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O LUGAR DA ARGUMENTAO NA ANLISE DO DISCURSO: ABORDAGENS E DESAFIOS CONTEMPORNEOS

Ruth Amossy*

RESUMO: Com orientao ou simplesmente dimenso argumentativa, a argumentao ser sempre parte integrante do discurso em situao. Ela deve por isso ser levada em conta pela AD, a quem compete tanto explorar sua inscrio na materialidade linguageira quanto sua ancoragem social e institucional. A abordagem aqui proposta exemplificada por intermdio da anlise de uma carta de Alfred Dreyfus. Retomando a Retrica Antiga, a qual submete aos desenvolvimentos das cincias da linguagem, a argumentao no discurso ope-se argumentao na lngua que nega as virtudes do logos. Frente s posies que a este negam formalmente qualquer poder, faz-se importante ressaltar o compartilhamento da fala que est na base tanto das relaes humanas como da responsabilidade cidad. ALAVRAS-CHA CHAVE: PALAVRAS-CHAVE: Anlise do discurso; argumentao; finalidade e dimenso argumentativas; argumentao lingstica vs retrica; logos; situao de discurso.

INTRODUOA argumentao inerente ao funcionamento do discurso

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a medida em que a anlise do discurso (AD) entende descrever o funcionamento do discurso em situao, ela no pode evitar sua dimenso argumentativa. Sem dvida, o ato de tomar a palavra nem sempre se destina a conduzir o pblico a aprovar uma tese.1 Da conversa cotidiana aos textosUniversidade de Tel-Aviv, Israel. Traduo de Adriana Zavaglia. Definio de argumentao proposta pela nova retrica de C. Perelman e L. OlbrechtsTyteca (1958).

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literrios, muitos so os discursos que no tm orientao argumentativa. Entretanto, a fala que no tem a inteno de convencer acaba por exercer alguma influncia, orientando maneiras de ver e de pensar. De fato, o exerccio da fala implica normalmente vrios participantes os quais exercem permanentemente uns sobre os outros uma rede de influncias mtuas: falar trocar, e mudar trocando2 (Kerbrat-Orecchioni, 1990, p. 54-5). Nos termos de Charaudeau, todo ato de linguagem emana de um sujeito que gera sua relao com o outro (princpio de alteridade) de maneira a influenci-lo (princpio de influncia) e, ao mesmo tempo, a gerar uma relao na qual o interlocutor tem seu prprio projeto de influncia (princpio de regulao) (Charaudeau, 2005, p. 12). Percebe-se, portanto, que, por sua natureza dialgica, o discurso comporta como qualidade intrnseca a capacidade de agir sobre o outro, de influenci-lo. Sem dvida, preciso manter a distino entre a estratgia de persuaso programada e a tendncia de todo discurso de orientar as maneiras de ver do(s) interlocutor(es). No primeiro caso, o discurso manifesta uma orientao argumentativa: o discurso eleitoral ou a publicidade constituem exemplos flagrantes disso. No segundo caso, ele comporta simplesmente uma dimenso argumentativa (Amossy, 2006 [2000], 2005): assim acontece com o artigo informativo que preza por sua neutralidade, a conversa coloquial ou o texto ficcional. Mas a argumentao, apresente ela ou no uma vontade manifesta de conduzir aprovao, sempre parte integrante do discurso em situao. Compete tambm ao analista descrever suas modalidades da mesma maneira que outros processos linguageiros. De todo modo, tal a posio que eu gostaria de defender aqui ao articular a argumentao (ou a retrica concebida como a

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N.T.: H, nessa citao, um rico jogo de palavras em francs, sobre changer (trocar) e changer (mudar, trocar) que vale a pena transcrever: parler, cest changer, et cest changer en changeant.

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arte de persuadir)3 AD da forma como hoje praticada na Frana na esteira dos trabalhos de Patrick Charaudeau e Dominique Maingueneau. Este texto tratar, portanto, no somente do estudo do uso real da linguagem por locutores reais em situaes reais (definio j conhecida de Teun van Dijk em seu Handbook of Discourse Analysis, 1985, p. 2), mas tambm da abordagem que relaciona a fala a um lugar social e a instncias institucionais, recusando assim a diviso texto/ contexto.

1. ARGUMENTAO NO DISCURSO VS ARGUMENTAO NA LNGUAO lugar da retrica e seus desafios

preciso distinguir esta abordagem essencialmente discursiva da argumentao na lngua iniciada pelos trabalhos de Anscombre & Ducrot. Foi efetiva e principalmente atravs deles que os estudos da argumentao penetraram nas cincias da linguagem, nas quais a abordagem pragmtico-semntica parece continuar a exercer sua autoridade. Logo, ela define-se contra a abordagem retrica que permanece no centro da argumentao no discurso, de modo que se faz importante insistir, logo de incio, nos desafios contemporneos do debate. De fato, Ducrot, ao denunciar o otimismo retrico de Aristteles e de seus inmeros sucessores (2004, p. 32), rejeita o logos definido como fala e razo. Ele ope-se, assim, radicalmente a Perelman & Obrechts-Tyteca (1958) cuja nova retrica reconhece nos sujeitos falantes a capacidade de discutir problemas comuns e de influenciar-se mutuamente. O que est em pauta para eles a possibilidade de substituir a violncia bruta por uma partilha da3

Na tradio da nova retrica de Perelman, no estabeleo uma distino entre retrica e argumentao (o ttulo de sua obra fundadora de 1958 escrita com L. OlbrechtsTyteca Trait de largumentation. La nouvelle rhtorique). A retrica no sentido aristotlico de arte de persuadir aqui sinnimo de argumentao. Para uma justificativa mais detalhada dessa escolha cf. Amossy, 2006.

