). Hick busca rever axiomascristológicos, tentando reinterpretá-los no intuito de fazê-los significativospara o diálogo inter-religioso. Propõe uma cristologiapluralista, desconstruindo tradicionais premissas e dando novos significadosao evento Jesus. A partir de uma nova cristologia, ofereceuma soteriologia que transcende o evento crístico.

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FRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 609Resumo: este um comentrio crtico do livro A metfora doDeus encarnado , de John Hick (2000). Hick busca rever axiomascristolgicos, tentando reinterpret-los no intuito de faz-los signi-ficativos para o dilogo inter-religioso. Prope uma cristologiapluralista, deconstruindo tradicionais premissas e dando novos sig-nificados ao evento Jesus. A partir de uma nova cristologia, ofereceuma soteriologia que transcende o evento crstico.Palavras-chave: cristologia, soteriologia, dilogo inter-religio-so, teologia contemporneaRodrigo PortellaAMPLIANDO OS HORIZONTESDE DEUS:A CRISTOLOGIAPLURALISTA DE JOHN HICKQual o significado religioso da figura de Jesus? Como o significado a eleconferido pode influenciar, facilitando ou dificultando, o dilogo comas religies no-crists? Durante os sculos foram dadas algumas respostas atais questes, vindo o dogma de Calcednia a dar o esteio ortodoxo de comose deveria compreender Jesus: Deus encarnado, embora tambm plenamentehumano. Recentemente houve (e h) a discusso em torno do significadoreligioso de Jesus, particularmente de seu status divino, ou do dogma daencarnao. Ortodoxos e liberais assim dito de forma genrica sedegladiaram, atravs de livros e artigos, sobre o tema, particularmente naEuropa. A partir da viso/verso teolgica do telogo e filsofo da religio,Jonh Hick, britnico de origem anglicana, mas convertido ao presbiterianismo1,procuraremos tecer, seguindo sua linha de pensamento, alguns comentriossobre a (re)interpretao do dogma cristolgico calcedoniano.Para facilitar a leitura e torn-la mais gil, as referncias ao texto dolivro analisado no esto em notas de rodap, mas no prprio corpo do artigoFRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 610aqui apresentado, referindo-se, entre parntesis, o nmero da pgina em quese encontra a idia citada do livro de John Hick.DEUS ENCARNADO: O CAMINHO DE UM DOGMAH o consenso, entre os estudiosos, da distino entre o Jesus hist-rico e a imagem de Jesus desenvolvida pela comunidade de f ps-pascal, apartir de memrias e interpretaes. E que temos acesso ao primeiro somen-te atravs do segundo (HICK, 2000). Assim, tudo o que foi escrito sobreJesus fruto de retratos secundrios e tercirios, dependente de tradiesorais e escritas. E as memrias foram sendo peneiradas e reinterpretadasconforme contextos, interesses, correntes religiosas/teolgicas e culturas emque a mensagem de Jesus, e a imagem dele, chegavam. Os evangelhos e demaisescritos do NT so fruto desses desenvolvimentos histrico-teolgicos.Mas ser possvel nos achegarmos ao Jesus histrico e em sua compre-enso sobre si? Sim ou no, o fato que, ontem e hoje, telogos/as tm tentadorevelar o Jesus histrico e perscrutar como ele teria se compreendido. Hickcita alguns dos tais. Jesus, segundo E. P. Sanders, compreendeu seu papel naperspectiva escatolgica judaica, isto , que atravs de seu ministrio o Reinode Deus se aproximaria, ou que seu ministrio era prenncio do Reino. Via asi mesmo como o derradeiro mensageiro de Deus (HICK, 2000). SegundoMircea Eliade, Jesus predisse e esperava a breve transformao do mundo. Estaera a essncia de sua pregao (HICK, 2000). Sua mensagem era a do arrepen-dimento para a nova vida que Deus iria instaurar (HICK, 2000). Jesus, ento,estava influenciado pelo contexto judaico-escatolgico do sculo I, tese tam-bm defendida por Albert Schweitzer e outros telogos. Schweitzer, inclusive,levanta a hiptese de a expresso Filho do Homem, na boca de Jesus, no seruma referncia dele, Jesus, a si mesmo, mas uma referncia que Jesus fazia aopersonagem de Dn 7, que viria na irrupo do Reino. Assim, Jesus no teriase identificado com a personagem de Daniel, mas seria seu precursor/anunciador. E a ida de Jesus a Jerusalm seria uma forma de antecipar ou forara interveno de Deus, j que sua pregao na Galilia e em seus arredores nohavia precipitado a vinda do Reino (DRANE, 1987).Maistarde,aIgrejacreuserJesusoprprioFilhodoHomemapocalptico de Dn 7.13-14, esperando sua vinda e fazendo-o dizer queele viria sobre as nuvens. E, quando os evangelhos foram escritos, as ima-gens do Filho do Homem e do Messias estavam j unidas numa mesmapessoa, Jesus. Morrendo Jesus, aflorou na comunidade crist o pensamen-to judaico de que o servo de Deus sofre de forma vicria para o bem deFRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 611Israel e que a ressurreio do justo era a vingana de Deus sobre seus ini-migos (HICK, 2000).O fato que aps sua morte desenvolveu-se lentamente uma teologiaque ascendia nas formulaes da relao de intimidade entre Jesus e Deus.Porm, quanto ao Jesus histrico, h um amplo acordo entre os atuais estudi-osos de que Jesus no reivindicou para si o atributo da divindade, que foi, istosim, reivindicado pelo cristianismo posterior (HICK, 2000). Inclusive, segundoAdrian Thatcher, as ocorrncias joaninas do Eu Sou e de textos como Eue o Pai somos Um e Aquele que me viu, viu o Pai no podem ser atribudosao Jesus histrico. Como, ento, a ortodoxia explica que o Deus encarnadono tivesse a conscincia de sua divindade? Como historicamente ocorreu atransio do Jesus histrico para o Jesus Cristo divino da f? Hick descreve talevoluo formulando e respondendo outra pergunta, qual seja: o que os pri-meiros cristos pensavam ao chamar Jesus de filho de Deus?No mundo antigo o(s) conceito(s) de divindade no era(m) muitoclaro(s). No havia o pensamento hebraico delineado, de forma clara, concei-tos como oniscincia, onipresena ou outros superlativos caros filosofia grega.Assim, o termo filho de Deus poderia significar o messias (figura no divinapara os hebreus) ou o prprio Israel. Mesmo no helenismo popular havia muitosfilhos de Deus, homens santos e inspirados. No mundo romano o termopodia ser aplicado aos heris, chamados divinos, ou poderia ser sinnimo depiedoso (HICK, 2000). Tambm ns, em nossa cultura popular hodierna,lanamos mos de frases como Eu tambm tenho direitos, pois tambm soufilho de Deus, ou, Todos merecem a felicidade, afinal somos todos filhos deDeus, sem que com o uso do termo filho de Deus queiramos nos referir aum status de unio/filiao ontolgica com Deus.Enfim, havia, no mundo antigo, uma elasticidade quanto idia de di-vindade e filiao divina, num amplo leque de aplicaes. Teramos, ento, nalinguagem do filho de Deus, uma metfora amplamente utilizada e pronta-mente compreendida no mundo antigo (HICK, 2000). Geza Vermes confirmaque nos crculos judaicos o termo em questo jamais apontava para umaparticipao na natureza divina. E que se o meio de desenvolvimento da teolo-gia tivesse sido hebraico, e no grego, dificilmente se teria chegado ao dogmada encarnao (HICK, 2000). O termo christos, por sua vez, era a traduogrega do hebraico messiah (ungido), termo este que se aplicava aos reis, sem, noentanto, conotao divinizante. E Jesus, ao menos no cristianismo primitivo, foiconsiderado o novo ungido da casa de Davi. Aos poucos, porm, a igreja primi-tiva gentia foi-lhe dando status divino, sendo christos cada vez mais interpreta-do como filho de Deus no sentido trinitrio, do Deus Filho (HICK, 2000).FRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 612Paulo, homem de dois mundos, que em alguns de seus escritos pareceter chegado a uma noo de Jesus como nico filho de Deus encarnado, de-fende, neste ponto, a subordinao de Jesus a Deus, deixando claro que seustatus especial e nico devido elevao que Deus efetuou em Jesus pelaressurreio (adocianismo? 1 Co 15, 23-28). Sim, h, no NT (At 2,22; 2,32.36),uma interpretao adocionista, em que o homem Jesus, por sua justia e obe-dincia, elevado e exaltado por Deus a um lugar mpar, mas no condiodivina. E, embora textos como Fp 2,5-11 e Gl 4,4 tendam a dizer que Jesus,ou o Cristo, era pr-existente, enviado ao mundo por Deus, o sentido de taistextos, no contexto hebraico, parece ser o de que Jesus era a pessoa encarregadapor Deus de participar da fragilidade humana (HICK, 2000).O fato que a Igreja, que crescia e se tornava presente no mundo greco-romano, precisava, enquanto crescia e se institucionalizava, mostrar demaneira clara e normativa sua f. E no contexto marcadamente grego, erapreciso explicar a f no parmetro filosfico grego. Outrossim, o novo Im-prio cristo precisava de crenas unitrias. Por isso Constantino convoca,em 325, o Conclio de Nicia, onde se adota a linguagem conceitual gregae o termo no-bblico de ousia (substncia), declarando Jesus homoousiostoi patri (da mesma substncia do Pai). E, assim, o filho de Deus metafricose transforma no Deus Filho da Trindade, o que tinha um significado pol-tico, dado que, na antiguidade, geralmente, os soberanos eram consideradosfilhos de Deus. Constantino, ento, era agora vice-rei de Deus na terra. EmCalcednia (451) se declara que Cristo tambm era da mesma naturezahumana, e que as duas naturezas conviviam nele sem confuso e sem sepa-rao. Passou-se, assim, da metfora ao literalismo dogmtico.ENTENDENDO E CONTESTANDO O DOGMADA ENCARNAOApresentaremos aquilo que, segundo telogos(as) citados(as) porHick, podem ser, de forma moderna ou antiga, as interpretaes da encar-nao de Deus em Jesus, conforme definido pelo dogma calcedoniano.E, concomitantemente, a contestao feita a elas. Assim, as premissas dodogma da encarnao seriam: Encarnao seria o envolvimento de Deus coma humanidade. Deus valoriza a histria humana, no passvo frente a elae nela atua. Deus conosco no desenvolvimento da histria; no s Deusestaria na histria humana, mas, de forma particular, estaria envolvido navida de Jesus; encarnao significaria que Cristo assumiu a carne humana,isto , Jesus preexiste, de alguma forma, ao seu nascimento terreno; encarnaoFRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 613seria a completa auto-doao de Deus em Jesus; no sentido do ponto ante-rior, Jesus foi e ser a nica encarnao divina.Hick diz concordar com as duas primeiras hipteses, descartando asdemais. A questo que o dogma de Jesus plenamente Deus e plenamenteser humano nunca recebeu um sentido literal satisfatrio, mas proporcionaexcelente sentido metafrico. Afinal, uma vida pode encarnar, metafori-camente, verdades e valores. Jesus, ento, teria corporificado o ideal dehumanidade aberta e obediente a Deus, encarnando o amor divino, reve-lando-o em suas atitudes e ser (HICK, 2000).Poder-se-ia reivindicar, em defesa da encarnao, que ela faz de Deusum ser comprometido com a humanidade e com sua histria, de forma radicale apaixonada. Mas no tambm verdade que no AT judaico e em outrasreligies Deus tambm se mostra solidrio ou intervindo na histria, ou nomais profundo interior do ser humano, sem que com isto se precise apelarpara uma encarnao divina? E por que apenas alguns habitantes de umapequena faixa de terra em um pequeno lapso de tempo puderam ver a Deusface a face, sendo tal experincia privada de tantos outros povos e tempos?Por que tal particularismo? questiona Hick.A questo de fundo com a qual Hick tambm polemiza : tendo oconclio apenas definido que Jesus era verdadeiro homem e Deus simultane-amente, ele no explica o como de tal paradoxo. Pode-se afirmar, ento, quetal paradoxo um mistrio. Mas Hick adverte que tal mistrio criao hu-mana, em um conclio, e no propriamente mistrio dito ou definido por Jesus.Mas voltemos possvel plausibilidade da hiptese da encarnao,compreendida literalmente. A pergunta que se faz, supondo-se a viabilidadeda encarnao divina em um ser humano, : poderia haver ou ter havido mltiplas encarnaes da divindade? Esta idia parece ser vivel.O telogo Brian Hebblethwaite diz que, por ser a atividade de Deus naencarnao uma atividade