Amostra a Cidade a Cidade de China Mic3a9ville

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tradução FÁBIO FERNANDES A CIDADE & A CIDADE

Transcript of Amostra a Cidade a Cidade de China Mic3a9ville

  • traduoFBIO FERNANDES

    a c i d a d e & a c i d a d e

  • Copyright desta edio Boitempo Editorial, 2014Copyright China Miville, 2009

    Direo editorialIvana Jinkings

    EdioBibiana Leme

    Coordenao de produoLivia Campos

    Assistncia editorial Thaisa Burani

    Traduo Fbio Fernandes

    PreparaoMariana Echalar

    DiagramaoOtvio Coelho

    CapaRonaldo Alves

    sobre ilustrao de Fbio CobiacoEquipe da Boitempo Editorial: Ana Yumi Kajiki, Artur Renzo, Elaine Ramos, Fernanda Fantinel, Francisco dos Santos,

    Isabella Marcatti, Kim Doria, Marlene Baptista, Maurcio dos Santos, Nanda Coelho e Renato Soares

    CIP-BRASIL. CATALOGAO NA FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    M577t Miville, China, 1972- A cidade e a cidade / China Miville ; traduo Fbio Fernandes. - 1. ed. - SoPaulo : Boitempo, 2014. Traduo de: The city and the city ISBN 978-85-7559-413-1

    1. Fico inglesa. I. Fernandes, Fbio. II. Ttulo.14-17490 CDD: 823 CDU: 821.111-3

    vedada a reproduo de qualquer parte deste livro sem a expressa autorizao da editora.

    Este livro atende s normas do acordo ortogrfico em vigor desde janeiro de 2009.

    1a edio: novembro de 2014

    BOITEMPO EDITORIALJinkings Editores Associados Ltda.

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  • Em saudosa memria de minha me,Claudia Lightfoot

  • AgrAdecimentos

    Por toda a sua ajuda neste livro, sou extremamente grato a Stefanie Bierwerth, Mark Bould, Christine Cabello, Mic Cheetham, Julie Crisp, Simon Kavanagh, Penny Haynes, Chloe Healy, Deanna Hoak, Peter Lavery, Farah Mendlesohn, Jemima Miville, David Moench, Sue Moe, Sandy Rankin, Maria Rejt, Rebecca Saunders, Max Schaefer, Jane Soodalter, Jesse Soodalter, Dave Stevenson, Paul Taunton e meus editores Chris Schluep e Jeremy Trevathan. Meu sincero agradecimento a todos das editoras Del Rey e Macmillan. Obrigado a John Curran Davis por suas maravilhosas tradues de Bruno Schulz.

    Entre os incontveis escritores com os quais estou em dvida, aqueles por quem tenho mais conscincia e gratido com relao a este livro so Raymond Chandler, Franz Kafka, Alfred Kubin, Jan Morris e Bruno Schulz.

  • * Em Fico completa (trad. Henry Siewierski, So Paulo, Cosac Naify, 2013), p. 127-8. (N. E.)

    Abrem-se, no fundo da cidade, por assim dizer,ruas duplas, ruas ssias, ruas mentirosas e enganadoras.

    Bruno Schulz, Lojas de canela

  • BESEL

    PA r t e 1

  • CAPTULO 1

    No consegui ver a rua nem a maior parte do conjunto habitacional. Estvamos cercados por blocos cor-de-terra, de cujas janelas se debruavam homens vestidos e mulheres com cabelos ainda em desalinho e canecas de bebida, tomando o caf da manh e nos observando. Aquele terreno aberto entre os edifcios havia sido esculpido um dia. Ele tinha o caimento de um campo de golfe: uma mmica infantil de geografia. Talvez estivessem prestes a transformar tudo em lenha e colocar um lago no lugar. Havia um bosque, mas as rvores novas estavam mortas.

    A grama estava coberta de ervas daninhas, costurada por trilhas feitas a p entre montes de lixo, entrincheirada por marcas de pneus. Havia policiais executando diversas tarefas. Eu no era o primeiro detetive ali vi Bardo Naustin e mais uns dois , mas era o mais antigo. Segui o sargento at onde a maioria dos meus cole-gas estava aglomerada, entre uma pequena torre abandonada e uma pista de skate cercada por grandes lixeiras em formato de tambor. Logo depois dela, podamos ouvir o cais do porto. Um bando de moleques estava sentado em cima de um muro diante de oficiais em p. As gaivotas voavam em espirais sobre esse grupo.

    Inspetor acenei com a cabea para quem quer que houvesse falado. Algum ofereceu um caf, mas fiz que no com a cabea e olhei para a mulher que tinha vindo ver.

    Ela estava cada perto das rampas de skate. Nada to imvel quanto os mortos. O vento mexe o cabelo deles, como estava mexendo o dela, e eles no esboam nenhuma reao. Estava numa pose feia, com as pernas tortas, como se estivesse prestes a se levantar, os braos dobrados de modo estranho. A cara virada para o cho.

    Uma mulher nova, de cabelos castanhos puxados em trancinhas despontando como plantas. Ela estava quase nua, e era triste ver sua pele lisa naquela manh fria, no perturbada por nenhum arrepio. Usava apenas meias rasgadas, um p calava

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    sapato de salto alto. Ao me ver procurando volta, uma sargento acenou para mim de um ponto mais ao longe, de onde ela estava guardando o sapato cado.

    Fazia duas horas que o corpo havia sido descoberto. Eu o olhei de alto a baixo. Prendi a respirao e me abaixei at perto da terra, para olhar melhor o rosto, mas s consegui ver um olho aberto.

    Onde est Shukman? Ainda no chegou, inspetor... Algum ligue pra ele, diga pra andar depressa fechei a tampa do meu relgio.

    Eu estava encarregado do que chamvamos de mise-en-crime. Ningum mexeria nela at que Shukman, o patologista, chegasse, mas havia outras coisas a serem feitas. Verifiquei linhas de visada. Estvamos fora do caminho e as lixeiras nos obscureciam, mas eu podia sentir a ateno em ns como insetos, de todo o conjunto ao redor. Ficamos andando sem rumo por ali.

    Havia um colcho molhado em p entre duas lixeiras, ao lado de uma extenso de peas de ferro oxidadas, entremeadas por correntes descartadas.

    Isso estava em cima dela a investigadora assistente que falou era Lizbyet Corwi, uma moa inteligente com quem eu j havia trabalhado umas duas vezes. No d pra dizer exatamente que estivesse bem escondida, mas meio que fazia ela parecer uma pilha de lixo, eu acho. Pude ver um retngulo irregular de terra mais escura cercando a morta, o resto do orvalho acumulado pelo colcho. Naustin estava agachado ao lado dela, olhando a terra.

    Os garotos que a encontraram viraram o colcho pela metade disse Corwi. Como foi que acharam ela?Corwi apontou para a terra, pequenas marcas de patas de animais. Impediram ela de ser mutilada. Correram como o diabo quando viram o que

    era e ligaram. Nosso pessoal, quando chegou... Ela olhou de relance para dois patrulheiros que eu no conhecia.