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fala que funda tanto a democracia quanto as relaes sociais. No ser tampouco intil retomar a diferena entre a argumentao retrica e a argumentao lingstica (para utilizar a terminologia de Ducrot): a diferenciao permitir no somente estabelecer as fronteiras entre as disciplinas no espao das cincias da linguagem como tambm colocar em evidncia posies divergentes em suas conseqncias sociais e polticas. Na proposta de Anscombre & Ducrot, a noo de argumentao no tomada no sentido amplo de arte de persuadir, mas no sentido especfico de encadeamento de proposies que conduz a uma concluso.4 Nessa acepo, a argumentao constitui um fato de lngua e no de discurso: ela intervm na construo do sentido do enunciado que comporta como parte integrante, constitutiva, a forma de influncia chamada de fora argumentativa. Significar, para um enunciado, orientar (Anscombre & Ducrot, 1988, Prefcio). Em outras palavras: A utilizao de um enunciado tem uma finalidade no mnimo to essencial quanto informar sobre a realizao de suas condies de verdade, e essa finalidade a de orientar o destinatrio na direo de certas concluses, desviando-o das outras (ibid., p. 113). Assim definida, a argumentao na lngua pede por um estudo dos conectores e dos topo (definidos como os elementos que garantem encadeamentos discursivos [Anscombre, 1995, p. 49-50]) por intermdio dos quais opera-se a relao conclusiva entre E1 e E2. Ela acontece mais freqentemente em sries de enunciados breves construdos ad hoc: cet htel est cher, n'y allez pas (esse hotel caro, no v l); il fait chaud, allons nous promener (est calor, vamos dar uma volta) etc. primeira vista, compreende-se que Anscombre e Ducrot tenham tido o intuito de integrar, at mesmo nela dissolv-la, a retrica lingstica. De fato, eles consideram a retrica como

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Um locutor faz uma argumentao quando ele apresenta um e nunciado E1 (ou um conjunto de enunciados) destinado a introduzir um outro (ou um conjunto de outros enunciados) E2 (Anscombre & Ducrot, 1988, p. 8).

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extralingstica e, como tal, eles se recusam a confiar-lhe o estudo das possibilidades de encadeamento argumentativo (ibid., p. 9). Essa excluso da perspectiva retrica radicalizou-se nos recentes trabalhos de Ducrot, realizados com Marion Carel (2004), nos quais ele traa uma linha divisria bem clara entre o que ele chama de argumentao retrica e argumentao lingstica. Contrariamente s idias admitidas, esta ltima no constituiria um meio direto de fazer algum acreditar em alguma coisa: os encadeamentos conclusivos do discurso, diz Ducrot, no constituem, como tais, meios diretos de persuaso, nem mesmo meios parciais (2004, p. 20). A razo pela qual os encadeamentos argumentativos ligados explcita ou implicitamente por donc (logo, portanto) no concernem ao raciocnio que visa a encadear a aprovao decorre, segundo Ducrot, do fato que em A donc C (A logo/portanto C) a concluso C sempre est includa em A no nvel semntico, portanto puramente lingstico. Assim, em Tu conduis trop vite. Tu vas avoir un accident (Voc dirige rpido demais. Voc vai sofrer um acidente), a conseqncia do excesso de velocidade j est includa no trop (demais, demasiado) de tu conduis trop vite. O mesmo ocorre em Pierre a peu travaill (Pierre estudou pouco) e Pierre a un peu travaill (Pierre estudou um pouco), que relatam o mesmo tempo indefinido consagrado ao estudo, em que as concluses il ne russira pas lexamen (ele no vai passar na prova) ou, ao contrrio, il russira lexamen (ele vai passar na prova) so dadas de antemo no sentido de peu (pouco) vs un peu (um pouco). Em outras palavras, H encadeamentos argumentativos na prpria significao das palavras e dos enunciados de que feito o discurso (ibid., p. 28). Tudo interpretado de antemo, na lngua, e o raciocnio conclusivo, suscetvel de convencer ao fazer partilhar um raciocnio, apenas uma iluso/um engodo. Sem entrar aqui antecipadamente nos detalhes de uma posio que manifesta uma desconfiana radical frente ao discurso (ibid., p. 32), percebe-se que Ducrot nega a existncia no discurso de uma argumentao racional, que seria capaz de provar, de justificar (ibid., p. 21). Ele125

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desconstri, dessa maneira, a prpria noo de logos, que designa ao mesmo tempo a fala e a razo. Uma diluio da retrica na argumentao lingstica desse porte acarreta muitas conseqncias. Ela prope efetivamente que as relaes humanas regidas pelas trocas verbais escapam da racionalidade, e que a ambio que consiste em gerar um Estado pela interao e pela negociao verbal em favor de uma razo compartilhada a priori ilusria. questo de saber por que h argumentao lingstica no discurso de orientao persuasiva, Ducrot responde em termos que rejeitam o logos em proveito do ethos. O uso dos donc contribuiria pura e simplesmente para projetar uma imagem favorvel do orador, apresentando-o como um homem aberto ao debate que no impe de modo rude seu ponto de vista. Conseqentemente, o logos aristotlico como forma atenuada da racionalidade que ocupa tradicionalmente o centro do dispositivo retrico aparece como um engodo. Os encadeamentos argumentativos do tipo donc concernem tanto ao coup de force (imposies pelo poder) quanto s mais rudes afirmaes, escreve Ducrot. Sua eficcia persuasiva, que no , alis, em nada negligencivel, concerne ao efeito que eles tm sobre o ethos. (ibid., p. 32). Essa subordinao do logos ao ethos, estreitamente ligada a uma desconfiana radical na fora persuasiva do logos, identifica-se por caminhos diferentes com as posies da sociologia dos campos. Curiosamente, o defensor da autonomia do lingstico concorda aqui com o socilogo que recusa ao verbal qualquer autonomia: ambos denunciam a fatuidade de uma fora argumentativa sustentada pelo logos e suscetvel de agir sobre outrem. Em sua discusso com a filosofia da linguagem principalmente representada por Austin, Bourdieu aponta o erro que consiste em buscar a eficcia da fala no prprio discurso. Segundo ele, a autoridade sobrevm linguagem de fora pela razo que esta necessariamente tomada em trocas simblicas (e no em simples trocas comunicativas) em que sua fora provm de uma adequao entre as propriedades do discurso, do locutor e da instituio que o autoriza a pronunciar o126