pessoal, somente uma nica pessoa poderia ser efe-tivamente Deus para ns, pois Deus tambm um. Mas, impediria a unicida-de de Deus em travar uma relao pessoal com grande quantidade de humanos deuma s vez? Muitas pessoas, pelo mundo, no experimentam simultaneamen-te a presena pessoal do Deus nico? Por que ento seria impossvel que Deusassumisse a natureza humana em vrias ocasies, revelando-se a diversas pes-soas da raa humana? (HICK, 2000). A no aceitao do cristianismo emadmitir mltiplas encarnaes est em, segundo Hick, perder, com tal reco-nhecimento, seu status de superioridade sobre as demais religies.Interessante, porm, que Toms de Aquino, crebro argumentativo,se perguntava por tal possibilidade, acenando positivamente para ela. DizFRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 614ele que se o Filho teve o poder de se encarnar, o Pai e o Esprito Santo teriamo mesmo poder (HICK, 2000). Quanto possibilidade do Filho encarnar-se posteriormente como um outro ser humano diferente, responde o telo-go dominicano: Parece que, aps a encarnao, o Filho possui o poder deassumir outra natureza humana, distinta daquela que efetivamente assumiu(HICK, 2000, p. 128). Hick, neste ponto, apela para o motivo que faria queDeus se encarnasse ou, ao menos, se revelasse efetivamente de formailimitada. O amor divino seria esta razo. Pois o evento Cristo interpreta-do como encarnao se deu num lugar, poca e circunstncia especficos,no contexto de um povo especfico. E, portanto, tomou roupagem espec-fica. E o resto da humanidade, antes e depois do evento Cristo? Por que ficariaprivada dos benefcios de um conhecimento pessoal de Deus? De seus be-nefcios? No seria um Deus, de certa forma, discriminador? Se responde-se a isto com a teoria de que s pde haver uma encarnao porque s emuma morte expiatria poderia haver a remisso dos pecados (teoria que sercontestada adiante), no poderia aceitando-se tal teoria que ao menosDeus se encarnasse em outros povos e pocas para poder ensinar-lhes o ca-minho da vida, da paz, da tica, levando cura e justia aos outros povos, semnecessariamente ter efetuado nestas outras encarnaes um sacrifcio remidor?Inclusive existe uma teoria, advinda de raiz hindu e de sua concepo deguru, de que o mestre, atravs de sua vida, exerccios, sacrifcios e mesmoensinamentos e santidade, pode remover (pagar, remir) o karma (falandolngua de cristo, o pecado) de seus discpulos. Alguns hindus assim consi-deram a vida e morte de Jesus: como resgate do karma dos doze apstolosou, numa viso mais geral, dos cristos, daqueles que crem em Cristo e oconsideram como seu mestre.Admitindo, com So Toms, a possibilidade de mltiplas encarnaes,ser que lderes como Gautama, Zoroastro, Lao Ts e outros no poderiamter sido encarnaes do divino? Dentro do ponto de vista dessas persona-gens, elas no aceitariam tal hiptese. Mas, considerando o sentido hebraicode filho de Deus, o qual denota um homem prximo de Deus e seu men-sageiro/instrumento, e considerando-se que Jesus assim se compreendeu, natradio de Daniel 7, enfim, considerando-se que o prprio Jesus no estavaciente de sua condio divina (agora desde um ponto de vista mais ortodo-xo), ser que no pode ter ocorrido o mesmo com os demais lderes suaignorncia a respeito de seu status divino? (HICK, 2000).Hick chega seguinte hiptese, tomando o conceito encarnatriotradicional. Deus, quando encarnado em Jesus, estava humanamente cons-ciente daquele aspecto divino que podia ser percebido e aceito em termosFRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 615judaicos. E nestes termos lhes falou. Pessoas que respondem, em seu segui-mento de Jesus, a estes aspectos delineados por ele, nele encontram a salva-o. Mas, ao encarnar-se em Buda, ele sabia daquele aspecto do divino quepoderia ser concebido em termos um tanto diferentes, como nirvana, dharma,sangha, etc. E assim adiante. Isto daria oportunidade a uma teologia dasreligies cuja nfase fosse na natureza infinita da divindade e na variedadesalvfica de caminhos religiosos formados em torno das diferentes encarnaesde Deus ao longo da histria (HICK, 2000). Tal concepo poderia ser umaalternativa para o cristo que no abre mo da encarnao de Deus em Jesus,mas reconhece a validade salvfica de outras tradies. Agora, se compreen-de-se a encarnao em termos metafricos, fica mais fcil dizer que os lderesreligiosos das grandes (e pequenas?) tradies encarnaram, a seus modosem seus contextos, respostas autnticas realidade divina.A QUE LEVA OU PODE LEVAR O DOGMA DA ENCARNAODE DEUS EM JESUSA histria das principais religies (de seus povos, civilizaes) incluimales morais, que foram validados/justificados, apelando-se aos ensinamentosdas respectivas tradies religiosas. Assim, no cristianismo, grandes maleshistricos foram impingidos por meio de um apelo especfico doutrina daencarnao. Contudo, os males causados pelo cristianismo na histria no foramcausados, frisa Hick, pelo dogma da encarnao em si, mas pela cobia, cru-eldade, enfim, pelo carter pouco louvvel do ser humano em geral. Contudo,muitos dos abusos impetrados pelos humanos cristos foram justificados,apelando-se idia da divindade de Jesus, o que demonstra que tal doutrina, no mnimo, inerentemente sujeita a abusos por parte da natureza humana,alm do que ela no foi ensinada pelo prprio Jesus, conforme Hick (2000).Jonh Hick lista quatro abusos cometidos, cujo substrato ideolgicofoi a doutrina da divindade de Jesus, da encarnao de Deus: anti-semitismo,cujaraizestnaquestodisputada,entrejudeusecristos,sobreamessianidade de Jesus. O anti-semitismo justificou-se no argumento de queos judeus haviam cometido deicdio (assassinato de Deus), acusao estaque a Igreja Catlica anulou somente em 1965; a explorao imperialistapromovida pela Europa crist entre os sculos XV e XIX. Entre tais sculosse dominou e colonizou, tantas (todas?) vezes fora, as Amricas, frica,sia e mesmo Oceania sob a alegao de se submeter seus povos ao senhoriodivino de Cristo; subordinaram-se (e ainda se subordinam) as mulheres sobo argumento de que Deus, por ter assumido a carne de um homem, mas-FRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 616culino ou tem suas misteriosas preferncias e Deus sabe o que faz e deveter suas divinas razes pelo sexo masculino. Textos como 1 Co 11. 