    Eles moveram o colcho?Ela fez que sim. Pra ver se ela ainda estava viva, disseram. Quais so os nomes deles? Shushkil e Briamiv. E aqueles ali so os descobridores? Acenei com a cabea para os garotos

    guardados. Eram duas meninas, dois meninos. Dezesseis, dezessete anos, com frio, olhando para baixo.

    . Mastigadores. Comeando de manh to cedo? Isso que dedicao, hein? Ela disse. Talvez estejam concorrendo ao cargo

    de junkies do ms ou alguma merda dessas. Chegaram aqui um pouco antes das sete. A rampa de skate organizada desse modo, aparentemente. Ela s foi construda faz

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    uns dois anos, no comeo no era nada, mas a turma da regio definiu os turnos. Da meia-noite s nove, s mastigadores; das nove s onze, a gangue local planeja o dia; das onze meia-noite, skates e patins.

    Eles esto portando? Um dos garotos tem uma bicuda, mas bem pequena. No d nem pra roubar

    doce de criana com aquilo... um brinquedo. E um mastigvel cada um. S ela deu de ombros. A droga no estava com eles; achamos no muro, mas deu de ombros eles eram os nicos por perto.

    Fez um gesto para um dos nossos colegas e abriu a sacola que carregava. Sa-quinhos de erva besuntada com resina. O nome de rua feld um cruzamento barra-pesada de Catha edulis batizada com tabaco e cafena e coisas mais fortes, e fios de fibra de vidro ou algo semelhante para provocar abraso nas gengivas e fazer a coisa entrar no sangue. O nome um trocadilho trilngue: onde cultivada, chamada de khat, e o animal chamado cat em ingls em nosso prprio idioma feld. Cheirei e era coisa de muito baixo nvel. Fui at onde os quatro adolescentes tremiam nas jaquetas estufadas.

    Sup, policeman? Disse um garoto numa aproximao de ingls de hip-hop com sotaque bes. Ele levantou a cabea e me encarou olho no olho, mas estava p-lido. Nem ele nem nenhum dos seus companheiros pareciam bem. De onde estavam sentados, no conseguiam ver a morta, mas nem sequer olharam na direo dela.

    Deviam saber que tnhamos achado o feld, e que sabamos que era deles. Podiam no ter dito nada, apenas fugido.

    Sou o inspetor Borl eu disse. Esquadro de Crimes Hediondos.No digo: Sou Tyador. Uma poca difcil de questionar, esta velha demais

    para primeiros nomes, eufemismos e brinquedos e, entretanto, no velha o bastante para sermos oponentes diretos em entrevistas, quando pelo menos as regras eram claras. Qual o seu nome? O garoto hesitou, pensou em usar fosse l qual fosse o apelido que tinha dado a si mesmo, mas acabou no usando.

    Vilyem Barichi. Foi voc que achou ela? Ele fez que sim, e seus amigos fizeram que sim logo

    em seguida. Me conte. A gente vem aqui porque, por causa que... Vilyem esperou, mas eu no falei

    nada a respeito das drogas. Ele olhou para os ps. E a gente viu uma coisa embaixo daquele colcho e puxou.

    Tinha uns... Os amigos dele olharam para cima quando Vilyem hesitou, obviamente supersticiosos.

    Lobos? Perguntei. Olharam uns para os outros. , cara, uma matilha nojenta tava enfiando o focinho por aqui e... A a gente pensou que... Quanto tempo depois que vocs chegaram aqui? Perguntei.

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    Vilyem deu de ombros. Sei l. Duas horas? Mais algum por perto? Vi uns caras mais pra l um pouco antes. Traficantes? Deu de ombros. E teve uma van que entrou na grama e subiu at aqui e saiu depois de um

    tempo. A gente no falou com ningum. A van foi quando? No sei. Ainda estava escuro essa foi uma das garotas. Ok. Vilyem e vocs, caras, ns vamos pegar uma coisa pro caf de vocs, uma

    coisa pra beber, se quiserem fiz um gesto para os guardas. J falamos com os pais? Perguntei.

    Esto a caminho, chefe, menos o dela apontando para uma das garotas. No conseguimos encontrar.

    Ento continue tentando. Leve eles pro Centro agora.Os quatro adolescentes olharam uns para os outros. Isso babaquice, cara disse o garoto que no era Vilyem, sem ter certeza. Ele

    sabia que, de acordo com alguns polticos, deveria se opor s minhas instrues, mas queria ir com meu subordinado. Ch preto, po e papelada, o tdio e as luzes da delegacia, tudo to diferente de puxar aquele colcho pesado e desajeitado, no quintal, no escuro.

    *

    Stepen Shukman e seu assistente, Hamd Hamzinic, haviam chegado. Olhei para o relgio. Shukman me ignorou. Quando ele se curvou para o corpo, soltou um sibilar de asmtico. Confirmou a morte. Fez observaes que Hamzinic anotou.

    Hora? Perguntei. Mais ou menos doze horas disse Shukman. Fez presso sobre um dos bra-

    os da mulher. Ela balanou. Em rigor mortis, e instvel no terreno como estava, provavelmente assumiu a posio da morte deitada em outros contornos. No foi morta aqui eu j tinha ouvido dizer muitas vezes que ele era bom no seu ofcio, mas nunca tinha visto nenhuma evidncia de que ele fosse nada alm de competente.

    Pronto? Ele perguntou a uma das tcnicas da cena. Ela tirou mais duas fo-tos de ngulos diferentes e fez que sim com um aceno de cabea. Shukman rolou a mulher com a ajuda de Hamzinic. Ela parecia lutar com ele em sua imobilidade restrita. Virada, ela era absurda, como algum brincando com um inseto morto, os braos e as pernas tortos, balanando sobre a espinha.

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    Ela olhava para ns por baixo de uma franja que esvoaava com o vento. O rosto estava travado numa tenso assustada: ela estava infinitamente surpresa consigo mesma. Era jovem. Estava com uma maquiagem pesada, e essa maquiagem estava borrada num rosto bastante machucado. Era impossvel dizer sua aparncia, que rosto aqueles que a conheciam veriam se ouvissem seu nome. Poderamos saber melhor depois, quando ela relaxasse na morte. O sangue marcava sua fronte, escura como terra. Flash flash de cmeras.

    Ora, ol, causa da morte disse Shukman para as feridas no peito dela.Na bochecha esquerda, fazendo uma curva debaixo do queixo, uma fenda ver-

    melha comprida. Ela havia sido cortada por metade da extenso do rosto.O ferimento era liso por vrios centmetros, percorrendo a pele com preciso,

    como um pincel. Onde passava embaixo do queixo, sob a protuberncia da boca, ele se partia de modo feio e terminava ou comeava com um buraco fundo aberto no tecido mole atrs do osso. Ela olhava para mim sem me ver.

