AMIN, Samir - O Capitalismo Senil

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Artigo do economista Samir Amin, para a Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política.

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  • 79REVISTA Soc. bras. Economia Poltica, Rio de Janeiro, n 11, p. 79-102, dezembro 2002

    O capitalismo senilSamir Amin*

    Resumo

    Este artigo discute a fase atual do capitalismo na qual a sua dimenso destrutivaultrapassa a criadora, que chamamos de capitalismo senil. O imperialismo que eramultipolar converteu-se em unipolar, a trade Estados Unidos, Europa e Japo sob hegemonia do primeiro. Ele definido atravs dos aspectos econmicos, poltico,cultural e militar. Essa concepo ope-se quela na qual o imperialismo definidopredominantemente pelo poltico, no qual no h mais um centro imperialista. O de-senvolvimento histrico do capitalismo demonstra que esto criadas as possibilidadese as necessidades de sua superao. Entretanto, sua superao no pode ocorrer deforma automtica atravs do mecanismo de funcionamento das leis da histria.Palavras-chave: capitalismo senil; imperialismo; revoluo tecnolgica; destruiocriadora.

    1. A tese que defenderei aqui se coloca contra a corrente das idias rece-bidas e pr-concebidas que caracterizam o ar de nosso tempo. Com efeito, umaespcie de amplo consenso est se constituindo a favor, entre outros, docolapso da primeira vaga de experincias de construo de uma alternativasocialista segundo a qual o capitalismo constituiria um horizonte intrans-ponvel. Em conseqncia, o futuro se inscrever necessariamente no quadrodos princpios bsicos que comandam a reproduo, pois este sistema se bene-ficiaria de uma flexibilidade sem igual que lhe permitiria adaptar-se a todas astransformaes que poderamos imaginar, absorvendo e submetendo essas trans-formaes s exigncias da lgica fundamental que lhe define.

    A histria do capitalismo certamente constituda por fases de expansoe de contrao sucessivas, que separam momentos de transio mais ou menoscaticos (portanto, de crise estrutural). A leitura mais corrente dessa histria,em questo, encontra sua expresso na formulao de uma teoria dos ciclos

    * Diretor do Frum do Terceiro Mundo (Dakar) e presidente do Frum Mundial de Alternativas,publicou uma obra mundialmente conhecida sobre a economia e a poltica. As ltimas publica-es so: Lethnie lassaut des nations (1994), La gestion capitaliste de la crise (1995), Lesdfis de la mondialisation (1996), Critique de lair du temps (1997), Lhgmonisme des tats-Unis et leffacemento du projet europen (2000), Au-del du capitalisme snile (2002).

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    longos (Kondratiev, por exemplo), cujo carter excessivamente mecanicista eum pouco preguioso nunca conseguiu me deixar, verdadeiramente, muito en-tusiasmado.

    Cada uma das fases sucessivas de expanso (fases A, segundo a lingua-gem de Kondratiev) anunciada por transformaes importantes de naturezadiversa, entre outras, por uma concentrao de inovaes tecnolgicas quetransformam as formas de organizao da produo e do trabalho. Assim, acrise de transio se expressa atravs de transformaes nas relaes entre asforas sociais e polticas que haviam governado a fase anterior, cuja pgina,ela vira. Estamos bem em um perodo de transio dessa natureza (a fase B,segundo Kondratiev).

    O consenso em questo se traduz, ento, pelo grande alinhamento idiade que a fase atual de crise estrutural, com os desequilbrios caractersticos detais momentos e o caos que eles produzem no presente, dever ser superadosem o abandono necessrio das regras fundamentais que comandam a vidaeconmica e social especfica do capitalismo. Dito de outra maneira, uma novafase A de acumulao e de expanso mundial anunciada como sendo o queela ser, mas ser finalmente aceita por que ela terminar apresentando comoresultado um progresso amplamente dividido, mesmo que desigualmente.

    Este consenso rene atualmente doutrinrios liberais, reformistas mo-derados e mesmo aqueles reformistas conseqentes que abandonaram pro-gressivamente o seu radicalismo de origem.

    Os primeiros confiam nos mecanismos de mercado, como eles mes-mos afirmam, os quais garantiriam se a insanidade dos Estados no forempregada para entravar seu florescimento uma nova fase de prosperidade,capaz de fundar, por sua vez, uma nova era de paz internacional e de oferecer democracia o mximo de oportunidades para estender-se ao maior nmerode naes. Ento, se for necessrio um maestro para atravessar a tempestadetransitria, que seja. A hegemonia dos Estados Unidos, qualificada como benignneglet pelos liberais americanos, encontra aqui eventualmente a sua justifica-o. Muitos dos ps-modernistas e mesmo Toni Negri (sobre o qual retor-narei) gradualmente se agruparam em torno deste ponto de vista. A novafase de expanso, segundo a perspectiva de muitos reformistas radicais e mes-mo de revolucionrios, todavia, no exclui as lutas sociais. Elas conduzem aexpanso criando as condies necessrias para seu possvel desdobramento,esperado. Mas, dizer isso no suficiente.

    O que eu criticarei naquele ponto de vista simplesmente a sua ignorn-cia sobre toda uma srie de caractersticas novas, atravs das quais se exprime

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    o que eu qualifico de senilidade do sistema capitalista. Ora, a senilidade emquesto no a antecmara da morte cuja hora se possa aguardar tranqila-mente. Ao contrrio, ela se manifesta por uma retomada da violncia pela qualo sistema procurar se perpetuar custe o que custar, mesmo ao preo de imporuma barbrie extrema humanidade. Por isso, a senilidade requer que os refor-mistas e radicais sejam muito mais radicais do que jamais. A no ceder stentaes do discurso pacificador do nosso tempo e do ps-modernismo. Aquiradicalismo no sinnimo de fidelidade s teses radicais e revolucionriasexpressas na fase anterior da histria (em geral do sculo XX), o que seriadogmtico em ltima anlise, pela fora das coisas, mas a renovao radicalque leva em conta toda a extenso do alcance das transformaes em curso nomundo contemporneo.

    2. A revoluo cientfica e tecnolgica em curso a primeira das trans-formaes importantes a ser considerada.

    Uma revoluo tecnolgica qualquer toda revoluo tecnolgica (ehouve outras na histria, e na do capitalismo em particular) transforma osmodos de organizao da produo e do trabalho. Ela decompe as formasantigas para recompor as novas formas a partir dos cacos das formas antigas.Como o processo no instantneo, o momento razoavelmente catico. En-tre outras coisas porque o processo de decomposio enfraquece as classestrabalhadoras, as formas de organizao e de lutas que elas haviam construdono perodo anterior, cuja pgina foi virada, caducam. Essas formas, que ha-viam sido eficazes porque eram adaptadas s condies da poca, no so maisnas novas condies. Pois, nesses momentos de transio, as relaes de for-as sociais viram em favor do capital. Encontramos esta primeira caractersti-ca no momento atual.

    Mas preciso ir mais longe e questionar a especificidade da revoluotecnolgica em curso, compar-la com as anteriores e situ-la, assim como asanteriores, na dinmica da acumulao capitalista, que ela renova em certosaspectos ao mesmo tempo em que conserva a lgica dominante geral. Nopodemos faz-lo sem ter previamente definido precisamente o conceito queutilizamos sobre o que o capitalismo.

    O capitalismo no sinnimo de economia de mercado como o propea vulgata liberal. O conceito preciso de economia de mercado, ou de merca-dos generalizados, no corresponde a nada de real. Ele somente o axioma departida da teoria de um mundo imaginrio, aquele onde vivem os economis-tas puros. O capitalismo define-se por uma relao social que assegura a do-minao do capital sobre o trabalho. O mercado vem depois.