3, 7-9e 14. 33-35 so reflexos deste pensamento; enfim, a relao dos cristos comas demais religies foi e continua sendo de superioridade, desprezo,condenao das prticas e crenas religiosas no-crists. Consideravam-se e ainda em boa escala se consideram as religies no-crists como reas deescurido espiritual a serem resgatadas pela converso ao cristianismo. Ora,se Jesus foi Deus encarnado, a religio crist nica/autntica e superior.Conforme o estudioso ingls, o dogma da encarnao/divindade deJesus se prestou (e se presta) a validar males e intolerncias na histria. Seriaele, ento, um dogma que nos incita a reexamin-lo, para que se verifique se crena essencial crist (HICK, 2000).Ademais, conforme o telogo ingls, o dogma do Deus encarnadofaz do cristianismo a nica religio fundada pelo prprio Deus (HICK, 2000).Tal assertiva, porm, se mostra questionvel, pois os avatares no hindusmo,por exemplo, fazem com que correntes do mesmo sejam consideradas comofundadas pelos prprios deuses vindos terra. Assim, por exemplo, com acorrente da Bhackti-yoga, fundada pelo prprio Krishna, oitavo avatar deVishnu, descrito no Mahabharata, particularmente no livro Bhagavadgita.Inclusive o avatar, em seu sentido de encarnao ou manifestao divina, mais forte (em termos conceituais) que o dogma cristolgico da encarnao,pois pressupe um Deus encarnado que, sendo pessoa entre os humanos,no tem em si a natureza humana, mas completamente divino. Vishnu,por exemplo, desce de tempos em tempos para salvar a humanidade dealgum perigo e lev-la a uma nova forma de piedade (HAMMER, 1985;HINNELLS, 1990).De qualquer modo, a viso de que o cristianismo foi fundado peloprprio Deus leva a pensar a religio cristcomo sendo superior s outrasou como a nica religio plenamente verdadeira e detentora da plena verda-de. Porm, a normatividade que o cristianismo tem para os cristos, as de-mais religies tm para seus adeptos. A devoo e obedincia a Deus que oscristos supem praticar tambm so praticadas pelos adeptos de outrasreligies, cada qual na sua. A santidade encontrada na histria crist en-contrada, tambm, nas demais religies. E o fato de ser cristo, budista ouxintosta costuma ser sempre uma questo geogrfica, de se ter nascido emcerta regio e cultura. Portanto, possvel falar de religio nica, plenamen-te normativa e superior, diante de um mundo que se mostra to plural, e emque fato de se pertencer a esta ou aquela religio , na maior parte das vezes,um fato geogrfico? Uma pessoa crist (nascida no Brasil, por exemplo) que,FRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 617convencida da superioridade de sua religio, se torna missionria para con-verter pagos ao cristianismo, se houvesse nascido numa cultura muul-mana de corte mais propagador do Isl, no seria, talvez, um missionrioda jihad islmica, convencida que estaria da necessidade de difundir o Islentre os povos? Crer que Cristo normativo ou que normativo o Isl,portanto, no tanto, a partir deste ponto de vista, uma questo de f, masuma questo da geografia da f, de onde se nasce e da cultura assimilada. Istopode parecer bvio, mas parece tambm bvio que fundamentalistas de todasas religies no reconhecem com clareza e honestidade intelectual tal lgica.RECUPERAROSENTIDOMETAFRICODEJESUSCOMOFILHO DE DEUSSegundo Hick, o termo filho de Deus, na construo teolgica dajovem Igreja judaico-crist, no pode ser interpretado em sentido ontolgico,pois tal sentido, no pensamento semtico-judaico, no faz sentido, dado quea questo ontolgica no despertava interesse em tal tradio, j que os ju-deus se preocupavam mais com a axiologia, o fazer, do que com a ontologia,o ser (SWIDLER, 1993). Hick sugere que a interpretao correta dos ttulosque, mais tarde, foram sendo ontologizados : medida que Jesus cumpriaa vontade de Deus, Deus agia nele. Neste sentido, Deus se encarnava emJesus. Jesus revelava, em sua humanidade, Deus para o mundo, e Deus serevela ao mundo em Jesus, em suas atitudes, palavras, amor, todos vividosem sintonia com Deus.MasHick no est sozinho em sua interpretao no literal daencarnao. O eminente telogo cita dois pensadores que, em suas teorias,se aproximaram de explicar o sentido da metfora do Deus encarnado. DonaldBaillie a denominou de paradoxo da graa. Ou seja, o fato paradoxal quequando fazemos a vontade de Deus, tanto verdade que agimos livremente,como tambm que Deus age em ns pela graa divina. Assim, todo bemexistente em uma pessoa vem de Deus. Baillie afirma que a unio da graadivina e da ao humana (que atua em toda pessoa humana) estava atuandonuma medida absoluta na vida de Jesus (HICK, 2000). Assim, Jesus era umhomem que respondia integralmente graa divina, cumprindo a vontadedivina. Ele levou ao pice o paradoxo da graa.J Geoffrey Lampe utiliza como modelo a atividade do Esprito deDeus dentro da vida humana. Usando a concepo de alguns padres gregosda Igreja, que reza que a criao do ser humano gradual, por meio de sualiberdade, a partir de um estgio inicial de maturidade rumo semelhanaFRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 618finita de Deus (HICK, 2000), Lampe diz que o Esprito transforma a pessoanaquilo que ela no era, sendo tal transformao contnua com a criao,chegando a afirmar que Deus sempre se encarnou nas criaturas humanas,formando seu esprito a partir de dentro e revelando-se em e atravs dele(HICK, 2000). Enfim, defende que o esprito de Deus estava na pessoa deJesus de modo particular. Wolfhart Pannenberg reconhece em tal teologia acristologia mais antiga da Igreja, poisNo incio o conceito filho de Deus no veiculava a idia de umaparticipao na essncia divina. Foi somente no mbito do cristia-nismo gentio que se compreendeu a filiao divina fisicamente comoparticipao na essncia divina. Em