    Tire umas sem flash tambm falei.Como vrios outros, eu desviava o olhar enquanto Shukman murmurava achava

    licencioso ficar observando. Investigadores tcnicos uniformizados de mise-en-crime (mectecs, no nosso jargo) vasculhavam um crculo que ia se expandindo. Eles re-viraram o lixo e procuraram entre as valetas por onde os veculos haviam passado. Colocaram marcas de referncia e tiraram fotografias.

    Ento est certo Shukman se levantou. Vamos tir-la daqui uns dois homens a levantaram e a colocaram numa maca.

    Jesus Cristo eu falei cubram ela. Algum achou um cobertor no sei onde, e eles retomaram o caminho at o veculo de Shukman.

    Vou cuidar disso esta tarde ele disse. Vejo voc? Balancei a cabea sem me comprometer. Caminhei na direo de Corwi.

    Naustin chamei, quando me posicionava de forma que Corwi estivesse no limite de nossa conversa. Ela levantou a cabea e se aproximou ligeiramente.

    Inspetor disse Naustin. Recapitule.Ele deu um gole no caf e olhou para mim nervoso. Prostituta? Ele disse. Primeiras impresses, inspetor. Nesta rea, espancada,

    nua? E... Ele apontou para o prprio rosto, a maquiagem exagerada dela. Prostituta. Briga com cliente? Sim, mas... Se fossem s os ferimentos do corpo, sabe, a voc olha... Ela talvez

    no vai fazer o que ele quer, sei l. Ele ataca. Mas isto ele tocou o rosto mais uma vez, incomodado. Isto diferente.

    Um psico?Ele deu de ombros.

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    Talvez. Ele corta, mata, joga ela fora. um desgraado arrogante tambm, est cagando e andando se a gente vai encontrar ela.

    Arrogante ou imbecil. Ou arrogante e imbecil. Ento um sdico arrogante e imbecil eu disse. Ele levantou os olhos: talvez. Tudo bem eu disse. Pode ser. Faa a ronda das garotas da regio. Pergunte

    a um policial de uniforme que conhea a rea. Pergunte se tiveram problemas com algum recentemente. Vamos colocar uma foto pra circular, ponha o nome de Fulana Detail usei o nome genrico para mulher desconhecida. Primeiro eu quero que voc interrogue Barichi e seus colegas ali. Seja camarada, Bardo, eles no tinham a obrigao de reportar isso. Estou falando srio. E leve Yaszek com voc Ramira Yaszek era uma excelente interrogadora. Me liga tarde? Quando ele saiu do alcance, eu disse a Corwi: Alguns anos atrs a gente no teria nem metade desse pessoal investigando o assassinato de uma profissional.

    Progredimos muito ela disse. No era muito mais velha do que a morta. Duvido que Naustin esteja gostando de trabalhar num caso de prostituta, mas

    voc vai notar que ele no est reclamando eu disse. Progredimos muito ela disse. E da? Ergui uma sobrancelha. Olhei de relance na direo de Naustin.

    Aguardei. Lembrei-me do trabalho de Corwi no desaparecimento de Shulban, um caso consideravelmente mais bizantino do que havia parecido no incio.

    S que eu acho, sabe, que devamos ter outras possibilidades em mente ela disse.

    Me diga. A maquiagem ela disse. tudo, sabe, tom de terra e marrom. Foi aplicada em

    excesso, mas no ... Ela fez um beicinho de vamp. E voc reparou no cabelo? Eu tinha reparado. No tingido. Suba de carro comigo pela GunterStrsz, d a volta pela arena, em qualquer um dos pontos das garotas. Dois teros so louras, se me lembro bem. E o resto tem cabelo preto ou bem vermelho ou uma merda dessas. E... Ela passou os dedos no ar como se ele fosse feito de cabelo. Est sujo, mas bem melhor do que o meu ela passou a mo pelas prprias pontas quebradas.

    Para muitas das prostitutas de rua de Besel, especialmente em reas como aquela, comida e roupa para os filhos vinham em primeiro lugar; feld ou crack para elas; comida para elas; depois outros produtos; o condicionador aparecia no final da lista. Olhei de relance para o resto dos oficiais, para Naustin se preparando para ir embora.

    Ok eu disse. Voc conhece esta rea? Bem ela disse , ela meio fora de mo, sabe? Isto aqui praticamente nem

    chega a ser Besel. Minha rea Lestov. Eles convocaram alguns de ns quando

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    receberam o chamado. Mas eu passei um tempo aqui h uns dois anos. Conheo o lugar um pouquinho.

    Lestov propriamente dito j era quase um subrbio, mais ou menos seis k de distncia do centro da cidade, e ns estvamos ao sul, sobre a Ponte Yovic, num trecho de terra entre o estreito de Bulkya e, ali perto, a boca onde o rio se juntava ao mar. Tecnicamente uma ilha, mas to prxima e ligada ao continente por runas de indstrias que voc nunca pensaria nela como tal, Kordvenna eram propriedades, armazns, bodegas baratas, tudo interligado por rabiscos infinitos de grafite. Ficava suficientemente longe do corao de Besel para ser fcil de esquecer, ao contrrio da maioria dos cortios que ficava no centro da cidade.

    Quanto tempo voc ficou aqui? Perguntei. Seis meses, o padro. O que era de esperar: roubo de rua, garotos doides

    batendo uns nos outros, drogas, prostituio. Homicdio? Dois ou trs na minha poca. Ligados a drogas. Mas a maioria para um pouco

    antes disso: as gangues so muito espertas pra castigar umas s outras sem trazer o ECH.

    Ento algum fez merda. Foi. Ou ento no d a mnima. Ok eu disse. Quero voc nisso. O que est fazendo no momento? Nada que no possa esperar. Quero que voc seja realocada por um tempo. Ainda tem contatos aqui? Ela

    franziu os lbios. Rastreie se puder, d uma palavrinha com algumas das pessoas da regio, veja quem abre o bico. Quero voc em campo. Escute, d a volta no con-junto... Como mesmo o nome deste lugar?

    Aldeia Pocost ela riu sem achar graa; ergui uma sobrancelha. S podia ser mesmo uma aldeia eu disse. Veja o que consegue. Meu commissar no vai gostar. Eu dou um jeito nele. Bashazin, certo? Voc resolve? Ento estou sendo transferida? No vamos chamar isso de nada, por enquanto. Neste momento s estou

    pedindo pra voc se concentrar nisso. E relatar diretamente pra mim dei a ela os nmeros do meu celular e do meu escritrio. Voc pode me mostrar as delcias de Kordvenna mais tarde. E... Olhei de relance para Naustin, e ela me viu fazer isso. S fique de olho nas coisas.

    Ele provavelmente tem razo. Provavelmente um sdico arrogante, chefe. Provavelmente. Vamos descobrir por que ela mantinha o cabelo to limpo.Havia um ranking de instintos. Ns todos sabamos que, em sua poca de tra-

    balho nas ruas, o commissar Kerevan resolveu diversos casos seguindo pistas que no tinham sentido lgico; e que o inspetor-chefe Marcoberg no conseguia esse

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    tipo de soluo, e que o registro decente que ele tinha era resultado mais de trabalho lento e determinado. Ns jamais chamaramos pequenos insights inexplicveis de palpites, por medo de atrair a ateno do universo. Mas eles aconteciam, e voc sabia que estava na proximidade de um se visse um detetive beijar os dedos e tocar o peito onde um pingente de Warsha, santo padroeiro das inspiraes inexplicveis, estaria, teoricamente, pendurado.