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    O exerccio de dominao do capital sobre o trabalho efetuado concre-tamente por meio da apropriao privativa do capital (definindo a classebeneficiria a burguesia) e a excluso dos trabalhadores ao seu acesso. Ora,deste ponto de vista, como se apresentam os efeitos da revoluo tecnolgicaem curso? Aqui se situa a verdadeira questo que concerne quela.

    As revolues tecnolgicas precedentes na histria do capitalismo (a te-celagem e a mquina a vapor, o ao e a ferrovia, o complexo eletricidade-petrleo-automvel-avio) todas se caracterizavam pela exigncia de investi-mentos macios montante da cadeia de produo. Eram inovaes quepoupavam o trabalho direto ao preo de uma utilizao maior de trabalho indi-reto, incorporado nos equipamentos. A inovao poupava a quantidade totalde trabalho necessrio para fornecer um dado volume de produtos, mas tam-bm, e sobretudo, deslocava o trabalho da produo direta para a produo deequipamentos. Com isso, as revolues tecnolgicas precedentes reforavamo poder dos proprietrios do capital (os equipamentos) sobre aqueles que osmanejavam (os trabalhadores).

    A nova revoluo tecnolgica em suas principais dimenses, a infor-mtica e a gentica parece permitir, ao mesmo tempo, a economia de traba-lho direto e de equipamentos (em volume, medido pelo valor de mercado).Mas ela exigiria uma outra repartio da totalidade do trabalho utilizado, maisfavorvel ao trabalho qualificado.

    O que significa este carter especfico e novo da revoluo tecno-lgica em curso? Ele portador do qu potencialmente (quer dizer, indepen-dentemente das relaes sociais prprias ao capitalismo) e realmente (querdizer, no quadro destas relaes)?

    O potencial e o real entram em conflito aqui. A revoluo tecnolgicasignifica que se pode produzir mais riqueza com menos trabalho, sem a exi-gncia de que este resultado s possa ser obtido sob a condio de conceder aocapital seu poder sobre o trabalho, que ele conserve o poder que tinha at omomento. As condies para que um outro modo de organizao da produosuceda ao capitalismo esto doravante em vias de serem realmente reunidas. Ocapitalismo est objetivamente caduco. Mas ele permanece e afirma mais doque nunca a pretenso do capital de dominar o trabalho. No mundo do capita-lismo real, o trabalho no pode ser acionado por si mesmo, ele acionado pelocapital que o domina na medida em que encontra a a sua conta, quer dizer, namedida em que o investimento rentvel. Ora, este funcionamento, excluin-do da ocupao uma proporo crescente de trabalhadores potenciais (e, porisso, privando-os de qualquer rendimento) condena o sistema produtivo a con-

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    trair-se, se no necessariamente em termos absolutos, pelo menos s permitedesenvolver-se a um ritmo de crescimento muito inferior quele que a revolu-o tecnolgica permitiria sem ela. Veremos, mais adiante, a propsito da novaquesto agrria, o exemplo mais escandaloso dessa perspectiva de exclusomacia, que a busca de expanso do capitalismo exige doravante.

    Os discursos dominantes excluem os debates que abordam os limites docapitalismo, quer se trate daqueles que discutem sobre a nova organizao dotrabalho em perspectiva (a sociedade em rede), ou sobre as transformaes arespeito da propriedade do capital (o capitalismo popular e o modo de acumu-lao patrimonial) ou aqueles que abordem a cincia, convertida em fator deproduo decisivo.

    Primeiro discurso, a respeito do fim do trabalho, da sociedade emrede (abolindo as hierarquias verticais para substitu-las por inter-relaeshorizontais), a emergncia do indivduo (sem considerar seu estatuto social proprietrio capitalista ou trabalhador) como pretenso sujeito da histria.Todas as modalidades desse discurso em voga (de Rifkin a Castells e a Negri)fazem como se o capitalismo j nem existisse mais ou que, pelo menos, asexigncias objetivas da nova tecnologia transformaria sua realidade at a dis-soluo de seu carter fundamental, o de ser baseado sobre uma hierarquiavertical incontornvel, assegurando a dominao do trabalho pelo capital. Essa a expresso de uma iluso tecnologista, que repetida constantemente nahistria, porque a ideologia do sistema sempre teve necessidade para se de-sembaraar da verdadeira questo: quem controla o uso da tecnologia?

    Segundo discurso, a respeito de uma pretensa difuso da propriedade docapital que dizem estar doravante aberta para as pessoas comuns, interpos-tos pelas aplicaes nas bolsas e fundos de penso. Discurso envelhecido docapitalismo popular, formulao mais pretensiosa em termos de modo deacumulao patrimonial (Aglietta). Nada de muito novo nesse discurso sem-pre distante da realidade.

    O terceiro discurso avana a idia que o novo que a cincia teria sidodoravante transformada no fator de produo decisivo. Proposio sedutorae atrativa primeira vista, considerando a densidade dos conhecimentos cien-tficos e dos meios tcnicos utilizados pela produo moderna. Mas essa pro-posio baseada sobre uma confuso, relaes sociais (capital e trabalho)por um lado, conhecimentos e sabedoria por outro lado, no tendo o mesmoestatuto na organizao da produo. Esta sempre exigiu conhecimentos e sa-bedoria desde o perodo pr-histrico mais antigo: a eficcia do caador nodepende somente da idia da flecha, mas tambm de seus conhecimentos sobre

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    os animais; nenhum campons do passado poderia fazer crescer um gro semos conhecimentos acumulados sobre a natureza.

    Cincia e conhecimentos esto sempre presentes, mas atrs do palco ocu-pado em sua primeira fila pelas relaes sociais (quem o proprietrio daflecha, do solo, da fbrica?). A verdadeira questo excluda desse discurso (eainda mais nos pssimos clculos economtricos que se propem a medir ascontribuies especficas do capital, do trabalho e da cincia produtividadegeral) de saber quem controla os conhecimentos necessrios produo.Ontem era o clrigo que duplicava os conhecimentos prticos dos campone-ses, dominando-os atravs dos seus, que justificavam assim a organizao dopoder (pouco importa que hoje consideremos esses conhecimentos como ima-ginrios).

    Ora, o capitalismo se construiu precisamente atravs da expropriaodos trabalhadores no somente de seus meios de produo, mas tambm deseus conhecimentos. O progresso das foras produtivas foi comandado poressa desapropriao. Na era fordista, o operrio semi-arteso das fbricas dosculo XIX foi substitudo pelo operrio-massa desqualificado enquanto queos conhecimentos tcnicos foram captados pelas gerncias tcnicas, elasmesmas colocadas sob a autoridade suprema das gerncias comerciais e finan-ceiras. A ofensiva do agro-business em curso tpica a esse respeito. As fir-mas transnacionais deram-se ao direito que a OMC que eles fabricarampretende proteger de apropriar-se dos conhecimentos coletivos dos cam-pesinatos do mundo inteiro, e singularmente do terceiro mundo, para reprodu-zi-los sob a forma de sementes industriais as quais elas pretenderiam ento tera exclusividade de sua revenda (forada) aos camponeses despossudos dolivre uso de seus prprios conhecimentos. O arroz basmati revendido por umafirma americana aos camponeses indgenas! Mais alm da ameaa de empo-brecimento do capital gentico das espcies do planeta que essa poltica dastransnacionais do agro-business comporta, pode-se qualificar esses procedi-mentos por algum outro termo que pirataria? Trata-se do esprito empresa-rial to celebrado ou muito mais da prtica da extorso?

