Amazônia: Pescadores contam histórias

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Amazônia: Pescadores contam históriasMinistério do Meio Ambiente – Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio, Marina Silva( MMA), Muriel Saragoussi(Secretaria de Coordenação da Amazônia), Marcus Luiz Barroso Barros(nstituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), Alberto Carlos Lourenço Pereira(Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil), Rômulo José Fernandes Barreto( Diretoria de Fauna e Recursos Pesqueiros), José Dias Neto (Projeto Manejo)

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Financiadores

Ministério do Meio Ambiente – MMAMarina Silva

Secretaria de Coordenação da AmazôniaMuriel Saragoussi

Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais RenováveisMarcus Luiz Barroso Barros

Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do BrasilAlberto Carlos Lourenço Pereira

Diretoria de Fauna e Recursos PesqueirosRômulo José Fernandes Barreto Mello

Coordenação Geral de Gestão de Recursos PesqueirosJosé Dias Neto

Projeto Manejo dos Recursos Naturais da Várzea – ProVárzea/IbamaCoordenador: Mauro Luis Ruffino

Gerente Executivo: Benedito A. Pessoa ReisPerito: Darren Andrew Evans (DFID)

Perito: Fery Shodjai (GTZ)Assessoria de Comunicação: Aparecida Heiras, Manuel da Silva Lima, Marinês da Fonseca Ferreira

Equipe ProVárzea/IbamaAdriana Melo, Albermaya Xabregas, Aparecida Heiras, Anselmo de Oliveira, Alzenilson Aquino,

Antônia Barroso, César Teixeira, Cleucilene Nery, Emerson Soares, Evandro Câmara, Flávio Bocarde, Joelcia Figueiredo,

Kate Anne de Souza, Luiz Alexandre Voss, Manuel Lima, Marcelo Derzi, Marcelo Parise, Marcelo Raseira, Márcia Escóssio,

Márcio Aguiar, Maria Clara Silva-Forsberg, Marinês Ferreira, Mário Thomé, Natália Lima, Núbia Gonzaga,

Raimunda Queiroz, Ricardo Lima, Rosilene Bezerra, Simone Fonseca, Tatianna Silva, Tatiane dos Santos,

Urbano Lopes, Willer Hermeto Almeida

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Santarém - PA2004

Amazônia: Pescadorescontam histórias

Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

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Coordenação editorial Mauro Ruffino

Edição de texto Thais Helena Medeiros

Revisão Regina Glória Pinheiro Cerdeira

Hélcio Amaral de SousaPaulo Roberto Spósito de Oliveira - MagnólioVinícius Xavier Zammataro

Ilustrações Eduardo Clemente - Santarém-PA

Fotos Thais Helena Medeiros

Foto da capa Arquivo PróVárzea/Ibama/L.C. Marigo

Projeto gráfico e Editoração eletrônica Fábio Martins

Revisão de texto Peta Teixeira

Marinês Ferreira

Foto da capa: Pirarucu (Arapaima gigas).

É proibida a reprodução total ou parcial deste livro. Todos os direitos reservado à autora.

Copyright © 2004 – ProVárzea/Ibama

G146a Galúcio, Dorenilce Maria Rodrigues. Amazônia: Pescadores contam histórias / Dorenilce Maria Rdorigues

Galúcio. – Manaus: Ibama/Provárzea, 2004. 132p. : il.; 29 cm. – (Coleção Retrato Regional)

ISBN 85-7300-178-X

1. Literatura. 2. Pesca. 3. Conservação da natureza. I. InstitutoBrasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. II.Projeto Manejo dos Recursos Naturais da Várzea – Provárzea. III. Título.IV. Coleção.

CDU (2.ed.) 502

Catalogação na FonteInstituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

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Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

MAgradecimentos

Meus agradecimentos a todos, por que não dizer, co-autores deste livro. Sim,porque sem a colaboração muito especial desses pescadores e pescadoras maravilho-sos e suas histórias sem limites, esta obra não existiria! Pescadores(as), pilotos(as),parceiros(as)...

Região Cidade, Santarém: Esaltino dos Santos Costa (Quebra-Gelo), ManuelJorge Pereira dos Santos, Jonas Ferreira, Benedito Monteiro Galúcio, Moacir O. Ferreira– comunidade do Juá, rio Tapajós: Raimundo Nonato de Sousa, Maria Ornelinda Cae-tano, Raimunda dos Santos Ferreira, José Maria Gomes (Pelé) – comunidade doCucurunã, rio Tapajós: : : : : Lorivaldo Rebelo Miranda, Wilson Sousa dos Santos – Comérciode Peixe Tablado: Sebastião de Sousa, Raimundo Ferreira Pereira– comunidade do Maracanã, rio Tapajós: Maria Luiza Pinto Sousa, Reginaldo CostaCorreia, Acyr Correia Amaral, Carlos Augusto dos Santos Moraes, Domingos AdalbertoRibeiro dos Reis.

Região do Maicá, várzea do rio Amazonas: – comunidade de Urumanduba/Mararu: Renato dos Santos Ribeiro, Eurides dos Santos Pereira – comunidade de BomJardim: Dileudo Guimarães dos Santos.