    Os oficiais Shushkil e Briamiv ficaram surpresos, depois na defensiva e finalmen-te de mau humor quando perguntei o que estavam fazendo mexendo no colcho. Coloquei os dois no relatrio. Se tivessem pedido desculpas eu teria deixado passar. Era deprimentemente comum ver botas de polcia se arrastando sobre resduos de sangue, impresses digitais manchadas e estragadas, amostras contaminadas ou perdidas.

    Um pequeno grupo de jornalistas estava reunido nas margens do terreno aberto. Petrus Sei-L-Das-Quantas, Valdir Mohli, um rapaz de nome Rackhaus e mais uns outros.

    Inspetor! Inspetor Borl!E at: Tyador!A maior parte da imprensa sempre havia sido educada, e aceitava minhas

    sugestes do que noticiar. Nos ltimos anos, jornais novos, mais licenciosos e agressivos, haviam sido fundados, inspirados e, em alguns casos, controlados por donos britnicos ou norte-americanos. Isso havia sido inevitvel e, na verdade, as publicaes locais mais antigas iam de respeitveis a chatas. O que preocupava era menos a tendncia ao sensacionalismo, ou o comportamento irritante dos jovens escritores da nova imprensa, do que a tendncia a seguir escrupulosamente um roteiro criado antes que eles nascessem. Rackhaus, que escrevia para um semanrio chamado Rejal!, por exemplo. Com certeza, quando ele me importunava em busca de fatos, sabia que eu no os daria; com certeza, quanto tentava subornar oficiais assistentes, e s vezes conseguia, no precisava dizer, como tendia: O pblico tem o direito de saber!.

    Nem sequer entendi da primeira vez em que ele falou isso. Em Besel, a palavra direito polissmica o suficiente para fugir do significado peremptrio que ele pretendia. Precisei traduzir mentalmente para o ingls, no qual sou razoavelmente fluente, para conseguir compreender a expresso. Sua fidelidade ao clich transcendia a necessidade de comunicao. Talvez ele no fosse ficar contente at que eu bufasse e o chamasse de abutre, de sanguessuga.

    Vocs sabem o que eu vou dizer disse a eles. A fita esticada nos separava. Haver uma coletiva de imprensa esta tarde, no Centro do ECH.

    A que horas? Minha foto estava sendo tirada.

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    Voc ser informado, Petrus.Rackhaus disse algo que ignorei. Ao me virar, vi alm dos limites do conjunto,

    no final da GunterStrsz, entre os prdios de tijolos sujos. Lixo se movia no vento. Podia ser qualquer lugar. Uma senhora de idade caminhava devagar, se afastando de mim num passo vacilante. Ela virou a cabea e olhou para mim. Fiquei incomodado com o movimento, e olhei nos olhos dela. Fiquei me perguntando se ela queria me dizer alguma coisa.

    No meu olhar captei suas roupas, seu jeito de andar, de se segurar e de olhar.Com um grande susto, percebi que ela no estava na GunterStrsz, e que eu no

    a devia ter visto.Imediatamente, e agitado, desviei o olhar, e ela fez o mesmo, com a mesma velo-

    cidade. Levantei a cabea, na direo de uma aeronave em sua descida final. Depois de alguns segundos, quando voltei a olhar para cima, sem reparar na velha que se afastava rapidamente, olhei com cuidado, em vez de para ela em sua rua estrangeira, para as fachadas da prxima e local GunterStrsz, aquela zona depressiva.

  • CAPTULO 2

    Mandei um investigador assistente me deixar a norte de Lestov, perto da ponte. Eu no conhecia bem a rea. J tinha estado na ilha, claro, quando era estudante, e algumas vezes desde ento, mas as minhas caadas eram em outros lugares. Placas mostrando como chegar a destinos na regio estavam afixadas do lado de fora de confeitarias e pequenas oficinas, e fui acompanhando elas at uma parada de bonde, numa pracinha bonita. Aguardei entre um asilo para idosos indicado com o logotipo de uma ampulheta e uma loja de temperos, o ar ao redor com cheiro de canela.

    Quando o bonde chegou, tilintando baixinho, sacolejando nos trilhos, no sentei, embora o carro estivesse meio vazio. Sabia que iramos apanhar passageiros na direo norte at o centro de Besel. Fiquei perto da janela, olhando a cidade, aquelas ruas que me eram estranhas.

    A mulher, sua forma embolada desajeitadamente debaixo daquele colcho velho, farejada por comedores de carnia. Telefonei para Naustin do meu celular.

    O colcho est sendo testado pra vestgios? Deve estar, senhor. Cheque. Se os tcnicos estiverem fazendo isso, tudo bem, mas Briamiv e seu

    companheiro so capazes de foder um ponto no fim de uma frase talvez ela fosse nova nessa vida. Talvez, se a encontrssemos uma semana mais tarde, seu cabelo estivesse louro platinado.

    Essas regies beira do rio so intrincadas, muitos prdios com um ou vrios sculos de idade. O bonde seguia os trilhos por entre caminhos onde Besel, pelo menos metade de tudo por onde passvamos, parecia se inclinar e se curvar sobre ns. Sacolejamos e reduzimos a velocidade, ficamos atrs dos carros locais e dos de outras partes, e chegamos a um cruzamento onde os edifcios bes eram lojas antigas. Aquele comrcio estava indo bem, como tudo na cidade j havia alguns

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    anos, prdios velhos sendo limpos e reformados enquanto as pessoas esvaziavam os apartamentos de suas heranas por um punhado de besmarcos.

    Alguns editorialistas eram otimistas. Enquanto seus lderes rugiam to incan-savelmente quanto jamais haviam feito na Prefeitura, muitos da nova gerao dos partidos trabalhavam juntos para colocar Besel em primeiro lugar. Cada gota de investimento estrangeiro e para a surpresa de todos, havia gotas rendia mais elogios. At mesmo umas duas empresas de alta tecnologia haviam se mudado para c recentemente, embora fosse difcil acreditar que isso fosse em resposta recente autodescrio idiota de Besel como o Esturio do Silcio.

    Saltei ao lado da esttua do Rei Val. O centro estava cheio: desci com um sola-vanco, pedindo desculpas aos cidados e aos turistas locais, desvendo outros com cuidado, at chegar ao concreto blocado do centro do ECH. Dois grupos de turistas estavam sendo pastoreados por guias bes. Parei na subida dos degraus e olhei UropaStrsz l embaixo. Fiz vrias tentativas at conseguir sinal.

    Corwi? Chefe? Voc conhece aquela rea: existe alguma chance de estarmos olhando para

    uma brecha?Segundos de silncio. No parece provvel. Aquela rea , em grande parte, total. E a Aldeia Pocost,

    o conjunto habitacional inteiro, com certeza . Mas um trecho da GunterStrsz... , mas... O cruzamento mais prximo fica a centenas de metros de distncia.