    Estaria o sentido do movimento invertido na organizao ultramodernada produo? As novas tcnicas de produo exigem menos trabalho, frente aesse fato, afirmam que essas tcnicas exigem qualificaes superiores, um poucorpido demais. Este ponto deve ser revisto e nuanado. Pois, o capital aindaconserva o controle absoluto do conjunto do processo de produo. Na infor-mtica, gigantescos oligoplios comandam a produo de materiais, a difusoe o uso de programas e at mesmo, provavelmente, a criao de uma depen-

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    dncia dos usurios, pela produo de vrus e a venda forada dos meios dese proteger. Na gentica, os gigantescos oligoplios de sempre organizam apesquisa nesse domnio em funo das perspectivas comerciais dos produ-tos que ela possa gerar e pela extorso organizada dos conhecimentos campo-neses, como acabei de lembrar.

    certo que h novidade: a utilizao das novas tecnologias permite umagrande economia no tempo total de trabalho, dito de outra maneira, a sua ele-vada produtividade. O resultado dessa economia no funcionamento real dosistema a reduo brutal, pela excluso, da massa de trabalho colocada ematividade sob o comando do capital. O argumento dos defensores incondicio-nais do capitalismo que os excludos de hoje sero reincorporados amanh,pela expanso dos mercados. Como antes, durante o perodo fordista, os em-pregos suprimidos pelo progresso da produtividade seriam compensados pelosnovos empregos criados montante, e pela expanso geral.

    Esse argumento no se sustenta sem a interveno do Estado regulador.Em sua falta, o mercado exclui sem retorno. Pois, no tendo mais renda, oexcludo ignorado pelo mercado que reconhece somente a demanda solvvel.O mercado aciona um sistema regressivo que sempre exclui mais e concentraa produo sobre a demanda solvvel contrada. Teria sido assim no contextodo fordismo de ontem (tambm foi assim durante a crise dos anos 1930). Se, naseqncia, esse no foi o caso a partir de 1945 foi porque o Estado inter-veio para opor-se aos efeitos da espiral regressiva, interpondo-se para imporum contrato social que a nova relao de foras trabalho/capital permitia. Ocontrato social abria, por seu lado, espao para a expanso dos mercados. OEstado no era mais exclusivamente o instrumento unilateral do capital, ele eraaquele do compromisso social. por isso que eu tinha dito que o Estado demo-crtico no capitalismo s pode ser um Estado regulador social do mercado.

    Ento, porque no seria assim no futuro, sobre a base e no contexto dodesdobramento das potencialidades abertas pelas novas tecnologias? Rejeita-da a posio doutrinria dos liberais (a desregulamentao no soluciona oproblema), no seria o caso elogiar o reformismo, quer dizer a interveno doEstado regulador?

    Sim, mas com a condio de compreender que a amplitude das reformasnecessrias para encontrar soluo ao problema integrar e no excluir no deve ser na mesma medida do que a proposta pelos raros reformistas quesobreviveram mar liberal. Significa nada menos do que reformas radicaisno sentido pleno da palavra, ousando atacar o princpio da propriedade pormeio da qual opera o controle da utilizao das novas tecnologias em benef-cio exclusivo do capital oligopolista.

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    Na anlise que desenvolvi aqui, essa exigncia de radicalismo constituiuma das faces da medalha, sendo a outra precisamente a senilidade do capita-lismo, a impossibilidade do sistema produzir outra coisa que a excluso defini-tiva em escala crescente pela sua prpria lgica. Como assim, preciso con-cluir que a construo de um novo modo de organizao da sociedade se tornounecessria, que o capitalismo completou o seu tempo, que a formulao deuma racionalidade diferente daquela que se expressa pela rentabilidade do ca-pital tornou-se a condio incontornvel para o progresso da humanidade.Reformas radicais quase revolucionrias so a condio da utilizao dopotencial que a revoluo tecnolgica traz em si mesma. Acreditar que esta,por si prpria, produzir esse potencial me parece, o mnimo que se poderiadizer, muito ingnuo.

    3. O capitalismo no somente um modo de produo, ele igualmenteum sistema mundial baseado na dominao geral desse modo. Essa vocaoconquistadora do capitalismo expressou-se de modo permanente, contnuo,desde as suas origens. Entretanto, em sua expanso mundial, o capitalismoconstruiu e depois reproduziu e aprofundou sem parar uma assimetria desi-gual, entre os seus centros conquistadores e suas periferias dominadas. Poressa razo, eu qualifiquei o capitalismo como um sistema imperialista pela suaprpria natureza, ou ainda, escrevi que o imperialismo constitua a fase per-manente do capitalismo.

    Eu propus que se visse no contraste expresso atravs dessa assimetriacrescente a contradio principal do capitalismo, entendido como sistemamundial. Essa contradio se expressa igualmente em termos polticos e ideo-lgicos, pelo contraste entre o discurso universalista do capital e a realidadeque a sua expanso produz, quer dizer a desigualdade crescente entre os povosdo planeta.

    Todavia, o carter permanentemente imperialista do capitalismo concre-tizou-se nas formas sucessivas das relaes centro/periferia, assimtrica e de-sigual, sendo cada uma dessas etapas singulares, colocando as leis que coman-dam sua reproduo em estreita relao com as especificidades da acumulaodo capital especficas a cada uma delas. Por isso, por vrias vezes ocorreraminterrupes nessa histria de cinco sculos, momentos separando uma fasedo imperialismo da seguinte caracterizados pela emergncia de novas espe-cificidades.

    Sem retornar apresentao e s anlises que eu propus a respeito dessahistria, relembrarei algumas das concluses principais, que interessa direta-mente questo aqui colocada: o capitalismo chegou idade da senilidade?

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    No curso de todas as etapas precedentes da expanso capitalista, o impe-rialismo tinha sido conquistador, quer dizer que ele integrava regies epopulaes, que permaneciam at ento fora de seu campo de ao, com umpoderio que crescia sem cessar. Por outra parte, o imperialismo da poca seconjugava sempre no plural, ele era o produto de mltiplos centros imperialis-tas em violenta concorrncia pelo controle da expanso mundial. Essas duascaractersticas do imperialismo esto em vias de ceder o lugar para duas novascaractersticas, que so simplesmente seus opostos. Primeiro, o imperialismono integra mais; em sua expanso mundial, o novo capitalismo exclui maisdo que ele integra e isso em propores desmedidas em relao ao que era nopassado. Segundo, o imperialismo doravante se conjuga no singular, ele tor-nou-se um imperialismo coletivo do conjunto dos centros, quer dizer, da tradeEstados Unidos, Europa e Japo. Naturalmente, essas duas novas caractersti-cas esto estreitamente ligadas entre si.

    Concretamente, o antigo imperialismo era exportador de capitais, oque significa que ele tomava a iniciativa de invadir as sociedades perifricas,de estabelecer nelas novos conjuntos de produo (de natureza capitalista).Com isso, ele construa algo novo e simultaneamente destrua o antigo. Estasegunda dimenso destrutiva sobre a qual retornarei, nunca foi de senegligenciar. Mas a dimenso construtiva a superava pela sua amplitude. Bementendido, a construo capitalista-imperialista do conjunto produzido no eraportador de uma homogeneizao gradual das sociedades do planeta capita-lista. Ao contrrio, tratava-se de construir um conjunto assimtrico de centros/periferias.

    O capital exportado nunca foi colocado gratuitamente disposio dasociedade que o recebia. Ele sempre se fazia remunerar atravs de diversasformas (lucros diretos realizados nos novos conjuntos e excedentes diversosextrados dos modos de produo submetidos) sobre as quais j me expresseisuficientemente em outros lugares e no h necessidade de retornar. A transfe-rncia de valor das periferias para os centros, nas modalidades especficas cada etapa do desdobramento imperialista (o que eu chamei de formas sucessi-vas da lei do valor mundializada), um dos elementos decisivos para a cons-truo assimtrica em questo.