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discurso. Em suma, o poder da fala provm das condies institucionais de sua produo e de sua recepo (Bourdieu, 1982, p. 111). A questo, portanto, no que diz respeito ao impacto de um dado discurso, no de ver por quais processos linguageiros ele consegue agir sobre o auditrio; o que mais importa saber qual a situao do orador e a legitimidade institucional conferida sua fala. Nessa perspectiva, o ethos que se v uma vez mais privilegiado custa do logos. A imagem produzida pelo discurso deve estar em conformidade com aquela que decorre da posio do locutor, e a posio prvia da qual ele tira a sua legitimidade, e no a fora do raciocnio, que confere linguagem o seu poder. Disso decorre, portanto, que para Bourdieu, como tambm para Ducrot, o logos apenas uma iluso. Sem dvida, a crena em sua autonomia, at mesmo em sua existncia, cumpre para os dois um papel no neglicencivel: ela permite assegurar o desconhecimento necessrio ao bom funcionamento da troca. Mas aqui o essencial que as condies que tornam possvel o poder da fala so puramente institucionais aos olhos do socilogo, do mesmo modo que so puramente lingsticas para o semanticista. Elas no se situam no discurso, mas na lngua ou na instituio como sistemas. A gesto das relaes humanas em favor de um uso racional da linguagem revela-se ilusria tanto num quanto noutro plano terico. Uma posio completamente diferente adotada pela teoria da argumentao no discurso, tal como a expus numa obra publicada com esse mesmo nome (Amossy 2000, 2006). Invocando a retrica no sentido de arte de persuadir tal como ela se desenvolveu de Aristteles a Perelman, ela concede um lugar central ao logos em sua relao com o ethos e com o pathos. Ela mantm, portanto, no centro do dispositivo comunicacional a fora conferida fala pelo raciocnio e a faculdade de exercer uma influncia fazendo com que ele seja compartilhado. Desse modo, ela baseia-se no estudo dos tpicos, dos esquemas argumentativos e dos tipos de argumentos de que o discurso faz uso para justificar um ponto de vista e tornlo aceitvel aos olhos do interlocutor. Extraindo a estrutura127

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argumentativa do discurso, e os procedimentos aos quais ele recorre, ela pretende mostrar que a fora da fala no puramente intrnseca lngua (na qual as concluses seriam sempre dadas de antemo), nem puramente exterior linguagem, porque vinda do poder proveniente da legitimidade institucional. Nesse sentido, o retorno retrica preconizado por Perelman & Olbrechts-Tyteca em 1958 no simplesmente a marca de um otimismo: uma reivindicao tica que se faz atravs da reafirmao da funo social das trocas verbais como substitutas da violncia (de qualquer ordem que seja), e a lembrana da responsabilidade cidad que, na ausncia de qualquer possibilidade de influncia mtua pelo logos, revela-se esvaziada de sua substncia. O que no implica evidentemente um racionalismo simplista: a argumentao analisada em situaes de discurso variadas em que o logos objeto de tratamentos complexos. Ela depende das possibilidades da lngua e das condies sociais e institucionais que determinam parcialmente o sujeito, fora dos quais a orientao ou a dimenso argumentativa do discurso no pode ser apreendida com discernimento.

2. A INTEGRAO DA RETRICA AD

preciso insistir aqui sobre dois pontos que caracterizam a argumentao no discurso como um ramo da anlise do discurso. Trata-se nesse caso (1) da inscrio da argumentao na materialidade linguageira em que ela participa do funcionamento global do discurso, e (2) da necessidade de examinar os funcionamentos argumentativos no entrecruzamento do lingstico e do social, apreendendo o discurso como intricao de um texto e de um lugar social de maneira que o objeto da AD no seja nem a organizao textual nem a situao de comunicao, mas aquilo que os une atravs de um dispositivo de enunciao especfico. Esse dispositivo concerne ao mesmo tempo ao verbal e ao institucional (definio de Maingueneau no Dictionnaire dAD, especificada em Marges linguistiques, 2005). o mesmo que dizer que, mesmo afirmando128

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sua fidelidade grande tradio retrica, a argumentao no discurso pretende, entretanto, ancorar o estudo em processos discursivos especficos levando em considerao os avanos das cincias da linguagem. Ao mesmo tempo, ela os associa indissoluvelmente s instncias socioinstitucionais nas quais se d a fala. Nesse sentido, so os fundamentos fornecidos pela AD que permitem conciliar o estudo da argumentao retrica aos funcionamentos discursivos, examinando-os numa situao de discurso, ou seja, numa situao de comunicao preestabelecida, num espao sociocultural e num campo (no sentido de Bourdieu). da natureza comunicacional do discurso que importa partir. No seria necessrio insistir muito nisso: a argumentao retrica, contrariamente argumentao lingstica de Ducrot, mas tambm contrariamente a algumas teorias da argumentao fundamentadas no estudo dos raciocnios e dos argumentos tomados a partir de sua prpria natureza, deve ser apreendida na perspectiva das trocas verbais. de Chaim Perelman o mrito de ter colocado em relevo o papel central do pblico. O orador (que corresponde ao locutor das cincias da linguagem) visa a conseguir a aprovao de um pblico (ou interlocutor) do qual ele deve levar em conta as premissas; ele deve apostar em seu saber enciclopdico, suas crenas e seus valores compartilhados a fim de transferir s concluses o acordo concedido s premissas. , portanto, em funo do pblico que o locutor desenvolve suas estratgias argumentativas. Do pblico ou pelo menos da imagem que faz dele: o pblico sempre, insiste Perelman, uma construo do orador. a idia que ele faz de suas premissas, de suas crenas, de suas opinies que orienta o discurso, seja ele intencional ou no. Encontram-se a os postulados de base da lingstica da enunciao para a qual, na qualidade de linguagem colocada em ao, e necessariamente entre parceiros (Benveniste, 1966, p. 258), o discurso , por definio, uma troca. Colocando a noo de plano figurativo, Benveniste observa que a enunciao postula um interlocutor, um parceiro com quem o locutor estabelece necessa129