contrapartida, na esfera judaica,e tambm na esfera judeu-helenstica, a expresso filho de Deus con-servava ainda o antigo significado de adoo e de presena de Deusatravs de seu Esprito, significado este que foi aplicado a Jesus porlongo perodo (HICK, 200, p.149).Ao questionar a literalidade da encarnao e defender a tese do sentidometafrico da linguagem quanto relao de Jesus com Deus, Hick v duasformas metodolgicas. A primeira, inspirada em Bultmann, a da desmi-tologizao, despindo o cristianismo de seus mitos. A outra possibilidade seriareconhecer o carter mitolgico do mito como algo positivo a ser preservado,pois toca o lado potico e criativo da natureza humana, que, entrementes, oque melhor experimenta e absorve o divino. Assim, por exemplo, com a histriado Natal. Vale a pena destitu-la de todos seus elementos mitolgicos para explic-la como uma construo teolgica? Embora haja muitos pregadores que, que-rendo expor para as comunidades seu cabedal de conhecimentos e a verdadepor trs do texto, desmitologizam o texto, ao desmitologizarem uma histriacomo a de Natal, o que fazem? Destroem toda uma potica divina que fala aomais profundo da psique humana, alm de colocar uma p de cal em todo re-finado trabalho teolgico de Lucas e Mateus. A histria do Natal no se expli-ca, se rumina (para usar uma expresso de Lutero). E smbolos como filhode Deus? Por que explic-los racional-ontologicamente, como encarnao? Porque lhe tirar o sentido metafrico e potico? No dizer de Hick (2000, p. 215),Precisamos aprender a aceitar a idia de verdade mitolgica na reli-gio enquanto veracidade prtica, a qual consiste no fato de um mitoevocar em ns uma resposta apropriada, em nossa disposio, ao seureferente ltimo.FRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 619Outra questo que uma explicao no racional dos mitos e met-foras. Uma no desmetaforizao deles fala muito mais ao ser humano, poisso crenas mais simples e diretas a respeito do divino. Explicaes como adas duas naturezas de Cristo so incompreensveis para a maioria das pesso-as (HICK, 2000). Os que se dizem cristos, na maioria, se perguntados sobrequem era Jesus, que respondero? provvel que tenham uma viso maismetafrica de Jesus como profeta de Deus do que acenem com a teologiatradicional. E isto no necessariamente por no terem tido, alguma vez,contato com a teologia tradicional da encarnao. Mas porque o smbolo ea metfora, nas questes religiosas, so mais plausveis e eloqentes do queas elocubraes e acrobacias teolgicas para se explicar o carter ontolgicode Jesus. As metforas comunicam, pois mexem com realidades que nos soconhecidas (relao pai e filho) e nos falam existencialmente. J o conceitofilosfico engessa a metfora e a faz perder em comunicabilidade existencial,pois define contornos exatos, matemticos, mesmo que pela razo tal mate-mtica no se explique satisfatoriamente experincia e lgicas humanas.O MOTIVO DA ENCARNAO: SALVAR A HUMANIDADE CADAA doutrina da encarnao de Deus est, no cristianismo, entrelaadacom a doutrina da reconciliao, salvao, expiao de pecados, sacrifcioremidor, ou que terminologia/teologia prefiramos. A noo de fundo dadoutrina da reconciliao a de que, como o prprio nome diz, os humanosesto separados/no conciliados com Deus. Conciliao com Deus salva-o para o ser humano, assim reza a lgica. E, se h separao, ela nossa edecorrente do pecado humano. Portanto, para a salvao/reconciliao, hde haver o perdo da parte ofendida ou abandonada: Deus. Para o perdo necessria uma reparao, uma quitao da dvida que cancele a puniodo pecador afastado de Deus. Esta , em linhas gerais, a lgica da doutrinada reconciliao. Hick, no entanto, argumenta que a idia de reconciliao uma idia enganosa.E, simpatizando com o cristianismo oriental, ir propora idia da transformao gradual da humanidade por meio do Esprito deDeus, ou seja, a deificao (theosis), que se ope idia transacional-com-pensatria de salvao.Jonh Hick principia por expor as doutrinas tradicionais de salvao.A provavelmente mais antiga, segundo ele, a contida em Mc 10.45, onde dito que o Filho do Homem veio para dar a vida em resgate (lytron) demuitos. O telogo ingls argumenta que resgate, no (con)texto, deve serentendido metaforicamente, pois tal palavra tinha grande poder simblicoFRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 620para os hebreus e outros povos da poca, j que pessoas, famlias e mesmotribos e cidades estavam sujeitos a tornar-se escravos, de guerra ou de dvidas(HICK, 2000). Sentido ou referncia metafrico/a semelhante teria a peti-o do Pai Nosso, no tocante ao perdo das dvidas.Com o desenvolvimento da teologia principalmente em regies eculturas de razes no hebraicas os telogos, na exegese, se perguntaram: aquem ele deu a vida como resgate de muitos? Orgenes e outros responderam:ao Diabo! Pois a raa humana cara, pelo pecado, na jurisdio do Diabo.A morte de Cristo, ento, teria sido uma barganha com o Diabo para resgataros humanos. Tal idia persistiu forte at Anselmo, no sculo XI. A premissaque foi se desenvolvendo aos poucos, e que tomou corpo na Igreja, era a de queo pecado original era uma culpa herdada, afetando todos os humanos e exigin-do compensao para sua eliminao. Pressupunha tal idia que os primeiroshumanos caram deliberadamente de um estado de graa, passando eles, porherana gentica, tal culpa a toda espcie. Hick, a partir de uma visoevolucionista e naturalista, concebe, entretanto, que tal paraso idlico perdi-do e estado preternatural humano nunca existiram e que, na ordem do dia danatureza, o que existe e sempre existiu foi luta pela sobrevivncia. E, quemciente est da inexistncia de um lugar e estado original diferente do atual, nopode falar em queda. E, se no se pode falar em queda, tambm no se deveusar a lgica da queda para tecer teologias reconciliatrias. Hick considera queo autocentramento caracterstico do ser humano - traduzindo em linguagemteolgica usual: pecado um aspecto da natureza humana animal, engajadana luta pela sobrevivncia no mundo