    Todavia, e qualquer que seja a amplitude da puno, o capital imperialis-ta prosseguia sua marcha avante, exportando novos capitais para conquistarnovos espaos para submeter sua expanso. Nesse sentido, o capital prosse-guia a sua vocao construtiva, ele integrava mais do que ele exclua.Sentindo dessa maneira, a expanso capitalista poderia ento nutrir a iluso,

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    nas periferias, que lhes seria possvel alcanar os outros, ainda que permane-cendo no interior do sistema global. Esta iluso qualifiquemos-la rapida-mente como burguesia nacional estava muito bem ali, presente, pesandosobre a cena poltica. Os apologistas do imperialismo no centro (como BillWarren e muitos outros antes dele) se baseavam na dimenso construtiva daexpanso capitalista para saudar o pretenso carter progressista da expan-so. O capital britnico construa portos e ferrovias, na Argentina, na ndia eem outros lugares. Alis, remarquemos que o imperialismo em questo nopoderia, de nenhuma maneira, ser reduzido sua dimenso poltica (a coloni-zao) que o acompanhava s vezes, como o faz Negri, infelizmente. A Suae a Sucia, sem colnia, faziam parte do mesmo sistema imperialista que a GrBretanha e a Frana, que dispunham de mais colnias. O imperialismo no um fenmeno poltico situado fora da esfera da vida econmica, ele oproduto da lgica de comanda a acumulao do capital.

    Tudo indica que a pgina dessa expanso construtiva foi virada. No somente em termos quantitativos, no momento atual, o refluxo de lucros etransferncias de capital do sul para o Norte supera largamente o magro fluxodas novas exportaes de capital do Norte para o Sul. Esse desequilbrio pode-ria ser conjuntural como, alis, pretende o discurso liberal. Mas, ele no .Pois, ele traduz em efeito uma inverso nas relaes entre a dimenso constru-tiva e a dimenso destrutiva, uma e outra imanente ao imperialismo. Atual-mente, uma dose suplementar de abertura para a expanso do capital na perife-ria mesmo marginal exige uma amplitude inimaginvel de destruio.Adiante, apresentarei um exemplo tristemente brilhante: a abertura da agricul-tura para uma expanso do capital, sobretudo marginal em termos de mercadopotencial ao investimento e em termos de criao de empregos modernos comelevada produtividade, coloca doravante em questo a sobrevivncia da meta-de da humanidade nada de mais.

    De uma maneira geral, segundo a lgica do capitalismo, as posiesmonopolsticas novas, nas quais os centros so os beneficirios controledas tecnologias, do acesso aos recursos naturais, das comunicaes , j es-to sendo saldadas e sero sempre saldadas positivamente, por um fluxo cres-cente de transferncia de valor produzido no Sul em beneficio do segmentodominante do capital mundializado (o capital transnacional), originado nasnovas periferias mais avanadas no processo de industrializao moderno echamadas de competitivas.

    Em sua outra dimenso, o imperialismo evoluiu igualmente, passandodos estgios anteriores caracterizados pela concorrncia violenta dos imperi-

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    alismos nacionais quele da gesto coletiva do novo sistema mundial pelatrade. Esta evoluo pode ser explicada pela conjuno de diferentes ra-zes, que no cabe tratar aqui. Mas, entre essas razes, eu no hesitaria emsituar a exigncia poltica dessa gesto coletiva, imposta pelo que afirmamosantes, que a continuidade da expanso do imperialismo implica na crescenteamplitude das destruies. As principais vtimas dessas destruies so os po-vos do Sul, o novo imperialismo j conduz, e conduzir sempre mais, para aguerra permanente (do capital transnacional que domina e se expressa atra-vs do seu controle sobre os Estados da trade) contra os povos do Sul. Essaguerra no nem conjuntural nem o produto de um desvio particular da arro-gncia do status quo republicano dos Estados Unidos, simbolizado pelo sinis-tro Bush Jnior. Ela est inscrita nas exigncias da estrutura do imperialismoem seu novo estgio de desdobramento.

    Em resumo, o imperialismo das etapas histricas precedentes da expan-so do capitalismo mundial estava baseado em um papel ativo dos centros,exportando capitais para as periferias e nelas moldar um desenvolvimentoassimtrico, que podemos ento qualificar justamente de dependente ou desi-gual. O imperialismo coletivo da trade e singularmente aquele do centro doscentros (os Estados Unidos) no funciona mais dessa maneira. Os EstadosUnidos absorvem uma parcela notvel do excedente gerado no conjunto mun-dial e a trade no mais exportadora significativa de capitais para a periferia.O excedente que ela extrai, a ttulos diversos (dentre os quais a dvida dospases em via de desenvolvimento e dos pases do leste), no mais a contra-partida de novos investimentos produtivos, que ela financiaria. O carter para-sitrio desse modo de funcionamento do conjunto do sistema imperialista por ele mesmo um sinal de senilidade, que coloca em cena a crescente contra-dio centros-periferias (chamada Norte-Sul).

    Esse recuo dos centros sobre eles mesmos, abandonando as perife-rias sua triste sorte, saudado pelos fazedores de discursos ideolgico-mediticos do momento como a prova de que no haveria mais imperialis-mo, pois o Norte pode prescindir do Sul. Proposies no s desmentidasquotidianamente pelos fatos (para que ento a OMC, o FMI e as intervenesda OTAN?), mas, adicionalmente, negam a essncia da ideologia burguesaoriginal, que sabia afirmar a sua vocao universal. O abandono dessa vocaoem proveito do novo discurso do culturalismo, chamado de ps-modernista,no ele de fato o smbolo de senilidade do sistema, que no tem mais nadapara propor para 80% da populao do planeta?

    A hegemonia dos Estados Unidos se articula sobre essa exigncia objeti-va do novo imperialismo coletivo, que deve gerir a contradio crescente cen-

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    tros-periferias por meios que apelam cada vez mais violncia. Pela sua van-tagem militar, os Estados Unidos aparecem ento como a ponta de lana des-sa gesto, e seu projeto de controle militar do planeta como o meio de asse-gurar eventualmente a sua eficcia.

    Neste ponto, quero precisar que a vantagem militar em questo no de natureza estritamente tcnica, mas de natureza poltica. Os prprios paseseuropeus tm igualmente a capacidade tcnica de bombardear o Iraque, aSomlia e outros lugares. Mas lhes seriam mais difcil faz-lo, na medida emque a opinio pblica permanece (ainda) impregnada pelos valores universa-listas, humanitrios, democrticos (chamem como quiserem), que podecolocar em questo tais opes belicistas. O stablishement dirigente dos esta-dos Unidos no s no sofre dificuldades anlogas sendo capaz de manipu-lar com facilidade uma opinio pblica passavelmente ingnua como aindapode aproveitar-se dos valores supremos, os quais esto presentes na culturanorte-americana: a misso confiada por Deus ao povo americano, em termosvulgares, aquela verso do xerife protetor do Bem contra o Mal. Como escreveJames Woolsey, antigo diretor geral da CIA!, em uma mistura aonde a indign-cia intelectual compete com a arrogncia (Le Monde, 5 maro 2002).

    Os Estados Unidos cobram essa vantagem de seus associados da tradeimpondo-lhes, como ao resto do mundo, o financiamento do gigantesco dficitamericano.