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riamente uma relao discursiva (Benveniste, 1974, p. 85). Parece, a partir da, que possvel ancorar a anlise argumentativa numa anlise da enunciao preocupada em localizar as marcas linguageiras do locutor e do interlocutor no discurso. Alm dos marcadores, tais como os diferentes indcios de alocuo designaes nominais, pronomes pessoais , pode-se encontrar a figura do interlocutor atravs do conhecimento, das competncias, dos valores e das crenas que lhe so atribudas. Do mesmo modo, o locutor inscreve sua subjetividade em seu discurso atravs de diferentes marcas, dentre as quais so particularmente significativas as axiolgicas e as afetivas (Kerbrat, 1980). Atravs mas tambm alm dessas marcas, a imagem que o locutor constri em seu discurso pode ser reconstruda combinando as informaes fornecidas pelo enunciado e aquela que complementa a enunciao (a entonao, o nvel de lngua, o estilo etc.). Essa reconstruo do dispositivo de enunciao e do jogo de imagens que a se estabelece capital para situar a argumentao no plano discursivo em que ela emerge e no qual ela adquire sentido. Ela permite ver as modalidades segundo as quais a argumentao explcita ou implcita depende ao mesmo tempo do pblico cuja imagem projetada no discurso e do locutor cujo ethos se constri tambm nas trocas verbais. Seguindo a definio de Aristteles, reservamos aqui a noo de ethos para a imagem de si mesmo que o locutor constri em seu discurso. preciso, no entanto, considerar que o plano comunicacional assim fixado inseparvel de um dispositivo mais complexo com o qual ele se articula. Trata-se da distribuio dos papis fornecida pela cena genrica da forma como a define Dominique Maingueneau (1998): cada gnero dispe de roteiros prvios nos quais o discurso novo se desenrola. Assim, a alocuo televisiva presidencial, o debate parlamentar, a reportagem jornalstica, o discurso jurdico de defesa, a aula magistral, a carta ntima determinam de antemo, ao menos parcialmente, as regras da troca, as posies que ocupam os parceiros e o tipo de imagem de si mesmo e do outro que podem ser a legitimadas. Esses gneros de discurso, dependendo de um espao130

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social e institucional cuja evoluo histrica deve ser levada em considerao, inscrevem-se em campos que possuem suas regras prprias, e nos quais o locutor se posiciona em funo de sua prpria posio e das possibilidades oferecidas pelo estado do campo. Assim, o je (eu) marcado no discurso frente a um vous (o senhor/a senhora), e que constri uma imagem de si mesmo em funo da representao que faz do outro, est ligado a um papel (o presidente, o reprter, o esposo) que ele assume de forma diferente em funo da posio que ele pode ocupar num campo poltico, jornalstico, familiar e privado, varivel. Sgolne Royal, candidata presidncia da Frana pelo Partido Socialista francs nas eleies de 2007, ao tomar a palavra diante de seus eleitores para expor seu programa de governo, coloca um je de presidencivel cujas possibilidades so moduladas pelo gnero de discurso no qual ela est engajada, o estado do campo poltico (e principalmente a necessidade de comparar-se com Nicolas Sarkozy, candidato rival de Royal que venceu as eleies de 2007 para presidente pelo partido Unio para um Movimento Popular, e de se posicionar em seu prprio partido), a posio institucional que lhe confere sua legitimidade, sua qualidade de mulher e o que o gender implica no espao eleitoral francs etc. nessa perspectiva que a troca comunicacional assume sua dimenso de troca simblica, e que o discursivo e com ele o argumentativo mostram-se indissociveis do socioinstitucional. No espao de troca assim concebido manifestam-se as estratgias destinadas a conquistar a convico, ou mais simplesmente as modalidades da fala que tenta orientar, deliberada ou espontaneamente, maneiras de pensar. Os tratados de argumentao, dentre os quais o de Perelman e de Olbrechts-Tyteca, descrevem os princpios sobre os quais se fundamenta a argumentao. Eles utilizam, assim, os tpicos como argumentos, ou um estoque de lugares-comuns que subentendem o raciocnio, e sobre os quais o locutor pode apoiar-se: por exemplo, o lugar da quantidade, ou do mais se ele fez ou pode fazer o mximo, ele tambm fez ou pode fazer o mnimo (se ele bateu em seu prprio pai, ele tambm pode bater131

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em seu vizinho). Eles descrevem as grandes categorias de raciocnio que se desenvolvem apoiadas nesses tpicos: o silogismo e o entimema, a analogia, ou propem como Toulmin (1993 [1958]) um prottipo de esquema argumentativo: dados (D) so antecipados para sustentar uma concluso (C), passagem que autorizada por garantias (G) que repousam sobre um fundamento (F backing, B), e ao qual podem ser aplicadas restries (R). Harry est n aux Bermudes (D) (Harry nasceu nas Bermudas), portanto ele sujeito britnico (C), dado que aqueles que nascem nas Bermudas so sujeitos britnicos (G) salvo se seus pais no o fossem (R). Eles estabelecem tambm uma taxionomia dos diferentes argumentos, tentando extrair tipos de argumentos no seio de categorizaes que variam amplamente ou ainda, como a lgica informal, eles procuram detectar os argumentos falaciosos (os paralogismos). Entretanto, na perspectiva da argumentao no discurso, preciso observar que os esquemas assim extrados e descritos devem ser recolocados no somente num plano comunicacional, mas tambm na densidade de um discurso situado. Eles constituem formalizaes que permitem, certamente, observar como o discurso antecipa um raciocnio que se quer convincente (ou como ele fracassa ao faz-lo). Eles so, portanto, teis, at mesmo indispensveis. Mas tomados em si mesmos, eles so um esqueleto sem carne. Sua reconstruo necessita de fato transformar os enunciados em uma srie de proposies lgicas que resumem seus contedos apagando tudo o que concerne ao dialgico e tudo o que se elabora na organizao textual e na materialidade discursiva (a escolha dos termos, dos conectores, as variaes semnticas, o valor do implcito etc.). Para reencontrar o funcionamento argumentativo do discurso, preciso levar em conta todos esses elementos linguageiros: preciso observar como os esquemas e os argumentos lgicos ou, segundo a terminologia de Perelman, quase-lgicos (eles no concernem lgica formal) inscrevem-se no discurso em todos os seus nveis. preciso assim levar em conta o gnero de discurso com suas regras, sua distribuio prvia de papis, suas132

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restries freqentemente tcitas, e observar como a troca (real ou virtual) articula-se sobre o socioinstitucional. Pode-se, assim, considerar a argumentao na materialidade linguageira e no espao social, cultural e institucional, que lhe conferem sua densidade e sua complexidade.