hostil de certa forma, tal qual os de-mais animais -, e que tal propenso coexiste em tenso com uma caractersticasingular humana, a de transcender o ego, respondendo a valores morais quesentimos estar dirigidos a ns (HICK, 2000). Hick, no entanto, tenta, ao dizervalores morais dirigidos a ns, salvar a procedncia e essncia divina dos valoresmorais, em contraposio aos valores egicos-animalescos da luta pela sobre-vivncia. Contudo, no entra na discusso, que seria um nus a ser explicadoem sua teoria, de que os valores morais ou, se quiser, descentradores do serhumano, seriam frutos de acordos mnimos e contratos sociais necessriospara este homem animal poder viver com o mnimo de segurana e harmoniaem comunidade. Ou seja, valores construdos/acordados pelos humanos a par-tir, igualmente, de sua luta egica pela sobrevivncia - alis, sem percepo eapego ao ego/vida no se luta -, que precisa se adaptar ao convvio de outrosegos. Enfim, Hick conclui que no podemos ser culpveis por termos nasci-dos como a espcie de seres que somos, biologicamente programados para aautoproteo em ambiente agressivo.FRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 621Porm, vingou a idia de pecado original, queda e necessidade dereparao reconciliadora. E Anselmo, em Cur Deus Homo?, adota o con-ceito de satisfao, j presente na Igreja antes dele. Considerava que a huma-nidade havia sido desobediente a Deus, o que maculava a honra e dignidadedo mesmo. Para a anulao dos agravos da desobedincia, era preciso peni-tncia ou satisfao. Ora, esta era a lgica do regime feudal da poca, ondea desobedincia do vassalo ou do servo ao seu senhor devia ser satisfeita dealguma forma. Porm, havia uma diferena. A Deus se devia obedinciaabsoluta. E Deus o absoluto e perfeito. Contudo, em seu ato de desobedi-ncia, seria impossvel humanidade dar a Ele uma satisfao digna ounecessria. E mesmo tal paga/satisfao deveria ser maior que todo o uni-verso alm de Deus (HICK, 2000, p. 160). Ora, sendo Jesus o prprio Deus,sua morte foi suficiente paga pelo pecado, pois s um Deus poderia remiruma ofensa divindade. Ento, o prprio se encarregou disso. E, ao mesmotempo, deveria ser um humano que morresse, pois o pecado era humano.Ento, h algo mais conveniente e lgico que um Deus-humano para reali-zar a satisfao devida a Deus?Hick, contestando tal teoria, apela para a democracia atual, dizendoque nos dias hodiernos tal concepo de desconsiderao da honra de Deus(do senhor) e paga por isso so inaceitveis. Mas poderia mesmo questionara legitimidade, dignidade e bom senso de um Deus que, sendo misericrdiae Deus, acima, portanto, dos jogos de honra e poder humanos, se sentisseofendido a ponto de requerer um sacrifcio satisfatrio eqitativo sua di-vindade por parte do ser humano, to humano que . , no mnimo, umaimagem psicologicamente antropomrfica e mesquinha de Deus. Mas,partindo da condio humana de todo discurso e percepo interpretativasobre Deus, compreensvel que na teologia e mesmo em textos sacros sefaam presentes concepes muito humanas de Deus.John Hick critica a assertiva de que culpa e perdo devam estar nocentro da soteriologia. O perdo at pode estar presente, mas Hick advogasalvao como processo deificante, transformador do humano. Se salvao processo em que o Esprito nos transforma, de um estado auto-centradopara uma abertura cada vez maior ao divino (e ao semelhante), ento a per-gunta pela relao culpa/perdo est mal colocada aqui.O telogo ingls anota que dizer que Deus se ofende como ns nosofendemos um tanto antropomrfico. Ademais, o que faz crer que Deus,necessariamente, exigisse um sistema compensatrio e sacrificial csmicopara conceder o perdo? Tal teoria suprime o perdo de Deus como algogratuito, desinteressado, fruto de sua misericrdia e amor. Se Deus amorFRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 622supremo, no precisa exigir cumprimento de leis de perdo supostamentecsmicas ou humanas e nem precisa mostrar tal amor sacrificando-se asi mesmo no Filho divino. Afinal, qual o maior amor, perdoar sem exigir ouperdoar exigindo, inclusive de si mesmo? Fica a pergunta. O fato que operdo doado no pode ser o mesmo que o perdo comprado (pelo sanguede algum, ainda mais!). O perdo comprado no perdo, mas reconheci-mento de que a dvida foi paga, como no comrcio. E se Deus estivesseinevitavelmente preso a um esquema legal csmico-universal, o qual nopudesse revogar e, portanto, tivesse que conceder seu perdo baseado nanatureza legal de tal esquema csmico imprescindvel? Bem, a precisara-mos nos perguntar se Deus Deus, pois se existe um esquema, seja qual for,a que Ele esteja submetido... ento o esquema Deus!John Hick lembra que no Pai Nosso a condio para o perdo de Deusa ns o perdo nosso a outros. Nenhum sacrifcio. E na parbola do filho prdigo,qual a condio do perdo? O pagamento de uma dvida, a satisfao de umadesonra? Nada. O perdo gratuito, coisa que a lgica patriarcal/guerreira dahonra e a lgica comercial/monetria da dvida tem dificuldade de entender.E que dizer de Mt 9.13? Hick chama a ateno de que a percepo da misericr-dia divina se encontra em todas as religies testas do mundo (?), e que s o cris-tianismo latino advoga a morte reparadora de um homem-Deus (HICK, 2000).No lugar das doutrinas da satisfao e justificao tradicionais, Hick defen-de a idia da theosis (deificao), em que a salvao consiste na transformao gradualda pessoa de um animal humano semelhana finita de Deus. Este processoimplica uma resposta humana sempre maior ao Esprito de Deus, numrecentramento de vida radical no interior da vida divina (HICK, 2000, p. 175).Para tanto recorre a textos de Paulo (2 Co 3.18 ; Rm 8.15-17 ; 8.29; 12.2).Mas como fica o poder simblico da cruz em tal teologia?, se perguntaHick. O telogo afirma que a cruz suscita autnticas emoes, profundas, poispara muitos evidente que um autntico lder religioso e representante de Deusestaria disposto, se necessrio, ao martrio por sua fidelidade ao divino. Assim,a morte de Jesus na cruz interpretada como