    A classe dirigente dos Estados Unidos sabe que a economia de seu pas vulnervel, que o nvel de seu consumo global ultrapassa em muito os seusmeios, e que o principal instrumento que dispem para forar o resto do mun-do a cobrir o seu dficit o de lhes impor atravs da demonstrao de seupoder militar. Ela no tem escolha. E ela escolheu a fuga para frente com aafirmao dessa forma de hegemonia. Ela mobiliza o seu povo em primeirolugar, as classes mdias proclamando a sua inteno de defender o modode vida americano a qualquer preo. Esse preo pode implicar na extermina-o de grupos inteiros da humanidade. Isso parece no ter nenhuma importn-cia. Esta classe dirigente acredita que pode envolver em sua aventura sangren-ta o conjunto de seus parceiros da Europa e do Japo e, at mesmo, de obterseu consentimento para a cobertura do dficit americano, a ttulo de servioprestado essa comunidade de abastados. At quando?

    Aqui, uma comparao vem imediatamente lembrana. H pouco, aspotncias democrticas (apesar do seu carter imperialista) dissociaram-sedaquelas do eixo fascista que haviam escolhido impor o seu projeto de nova

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    ordem (o termo pelo qual Bush pai definiu o novo projeto de mundializao)pela violncia militar. Seria possvel imaginar que as opinies pblicas euro-pias, presas aos valores humanistas e democrticos, constrangeriam seus Es-tados a dissociarem-se do plano americano de controle militar do planeta? Oseuropeus aceitariam indefinidamente a preparao aberta de uma agressomilitar? Terminariam eles por reagir criao pela CIA de uma seo dementiras, encarregada de intoxicar a opinio pblica com a criao de infor-maes sem fundamento (um conceito de democracia e de liberdade de im-prensa que no teria desagradado a Herr Goebbels)?

    Tanto que o preo consentido pela Europa (e pelo Japo) para permitir odesdobramento da hegemonia norte-americana considervel e ser crescen-te. A sociedade americana fala como se estivesse em posio de comandar omundo! Mas a sua sobrevivncia nas formas em que ela ocorreu e que elagostaria de perpetuar a qualquer preo depende da contribuio das outraspara o financiamento de seu desperdcio. A conjuntura da economia mundialfoi imobilizada para a manuteno do desperdcio americano. Quando umarecesso atinge os Estados Unidos as exportaes da Europa e da sia cujanatureza parcialmente a de um tributo unilateral pago nova Roma en-contram-se em dificuldades. Os pases Europeus e Asiticos caram na arma-dilha, ao terem escolhido basear o seu desenvolvimento sobre essas exporta-es absurdas, ao invs de reforarem os seus prprios sistemas de produo econsumo (que seria a opo por um desenvolvimento autocentrado). Pois, ums pas os Estados Unidos tem o direito de ser soberano e de colocar emao os princpios de um desenvolvimento autocentrado, agressivamente aber-to sobre a conquista do exterior. Todos os outros so convidados a permanecerno quadro de um desenvolvimento extrovertido, quer dizer a tornar-se apndi-ces dos Estados Unidos. a viso do XXI sculo americano. Eu penso que oabsurdo dessa situao no pode ser prolongado indefinidamente.

    O carter parasitrio cada vez mais marcante do imperialismo coletivoda trade, e muito mais marcante na sociedade norte-americana ponta delana desse imperialismo , assinala para a senilidade do sistema. Um impe-rialismo que no tem mais nada a oferecer ao resto (majoritrio) do mundo.Um carter parasitrio que completa as anlises precedentes a propsito dofosso que se aprofunda entre o que a nova tecnologia permitiria virtualmente(resolver todos os problemas materiais da humanidade) e o que ela produzno contexto de sujeio s relaes sociais capitalistas (que produz mais desi-gualdade e excluso macia).

    Mas, como vimos, a senilidade se combina com a expanso da violncia,concebida em ltima instncia como o nico meio de perpetuar o sistema.

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    4. Vamos tratar agora do exemplo das devastaes gigantescas que o de-senvolvimento do capitalismo contemporneo na agricultura produzir fatal-mente nos pases da periferia.

    Todas as sociedades anteriores ao capitalismo eram sociedades campo-nesas e a sua agricultura era comandada por uma lgica diferente, mas todasestranhas quela que define o capitalismo (a rentabilidade mxima do capital).O capitalismo histrico detona uma grande ofensiva contra a agricultura cam-ponesa. Ora, no momento atual, o mundo agrcola e campons rene ainda ametade da humanidade. Mas a sua produo dividida entre dois setores cujanatureza econmica e social perfeitamente distinta.

    A agricultura capitalista, comandada pelo princpio da rentabilidade docapital, est localizada quase que exclusivamente na Amrica do Norte, naEuropa, no cone sul da Amrica Latina e na Austrlia, ela s emprega algumasdezenas de milhes de agricultores, que no so mais verdadeiramente cam-poneses. A sua produtividade varia entre 1.000 e 2.000 toneladas de equiva-lente-cereal por trabalhador e por ano, isso devido mecanizao (que elestm quase a exclusividade, visto na escala mundial) e superfcie que cada umdispe.

    Por outro lado, a agricultura camponesa rene quase a metade da huma-nidade trs bilhes de seres humanos. Essa agricultura divide-se, por suavez, entre aquelas que foram beneficiadas pela revoluo verde (adubos,pesticidas e sementes selecionadas), entretanto muito pouco mecanizadas, cujaproduo varia entre 10 e 50 toneladas de equivalente-cereal por trabalhador, eaquelas que se mantm numa situao de antes dessa revoluo, cuja produovaria em torno de somente 10 toneladas por trabalhador ativo.

    A diferena de produtividade entre a agricultura melhor equipada e aagricultura camponesa pobre era de 10 para 1, antes de 1940, atualmente de2.000 para 1. Dito de outra forma, os ritmos de progresso da produtividade naagricultura ultrapassaram de longe aqueles das outras atividades, provocandouma queda nos preos reais de 5 para 1.

    O capitalismo sempre combinou dimenses destrutivas sua dimensoconstrutiva (a acumulao do capital e o progresso das foras produtivas); oser humano foi reduzido a ser apenas o portador da fora de trabalho, que tratada como mercadoria, certas bases naturais da reproduo da produo eda vida foram sendo destrudas no longo prazo. Fragmentos de sociedadesanteriores e s vezes povos inteiros foram destrudos como os ndios daAmrica do Norte. O capitalismo sempre integrou (os trabalhadores que elesubmetia s diversas formas de explorao do capital em expanso atravs

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    do emprego, em termos diretos) e simultaneamente excluiu (aqueles que, ten-do perdido as posies que ocupavam nos sistemas anteriores, no foram inte-grados ao novo). Mas, em sua fase ascendente, e por isso historicamente pro-gressista, ele integrava mais do que exclua.

    Esse no mais o caso, como podemos ver precisamente e de formadramtica no caso da nova questo agrria. Pois, com efeito, como a Organiza-o Mundial do Comrcio impe doravante, aps a conferncia de Doha (no-vembro de 2001), a agricultura foi integrada ao conjunto das regras gerais daconcorrncia, os produtos agrcolas e alimentares foram assimilados s mer-cadorias como as outras, indiscutvel quais sero as conseqncias nas con-dies de gigantesca desigualdade entre o agro-business de um lado e a produ-o camponesa, de outro.