3. GUISA DE EXEMPLO: ANLISE DE UM EXCERTO DA CORRESPONDNCIA DE DREYFUS

Sem dvida um exemplo impe-se neste ponto para concretizar a abordagem acima esboada rapidamente e justificar a sua pertinncia. O excerto abaixo foi retirado da correspondncia privada5 de Alfred e Lucie Dreyfus, publicada integralmente por V. Duclerc, em 2005, e da qual uma parte (de cuja carta foi tirado o excerto) j havia sido publicada em Lettres d'un innocent (1898):() il sagit de lhonneur d'un nom, de la vie de nos enfants. Et je ne veux pas, tu m'entends bien, que nos enfants aient jamais baisser la tte. Il faut que la lumire soit faite pleine et entire sur cette tragique histoire. Rien, par la suite, ne doit ni te rebuter, ni te lasser. Toutes les portes souvrent, tous les curs battent devant une mre qui ne demande que la vrit, pour que ses enfants puissent vivre.

C'est presque de la tombe ma situation y est comparable, avec la douleur en plus d'avoir un cur que je te dis ces paroles.[] trata-se da honra de um nome, da vida de nossos filhos. E eu quero, oua bem o que digo, que nossos filhos nunca tenham que baixar a cabea. preciso que a luz seja inteira e plenamente lanada sobre essa trgica histria. Nada, na seqncia dos fatos, deve te desencorajar nem desgastar. Todas as portas se abrem, todos os coraes batem diante de uma me que no quer seno a verdade para que seus filhos possam viver.

quase da sepultura minha situao a isso bem semelhante, com a dor a mais de ter um corao que eu te escrevo estas palavras.

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Sobre a correspondncia

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(Alfred Dreyfus a Lucie Dreyfus, Iles du Salut, 15 de julho de 1895, em Alfred et Lucie Dreyfus, 2005, p. 250)

Num primeiro momento, extrairemos os esquemas argumentativos que sustentam e organizam o primeiro pargrafo resumindo-o numa srie de proposies. Percebe-se, assim, um raciocnio silogstico que se pode, grosso modo, formalizar da seguinte maneira: Primeiro silogismo (implcito)Premissa maior (implcita): Il faut laisser ses enfants un nom honorable ( preciso deixar aos filhos um nome honrado) La condamnation pour trahison qui pse sur Dreyfus dshonore ses enfants (A condenao por traio que pesa sobre Dreyfus desonra seus filhos) (il s'agit de l'honneur d'un nom () que nos enfants aient () baisser la tte) (trata-se da honra de um nome () que nossos filhos tenham () que baixar a cabea) Donc il faut faire la lumire sur l'affaire qui entrane cette condamnation (Portanto preciso lanar a luz sobre o caso que acarreta a condenao) (Il faut que la lumire soit faite pleine et entire sur cette tragique histoire) ( preciso que a luz seja inteira e plenamente lanada sobre essa trgica histria) Donc Lucie doit tout faire pour rtablir la vrit et rendre ainsi un nom honorable aux enfants (Portanto Lucie deve fazer de tudo para restabelecer a verdade e deixar assim um nome honrado para seus filhos) (Rien, par suite, ne doit te rebuter ni te lasser) (Nada, na seqncia dos fatos, deve te desencorajar nem desgastar)

Premissa menor:

Concluso 1:

Concluso 2:

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Segundo silogismo (implcito)Maior: Une mre qui lutte pour ses enfants est toujours bien accueillie (Uma me que luta por seus filhos sempre bem acolhida) (toutes les portes s'ouvrent, tous les curs battent devant une mre qui ne demande que la vrit, pour que ses enfants puissent vivre) (Todas as portas se abrem, todos os coraes batem diante de uma me que no quer seno a verdade para que seus filhos possam viver) Lucie, en demandant de tirer au clair l'affaire de la trahison, est une mre qui lutte pour ses enfants (Lucie, pedindo pelo esclarecimento do caso da traio, uma me que luta por seus filhos) Donc sa demande de tirer l'affaire au clair sera bien accueillie. (Portanto seu pedido de esclarecer o caso ser bem acolhido.)

Menor (implcita):

Concluso (implcita):

Tal a estrutura entimemtica do discurso (entimema sendo aqui definido como um silogismo implcito: a forma silogstica ordinria no uso corrente). Ela marca um raciocnio que faz com que se passe sem dificuldade das premissas concluso e cujo impacto s pode ser grande. O primeiro conjunto destinado a persuadir Lucie Dreyfus a fazer todo o possvel para rever o processo em benefcio de seus filhos. Ele repousa sobre uma premissa geral tcita: a honra do nome e a necessidade de transmiti-lo sem manchas s geraes futuras so primordiais. Ela supe compartilhados valores como a honra e a virtude do patronmico tanto como valores morais quanto como fundamentos da posio social e do bem-estar em sociedade. Todo o peso do argumento repousa nessa premissa maior implcita, ainda mais forte medida que ela aparece como uma evidncia partilhada que no pode ser questionada. A recusa da premissa anularia o conjunto do raciocnio. O segundo conjunto deve impregnar a destinatria pelo sentimento de que se trata de uma misso realizvel. Ele vem varrer uma dvida inexpressa sobre a eficcia das providncias que o missivista pede que sua mulher tome. Como a premissa maior sobre a qual se fundamenta o raciocnio menos evidente, o locutor toma o cuidado de formul-la de maneira enftica: todas as portas se abrem, todos os coraes batem diante de uma me que.135