entrega absoluta e confiante emDeus, em meio da adversidade, sendo a cruz um smbolo forte desta fidelidade.CONCLUSO: A AUTENTICIDADE DAS MLTIPLASTRADIES RELIGIOSAS E A NO NORMATIVIDADEUNIVERSAL DO CRISTIANISMOAps tal interpretao, no tradicionalmente corrente de Jesus e dosdogmas cristos, se pergunta: o cristianismo uma religio no superior sFRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 623outras? Sim, seria a resposta. Mas Hick vai mais ao fundo. O processo de salva-o/libertao no seria um exclusivismo cristo, mas um processo presenteem todas as religies. Mas, a verdade uma/una ou mltipla? Como conciliardoutrinas dspares e dizer que, em suas diferenas, todas levam ao mesmoponto, a salvao? Assim, h muitas diferenas entre concepes de Deus,do ser humano, do universo, da morte, da vida, nas mltiplas tradiesreligiosas. A questo, no entanto, no essa, como se houvesse o interesseem reconhecer elementos comuns e concordes entre as religies para se rei-vindicar a autenticidade de todas. A questo que cada tradio, mesmo emdirees e com concepes diferentes e, inclusive, opostas, oferecem e socontextos efetivos de salvao. Cada tradio, em seus contextos epocais desurgimento e culturais de desenvolvimento, concebe e conceitualiza suaprpria maneira a incorreo da existncia humana, ao mesmo tempo queproclama uma possibilidade ilimitadamente melhor para o ser humano,formas de libertao de seu estado incorreto, concebidas e conceitualizadastambm de formas diferentes (HICK, 2000).Quanto diferena entre doutrinas especficas (reencarnao ou ressur-reio? Criao ex nihilo ou o mundo sempre existiu?, etc), Hick diz que seriabom aplicar a tais questes o princpio de Buda, que ensinou que h uma sriede questes indeterminadas. Recusava-se ele a responder questes desta natu-reza, argumentando que so questes adiforas, as quais no precisamos co-nhecer para atingir a libertao. Ao contrrio, as brigas doutrinrias mais servempara nos desviar do essencial, a libertao/salvao, do que nos levar a ela (HICK,2000). No que tais questes no tenham importncia, diz Hick. Mas o fato que, a respeito de, ao menos, a maioria (seno todas) delas, no temos conheci-mentos seguros ou provas empricas. Portanto, , no mnimo, temerrio,dizer que a salvao depende da aceitao desta ou daquela doutrina ou dogma,ou que devamos brigar por tais questes.A esta altura outra pergunta surge: como, porm, harmonizar cren-as dspares com o conceito de verdade una? Se partirmos do pressuposto deque a verdade singular o que pode ser questionvel provvel quenenhuma das verdades veiculadas pelas tradies religiosas sejam inteiramenteverdade, mas parcialmente verdade. Assim, preciso questionar-se quantoao conceito de verdade. Se verdade um conceito singular (A Verdade), ento necessrio, num esforo de dilogo com o diferente, tentar harmonizarasverdades dos outros com A Verdade que para todos, tentando incorporarcoerentemente de forma inclusivista as demais verdades Verdade. Ou,ento, simplesmente verificar o carter falso das verdades alheias. O pres-suposto deste tipo de dilogo o de que dialogar um ato de converterFRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 624verdades alheias minha nica e universal Verdade. Porm, admitindo-sea no unicidade da verdade, ou que a verdade uma questo de ponto de vistae/ou experincia pessoal/grupal, o pressuposto do dilogo passa a ser a troca deinformaes e enriquecimento mtuo, sem pretenses de se chegar a umaunidade conceitual comum. Neste caso deveria-se fazer a diferenciao en-tre dois tipos de verdades: aquelas unas e universais, com as quais a cincia,de modo particular, trabalharia (ex: lei da gravidade) e as de cunho religioso,que seriam no cientficas no sentido emprico e universal , mas existen-ciais, sem que com tal afirmao se diga que tais verdades sejam relativas.Ou seja, as verdades religiosas falariam de algo real, realmente verdade erealidade, mas no universal, e sempre mediatizadas pela experincia pesso-al ou coletiva de um povo/religio.O fato, para Hick, que o processo salvfico ocorre continuamente,a despeito da distribuio ignorada de verdade e falsidade nas teologias.Segue-se que no essencial para a salvao adotar qualquer verdade como verdadeabsoluta e inquestionvel. Isto tambm d, de quebra, humanidade umaboa dose de tolerncia com o diferente e, por conseguinte, um pouco maisde paz. Pois as religies pleiteiam a paz, mas incitam, de fato, intolernciacom conceitos de verdade absoluta e geral que deve ser reconhecida por todosos que a ignoram.Mas como reconhecer se as religies cumprem o objetivo de salvar o serhumano de uma vida incorreta alando-o a uma vida autntica ou liberta (sal-va)? Isto no verificvel analisando-se as civilizaes religiosas (pases cris-tos, budistas, hindusta, animistas, etc). Todas as sociedades humanas, pormais que possam assumir um rosto religioso ou ter uma maioria religiosa dealguma tradio, presa, em nvel macro, aos interesses, ambies e injustiashumanas. Mesmo em sociedades pretensamente teocrticas. possvel dizer,por exemplo, que o Brasil a despeito da propaganda de alguns evanglicosde que o Brasil do Senhor Jesus - um pas onde, em nvel de benefciose justia para a populao, os ensinamentos e valores de Jesus se fazem presen-tes satisfatoriamente? Ou os Estados Unidos? E a Tailndia em relao aos valoresbudistas? E o Egito ou Indonsia em relao ao Islamismo? Ento, o critriono o macro, mas o micro. E no micro vida de sinceros e verdadeiros adeptosde suas tradies o critrio aquele advogado por Jesus: a rvore se reconhe-ce pelos frutos. Assim, somente podemos avaliar estes projetos de salvao medida que somos capazes de observar seus frutos na vida humana (HICK,2000). A questo pendente nesta teoria de Hick de que mesmo caminhos ou a ausncia deles no religiosos podem ser caminhos autnticos de salva-o. Os ateus adeptos de uma teoria marxista ou do anarquismo, por exemplo,FRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 625se vivem em descentrao e abertura para o prximo e para