    Eles no poderiam... Teria sido um risco extraordinrio da parte do assassino ou assassinos. Acho que podemos supor ela disse.

    Est bem. Me avise o que conseguir. Vou checar em breve.

    *

    Eu tinha papelada de outros casos que abri, classificando todos em padres de espera, como avies em crculos sobre um aeroporto. Uma mulher espancada at a morte pelo namorado, que at agora havia conseguido se evadir de ns, apesar de rastreadores no seu nome e suas digitais no aeroporto. Styelim era um velho que havia surpreendido um viciado invadindo sua casa e foi atingido uma nica vez, fatalmente, com a chave de boca que ele prprio estava segurando. Esse caso no fechava. Um jovem de nome Avid Avid, que um racista largou sangrando pela cabea depois de dar nele um beijo de calada e escrever Escria bru na parede logo acima. Para isso eu estava me coordenando com um colega da Diviso Especial, Shenvoi, que desde algum tempo antes do assassinato de Avid estava trabalhando disfarado na extrema direita de Besel.

    Ramira Yaszek ligou enquanto eu almoava na minha mesa.

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    Acabei de interrogar aqueles garotos, senhor. E? Voc devia ficar feliz por eles no conhecerem melhor seus direitos, porque

    se conhecessem Naustin estaria enfrentando uma acusao esfreguei os olhos e engoli uma garfada.

    O que foi que ele fez? O amigo de Barichi, Sergev, foi bocudo, ento Naustin lhe deu um soco no

    meio da boca e disse que ele era o principal suspeito soltei um palavro. No foi to difcil assim e, pelo menos, ficou mais fcil pra mim gudcopar ns tnhamos roubado gudcop e badcop do ingls e transformado em verbo. Naustin era daqueles que passavam para interrogao dura muito facilmente. H alguns suspeitos em que a metodologia funciona, que precisam cair da escada durante o interrogatrio, mas um mastigador adolescente mal-humorado no um deles.

    De qualquer maneira, ningum se machucou disse Yaszek. As histrias deles batem. Eles estavam fora, os quatro, naquele bando de rvores. Provavelmente fazendo alguma safadeza. Ficaram ali pelo menos umas duas horas. Em algum ponto durante esse tempo e no pergunte nada mais exato, porque voc s vai conseguir ainda escuro uma das garotas v aquela van subir na grama at a pista de skate. Ela no esquenta muito com isso, porque pessoas sobem ali a toda hora do dia e da noite para fazer negcios, jogar coisas fora, sei l mais o qu. A van d uma volta, passa pela pista de skate e volta. Depois de um tempo, ela acelera.

    Acelera?Rabisquei no meu bloco de notas, tentando puxar com uma mo s os e-mails no

    meu PC. A conexo caiu mais de uma vez. Grandes anexos num sistema inadequado. . Estava com pressa e estragando a suspenso. Foi assim que ela reparou que

    a van estava indo embora. Descrio? Cinza. Ela no entende nada de vans. Mostre umas fotos pra ela, veja se conseguimos identificar o tipo. Vou fazer isso, senhor. Qualquer coisa eu aviso. Depois, pelo menos mais

    dois carros ou vans aparecem por algum motivo qualquer, pra fazer negcios, de acordo com Barichi.

    Isso poderia complicar os rastros dos pneus. Depois de uma hora ou mais de agarramento, a garota menciona a van para

    os outros e eles vo l checar, caso ela tivesse jogado algo fora. Ela diz que s vezes voc consegue aparelhos estreo antigos, sapatos, livros, todo esse tipo de merda que as pessoas jogam fora.

    E encontram ela algumas das minhas mensagens haviam sido respondidas. Havia uma de um dos fotgrafos mectec, eu a abri e comecei a rolar pelas imagens.

    Encontram ela.

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    *

    O commissar Gadlem me chamou. A teatralidade da sua voz suave, a gentileza forada no eram sutis, mas ele sempre me deixava fazer as coisas do meu jeito. Fiquei sentado enquanto ele digitava no teclado e xingava. Eu podia ver o que de-viam ser senhas de bancos de dados enfiadas em tiras de papel na lateral da sua tela.

    E ento? Ele perguntou. O conjunto habitacional? Sim. Onde fica? Sul, subrbio. Mulher, jovem, ferimentos perfurantes. Shukman est com ela. Prostituta? Pode ser. Pode ser ele disse, colocando a mo no ouvido como uma concha e no

    entanto. Posso ouvir isso. Bem, v em frente, siga seu faro. Diga se sentir vontade de compartilhar os porqus desse e no entanto, certo? Quem seu sub?

    Naustin. E chamei uma policial da ronda para ajudar. Corwi. Investigadora assistente nvel um. Conhece a regio.

    a ronda dela? Fiz que sim com a cabea. Perto o bastante. O que mais est aberto? Na minha mesa? Contei a ele. O commissar assentiu. Mesmo com os outros,

    ele me garantiu espao para seguir Fulana Detail.

    *

    Ento voc viu a coisa toda?Eram quase dez da noite, mais de quarenta horas desde que havamos encontrado

    a vtima. Corwi dirigia ela no fazia esforo para disfarar o uniforme, apesar de estarmos num carro sem marcas pelas ruas ao redor da GunterStrsz. Eu no havia estado em casa at bem tarde na noite anterior e, depois de uma manh sozinho naquelas mesmas ruas, l estava eu novamente.

    Havia lugares de cruzamento nas ruas mais largas e uns outros em demais lu-gares, mas assim to longe o grosso da rea era total. Poucos estilos bes antigos, poucos telhados ngremes ou janelas de muitos painis: os prdios eram fbricas e armazns aglomerados. Um punhado de dcadas de idade, a maioria com as vidraas quebradas, funcionando com metade da capacidade, isso os que estavam abertos. Fachadas com tbuas. Mercadinhos com grades metlicas na frente. Fa-chadas decrpitas mais antigas, no estilo bes clssico. Algumas casas colonizadas e transformadas em capelas e casas de drogas: algumas incendiadas e deixadas como uma cpia carbono crua de si mesmas.

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    A rea no estava lotada, mas estava bem longe de vazia. Aqueles do lado de fora pareciam paisagem, como se sempre estivessem ali. Havia menos naquela manh, mas no de modo muito marcante.

    Voc viu Shukman trabalhando no corpo? No eu estava olhando por onde havamos passado, me orientando pelo

    meu mapa. Cheguei l depois que ele havia acabado. Tem nojo? Ela perguntou. No. Bem... Ela sorriu e virou o carro. Voc diria isso, mesmo que tivesse. verdade eu disse, embora no fosse.Ela apontou o que pareciam marcos territoriais. No contei a ela que tinha

    estado em Kordvenna no comeo do dia, sondando aqueles lugares. Corwi no tentou disfarar a roupa de polcia porque, assim, aqueles que nos vissem, que de outro modo poderiam pensar que estvamos ali para prend-los numa armadilha, saberiam que essa no era nossa inteno; e o fato de no estarmos num hemato-ma, como chamvamos os carros de polcia pretos e azuis, dizia que tambm no estvamos ali para assediar ningum. Contratos intrincados!