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Aqui, a menor relativa situao de Lucie na qualidade de me que luta pelo futuro de seus filhos que aparece como um dado de que sua evidncia dispensa formul-la com todas as letras. Do mesmo modo, a concluso permanece implcita. Isso permite ao locutor no apresentar, preto no branco, uma afirmao cujo otimismo poderia facilmente ser desmentido a saber, que as providncias da esposa de Alfred Dreyfus, condenado como traidor da ptria, sero necessariamente bem acolhidas por todos aqueles aos quais ela se dirigir. somente graas ao no-dito que a deduo pode aqui obter o seu poder. Omitindo a premissa menor e a concluso que se referem situao concreta da destinatria, Alfred contentase em formular na premissa maior um princpio geral, que fundamenta por si s a demonstrao. Ele evita, assim, qualquer problematizao inoportuna e protege-se das objees e refutaes possveis. O surgimento dos esquemas de raciocnio e de seu manejo singular mostra que o logos interpreta um papel no negligencivel no impacto do discurso analisado. Entretanto, fica claro nesse momento que a anlise argumentativa fundamentada na reconstruo dos silogismos fornece apenas uma parte do sentido e da fora do texto. O projeto de persuaso fundamenta-se tambm em procedimentos linguageiros que ultrapassam a esquematizao esboada anteriormente e reforam o impacto da carta. Ser tambm possvel observar na reconstruo dos enunciados a equivalncia estabelecida entre a honra do nome e a vida por justaposio: il sagit /de lhonneur d'un nom/ de la vie de nos enfants (trata-se /da honra de um nome/ da vida de nossos filhos). E no final do pargrafo: une mre qui ne demande que la vrit, pour que ses enfants puissent vivre (uma me que no quer seno a verdade para que seus filhos possam viver). Limpar o nome de Dreyfus da marca que o mancha permitir que vivam os filhos que o carregam. Disso resulta que o contrrio os impediria de viver, seria sinnimo de morte. Obser vemos que a equivalncia estabelecida entre a honra e a vida no justificada pelo missivista:136

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ela impe-se na variao que justape os termos no primeiro caso e na relao forte da verdade com a possibilidade de vida no segundo caso. Remetendo aos valores sobre os quais repousa a totalidade do raciocnio, o discurso epistolar nele os inscreve a ttulo de evidncia em suas escolhas semnticas e em suas construes sintticas. O problema que incumbe a Lucie resolver em seguida apresentado como crucial: sua misso refere-se a uma questo de vida ou de morte cuja urgncia no pode ser discutida. Antes de prosseguir na anlise dos processos discursivos que constroem a demonstrao, importante lembrar o dispositivo e a situao de enunciao na qual se desenvolve a argumentao e na qual ela adquire seu pleno alcance. De fato, os esquemas argumentativos colocados em relevo inscrevem-se no gnero da carta ntima em que a troca, que se supe sincera e espontnea, permite a expresso dos sentimentos profundos, dos projetos e dos desejos mais pessoais, e no pede por demonstraes formais rigorosas. No caso em questo, trata-se margem do caso Dreyfus tal como se desenrola em praa pblica de uma correspondncia privada entre um marido e sua esposa, dos quais o primeiro, o capito Dreyfus, detido por traio em condies particularmente severas nas Ilhas da Salvao, e mais precisamente a partir de 13 de abril na Ilha do Diabo. A troca de correspondncia privada, iniciada em 4 de dezembro de 1894, foi submetida a uma censura das mais rigorosas, e continuou na poca do excerto aqui estudado, 15 de julho de 1895, depois de mais de 7 meses, de maneira irregular: Dreyfus recebeu somente em 12 de junho de 1895 as primeiras notcias de sua mulher desde sua partida para a Guiana em 21 de fevereiro, depois em 29 de junho de 1895 notcias relativamente recentes. Foi nessas condies bastante estritas de isolamento que o missivista, aniquilado por uma condenao da qual ele no compreendia nem as causas nem as conseqncias e a qual ele considera como um trgico erro, dirigiu-se sua esposa Lucie. As cartas precedentes j expressavam a indignao do capito, de quem haviam tirado no somente a liberdade, mas tambm137

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a honra, e narravam o sofrimento moral e fsico que ele sofrera o que ambos, marido e esposa, chamavam de seu martrio. , portanto, no conjunto de uma correspondncia caracterizada pela retomada e por uma repetio quase lancinante que se insere a passagem anteriormente transcrita. Esta participa, da parte de Alfred, de um projeto global: apoiar Lucie e lev-la a fazer tudo o que for possvel, j que ele prprio encontra-se na impossibilidade de intervir, para obter a reviso de seu processo e a anulao de uma condenao errnea e injusta. preciso, portanto, notar que a missiva dirige-se a uma destinatria doravante devotada causa que compartilha os valores e as convices de seu marido e est pronta para fazer o que for possvel para ajud-lo. Alm disso, os argumentos familiares que Dreyfus faz valer so os mesmos que Lucie havia utilizado para persuadi-lo a continuar a viver na provao terrvel que enfrentava: 26 de dezembro de 1894: Je te demande un norme sacrifice, celui de vivre pour moi, pour tes enfants, de lutter jusqu ta rhabilitation (Peo-te um enorme sacrifcio, o de viveres para mim, para teus filhos, de lutares at a tua reabilitao) (ibid., p. 88); 4 de janeiro de 1894: Tu m'as promis de lutter jusquau bout pour moi, pour les enfants, je t'en ai une immense reconnaissance (Tu me prometeste que lutarias at o fim por mim, pelas crianas, sou-te eternamente grata) (ibid., p. 112). A argumentao desenvolvida pelo discurso epistolar aparece conseqentemente como a retomada e a modulao de um j-dito, de uma troca em que os mesmos argumentos circulam entre ambos. Para Alfred, trata-se menos de persuadir aquela que pensa como ele que sustentar a cada dia sua luta para fazer com que a verdade seja reconhecida e, sobretudo, de marcar a sua importncia crucial e a sua urgncia apesar dos obstculos que podem desencorajar a melhor das boas vontades. A carta deixa de fato entrever as dificuldades que ela pode encontrar: rebuter (desencorajar) refere-se s afrontas que ser preciso sofrer para se fazer ouvir, lasser (desgastar) marca a necessidade de repetir incessantemente as mesmas providncias. No somente essas dificuldades no so formuladas dire138