o cosmos ou na-tureza, esto num autntico caminho de salvao, segundo tal teoria. Assim,teorias poltico-ideolgicas e mesmo a abstinncia de qualquer teoria orga-nizada de vida se constituem meios de salvao se levam pessoas a se abrir parao prximo e para a solidariedade irrestrita com a vida de uma forma maior.No se precisa crer em Deus ou ser religioso para ser salvo (se que tal termo,salvo, em seu sentido metafsico, faz sentido para os no religiosos). Hick, noentanto, no vai to longe (em seu livro, pois em artigos publicados em revis-tas ele elabora tal aspecto), mas sua teoria carrega em si esta possibilidade que,para alguns telogos, pode ser algo negativo, mas, para outros, pode levar auma viso positiva da salvao de Deus, que, de to ampla em suas possibili-dades, excede mesmo o campo da religio e da f.Esta transformao preconizada por Hick tem dois padres: h osque se retiram do mundo e os que buscam transformar o mundo. Nos doisprevalecem os mesmos critrios para se perceber o processo transformadorda salvao nos indivduos: amor e compaixo que, segundo Hick, so cri-trios basilares comuns das grandes religies para medir o processo desalvao. E, quanto a este critrio, ningum poder dizer ao certo se umareligio superior s outras, pois, grosso modo, as virtudes e os vcios sobasicamente os mesmos dentro dos vrios contextos religiosos e culturais dahumanidade (HICK, 2000).Porm, se a salvao acontece na mesma medida em vrias tradies, porque so elas manifestaes diferentes, para a humanidade, de um mes-mo fundamento divino. Hick, cristo e monotesta, parte do pressuposto deum s Deus que atua de formas diferentes. Porm, o que seu monotesmono deixa entrever que tambm se poderia defender a teoria da diversidadede formas autnticas de salvao apelando-se para uma f politesta. Por queno aventar a hiptese de que h muitos deuses, iguais ou diferentes emdivindade entre si? Afinal, boa parte das religies existentes atualmentesurgiram em contextos que admitiam a existncia da multiplicidade ded(D)euses(as), mesmo que optassem, para si, pela soberania de um deles ouviessem a desenvolver, aos poucos, uma noo monotesta. Isto explicariacom mais facilidade as diferenas doutrinais nas diferentes religies. MasHick no abre mo do pano de fundo monotesta e no se aventura emperguntar pelo politesmo.Considera-se, portanto, monotesticamente, a possibilidade da reali-dade divina ser experimentada e concebida de formas diferentes nos diver-sos contextos culturais, que tambm respondem de formas diferentes realidade transcendente. Haveria uma realidade divina (o autor chama de oFRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 626Real) que est alm do alcance de conceitos humanos e no pode ser ex-perimentada diretamente por ns, mas somente como aparece segundo asdiversas formas humano-culturais de pensamento. Assim, o Real experi-mentado/mediado pelas formas histrico-geogrficas e traduzido comomuitas divindades. Hick acentua, assim, o carter potico e mtico de todasas pretenses religiosas ao Absoluto, lanando mo da noo hindu de quetoda verdade religiosa est no mbito de nama (nomes), e no de essncia(ROUNER, 1986, p. 120). O autor destaca, entrementes, que os dois modosmais comuns de se pensar/experimentar/conceituar a divindade so o pes-soal e o impessoal. Porm, nossas formas conceituais de abarcar intelectual-mente a divindade so sempre aqum da divindade. Portanto, a questo noest em como o Real , pessoal ou impessoal, mas que o Real est alm dosconceitos e s digno, em ltima instncia, de uma teologia apoftica. Osmestres cristos sabiam disso, como Gregrio de Nissa, ao dizer que Deus,seja o que Ele , a saber, incapaz de ser captado por qualquer termo, qual-quer idia ou qualquer outro artifcio de nossa apreenso (HICK, 2000, p.191). O que no nos exime do esforo teolgico de conceituar, pois, comoafirma Leonardo Boff, o telogo deve calar no fim, no no comeo. Mas,como se depreende, no fim s nos resta a doxologia do silncio ou... a ten-tao da idolatria conceitual.Enfim, para Hick a alternativa ortodoxia tradicional no uma re-nncia ao cristianismo. , isto sim, uma viso mais ampla da atuao de Deusna histria da humanidade, onde o cristianismo uma entre outras formasautnticas de se conceber, experimentar e responder ao transcendente.Nota1Conforme nos informa Pedreira, Hick decepcionou-se com o formalismo institucionalizado doanglicanismo britnico e, buscando uma relao mais profunda com Deus, ingressou no presbi-terianismo. Como jovem pastor presbiteriano, Hick se tornou fundamentalista. Com o aprofun-damento teolgico, no entanto, e com sua experincia docente em Birminghan, alm do contato comcomunidades no crists, Hick muda seus paradigmas teolgicos, naquilo que descreveu como re-voluo copernicana do entendimento do cristianismo (PEDREIRA, 1999).RefernciasDRANE, J.Jesus. So Paulo: Paulinas, 1987.HAMMER,R.Conceptosdelhinduismo.Estella:VerboDivino,1985.HICK,J.AmetforadoDeusencarnado.Petrpolis:Vozes,2000.FRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 17, n. 5/6, p. 609-627, maio/jun. 2007. 627HINNELLS,J.Dicionriodasreligies.SoPaulo:CrculodoLivro,1990.PEDREIRA,E.R.Doconfrontoaoencontro:umaanlisedocristianismoemsuasposiesanteosdesafios do dilogo inter-religioso. So Paulo: Paulinas, 2000.ROUNER, L. A teologia das religies na teologia protestante recente. Concilium, n. 203, p. 115-123,1986.SWIDLER, L. Ieshua: Jesus histrico. So Paulo: Paulinas, 1993.Abstract:thisisacommentedonreviewofthebookThemetaphorofredGod,ofJohnHick.Hicklooksfortoreviewtraditionalchristianaxioms,tryingintheintentionofdoingthemsignificantforthedialogueinter-religiousperson.Proposesapluralistchristology,areviewtraditionaltheologicalpremisesandgivingnewmeaningstotheeventJesus.Startingfromanewchristiantheology,offerasoteriologytotranscendtheeventJesusChrist.Key-works:Christianfaith,soteriology,dialogueinter-religiousRodrigo PortellaMestre em Cincias da Religio pela Umesp. Graduado em Histria (FFSD/RJ) e em Teologia (EST/RS). E-mail: [email protected]