Região do Lago Grande do Curuai , várzea do rio Amazonas, Vila Curuai: Enéiasda Silva Nogueira, Emerson Feleó, Lourenço de Sousa Rodrigues, Sebastião Aires Fari-as, Sérgio Duval dos Santos Pereira (o Basinho), Sansão Bento Lourido, Pedro Figueirade Sousa, Rita Maria Silva de Sousa – comunidade do Inanu: Valdemir da Silva, RaimundoNonato de Sousa Galúcio, José Edimilson Galúcio Rodrigues, Olavo Afonso GalúcioRodrigues, Miguel Galúcio, Adenil Rodrigues de Sousa, Raimundo Galúcio, RainérioBatista, José Monteiro Guimarães, Dorinelson Lopes Barbosa, Raimundo Ester SousaSobrinho – comunidade de Torrão do Papa Terra: Maria Lázara Reis dos Santos, JocelinaRodrigues de Licata, Genildo, Edivaldo Campos Licata, Wilson Mota de Sousa – comu-nidade de São Jorge: Haroldo Viana dos Santos, Delmas Rocha, Maria do Carmo,Pedro Santos do Amaral, Renato Santo, Manuel Idalécio Borge Rocha, Raimunda Duartedos Santos, Hélio Rodrigues Pereira dos Santos – comunidade de Uruari: José Raimundode Sousa, Silvio Nogueira do Carmo – comunidade de Peré Boa Vista: Manuel Pedrosode Lima Ferreira, Valci Sousa, Nestor Mota Leal, Maria Nanci Castro Leal – comunidadede Peré Salvação::::: Raimundo Nicolino de Sousa – comunidade de Jacaré: EdmundoBranches Prata – comunidade de Acutireça: Vilfredo Soares, Maria Ester Gonçalves,Francisca Gonçalves – comunidade de Ajamuri: José Caldeira, Tobias Figueira da CostaFilho – comunidade de Cururú: Aureliano Branches.

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Região do Ituqui, várzea do rio Amazonas: – comunidade de São José: VeraLúcia dos Santos, José Luis dos Santos, Inaíde Silva dos Santos – comunidade deAracampina: José Orivaldo Silva Coelho – comunidade de Fé em Deus I: Dilza MariaFerreira dos Santos, Antonio Osmar de Oliveira Didiet.

Região do Aritapera, várzea do rio Amazonas: – comunidade Ilha de São Miguel:José Eli Rocha Sá.

Região do Tapará, várzea do rio Amazonas: Manuel Jorge Pereira dos Santos –comunidade Costa do Tapará: : : : : Manuel Pereira.

Região do Urucurituba, várzea do rio Amazonas: – comunidade Fátima doUrucurituba: : : : : Eduardo José da Costa Maia, Haroldo Santos, Aílton José, Erivan AdemarSantos – comunidade de Saracura: : : : : Aldo Santos.

Vila Barbosa, rio Amazonas, Óbidos: João Antonio Barbosa, Divair BarbosaRamos, Evaldo Venâncio, Emerson Marinho Barbosa, Manuel Barbosa, Maria das Gra-ças Magno, Juciê Perdeira Venâncio, Papão.

A Raimunda Rilza de Sousa e Jorge Joaquim Costa da Silva por terem me aju-dado na primeira versão do projeto deste livro.

A Laurimar Leal, pela participação devotada na cultura santarena.Aos companheiros de viagens Rionaldo, Isaac, Dinho e Manan.Também agradeço:Roberto Cardoso Marinho e a todos os diretores da Colônia de Pescadores Z-20.Sônia Maria Leão Pereira/ Associação das Mulheres Pescadoras, Artesãs e

Agricultoras (Amupaa)Marcelo Apel e Alcilene Cardoso/ Instituto de Pesquisa da Amazônia (Ipam)A meus filhos Vera Claudia, Kelly, Elton, George e Aleandro Afonso.Meu esposo Benedito Monteiro Galúcio.Meus irmãos José Edimilson, Dorilda, Dorina, Antonio Matias, Lorença, Olavo

Afonso e minha cunhada Maria Dacilene Farias Rodrigues e à Firma dos Santos Rodrigues,de todo meu coração!

Fery Shodjai, a você meu muito obrigada por ter acreditado nessa idéia e terme subsidiado para realizá-la.

A minha Senhora Mãe D’Água e Protetora Divina.A meu São Lázaro, a meu Deus!