    A maioria daqueles ao nosso redor estava em Besel, ento ns os vimos. A pobreza deformava as modelagens e cores j sbrias e escuras que caracterizam as roupas bes o que j havia sido chamado de a moda sem moda da cidade. Entre as excees, percebemos algumas quando olhvamos de relance, ento desvimos, mas os bes mais jovens tambm eram mais coloridos, suas roupas mais cheias de figuras, do que seus pais.

    A maioria dos homens e mulheres bes ( preciso dizer isso?) no estava fazendo nada a no ser andar de um lado para o outro, do trabalho do turno da noite para lares, para outros lares ou lojas. Ainda, no entanto, o jeito como observvamos o que passvamos fazia daquilo uma geografia ameaadora, e havia um nmero suficiente de aes furtivas ocorrendo que por pouco no justificava uma terrvel paranoia.

    Hoje cedo encontrei alguns dos locais com quem eu costumava falar disse Corwi. Perguntei se eles tinham ouvido alguma coisa. Ela nos levou por um lugar escuro, onde o equilbrio do cruzamento se deslocava, e permanecemos em silncio at que as lmpadas das ruas ao nosso redor voltaram a ficar altas e com o ngulo dco familiar. Sob aquelas luzes a rua na qual estvamos visveis em uma perspectiva se afastava de ns numa curva mulheres se encostavam nas paredes vendendo sexo. Elas observaram nossa aproximao com desconfiana. No tive muita sorte disse Corwi.

    Ela no tinha conseguido sequer uma fotografia daquela primeira expedio. quela hora, os contatos haviam sido dentro da lei: funcionrios de lojas de bebi-das; padres de igrejinhas locais, os ltimos padres operrios, velhos bravos com a foice e o crucifixo tatuados nos bceps e antebraos, com tradues para o Bes de

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    Gutirrez, Rauschenbusch, Canaan Banana nas prateleiras atrs de si. No deu em nada. Tudo o que Corwi tinha sido capaz de fazer foi perguntar o que eles sabiam sobre os acontecimentos na Aldeia Pocost. Eles haviam ouvido falar do assassinato, mas no sabiam nada.

    Agora ns tnhamos uma foto. Shukman havia dado para mim. Eu a brandi na hora em que samos do carro: literalmente brandi, para que as mulheres vissem que eu trazia algo para elas, que aquele era o propsito da nossa visita, e no fazer prises.

    Corwi conhecia algumas. Elas fumavam e olhavam para ns. Fazia frio, e como todo mundo que as via, eu fiquei olhando para as pernas enroladas nas meias. Ns estvamos prejudicando os negcios delas, claro muitos locais passando olhavam para ns e desviavam o olhar novamente. Vi um hematoma passar devagar por ns devem ter achado que era uma priso fcil , mas o motorista e o passageiro viram o uniforme de Corwi e voltaram a acelerar com uma continncia. Acenei para os faris traseiros deles.

    O que vocs querem? Uma mulher perguntou. As botas dela eram altas e baratas. Mostrei a foto.

    Tinham limpado o rosto da Fulana Detail. Ainda havia marcas as escoriaes eram visveis por baixo da maquiagem. Podiam ter erradicado completamente as feridas da foto, mas o choque que elas ocasionavam era til em interrogatrios. Tinham tirado a foto antes de raspar a cabea dela. Ela no parecia em paz. Parecia impaciente.

    No conheo. No conheo. No vi reconhecimento disfarado s pressas. Elas se juntaram na luz cinzenta do lampio, para consternao dos clientes que pairavam margem da escurido, passavam a foto umas para as outras e, fazendo ou no sons de solidariedade, no conheciam a Fulana.

    O que aconteceu? Dei meu carto mulher que perguntou. Ela era escura, semita, turca ou coisa assim. Seu bes no tinha sotaque.

    Estamos tentando descobrir. A gente precisa se preocupar? Eu...Depois que fiz uma pausa, Corwi disse: Avisaremos se acharmos que precisam, Sayra.Paramos perto de um grupo de rapazes bebendo vinho forte do lado de fora

    de uma sinuca. Corwi aguentou algumas obscenidades deles, depois passou a foto pelo grupo.

    Por que estamos aqui? Minha pergunta foi sussurrada. Eles so gngsteres iniciantes, chefe disse. Veja como reagem mas eles

    no entregaram muito, se sabiam alguma coisa. Devolveram a fotografia e aceitaram meu carto impassveis.

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    Repetimos isso com outros grupos, e depois a cada vez esperamos vrios minu-tos no carro, longe o suficiente para que algum membro preocupado de qualquer um dos grupos pudesse dar uma desculpa e vir nos encontrar, nos contar algum fragmento dissidente que nos levasse por qualquer caminho na direo dos detalhes e da famlia da nossa morta. Ningum fez isso. Dei meu carto pra muita gente e escrevi no meu bloco de notas o nome e a descrio dos poucos que Corwi me disse que importavam.

    Isso praticamente todo mundo que eu conhecia ela disse. Alguns daque-les homens e mulheres tinham reconhecido ela, mas isso no pareceu fazer muita diferena no modo como foi recebida. Quando concordamos que tnhamos termi-nado, passava das duas da manh. A meia-lua estava plida: depois de uma ltima interveno, tnhamos parado, estvamos numa rua que no tinha nem mesmo os seus frequentadores mais tardios.

    Ela ainda uma interrogao Corwi estava surpresa. Vou dar um jeito de colocarem os cartazes pela regio. Srio, chefe? O commissar vai aceitar isso? Falamos baixinho. Acenei com

    as pontas dos dedos para a grade de ferro que cercava um terreno cheio apenas de concreto e mato.

    eu disse. Ele vai aceitar. No tanta coisa assim. Alguns uniformes por algumas horas, e ele no vai... no pra uma... Vamos ter de tirar fotos para uma ID. Merda, eu mesmo coloco daria um jeito

    para que fossem enviadas a cada uma das divises da cidade. Quando achssemos um nome, se a histria de Fulana fosse a que havamos intudo, os poucos recursos que tnhamos iam desaparecer. Estvamos conseguindo a duras penas uma margem de manobra que ia erradicar a si mesma.

    Voc o chefe, chefe. No exatamente, mas sou o chefe disto aqui por um tempinho. Vamos? Ela indicou o carro. Vou andar at o bonde. Srio? Como assim, vai levar horas! Mas eu dispensei ela. Caminhei ao

    som apenas dos meus prprios passos e de um co de rua alucinado, at onde o brilho cinzento dos nossos lampies se apagou e fui iluminado por uma luz laranja estrangeira.