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tamente como tambm so apresentadas sob forma negativa e energicamente apagadas pelo rien (nada): Rien, par suite, ne doit te rebuter ni te lasser (Nada, na seqncia dos fatos, deve te desencorajar nem desgastar). com essa forma assertiva, at mesmo imperativa, que o locutor tira a concluso do raciocnio (Portanto Lucie deve fazer de tudo para restabelecer a verdade e dar assim um nome honrado aos filhos) dirigido destinatria. O carter condensado da formulao, seu carter elptico, seu ritmo contribuem para a fora da solicitao. Compreende-se desde ento o carter enftico de toda a injuno e o carter insistente do discurso. A vontade de Alfred, que se manifesta no Je ne veux pas, tu m'entends bien (eu no quero, oua bem o que eu digo), coloca o locutor na posio daquele que tem o direito de fazer prevalecer junto sua destinatria o seu ponto de vista, at mesmo de fazer ouvir suas exigncias. Mas ele no fala somente na qualidade de esposo e de senhor que orienta sua mulher que ficou sozinha no lar. Ele faz tambm ouvir a voz do pai que se revolta com a idia do mal feito a seus filhos. O nos enfants (nossos filhos) associa a destinatria a esse sobressalto de dignidade ferida e a essa inquietude de pai. Do mesmo modo, a objurgao de il faut que la lumire soit faite ( preciso que a luz seja lanada), rien ne doit ni ni (nada deve nem nem), tanto uma solicitao quanto uma ordem. Dirigido a uma companheira amante, a mistura da injuno sustentada por uma forte vontade com a solicitao insistente de um homem reduzido impotncia confere ao discurso uma fora persuasiva que aumenta a do raciocnio. O pathos a solicitao de aderir s suas inquietudes sobre o destino dos filhos, o tormento e a revolta que trai a veemncia da entonao, o desespero de um homem reduzido impotncia junta-se ao carter restritivo dos esquemas lgico-discursivos que sustentam o discurso e o fundamentam com a razo. O discurso cria assim o difcil equilbrio entre o logos (o raciocnio lgico) e o pathos (a afetividade) de que se nutrem a cor-

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respondncia ntima e a solicitao que ela lana na direo da parceira. Alm da aliana do logos e do pathos, a carta elabora um jogo de imagens de si e do outro que devem contribuir para com o projeto de persuaso. De sua destinatria, o missivista projeta a imagem de uma me devotada e corajosa pronta para fazer o que for possvel para a salvao de seus filhos. Ele apresenta-lhe assim o espelho no qual ela pode contemplar o reflexo ideal ao qual ela deve igualar-se. A emulao deve ser ainda mais forte pelo fato de o modelo ser mais pregnante: a maternidade pronta para todos os sacrifcios um paradigma potente naquele fim de sculo. Ao mesmo tempo, Dreyfus esboa a imagem de uma mulher ativa na inverso dos papis que impe a situao e a que faz aluso o pargrafo precedente: Si donc [mon nergie] est toute passive, ton nergie au contraire doit tre tout active et anime du souffle ardent qui alimente la mienne (Portanto, se [minha energia] totalmente passiva, tua energia, ao contrrio, deve ser totalmente ativa e reanimada pelo sopro ardente que alimenta a minha) (ibid., p. 250). Alfred pede sua mulher burguesa, confinada esfera do privado, para agir no espao pblico e para interpretar a um papel ativo; ela deve, por sua iniciativa e sua atividade, cumprir a tarefa essencialmente confiada ao homem da famlia, o irmo de Alfred Mathieu Dreyfus. Ao mesmo tempo, ele tambm toma o cuidado de justificar racionalmente a necessidade para sua mulher de preencher essa funo para ela inusitada e de projetar uma imagem segura e gratificante pelo vis do esteretipo da maternidade pronta para enfrentar todas as provaes. A construo de uma imagem da destinatria, que participa do projeto de persuaso, reveladora das representaes dominantes da mulher e da relao entre os sexos naquela poca. Ele mostra conseqentemente a maneira pela qual dada ao discurso epistolar a funo de adapt-las ao seu prprio objetivo. Quanto ao missivista, ele projeta uma imagem de homem que continua a guiar a razo e a paixo pela verdade. Nessa ordem de idias, o vocabulrio selecionado coloca Dreyfus do lado dos cida140

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dos esclarecidos. Ele no pede simplesmente que justia lhe seja feita, mas Que la lumire soit faite pleine et entire (Que a luz seja inteira e plenamente lanada) sobre um mistrio judicirio que remonta ao erro ou maquinao (somente pouco a pouco a tese do erro se transformar na da maquinao). Dreyfus sustenta as luzes da razo e da verdade contra o obscurantismo e a mentira, e a escolha de uma expresso fixa (faire la lumire sur lanar luz sobre ) no concerne apenas ao clich de estilo, ela tambm evoca a ideologia das Luzes e o campo republicano do qual faz parte o capito, fiel servidor da Terceira Repblica Francesa. Destaca-se, alis, em sua carta o fato de que a luz colocar necessariamente em evidncia sua inocncia ultrajada, a qual o condenado reafirma implicitamente ao solicitar que se lance uma luz plena sobre sua trgica histria, dando, por esse desejo de transparncia, uma prova de sua inocncia ainda mais eloqente que qualquer afirmao explcita. Dreyfus apresenta-se ao mesmo tempo como inocente, como homem corajoso que pretende continuar na luta e como pai de famlia que vela pelo futuro de seus filhos. Contribui com esse ethos o carter testamentrio que Alfred d sua carta, e que lhe d mais peso ainda por manifestar de alguma forma suas ltimas vontades: C'est presque de la tombe ma situation y est comparable, avec la douleur en plus d'avoir un cur que je te dis ces paroles ( quase da sepultura minha situao a isso bem semelhante, com a dor a mais de ter um corao que eu te escrevo estas palavras) (ibid., p. 250). Essa postura justificada pelas condies de vida do locutor o isolamento completo num espao deliberadamente restrito ao mximo, numa ilha longnqua. Ela contrasta curiosamente com a forte vontade e a injuno insistente expressas no pargrafo precedente, sobrepondo voz do combatente pela verdade aquela do homem esfacelado mais prximo da morte que da vida (mesmo que Alfred tivesse aceitado no atentar contra sua prpria vida por sua famlia, qual ele deve o estabelecimento da verdade). O missivista projeta, assim, um ethos complexo feito de oposies: pater familias e mrtir impotente, lu141