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Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Sumário

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .9Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11A autora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13Dedicatória . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15Meio ambiente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

Os pescadores(as) falam da pesca no passado e nos dias de hoje . . . . . . . . . . . . 17Arreios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23As doenças do pescador(a) adquiridas na pesca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

A salga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33A farinha de piracuí . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

A mulher amazônida e sua relação com a pesca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .36Contadores de histórias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40Os pescadores(as) e suas regiões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48

Uma região: Lago Grande do Curuai . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48Outra região: igarapé do Irurá e Igarapezinho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54Mapiri, tu fostes um encanto! Hoje, ouço teu pranto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55

Pescadores e suas histórias imortais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70De boca em boca, a imortalidade continua... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

Três peixes na Amazônia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83Pirarucu, o gigante pré-histórico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .83Jaraqui, o cardume listrado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89Peixe-boi, o mamífero aquático . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

Como surgiu a Colônia de Pescadores Z-20 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93Núcleo de Base . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96Acordos e Conselhos de Pesca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98A Colônia que sonhei Uma Colônia, um sonho... uma possível realidade? . . . . 99

O poder da fé e da magia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101Crenças . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101Crendices . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .102Cobra grande . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106Boto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111Visagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122

Glossário . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127

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Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

OApresentação

O Projeto Manejo dos Recursos Naturais da Várzea - ProVárzea/Ibama é umprojeto do Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil – PPG7,executado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis- Ibama, coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente - MMA e financiado comrecursos do Fundo Fiduciário para a Floresta Tropical - RFT do Banco Mundial, Depar-tamento do Desenvolvimento Internacional - DFID do Reino Unido, Agência de Coo-peração Alemã - GTZ, Banco de Reconstrução do Governo Alemão - KfW e o GovernoBrasileiro.

O objetivo do ProVárzea/Ibama é estabelecer bases científica, técnica e políticapara a conservação e o manejo ambiental e socialmente sustentável dos recursos na-turais da várzea, na calha central da bacia amazônica, com ênfase nos recursos pes-queiros. Ao fim de sua execução o Projeto prevê que seus resultados tenham influenci-ado mudanças nas políticas públicas ambientais, além de favorecer o desenvolvimentode meios de vida sustentáveis e o melhoramento dos sistemas relacionados aomonitoramento e controle e a promoção de co-gestão em áreas de várzea.

Previsto inicialmente para ter duração de cinco anos (2000-2005), o ProVárzea/Ibama teve início em julho de 2000 e em função dos seus ótimos resultados foi prorro-gado até final de 2007. O projeto vem sendo executado em parceria com instituiçõesgovernamentais e não-governamentais, organizações pesqueiras e comunitárias.

Para a execução do Projeto, o ProVárzea/Ibama adotou a abordagem dos Mei-os de Vida Sustentáveis porque é centrada nas pessoas, valoriza o potencial e os recur-sos das pessoas, é participativa, é holística, vincula micro e macro, é dinâmica e flexível,é voltada para impactos, é voltada para a sustentabilidade, busca a inclusão social,reconhece questões de gênero e outras formas de diferença social e reconhece asrelações de poder.

A abordagem é centrada nas pessoas porque o processo é iniciado com a aná-lise dos meios de vidas delas e da forma como esses meios de vida mudam no decorrerdo tempo. Envolve as pessoas e respeita suas opiniões. Apóia as pessoas para quealcancem seus próprios objetivos quanto aos seus meios de vida. Valoriza o potenciale os recursos das pessoas, não observa somente o que falta. Desperta o potencial decada um e é participativa porque utiliza metodologias para estimular à participação.Busca a inclusão social quando promove a melhoria da qualidade de vida dos menosfavorecidos. Promove a redução das desigualdades sociais (gênero, raça, etnia, classe,

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idade, orientação sexual, religião, localização geográfica, entre outras). Reconhece evaloriza as diferenças sociais, combatendo a discriminação. Reconhece questões degênero e outras formas de diferença social quando analisa a situação local. Busca aeqüidade nas relações de gênero. Promove o exercício da cidadania e dos direitos.

A Coleção Retrato Regional busca justamente resgatar e documentar os cincorecursos utilizados pela abordagem dos Meios de Vida Sustentáveis adotada peloProVárzea/Ibama que são: recursos humanos, como habilidades, conhecimento, edu-cação, saúde, auto-estima, integridade, ética, fé, esperança, espiritualidade e outros.Recursos sociais e políticos, como família, amigos, colegas, associações formais e infor-mais, contatos, sindicato, capacidade de influência, participação, mobilização e ou-tros. Recursos físicos, como casa, escola, centro de saúde, transporte (público ou pri-vado), água encanada, eletricidade, meios de comunicação, terreno (propriedade) eoutros. Recursos financeiros, como poupança, salário, crédito, bens com valor de trocae outros. E, finalmente, recursos naturais, flora, fauna, qualidade do ar, água, solo,ciclos naturais e outros.

A presente publicação resgata e documenta as histórias de pescador, mas so-bretudo registra e descreve a cultura e o saber popular amazônico, as lendas, a geo-grafia, as paisagens, a biodiversidade, as práticas e os meios de vida das pessoas quevivem na várzea. Documenta a luta pela sobrevivência e o direito à cidadania, asvulnerabilidades e estresses a que estão sujeitos os habitantes da várzea. Registra adivisão de trabalho e gênero, as relações de poder, a organização social, os movimen-tos políticos e as relações institucionais a que estão ligados os pescadores do médioAmazonas paraense, na região de Santarém.

Mauro Luis RuffinoCoordenador do ProVárzea/Ibama

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Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

CPrefácio

Contar histórias dos povos da Amazônia é, sobretudo, ouvi-los. Mais do queisso, vivenciar o habitat, andar nas águas barrentas do grandioso rio Amazonas e suavárzea, lagos, canais, paranás, igapós e milhares de igarapés e outros rios -como oTapajós- que deságuam em seu curso rumo ao Oceano Atlântico.