    *

    Shukman ficava mais calado no seu laboratrio do que no mundo exterior. Eu estava ao telefone com Yaszek pedindo o vdeo do interrogatrio dos garotos, no dia anterior, quando Shukman me contatou e me pediu para ir l. Estava frio, claro, e enfumaado com produtos qumicos. Havia tanto madeira escura e manchada

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    quanto ao na imensa sala sem janelas. Havia quadros de avisos nas paredes dos quais cresciam rvores de papis.

    A poeira parecia se acumular nos cantos da sala, na beirada das estaes de trabalho, mas quando passei um dedo numa ranhura de aspecto grudento, ao lado da tampa antiderramamento, o dedo voltou limpo. As manchas eram antigas. Shuk-man estava em p ao lado de uma mesa de dissecao de ao sobre a qual, coberta por um lenol ligeiramente manchado, os contornos do rosto mais serenos, estava a nossa Fulana, encarando enquanto falvamos dela.

    Olhei para Hamzinic. Ele era apenas um pouco mais velho, suspeitei, que a morta. Estava parado respeitosamente ao lado, os braos cruzados. Coincidncia ou no, ele estava ao lado de um quadro onde estava pregado, entre cartes-postais e memorandos, um pequeno shahada bastante decorado. Hamd Hamzinic era o que os assassinos de Avid Avid tambm denominariam bru. Hoje em dia, o termo usado principalmente pelos conservadores, racistas, ou numa provocao reversa pelos prprios alvos do epteto: um dos mais famosos grupos de hip-hop bes se chamava bru W. A.

    Tecnicamente, claro, a palavra era ridiculamente inexata para pelo menos metade daqueles a quem era dirigida. Mas por pelo menos duzentos anos, desde que refu-giados dos Blcs haviam comeado a chegar em busca de santurio, expandindo rapidamente a populao muulmana da cidade, bru, a antiga palavra bes para judeu, foi recrutada para incluir os novos imigrantes e virou um termo coletivo para ambas as populaes. Foi nos guetos anteriormente judaicos de Besel que os muulmanos recm-chegados se instalaram.

    Mesmo antes da chegada dos refugiados, indigentes das duas comunidades minoritrias de Besel haviam se aliado tradicionalmente, com bom humor ou medo, dependendo da poltica da poca. Poucos cidados percebem que nossa tradio de fazer piada sobre a estupidez do filho do meio deriva de um dilogo humorstico de sculos de idade entre o rabino-chefe e o im-chefe de Besel sobre a intemperana da Igreja Ortodoxa local. Eles concordaram que ela no tinha nem a sabedoria da f mais antiga de Abrao nem o vigor da mais nova.

    Uma forma comum de comrcio, durante grande parte da histria de Besel, tinha sido o DplirCaff: uma cafeteria muulmana e uma judaica, alugadas lado a lado, cada qual com seu prprio balco e cozinha, halal e kosher, compartilhando um nico nome, placa e conjunto de mesas, o muro divisrio removido. Grupos mistos vinham, cumprimentavam os dois proprietrios, sentavam-se juntos, separando-se em duas filas comunitrias apenas pelo tempo suficiente para pedir a comida permitida do lado apropriado ou com ostentao de cada uma e ambas, no caso dos livres-pensadores. Se o DplirCaff era um estabelecimento ou dois, dependia de quem fazia a pergunta: para o coletor do imposto sobre a propriedade, era sempre um.

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    O gueto de Besel no eram mais fronteiras polticas formais, s arquitetura, casas velhas caindo aos pedaos, com o novo chique gentrificado, aglomeradas entre alterespaos estrangeiros muito diferentes. Mesmo assim, aquela era apenas a cidade, no era uma alegoria, e Hamd Hamzinic teve de enfrentar coisas desagradveis em seus estudos. Comecei a fazer uma ideia um pouco melhor de Shukman: um ho-mem com a idade e o temperamento dele, eu estava talvez surpreso que Hamzinic se sentisse vontade para exibir sua declarao de f.

    Shukman no descobriu a Fulana. Ela ficou deitada entre ns. Eles haviam feito alguma coisa, de modo que ela estava como que em repouso.

    Te mandei o relatrio por e-mail disse Shukman. Mulher de vinte e quatro, vinte e cinco anos. Sade geral decente, tirando o fato de estar morta. Hora da morte, mais ou menos meia-noite da noite anterior a esta. Aproximadamente, claro. Causa da morte, ferimentos perfurantes no peito. Total de quatro, um dos quais perfurou o corao. Prego, estilete ou coisa assim, no lmina. Ela tambm tem um ferimento feio na cabea, e muitas escoriaes estranhas levantei a cabea. Algumas sob o cabelo. Ela levou uma pancada na lateral da cabea ele girou o brao numa mmica em cmera lenta. Atingiu o lado esquerdo do crnio. Eu diria que isso a nocau-teou, ou pelo menos a derrubou no cho e deixou grogue, e ento os ferimentos perfurantes foram o golpe de misericrdia.

    Com o que ela foi atingida? Na cabea? Uma coisa pesada e rombuda. Pode ter sido um punho, se fosse grande, su-

    ponho, mas duvido seriamente ele puxou o canto do lenol, descobrindo como um expert a lateral da cabea dela. A pele tinha a cor feia de uma escoriao. E voil ele fez um gesto para que eu chegasse mais perto do couro cabeludo dela, igual ao de um skinhead.

    Cheguei perto do cheiro de conservante. Entre os pelinhos morenos, havia marcas minsculas de perfuraes j com casquinha.

    Isto aqui o qu? No sei ele disse. No so profundas. Alguma coisa em que ela caiu, eu

    acho as escoriaes eram do tamanho de pontas de lpis enfiadas na pele. Cobriam uma rea que mal chegava ao tamanho da minha mo, rompendo de forma irregular a superfcie. Em alguns lugares, faziam fileiras de alguns milmetros de compri-mento, mais profundas no centro do que nas extremidades, onde desapareciam.

    Sinais de intercurso? No recente. Se ela profissional, talvez tenha sido a recusa de fazer algo que

    a meteu nessa confuso concordei com a cabea. Ele esperou. Lavamos o corpo agora h pouco acabou dizendo. Mas ela estava coberta de terra, poeira, manchas de grama, tudo que se poderia esperar do lugar onde ela estava cada. E ferrugem.

    Ferrugem?

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    Por toda parte. Montes de esfoladuras, cortes, raspes, a maioria post-mortem, e muita ferrugem.

    Fiz que sim mais uma vez. Franzi a testa. Feridas defensivas? No. Vieram de modo rpido e inesperado, ou ela estava de costas. H um

    bocado de raspes e no sei mais o que no corpo Shukman apontou para marcas de cortes na pele dela. Consistentes com um corpo arrastado. O desgaste provo-cado pelo assassinato.

    Hamzinic abriu a boca, mas voltou a fech-la. Olhei-o de relance. Ele balanou tristemente a cabea: absolutamente nada.