    Cerca de vinte milhes de modernas fazendas adicionais poderiam pro-duzir o essencial do que os consumidores urbanos solvveis ainda compram daproduo camponesa. Para isso teriam que ter acesso a reas de terra, na quan-tidade que fossem necessrias (que seriam retiradas das economias campesinassendo escolhidos, sem dvida, os melhores solos), e acesso aos mercados decapitais, que lhes permitissem equipar-se. Mas, no que se converteriam os bi-lhes de camponeses no competitivos? Eles sero inexoravelmente elimina-dos no curto espao de tempo histrico de algumas dezenas de anos. No que setornaro esses bilhes de seres humanos, a maioria deles pobres entre os po-bres (trs quartos de subnutridos do mundo so do campo)? No horizonte decinqenta anos, nenhum desenvolvimento industrial mais ou menos competiti-vo, mesmo na hiptese fantasista de um crescimento contnuo de 7%, ao ano,para trs quartos da humanidade, poderia absorver o que seja um tero dessareserva. Isso quer dizer que o capitalismo , por natureza, incapaz de resolvera questo camponesa e que a nica perspectiva que ele oferece a de umplaneta favelizado e de cinco bilhes de seres humanos em excesso.

    Ns chegamos, ento, a um ponto em que, para abrir um novo campopara a expanso do capital (a modernizao da produo agrcola), ser ne-cessrio destruir em termos humanos sociedades inteiras. Vinte milhesde novos produtores eficazes (cinqenta milhes de seres humanos, contandosuas famlias) de um lado, trs bilhes de excludos, de outro. A dimensocriadora da operao no representa mais do que uma gota dgua frente aooceano de destruio que ela exige. Concluo que o capitalismo entrou em suafase senil descendente; a lgica que comanda esse sistema no est mais emcondies de assegurar a simples sobrevivncia de metade da humanidade. Ocapitalismo converte-se em barbrie, ele convida indiretamente ao genocdio.

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    Mais do que nunca necessrio substituir a sua lgica por outras lgicas dedesenvolvimento, de uma racionalidade superior.

    O argumento dos defensores do capitalismo que a soluo da questoagrria na Europa foi o xodo rural. Porque os pases do Sul no reproduziri-am, com um ou dois sculos de atraso, um modelo anlogo de transformao?Esquecem que as indstrias e os servios urbanos europeus do sculo XIXexigiam mo de obra abundante e que o excedente desta pode emigrar emmassa para as Amricas. O terceiro mundo contemporneo no tem essa possi-bilidade e se ele quiser ser competitivo como lhe ordenam que seja deverrecorrer logo s modernas tecnologias que exigem pouca mo-de-obra. A po-larizao produzida pela expanso mundial do capital probe que o Sul repro-duza com algum retardo o modelo do Norte.

    O argumento no qual o desenvolvimento do capitalismo resolveu bem aquesto agrria nos centros do sistema sempre exerceu uma poderosa atrao,inclusive no marxismo histrico. O testemunho a clebre obra de Kautski (Aquesto agrria), anterior primeira guerra mundial e bblia da social-demo-cracia nesse domnio. Esse ponto de vista foi herdado pelo leninismo e coloca-do em prtica com os duvidosos resultados que se conhece atravs daspolticas de modernizao da agricultura coletivizada da poca estalinista.De fato, o capitalismo resolveu bem ( sua maneira) a questo agrria noscentros do sistema, todavia, pois ele indissocivel do imperialismo, criouuma nova questo agrria em suas periferias, com uma amplitude gigantesca,que ele incapaz de resolver (salvo com a destruio genocida da metade dahumanidade). No campo do marxismo histrico, somente o maosmo tinhaapreendido a amplitude do desafio. por isso que os crticos do maosmovem nele um desvio campons, essa afirmao testemunha que eles notm os instrumentos necessrios para compreender o que o capitalismo real-mente existente (sempre imperialista), pois eles se contentam em substitu-lopor um discurso abstrato sobre o modo de produo capitalista em geral.

    Ento, o que fazer? preciso aceitar a manuteno de uma agricultura camponesa durante

    todo o futuro previsvel do sculo XXI. E isso, no por razes de uma nostalgiaromntica do passado, mas simplesmente porque a soluo do problema passapela superao da lgica do capitalismo, inscrevendo-se na longa transiosecular para o socialismo mundial. Ento, preciso imaginar polticas de regu-lao das relaes entre o mercado e a agricultura camponesa. Nos nveisnacionais e regionais, essa regulao, particular e adaptada s condies lo-cais, deve proteger a produo nacional, assegurando assim a indispensvel

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    segurana alimentar das naes e neutralizando a arma alimentar do imperia-lismo dito de outro modo, desconectar os preos internos dos preos domercado mundial , assim como deve atravs da progresso da produtivi-dade na agricultura camponesa, sem dvida lenta, mas contnua permitir ocontrole da transferncia da populao do campo para as cidades. Ao nvel doque se chama o mercado mundial, a regulao desejvel passa provavelmentepor acordos inter-regionais, por exemplo, entre a Europa de um lado, a frica,o mundo rabe, a China e a ndia, por outro lado, respondendo s exigncias deum desenvolvimento que integre ao invs de excluir.

    5. A senilidade do capitalismo no se expressa exclusivamente nas esfe-ras de reproduo econmica da sociedade. Sobre essa base infraestruturaldecisiva se implantam mltiplas manifestaes, s vezes de recuo em relaoao pensamento universalista burgus (ao qual os novos discursos ideolgicossubstituem a colcha de retalhos chamada de ps-modernismo) e de regressonas prticas de gesto da poltica (colocando em questo a tradio democrti-ca burguesa).

    No tenho a inteno de propor aqui um catlogo dessas manifestaesque teria a ambio de ser exaustivo. Proporei apenas uma seleo que meparece ser instrutiva.

    A financeirizao do sistema de gesto econmica , segundo meu pontode vista, somente um fenmeno transitrio, caracterstica dos momentos decrise como o nosso. Mas ela nutre alguns desenvolvimentos ideolgicosreveladores. Alguns desses como o anncio da pretensa passagem para umcapitalismo popular (verso vulgar dos discursos eleitorais ou a verso pre-tensiosa do modo de acumulao patrimonial) no so nada mais do quetestemunhos de ingenuidade (para quem acredita) ou de manipulao. Outrosso testemunhos de uma alienao de intensidade redobrada. A crena que odinheiro se multiplica, simplesmente esquecendo toda a referncia base pro-dutiva que permite o seu proprietrio de obter benefcios, constitui manifesta-mente uma regresso do pensamento econmico, que atinge o estgio supremode alienao e por isso uma decomposio da razo.

    O discurso ideolgico ps-modernista alimenta-se de regresses simila-res. Recuperando todos os preconceitos comuns produzidos pela desordemprpria a momentos como o nosso, ele se alinha, sem nenhuma preocupaocom a coerncia, ao conjunto dos convites desconfiana em relao aos con-ceitos de progresso e universalismo. Mas, longe de aprofundar uma crticasria dos limites dessa expresso da cultura das Luzes e da histria burguesa,

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    longe de analisar suas contradies efetivas, agravadas pela senilidade do sis-tema, esse discurso contenta-se em se substituir s proposies indigentes daideologia liberal americana: viver a sua poca, adaptar-se, gerir o quoti-diano, que dizer, abster-se de refletir sobre a natureza do sistema, e principal-mente de colocar em questo suas opes do momento.

    Ao invs do esforo necessrio para a transgresso dos limites do univer-salismo burgus, o elogio das diversidades herdadas proposto em seu lugar,que ento funciona em perfeito acordo com as exigncias do projeto demundializao do imperialismo contemporneo. Um projeto que s pode pro-duzir um sistema organizado de apartheid em escala mundial, alimentado, comoele , pelas ideologias comunitaristas reacionrias da tradio norte-ameri-cana. O que eu qualifico como recuo culturalista, e hoje ocupa a frente dacena, acionado e manipulado pelos senhores do sistema, como tambm,freqentemente, reaplicado pelos povos dominados em desordem (sob a for-ma, por exemplo, do Islam ou do hindusmo polticos).