É também se emocionar com rostos marcados pela luta a céu aberto; tão pare-cidos uns com os outros, talvez por carregarem a mesma mistura étnica brasileira. É seenvolver pela cultura e comer peixe “amassado” com a mão, subir as palafitas de suasmoradias... É também conviver com pescadores(as).

Neste livro, Dorenilce Galúcio que é pescadora na região de Santarém, baixoAmazonas e Oeste Paraense, apresenta e organiza histórias de pescadores(as) colhidasem localidades pesqueiras diferenciadas. Grupos sociais que abraçam formas distintasno linguajar popular, fazendo-nos perceber o quão fragmentado por dialetos é a lín-gua portuguesa. Assim, de um lago pesqueiro para outro você identifica maneiras,arreios e peixes distintos num mesmo espaço geográfico.

Aqui como em qualquer lugar do planeta a luta pela terra e pela sobrevivência e odireito à cidadania se intensificam em função da grandiosidade territorial e dos interessespolíticos e econômicos ligados à Amazônia. Após muitos anos de exploração e domíniodos que aqui chegaram e chegam, as populações tradicionais têm desencadeado movi-mentos de base pela manutenção de suas terras de direito e pela Amazônia sustentável.

Falar de pescadores(as) na região de Santarém é falar também da Colônia dePescadores Z-20. Entidade que há tempos ampara as lutas e conquistas da categoria.Hoje, talhada pelas mãos calejadas dos próprios pescadores e pescadoras, incentiva eapóia de fato a classe que representa.

É em função da Colônia que nasceu este livro. Dorenilce Galúcio foi diretora deRelações Públicas e Cultura da entidade, nos anos entre 2001 e 2003. Uma das tarefasestatutárias desse departamento diz que a diretoria tem a missão de registrar e difun-dir a cultura dos pescadores(as) de sua área de abrangência. Dora quis realizar umpouco dessa proposta. Idealizou o livro e foi à luta em busca de financiamento para aprodução literária cultural dos pescadores(as). Foi então que lançou a idéia para FeryShodjai, coordenador da GTZ, uma agência de coooeração alemã no Brasil através doProVárzea/Ibama. Fery acreditou! E aqui estamos anunciando o livro Amazônia: Pesca-dores contam histórias, o resultado de um contrato de desejos mútuos em propagar aAmazônia através de seus povos.

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Dora, você que também é uma guerreira valente e laboriosa articuladora epescadora, me mostrou que vida de pescador(a) não é fácil. Como muitos, eu já sabiaque pescador(a) gosta de inventar e aumentar histórias. Mas você me demonstrou quealém dessas histórias (e/ou estórias na grafia passada) os pescadores e pescadoras seexpõem às intempéries amazônidas como nenhum outro profissional, que apesar dapesada rotina sazonal da várzea, das dificuldades de transporte, educação e saúde quepassam, mostram uma imponente hospitalidade, um carinho inocente natural e curio-sidade pelas pessoas de fora.

Amazônia: Pescadores contam histórias é uma compilação de encontros edesencontros de uma classe social. Muitos que amam de paixão o que escolheram parapraticar, outros que não aconselham nem para seus filhos. Outros ainda, se instalaramnas águas e, como piratas, fazem de suas embarcações e da pescaria a razão de viver.

Acompanhar Dorenilce rio acima, rio abaixo, entrevistando os pescadores(as)por ela selecionados a partir de suas regiões pesqueiras, foi viver um momento muitoespecial. Muito além das expectativas que uma matogrossense do sul poderia viverneste Brasil. A Amazônia nos enlaça por entre seus cipós gigantes assim como somosseduzidos por seus encantadores povos! Foi uma tarefa bem difícil selecionar as melho-res histórias, os bons contadores. Pois, todos são edificadores de vida legítima entre afloresta e as águas amazônicas!

Dora me ofereceu a oportunidade única de conhecer um pouquinho do universodos pescadores e pescadoras das regiões pesqueiras da cidade, do Ituqui, do Urucurituba,Aritapera e Tapará. Todas carregam potentes profissionais e uma beleza natural rara. Masfoi no Lago Grande do Curuai que eu conheci a arte perspicaz da pesca de um peixetinhoso: o pirarucu. Ouvi e transcrevi emocionada, relatos de lendários pescadores embusca do maior peixe de escama da água doce que se entregaram e se entregam sempudor aos perigos reais e mitológicos que habitam as águas. Nomes como o de seu pai,Olavo Rodrigues, e seus parentes Oscar e Tito Galúcio são perpetuados pelos pescadores(as)contadores(as) que os respeitam pelos profissionais que foram.

Dora, no início desse projeto, você me disse que este livro era para todos. E paratal, nós formatamos a estrutura e linguagem pertinentes respeitando o contexto culturalda região. Eu espero que nessa missão nós tenhamos chegado com sucesso. Espero queessa literatura expanda as linhas tênues do território da Amazônia. Que seja capaz demostrar um pedacinho da cultura santarena pesqueira através de histórias contadas pe-los próprios pescadores(as).