  • Sobre A cidade & a cidadeRonaldo Bressane

    Olhe sua volta: existe outra cidade dentro da sua cidade, mas voc no est vendo. Fronteiras so mais leves do que o ar; h cidados invisveis a voc voc mesmo invisvel a determinadas pessoas. O que uma cidade, o que uma nao, at que ponto um lugar compe a sua identidade? Essas so algumas questes com que se depara o detetive Borl ao investigar o estranho assassinato de uma jovem na cidade de Beszl que tambm pode ser a cidade de Ul Qoma. Essas so tambm algumas premissas da literatura provocadora de China Miville. O maior nome ingls da fico-cientfica desde J. G. Ballard tem sua obra afinal apresentada no Brasil na excelente traduo do especialista Fbio Fernandes.

    Miville, destacado ativista de esquerda com formao na liberal London School of Economics, o nome mais quente do new weird subgnero da literatura de fantasia que atualiza temas da fico cientfica, do horror e da literatura especulativa em linguagem realista e registro urbano. Neste romance, Miville tal como o mestre Philip K. Dick havia feito em Androides sonham com ovelhas eltricas? combina a fico-cientfica com outro gnero: o policial. semelhana do autor de O homem do castelo alto, Miville nos leva sorrateiramente a desconfiar da substncia da realidade ao redor, jogando, em uma perspectiva paranoica, com a poltica e com a metafsica.

    A cidade & a cidade habita um mundo estranhamente familiar: uma cidade ps-sovitica com um nebuloso passado autoritrio. Ao brincar com o paradoxo de Schrdinger (aquele em que o gato est e no est morto ao mesmo tempo hum, muito complexo pra explicar nesta orelha) e distorcer a fsica afirmando que dois objetos podem ocupar o mesmo espao, Miville prope que a cidade de Beszl exista no mesmo espao que a cidade de Ul Qoma. Administrados por uma monoltica autoridade chamada Brecha, os cidados aprenderam a no ver os vizinhos da outra cidade sob pena de serem multados ou presos: as cidades tm at aeroportos, cdigos telefnicos, links de internet, lnguas e alfabetos diferentes.

    O inspetor Borl, protagonista e narrador, um frustrado farejador da verdade a qual, em termos kafkianos, parece sempre escapar dele por meios burocrticos e regras inescapavelmente sinistras. Borl cr que o assassinato da jovem tenha a ver com uma passagem ilegal entre as duas cidades, e que o crime seja acobertado pela Brecha. Aos poucos o detetive intui: a jovem estaria envolvida com enigm-ticas escavaes arqueolgicas que levariam descoberta de uma terceira cidade. Outras mortes tenebrosas surgiro em seu caminho com a Brecha sempre por trs, colocando a vida de Borl em risco. Ou no: lembrando o desfecho do conto O jardim de caminhos que se bifurcam, de Jorge Luis Borges autor a quem, sem favor, Miville tem sido comparado (assim como ocorreu com K. Dick) , os fatos podem acontecer e no acontecer simultaneamente no extraordinrio final de A cidade & a cidade. Agora d outra olhada sua volta: voc est onde de fato acha que est?

  • Sobre A cidade & a cidade

    Quando o corpo de uma mulher assassinada encontrado na decadente cidade de Beszel, em algum lugar nos confins da Europa, parece apenas mais um caso trivial para o inspetor Tyador Borl, do Esquadro de Crimes Hediondos. medida que avana a investigao, as evidncias comeam a apontar para conspiraes muito mais estranhas e mortais do que ele poderia supor, levando-o nica metrpole na Terra to estranha quanto a sua: Ul Qoma. As duas cidades ocupam o mesmo espao geogrfico mas constituem naes diferentes, monitoradas por um poder secreto conhecido como Brecha. Em ambas as cidades, ignorar a separao, mesmo sem querer, considerado um delito imperdovel, mais grave do que cometer um assassinato.

    Este romance poderia ser classificado como fico cientfica, mas vai muito alm. um livro sobre a alienao, o isolamento e a inabilidade de ver o mundo

    que habitamos.Walter Mosley

    Uma ideia estranha e engenhosa, to inteligente e convincentemente elabo-rada que resulta num romance excepcional: audacioso, original e assombroso.

    Daily Mail

    Um assassinato misterioso que se passa em uma paisagem urbana Blade Runner. Imagine Um conto de duas cidades escrito por Stanley Kubrick e ter

    uma ideia do que vai aqui.Shortlist

    Sutil, quase casualmente, Miville constri uma metfora para a vida moder-na e prova uma vez mais que to inteligente quanto original.

    Michael Moorcock, Guardian

    Kafka e Orwell costumam ser facilmente evocados para qualificar qualquer coisa

    que fuja um pouco do ordinrio, mas neste caso so comparaes certeiras.The Times

    A premissa espirituosamente elaborada, estendendo-se a cada detalhe da vida.

    A inventividade e preciso de Miville so extraordinrias.Independent

  • Sobre o autor

    CHINA MIVILLE, nascido na Inglaterra em 1972, formado em antropologia social pela Universidade de Cambridge, com mestrado e doutorado em filosofia do direito internacional pela London School of Economics. Acadmico marxista e militante de esquerda, professor de escrita criativa na Warwick University, foi um dos fundadores do Left Unity e membro da International Socialist Organization. Autor premiado, foi duplamente contemplado pelo British Fantasy Award, recebeu trs vezes o Arthur C. Clarke Award e, justamente por A cidade & a cidade, ganhou o Hugo Award, o prmio mais importante dedicado aos livros de fico cientfica.

  • notA do trAdUtor

    Mais difcil que traduzir um bom texto traduzir um bom texto ruim mas de propsito. A cidade & a cidade um exemplo notvel desse segundo caso.

    Narrado em primeira pessoa pelo detetive Tyador Borl, habitante de um fic-tcio pas do Leste Europeu, o livro uma investigao em mais de um sentido: o primeiro, mais bvio, sobre um crime (calma, sem spoilers) e o segundo, mais sutil, mas no menos interessante, sobre os limites e as possibilidades de um idioma.

    China Miville escreve como se Borl falasse em seu idioma, o bes, traduzido para o ingls por ele prprio de maneira inculta e um pouco tosca. Esse recurso faz com que o texto seja no uma colcha de retalhos (porque este seria um clich, e estamos tratando de um autor que tem como principal caracterstica a demolio de clichs), mas uma estrada com uma estranha mistura de placas de trnsito, umas inteligveis, outras dbias, outras ainda to estranhas quanto se tivessem sado de um universo paralelo.

    Um exemplo: no captulo 3, Borl se refere a um homem magro no comeo da idade mdia (p. 32). O correto seria dizer que ele era um middle-aged man, mas o detetive diz: a thin man in early middle age. Miville provoca, assim, estranhamento adicional para o leitor. Outro exemplo o uso de substantivos como verbos, como staticking; em vez de dizer que a linha telefnica est com esttica, ele diz que a linha est estaticando. No que o protagonista seja ignorante, pelo contrrio: o autor esticando os limites de seu mundo.

    Ao tradutor, coube respeitar a inteno do autor e dar o melhor de si para que uma impresso semelhante pudesse ser transmitida aos leitores brasileiros.

    Fbio FernandesSo Paulo, novembro de 2014

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