    O conjunto dessas manifestaes, ao mesmo tempo de desordem e derecuo em relao ao que foi o pensamento burgus, apresenta como saldo umadegradao da prtica poltica. O princpio mesmo da democracia baseado napossibilidade de fazer escolhas alternativas. Desde o momento em que a ideo-logia conduz aceitao da idia de que no h outra alternativa, pois a ade-so a um princpio de racionalidade superior, meta-social, permitiria eliminar anecessidade e a possibilidade de escolha, no h mais democracia. Ora, o cha-mado princpio da racionalidade dos mercados preenche exatamente essafuno na ideologia do capitalismo senil. Ento, a prtica democrtica se esva-zia de todo o contedo e o caminho est aberto para o que eu chamei de demo-cracia de baixa intensidade, para as palhaadas eleitorais onde os desfiles decoristas substituem os programas, moda da sociedade do espetculo. Apoltica, deslegitimada por essas prticas, se desfia, parte deriva e perde o seupotencial de dar um sentido e coerncia aos projetos alternativos de sociedade.

    Mesmo a burguesia, enquanto classe dominante estruturada, no est elaem vias de mudar sua aparncia? Durante toda a fase ascendente de sua his-tria, a burguesia constituiu-se como determinante principal da sociedade ci-vil. Isso no implicaria tanto uma estabilidade relativa dos homens (poucasmulheres na poca) ou pelo menos das dinastias familiares de capitalistas-em-preendedores (a concorrncia implicava sempre uma certa mobilidade entre ospertencentes essa classe falncias e novos ricos lado a lado), quanto a forteestruturao da classe em torno de sistemas de valores e de condutas. A classedominante ento podia invocar a honradez de seus membros para assentar a

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    legitimidade de seus privilgios. O que cada vez menos o caso. Um modeloprximo ao da mfia parece estar destinado a tomar seu lugar, tanto no mundodos negcios quanto no da poltica. A separao entre esses dois mundos que, todavia, caracterizava os sistemas anteriores do capitalismo histrico semserem estanques est, alis, em vias de extino. Esse modelo no prpriosomente dos pases do terceiro mundo e do antigo leste, chamado de socialista,ele tende a tornar-se a regra no prprio corao do capitalismo central. Comoqualificar de outra forma personagens como Berlusconi, na Itlia, Bush (impli-cado no escndalo da Enron), nos Estados Unidos, e tantos outros por a? Alinguagem popular em certos pases do terceiro mundo, segundo meu conheci-mento, j inventou termos muito apropriados para designar a nova classe diri-gente. No Mxico so chamados de los seores del poder, no Egito, osbaltagui (arrogantes braos termo que no seria jamais utilizado paradesignar a antiga aristocracia ou a tecnoburocracia nasseriana). Nos dois casos,bilionrios (homens de negcios) e polticos esto confundidos nos termosem questo. Todavia, uma pesquisa sistemtica e sria sobre as transformaesem curso nas burguesias do capitalismo senil ainda est por ser feita.

    6. Mas um sistema senil no um sistema que se arrasta tranqilamenteem seus ltimos dias. Ao contrrio, a senilidade exige um recrudescimento daviolncia.

    O sistema mundial no entrou em uma nova fase no-imperialista, quepudesse ser qualificada de ps-imperialista. Ao contrrio, ele est na prprianatureza de um sistema imperialista exacerbado ao extremo (extrao sem con-trapartida). A anlise que Hardt e Negri propem um Imprio (sem imperia-lismo), de fato um Imprio limitado trade, ignorando o resto do mundo,infelizmente inscreve-se ao mesmo tempo na tradio do ocidentalismo e nodiscurso de nossa poca. As diferenas entre o novo imperialismo e o prece-dente situam-se em outros pontos. No fato que o imperialismo do passado seconjugava no plural (os imperialismos em conflito), e que o novo coletivo(a trade, que sejam na esteira da hegemonia dos Estados Unidos). Desse fato,os conflitos entre os partidrios da trade no operam mais do que em tommenor, o tom maior est dado pelo conflito entre a trade e o resto do mundo. Odesaparecimento do projeto europeu frente hegemonia americana encontra oseu lugar aqui. No fato de que a acumulao durante a etapa imperialista ante-rior era baseada sobre o binmio centros industrializados/periferias no indus-trializadas, enquanto que nas novas condies de evoluo do sistema o con-traste ope doravante os beneficirios dos novos monoplios dos centros

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    (tecnologia, acesso aos recursos naturais, comunicaes, armamentos de des-truio em massa) s periferias industrializadas, mas todavia subalternas, pormeio desses monoplios. Negri e Hardt tiveram necessidade, para fundamen-tar a sua tese, de utilizar uma definio estritamente poltica do fenmenoimperialista (a projeo do poder nacional alm das fronteiras), sem relaocom as exigncias da acumulao e reproduo do capital. Esta definio, que a da politicologia vulgar universitria, particularmente norte-americana, eva-cua por si as verdadeiras questes. Os discursos que eles substituem tratam,pois, de uma categoria imprio situada fora da histria e, ento, confundemalegremente Imprios romano, otomano, austro-hngaro, russo, colonialismosbritnicos e francs, sem a preocupao de levar em considerao as especifi-cidades dessas construes histricas irredutveis umas s outras.

    O novo estilo de Imprio definido, pelo contrrio, como uma rede depoderes, cujo centro est em todo lugar e em nenhum, o que dilui a importn-cia da instncia constituda pelo Estado nacional. Por outro lado, no essencial,essa transformao atribuda ao desenvolvimento das foras produtivas (arevoluo tecnolgica). Uma anlise ingnua que isola o poder da tecnologiado contexto das relaes sociais no seio da qual ela opera. Outra vez encontra-mos aqui as proposies do discurso dominante banalizado por Rawls, Castells,Touraine, Reich e outros, segundo a tradio do pensamento poltico liberalnorte-americano.

    As verdadeiras questes que a articulao entre a instncia poltica (oEstado) e a realidade da mundializao colocam, que deveriam estar no centroda anlise do que existe eventualmente de novo na evoluo do sistema ca-pitalista, ento so simplesmente eludidas pela afirmao gratuita que o Esta-do praticamente deixou de existir. De fato, mesmo nas etapas anteriores docapitalismo, sempre mundializado, o Estado jamais havia estado onipresen-te. Seu poder sempre esteve limitado pela lgica que comandava asmundializaes da poca. Dentro desse ponto de vista, Wallerstein chegou atmesmo a atribuir, s determinaes globais, um poder decisivo sobre o destinodos Estados. E no diferente atualmente, a diferena entre a mundializao(o imperialismo) de hoje e a de ontem se situa em outro lugar.

    O novo imperialismo tem muito bem um centro a trade e um cen-tro dos centros aspirando a exercer a sua hegemonia os Estados Unidos. Eleexerce a sua dominao coletiva sobre o conjunto das periferias do planeta(trs quartos da humanidade) por meio de instituies criadas para essa finali-dade e controladas por ele. Umas tm como tarefa a gesto econmica do sis-tema imperialista mundial. Em primeiro lugar na escala, a OMC cuja funo

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    real no a de garantir a liberdade dos mercados como ela pretende, mas, aocontrrio, de superproteger os monoplios (dos centros) e de moldar os siste-mas de produo perifricos em funo dessa exigncia; o FMI, no se ocupacom as relaes entre as trs principais moedas (o dlar, o euro e o yen), elepreenche as funes de uma autoridade monetria colonial coletiva (da trade);o Banco Mundial que uma espcie de Ministrio da Propaganda do G7. Ou-tras instituies tm a seu cargo a gesto poltica do sistema; e diz respeito aOTAN, que substituiu a ONU para falar em nome da coletividade mundial! Oacionamento sistemtico do controle militar do Planeta pelos Estados Unidosexprime mais do que brutalmente essa realidade imperialista. A obra de Negrie Hardt no discute as questes relativas s funes dessas instituies, e mui-to menos ela faz meno da multiplicidade de fatos que gerariam a tese ing-nua do poder em rede: as bases militares, as intervenes pela fora, o papelda CIA, etc.