Amazônia: Pescadores contam histórias ajude a sensibilizar para o quão importan-te é a preservação e conservação dos recursos naturais e humanos na Amazônia. Que nãosó os pescadores e pescadoras necessitam dela, mas todos nós, o planeta Terra!

Thais Helena Medeiros

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Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

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A autora

Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio, Dora, nasceu em 1o de janeiro de 1963, nacomunidade do Inanu, região do Lago Grande do Curuai, município de Santarém. Éfilha de Olavo Rodrigues (†1999) e Pureza Galúcio Rodrigues (†1974). Saiu do Inanucom 14 anos para estudar em Santarém. Em 1980, casou-se com Benedito MonteiroGalúcio com quem tem quatro filhos.

Desde 84, é defensora dos di-reitos do cidadão atuando como re-presentante e fundadora de associa-ções de bairros onde efetivou parce-rias com o poder público municipal,poder judiciário e iniciativas privadas.Continuou os trabalhos comunitári-os na igreja católica através da Coor-denação Pastoral da comunidade SãoSebastião.

Como pescadora, apoiou aslutas em defesa do lago do Papucuem conjunto com a escola munici-pal e pescadores(as), incluindo o re-florestamento. Além de colaborar napreservação e conservação dos lagos

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do Mapiri e Juá. Foi uma grande articuladora na construção da torre de observaçãosituada na praia do Maracanã.

Em 94, associou-se à Colônia de Pescadores Z-20, onde trabalhou como Coor-denadora do Núcleo de Base do bairro do Maracanã, período entre 1997 e 2000.Apoiou a organização dos pescadores(as) das comunidades do Inanu e Torrão do PapaTerra, no Lago Grande do Curuai. Desse trabalho, originaram-se dois Núcleos de Base.

Em 2001, assumiu o cargo de diretora de Relações Públicas e Cultura da Colô-nia de Pescadores Z-20, permanecendo até 2003. Atualmente, é presidente do Conse-lho Fiscal do Movimento dos Pescadores do Baixo Amazonas (Mopebam).

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Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

Dedicatória

Aos pescadores e pescadoras da Colônia de Pescadores Z-20,pela vida corajosa, cultura e permanência em seus locais de origem!

Para os povos da Amazônia, pela valentia e perseverança na lutapelo direito aos recursos naturais da maior floresta tropical do planeta!

Em especial ao meu pai Olavo e minha mãe Pureza, em memória.

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Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

PMeio ambiente

Os pescadores(as) falam da pesca no passado e nos dias de hoje

Pescador(a) tem fama de inventar histórias sobre sua pesca. Ele sempre pegapeixes muito grandes, mesmo se o peixe for um simples charutinho. Isso é uma meiaverdade. Sim, porque existem histórias e estórias na profissão.

Na pescaria, passamos a maioria do tempo à espera do peixe, dias, semanasfora de casa. As noites são recheadas de conversas para amenizar a tristeza, a solidão,a saudade da família.

Quem sabe, não é daí que vem a nossa fama de contadores de histórias? Poisé, vamos contar muitas histórias, um pouco do resgate cultural dessa profissão vital naAmazônia, contada pelos próprios pescadores(as) que fazem da pesca o principal eixode sobrevivência nos rios abundantes da região.

Eu sou pescadora e posso dizer que essa profissão é muito puxada. Debaixo dosol e da chuva, o corpo é marcado. O preço do pescado nunca é o merecido. Asdistâncias são longas, o combustível é caro, o gelo carece de acomodação específica eainda por cima tem o atravessador no meio do caminho.

Conversa entre pescadores(as):—Você pesca?— Não, eu trabalho...Como outra profissão qualquer, o pescador(a) amazônida já tem sua categoria

reconhecida legalmente e é amparado(a) através das Colônias de Pescadores(as). Mes-mo assim, nem todos os profissionais da pesca estão protegidos quanto a esses direi-tos, além de, ainda sofrermos a discriminação.

Na Amazônia, é tradição começarmos na prática da pesca por influência denossos pais. Bem sabe Benedito Monteiro, nascido na comunidade do Inanu, LagoGrande do Curuai, 54 anos, que viveu desde menino e vive ainda a exercício da pesca-ria. Ele me disse que a criança do interior ia para o rio desde que desse conta de remarna popa da canoa, não importava a idade. Isso se dá porque os pais que já se encon-tram cansados e sem parceiros passam essa responsabilidade para seus pequenos fi-lhos, não importa se é homem ou mulher.

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Apesar dos pais atualmente incentivarem seus filhos a irem para a escola, surpre-ende-me Aleandro Afonso Rodrigues Farias, 7 anos, morador da comunidade do Inanu,no Lago Grande do Curuai. Uma coisa muito importante ele sabe: dividir seu tempoentre a pescaria e a escola. Aleandro não precisa pescar como tantas outras criançasque, infelizmente, acumulam essa função mais a responsabilidade de cuidar de seusirmãos. Mesmo pequeno Aleandro já revela um potencial de pescador-contador dehistórias que carrega em seu sangue.