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tador e ser esfacelado, revoltado que incita ao e homem invadido pelo frio da morte, que contribui com a fora de sua palavra. De fato, ele se mostra digno de ser ouvido e seguido por sua coragem na adversidade, digno tambm de ser defendido em razo da imensa compaixo que suscita seu martrio. O discurso epistolar constri, assim, na direo de Lucie, um ethos que deve contribuir para com a fora do logos mas no, certamente, substitu-lo erradicando-o. interessante perceber como a mesma passagem recebe uma orientao argumentativa diferente num plano que no mais aquele da troca epistolar privada. De fato, uma parte das cartas, das quais a de 15 de julho de 1895, foi objeto de uma publicao em 1898 pela iniciativa de Joseph Reinach enquanto Dreyfus estava preso na Ilha do Diabo sem nenhuma informao da luta realizada a seu favor. O livro foi publicado com o ttulo de Les lettres d'un innocent. Fora do formato e do ambiente da troca ntima entre o casal e sob os olhos do grande pblico, presumir-se-ia que a correspondncia testemunharia pela inocncia do condenado. O modo de publicao modificou de fato a orientao argumentativa. O formato da carta privada, espontnea e sem artifcios, funciona aqui como a garantia da autenticidade dos sentimentos de Dreyfus. Ele desvenda a mistura de abatimento e de revolta que ele experimenta em face de uma acusao da qual ele no compreende manifestamente o mistrio. Reinach, que escreve a introduo, deixa a apresentao das provas judicirias o resolva. Oferecendo a leitura da correspondncia ao pblico, ele quer simplesmente fazer a voz de Dreyfus ser ouvida: a imagem de si mesmo construda pelo missivista num discurso privado que no em sua origem destinado a terceiros que deve conquistar a convico do leitor, fora de toda prova material. Nesse plano de comunicao, a carta confiada ao espao pblico segue uma orientao argumentativa que no estava programada no incio pelo missivista. O projeto de persuaso desenvolvido para Lucie, desviado de seu curso, perde sua pertinncia. Ele torna-se uma encenao destinada a terceiros a fim de contribuir com a edificao do ethos em que se sustenta a inocncia do capito.142

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, portanto, uma argumentao completamente diferente que se produz a partir do momento em que o mesmo texto integrado num outro plano genrico (da carta privada carta pblica, porque publicada), dirigido a um pblico diferente (o leitor francs de 1898 e no Lucie), por um emissor diferente (Reinach e o editor por detrs de Dreyfus, ainda na Ilha do Diabo, onde ele no pode saber dessa publicao), em circunstncias diferentes (a participao de uma violenta polmica em torno do caso em 1898, e no de uma troca privada). Poder-se-ia desse ponto de vista retomar toda a anlise e mostrar como a argumentao da passagem estudada recompe-se e reconstri-se no espao das Lettres d'un innocent (Amossy, no prelo). Esse caso mostra claramente que a argumentao tal como ela se inscreve num texto concreto muda numa situao de discurso diferente mesmo que nenhum termo da missiva tenha sido modificado. O funcionamento discursivo da argumentao depende, como dissemos anteriormente, do plano da troca verbal (que tambm uma troca simblica) no qual ela emerge e se desenvolve.

CONCLUSOA argumentao no discurso como ramo da AD

Percebe-se, a partir dessa breve exemplificao, como a anlise da argumentao indissocivel daquela do funcionamento de um discurso em situao. Percebe-se tambm como o estudo da eficcia da fala passa necessariamente pela do logos em sua relao constitutiva com relao ao ethos e ao pathos. Nem os princpios semnticos de encadeamento dos enunciados, nem as regras institucionais que conferem fala legitimidade e poder so suficientes para dar conta da maneira pela qual a troca verbal tenta influenciar modos de ver e de pensar. A eficcia da fala deriva das modalidades segundo as quais os esquemas constitutivos do logos inscrevem-se na materialidade linguageira, no seio de um dispositivo de enunci143

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ao dependente de uma situao de discurso que compreende componentes socioculturais e institucionais. Nesse sentido, a argumentao participa do funcionamento do discurso que a AD explora. conseqentemente uma articulao totalmente particular da retrica e das cincias da linguagem que se prope aqui. Sem dvida, a relao da antiga retrica com a pragmtica e com a AD freqentemente evocada: Teun van Dijk prope essa relao ao atribuir as origens do discourse analysis retrica clssica (1985, p. 1). Em termos de genealogia, entretanto, preciso considerar o fato de que as formas tomadas pela retrica so dependentes de configuraes do saber e de prticas irremediavelmente desaparecidas (Maingueneau, 2005, p. 65): segundo Maingueneau, a anlise do discurso implica uma ordem do discurso irredutvel ao dispositivo retrico (ibid.). No entanto, mais que ater-se a uma diviso inevitvel entre disciplinas nascidas em perodos histricos diferentes, parece-me produtivo redefinir a anlise da argumentao luz das cincias da linguagem contemporneas. Por esse vis, trata-se de integr-la plenamente ao mbito da AD, entrevendo nas modalidades verbais da persuaso um aspecto inerente ao discurso tomado na variedade de seus dispositivos. Parece-me que (para retomar minha maneira um exemplo de D. Maingueneau que trata da diviso entre as tarefas das disciplinas), ao analisar um debate poltico na televiso, o fato de considerar o pblico, a natureza e os modos de encadeamento dos argumentos, do ethos etc. no concerne a um procedimento diferenciado, mas, ao contrrio, ele se integra ao trabalho da AD que se interroga sobre o prprio gnero de discurso, sobre a composio textual, sobre os papis sociodiscursivos que ele implica, sobre a definio do poltico que implica esse gnero televisual etc. (Maingueneau, 2005, p. 67). nesse sentido que a argumentao no discurso mostra-se indissocivel da AD.

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RSUM: Quil y ait vise ou simplement dimension argumentative, largumentation fait toujours partie intgrante du discours en situation. Elle doit de ce fait tre prise en compte par lAD, qui il revient d'explorer son inscription dans la matrialit langagire, mais aussi son ancrage social et institutionnel. Lapproche ici propose est exemplifie dans lanalyse dune lettre d'Alfred Dreyfus. Se ressourant dans la rhtorique antique quelle soumet aux avances des sciences du langage, largumentation dans le discours soppose largumentation dans la langue qui nie les vertus du logos. Face aux positions qui dnient celui-ci tout pouvoir, il importe de mettre en avant un partage de la parole qui est au fondement des relations humaines comme de la responsabilit citoyenne. MOTS-CLS: MOTS- CLS: Analyse du discours; argumentation; vise et dimension argumentatives; argumentation linguistique

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