    Da mesma maneira, as verdadeiras questes que a revoluo tecnolgicacoloca sobre a estrutura de classes do sistema so abandonadas em beneficioda categoria vaga de multitude, anloga a pessoas (the people), da sociolo-gia vulgar. As verdadeiras questes esto em outros pontos: como a revoluotecnolgica em curso (cuja realidade no objeto da menor dvida possvel),como todas as revolues tecnolgicas, decompe com violncia as formasantigas de estruturao afetando a organizao do trabalho e as classes, en-quanto as formas novas de sua recomposio ainda no cederam o lugar aalguma cristalizao visvel?

    Para coroar o conjunto e dar um aspecto de legitimidade s prticas im-perialistas da trade e hegemonia dos Estados Unidos, o sistema produziu oseu prprio discurso ideolgico, adaptado s novas tarefas agressivas. O dis-curso sobre o choque de civilizaes est muito bem destinado para cimen-tar o racismo ocidental, visando conseguir a aceitao da opinio pblicapara a implementao da apartheid em escala mundial. Esse discurso , segun-do meu ponto de vista, muito mais importante do que as revoadas lricas apropsito da chamada sociedade em redes.

    O crdito obtido pela tese do imprio, junto a uma frao das esquerdasocidentais, e dos jovens, tem tudo a ver, creio eu, com as palavras severas queela dirige contra o Estado e a Nao. O Estado (burgus) e o nacionalismo(chauvinista) sempre foram, com razo, objeto de rejeio da esquerda radical.Adiantar que o novo capitalismo amortece a sua decadncia s pode dar pra-zer. Mas a proposio infelizmente no verdadeira. O capitalismo tardio bemque coloca na ordem do dia a necessidade objetiva e a possibilidade de enfra-

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    quecimento da lei do valor. A revoluo tecnolgica torna possvel, nesse con-texto, um desdobramento de uma sociedade em rede e o aprofundamento damundializao bem que desfaz as Naes. Mas o capitalismo senil se ocupa,pela violncia do imperialismo que o acompanha, em anular todas essas poten-cialidades de emancipao. A idia de que o capitalismo poderia ajustar-se atransformaes libertadoras quer dizer produzir, mesmo sem querer,... tobem quanto o socialismo est no corao da ideologia liberal americana. Asua funo de adormecer e de provocar a perda da medida dos verdadeirosdesafios e das lutas necessrias para lhe fazer face. A estratgia anti-Estado,que a obra sugere, vai perfeitamente de encontro quela do capital, que seocupa de limitar as intervenes pblicas (sem a suprimir completamente,liquidando somente a prtica poltica que lhe permite preencher outras fun-es). Da mesma maneira, o discurso anti-Nao conduz aceitao do pa-pel dos Estados Unidos como superpotncia militar e policial mundial. Preci-samos de outra coisa: fazer progredir a prxis poltica, lhe dar seu pleno sentido;fazer avanar a democracia social e cidad, dar aos povos e s naes maismargem de ao dentro da mundializao. Que, para fazer isso, as frmulasutilizadas no passado tenham perdido eficcia nas novas condies, que seja.Que certos adversrios da realidade neoliberal e imperialista nem sempre ovejam e se nutram das nostalgias do passado, que seja. Mas, o desafio perma-nece integral.

    7. A senilidade se exprime pela substituio do modo anterior de des-truio criadora por um modo de destruio no criadora. Fao minha aanlise proposta por J. Beinstein, h destruio criadora (expresso de Schum-peter) quando no seu ponto de partida h uma acelerao da demanda, enquan-to que, se ns temos um abrandamento na demanda no ponto de partida, adestruio que toda inovao tecnolgica produz no mais criativa. Podemosainda analisar essa transformao qualitativa do capitalismo nos termos pro-postos por A. Hoogdvelt: a passagem de um capitalismo em expanso(expanding capitalism) para um capitalismo em contrao (shrinkingcapitalism).

    A acumulao de capital sempre comportou ao mesmo tempo uma di-menso construtiva e criadora e outras dimenses destrutivas. Como todo sis-tema vivo, o capitalismo baseando nessa prpria contradio interna. Comotodo sistema vivo, o seu destino no perpetuar-se infinitamente e para a eter-nidade. Como todo sistema vivo, chega um momento a partir do qual as forasdestrutivas, que esto associadas continuidade de sua reproduo, triunfam

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    sobre aquelas que asseguram a sua legitimidade, pela sua dimenso positiva econstrutiva. Ns chegamos a esse momento: a continuidade da acumulao, nocontexto das relaes sociais prprias ao capitalismo e naquele do imperialis-mo que lhe indissocivel, com base nas novas tecnologias, implica um verda-deiro genocdio. A metade ou mais da humanidade intil. Esses no podemmais ser integrados (que sejam como fornecedores de fora de trabalho ex-plorada), eles so destinados a serem excludos. Doravante, o capitalismoexclui mais do que ele pode integrar em uma escala e propores gigantescas.O capitalismo esgotou o seu tempo. Longe de permitir a utilizao do poten-cial que o progresso da cincia e da tecnologia permitira em princpio (precisa-mente essa sociedade em rede que no existe, ou mais precisamente, que sexiste sob aspectos deformados impostos pela dominao do capital), longe depermitir a acelerao do desenvolvimento sob formas apropriadas na periferia,o capitalismo imperialista anula esses potenciais de emancipao.

    A alternativa objetivamente necessria e possvel implica, ento, a trans-formao das relaes sociais que asseguram a dominao do capital em gerale aquela dos centros sobre as periferias, em particular. Como qualificar estaalternativa de outro modo que no seja pela expresso de socialismo em escalamundial? Um sistema no qual a integrao dos seres humanos seria feita nomais pelo mercado (que nas condies do capitalismo contemporneo ex-clui mais do que integra) mas pela democracia, tomada em seu sentido maispleno e mais rico.

    Esta alternativa possvel, mas ela no certa de maneira alguma, nosentido de que seria imposta pelas leis da histria. Todo sistema que estenvelhecendo se decompe, mas os elementos resultantes de sua decomposi-o, se bem que eles devem recompor-se um dia, podem recompor-se de dife-rentes maneiras. Rosa Luxemburgo falava, j em 1917, de socialismo oubarbrie; eu resumi os termos da alternativa, h trinta anos, na frmula revo-luo ou decadncia. Eu acreditei que era possvel fornecer uma anlise te-rica das razes dessa incerteza incontornvel no desenvolvimento das socie-dades humanas, propondo a tese de uma sub-determinao em lugar dasobre-determinao, na articulao das diferentes instncias que constituema estrutura dos sistemas sociais.

    Abstract

    This paper analyses the current phase of capitalism, in which its creative dimensionis overtaken by destructive tendencies. We call this phase senile capitalism. Imperialism,that was previously multipolar, has become unipolar; the triad United States, Europe

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    and Japan is under US hegemony.Senile capitalism is defined by its economic,political, cultural and military aspects. This conception is contrasted with the view thatimperialism is defined primarily by its political dimension, in which there is no longeran imperialist centre. The historical development of capitalism shows both the needand the possibility for its overthrowing. However,this cannot happen automatically,merely through the the operation of the laws of history.Keywords: senile capitalism; imperialism; technological revolution; creative destruction.

    (Traduzido do francs por Paulo Nakatani,reviso de Rosa Maria Marques.)

    Referncias bibliogrficas

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