A pescadora Raimunda Duarte dos Santos, 35 anos, lá da comunidade de SãoJorge, no Lago Grande do Curuai, também aprendeu a arte da pesca com seu pai quehoje não pode mais exercer a atividade. Assim, Raimunda assumiu a economia dacasa, inclusive com a pesca mais difícil para uma mulher, a tarrafa! “Eu entendo tudode pescaria eu entendo tudo. Sei tarrafiá, sei pescá de malhadeira, sei pescá de anzol.Sei tudo! É normal pescá de malhadeira é... anzol! Prá mim é. Prá mim é normal. Por-que se eu não soubesse isso... Como agora, né? Meu pai não pode pescá... eu comigonão tem essa não!”

No passado, os filhos não tinham muitas opções (como ainda acontece até hoje)e acabavam sendo pescadores(as) como seus pais. Isso se dava em decorrência do isola-mento das comunidades ribeirinhas tradicionais na Amazônia. Atualmente, apesar depoderem contar com um suporte – ainda que precário – nas áreas de transporte, saúdee educação (precários ainda), os amazônidas incentivam seus filhos a se deslocarem paraos centros urbanos em busca de melhoria na condição de vida futura.

Jorge Raimundo de Sousa, comunidade do Uruari, Lago Grande do Curuai, mefalou sobre sua vida de pescador. “Prá mim é porque eu acho que o... quando a pessoase dedica num ramo desse, né? Acho que ele vem com aquele dom, né? Prá se que...que não era prá eu sê pescador que meu pai tinha com quê, né? Só que todo tempoeu tava na pescaria. E tô na pescaria! Estudei, mas poco, só a terceira série. (...) Essaépoca aqui, já os pais querem o estudo prus filho, né? Naquele tempo, o pai queria sóque o filho trabalhasse. O que aconteceu comigo foi isso! (...) É... agora... agora eunão quero a minha profissão... que meus filhos... mexe, pros meu filho.”

O dom que o Jorge se refere, para muitos pescadores não é mais alternativa defuturo para seus filhos, como ele mesmo disse. Lourenço de Sousa Rodrigues, 57 anos,da comunidade de Ajamuri no Lago Grande do Curuai, conta também que “até que seeu pudesse não pescar mais era melhor. Mas, era melhor. Mas só que ainda não souaposentado, eu preciso pescar prá sobreviver, né? E chega lá não pega o peixe. Aí,quase que não dá prá nada. As veze só tira o dinheiro... aí não adianta pescar. Pescar éprá perder. Num tá boa a pescaria não!”

Confiando na minha profissão, apresento o Sebastião Aires de Sousa, 90 anosde Lago Grande do Curuai. Um grande contador de histórias, sentadinho em sua rede,me expôs com muita disposição ainda a sua vida. Vida de um pescador que pulsa emsua sabedoria.

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“Olha, eu pescava tambaqui! Quando é que eu ia puxar essas pescadinha umpouco aqui. Puxava era tambaquizão! Naquele tempo, senhora não viu, criava capim,primeiramente era muriruzar aí, que tapava por esse Lago Grande. Depois desse mureru,deu de grelá cada pasto e nós, a gente ia parar na boca do lago. Se a senhora saía aí,quando chegava a tardinha, assim quando o sol esquentava, tambaqui já tava chupando!Pegava uns cinco e chega. (...) Surubim na beira, esse tempo passava a mão na minhahaste, ia andando pela praia e o bichão veio esparramado... E eu... toma! Pirarucu

deixava ele buiá duas vez. Se ele boi-asse só num lugar, quando ele pestejaele tava na canoa. Era difícil errá. Ma-tei bem pirarucu. Olha, essa (apontoupara sua esposa) não deixa minti. Olha,contava mentira nada! Contava foi ver-dade. Desde que eu tirei ela do pai, eunão roubei, eu tirei ela do pai dela, elajá comeu bem peixe. E hoje em dia,nós já, nós tamo comendo acari. Pes-quei até com 79 anos, mas gostava...surubim, pirarucu e cujuba. Senhoraconhece cujuba, nunca viu? (referin-do-se a autora) Pois é, tem aquelascoisa do lado, aquelas escamazinha.Cujuba... pirarucu, surubim, tambaqui.Comecei no jacaré e depois dei a ma-tar jacaré, minha irmã.”

Sebastião me descreveu a ri-queza que foi o nosso Lago Grandedo Curuai. De um modo geral, em to-das as regiões os pescadores(as) falamda escassez dos recursos naturais desuas localidades.

Eu acredito que a Amazônia sóvai dar certo a partir do desenvolvi-

mento sustentável. E que é através de seus povos, povos da floresta, que isso poderáse concretizar. Temos o maior potencial de água doce do planeta, e uma variedadeintocada de plantas e animais que ainda não foram descobertos. Aqui, podem estarocultos ainda remédios e vacinas para tantas enfermidades mortais do ser humano.

No conhecimento popular reside muita sabedoria. E o que os amazônidas es-tão fazendo com isso? Estamos muitas vezes importando conhecimento para cuidarde nossa saúde e alimentação. É possível aliar nossos conhecimentos tradicionais àtecnologia do mundo.

O trato do peixe no jirau.

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Desta forma, estaríamos também mantendo nossas culturas. Sim, nosso lega-do cultural está ameaçado como o peixe-boi, o pirarucu e tantas outras espécies dafauna e da flora na Amazônia.

Como amazônida, gostaria muito que os governos federal, estadual e muni-cipal voltassem mais seus olhares para a riqueza florestal e humana existente naAmazônia. Como nossos povos vão defender suas riquezas naturais se não tiveremacesso às novas tecnologias? O conhecimento científico, gerado pelas pesquisas,ainda não chega com eficiência aos transformadores de fato dos recursos naturais. Areciclagem ambiental do conhecimento tradicional através das pesquisas é vital paraa continuação da Floresta Tropical da Amazônia. Como é possível falar em preserva-ção e conservação, havendo uma disponibilidade precária nas áreas de educação,saúde e saneamento básico?

Não preciso, aqui, falar muito sobre os problemas ambientais que o planeta Terraestá sofrendo através da ação descontrolada dos seres humanos. Pois, isso está bemrepresentado através da mídia e, para os amazônidas também refletido no seu dia-a-dia.

Comendo peixe amassado com a mão.

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Foi Osmar Didiet que me falou sobre o “iaiú”. Na época em que o rio sobe, aágua fresca das chuvas (natural) se encontra com as águas dos lagos e canais represa-dos (choca). Para Didiet, a diferença de temperaturas faz com que os peixes se assus-tem com o choque. Aí, eles procuram a superfície e ficam de cabeça de fora. Se nãochover bastante para destemperar, os peixes podem até morrer. Eles denominam essefenômeno de “uaiú” ou “iaiú”.

Onde o fenômeno acontece, os peixes ficam disponíveis para serem flechadoscom facilidade pelos pescadores(as). Todos os peixes que estão nesses locais vão à tona.Só o pirarucu que ainda não veio à superfície, e o acari. Mas os peixes como a pirapitinga,o tambaqui, o carauaçu, a matrinchã, o reque-reque, a sardinha, bacu, aracu, pacu,curimatã, o tucunaré também, esses ficam de “iaiú”. Ficam como se estivessem de porre,bêbados, também chamados de peixes de beiço inchado.

Osmar ainda me disse que isso se dá pelas transformações oriundas da ação doser humano no meio ambiente. O “iaiú” se manifesta quase todos os anos em certoscanais e lagos na região do Ituqui.

Vendedores de peixe na Feira Tablado, Santarém.

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Miguel Galúcio, 54 anos, pescador da comunidade do Inanu, Lago Grande doCuruai também relata a exuberância da pesca alguns anos atrás. “Uma vez, nós mora-va na colônia e aí descemo de lá com papai. Fumo pescá aqui numa... ponta que temaí chamada Portão. Nós chegamo lá dez horas da manhã e nós não tinhamos nada. Aí,fomo numa praia lá. Vê, nesse tempo... surubim deitado na praia. Prá encurtá a con-versa, chegamo lá tinha surubim que a senhora nem faz uma idéia como era queestava estivado. Ele foi escolhendo só. Picamo onze, só daquele que não crescia mais.Aí, pronto, era suficiente. Mas, aí como não dava prá gente voltá... que era tarde e aíele passô a cuidá. Quando terminô de cuidá, isso era umas cinco horas, mas naqueletempo tudo era mais fácil, né? Cinco hora da tarde, e fomo colocá os espinhel. Quan-do foi no outro dia, umas quatro hora, levantamos, fumo ver o espinhel tinha dozetambaqui. Era muito bom, aquele tempo...”

Com todas as variações da vida marítima – do pescador(a) que está embarcadoe armado para a pesca – e das transformações da natureza, do trabalho árduo, e nemsempre bem recompensado, não tira do profissional da pesca a paixão pela arte. Oque o faz viver como um observador atento. Ezaltino dos Santos Costa (o Quebra-

A pescaria está refletida por inteiro na vida do pescador.

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Gelo), famoso pescador de charuto na praia do Maracanã, me disse que “pescadortem que ser inteligente. Conhecer a natureza da profissão. A maré, o melhor porto,qual é o tipo da água que o peixe desejado gosta, o tipo da rede que o peixe nãosente, como colocar a rede que ele não sente.”

Atento na maré, na lua, no conhecimento das variedades de peixes. Como sãoeles e o que comem, como bóiam, a desova e todas as especificações de uma profissãocomo qualquer outra! Como bem disse o pescador do bairro do Maracanã, CarlosAugusto dos Santos Moraes, “pescaria não é para todos, pois só é pescador quemagüenta o trampo. Pescar não é esporte, mas sim profissão que às vezes ninguém dávalor. Eu já sou pescador há 21 anos, não me arrependo, mas gostaria de ter outraprofissão menos estressante.”

José Caldeira, da comunidade de Ajamuri, no Lago Grande do Curuai, ressaltaa vida do pescador com um pouco de amargura, mas muita paixão. “Um dia a gente tábom, tá bem na pescaria. Outro dia, a gente tá embaixo de temporal, chuva, relâmpa-go. Uma hora por cima d’água, por baixo de água (...). É um trabalho meio perturba-do, mas é divertido. Na hora da pescaria, o cidadão come bem, come assado, comecozido, o que ele escolhe. Uma hora ele é puxado pelo curto, uma hora ele passa anoite inteira n’água cuidando da embarcação. Uma hora dá dinheiro, perde arreio...Arreio na flor d’água. Agora, vai lá no fundo prá pegá peixe. Os peixe estão lá nofundo. No passado, o peixe era na superfície.”

Tem muito pescador descrente da profissão. Tem muito pescador(a) que nãodeseja nem para seus filhos essa prática. Assim como têm grandes amantes da pescariaainda. Eu vejo que é possível ainda sermos pescadores(as) e vivermos dignamente dapesca. Futuramente vamos ter de viver dos lagos manejados, da criação de espéciescomo o pirarucu, tambaqui e o tucunaré. Peixes que estão ameaçados, mas que poroutro lado bastante requisitados pelo mercado de consumo.

Na Amazônia, já existem experiências nesse sentido. O foco agora é replicar, poissomente assim, esses trabalhos estarão abertos para todos. Mesmo em Santarém, açõesainda tímidas já estão sendo empreendidas. O que me parece é que as informações sobrelinhas de créditos governamentais e não-governamentais não chegam às bases de fato.

E quando chegam, os pescadores(as) não tem amparo logístico e nem técnicopara desenvolverem as ações de incremento e fomento do estado pesqueiro em suaslocalidades. Temos como fazer acontecer as mudanças. Para nos tornarmos “fazendei-ros” da pesca é necessário buscarmos mobilização e organização comunitárias atravésde projetos. Parcerias são fundamentais!

Arreios

As mudanças na pesca têm origem em vários acontecimentos. Podemos dizerque, no passado, quando os rios e lagos amazônidas eram abundantes de pescado, a

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pesca de subsistência era a mais praticada. Benedito Monteiro lembrou que antes dosbarcos a motores se popularizarem na região, “o meio de transporte era a canoa àvela. Do Lago Grande, comunidade do Inanu, prá cá, que hoje se faz em média quatrohoras, naquele tempo se fazia em um dia ou dois, na baixa. Na subida, dependia dovento.” A cobertura dessas canoas grandes e possantes, onde cabiam até trinta paneirosde farinha mais algumas pessoas, eram feitas de palha. O japá é um tecido de palhaforrado com sororoca (uma bananeira selvagem).

O japá era um complemento da tolda. Osmar Didiet, comunidade de Fé emDeus I, região do Ituqui me explicou que “para montar o japá você cortava e vocêforrava. Você fazia o teçume da primeira camada, depois fazia o teçume da outracamada. Aí, você colocava as palhas de sororoca por dentro, aí que você jogava aoutra camada e fechava. Aí, você apertava esse teçume de palha em cima dos arco decipó. (...) Você ia amarrando essas palha tecida em cima desses arco. Isso aí servia práquê? Prá você dormi, o pescador dormi debaixo dessa tolda. Quando era em número dedois, o outro colocava o japá por baixo da tolda e ficava dormindo... um dormia na popada canoa, e o outro na parte da proa da canoa, certo? E armazenava o peixe também lá.Só que não dava prá trazê grande quantidade, né? “

O bote ou a canoa (feita de madeira e movidas à vela ou no remo) é a casa dohomem que trabalha nas águas. Café, água, sal, farinha. Nas paragens de pescaria, éna canoa ou em redes nas embarcações que o pescador(a) descansa. Lá não podefaltar a cuia, é com ela que ele se livrará do naufrágio. O remo ou a vela, que o fazdeslizar à procura de paragens pesqueiras. A faca, que ele vai cuidar do peixe, se defen-der, migar o tabaco. O uru é o lugar onde se guardam o fósforo, o tabaco e o papelinho,

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a pinga (que geralmente não falta na pescaria), a lanterna e até a roupa para nãomolhar na chuva. Também servia – e servem ainda – para o pescador(a) sentar napopa da canoa.

Os arreios dessa pescaria eram o espinhel, a tarrafa, a garateia, o arpão, o arco eflecha e a zagaia. Ainda existem pescadores(as) que utilizam esses arreios, que o fabri-cam, tecem suas redes, cuidam de seus arpões, limpam suas canoa e botes. E, sobretu-do, tratam do mal-olhado que pode levá-los a panemice, falta de sabedoria na pesca.

Lorivaldo Rebelo Miranda é aposentado pela Colônia de Pescadores Z-20 emorador do Cucurunã, mas pescador do lago do Juá. Ainda hoje, ele anda uma horapara pescar no lago e me contou que o “Juá está com uma diferença muito grande.Porque naquele tempo, o que tinha de... de material prá gente pescá, que a genteachava que já estava nos prejudicando só a lanterna de carboreto, né? E... mas nãotinha tanta malhadeira, não tinha negócio da bomba, arrastão essas coisas.

A natureza chega a ser bondosa com o ser humano. Mas, assim mesmo, o lagodo Juá ainda tem peixe, né? Bastante peixe. Pega todo tipo de peixe, curimatá, aracu,jutuara, tucunaré. Ainda tem peixe, a gente nemconta, tem peixe.

Hoje em dia, há a invasão de tipo de pesca.Como nós temo o arrastão de noite. Não é todanoite que a gente tá pescando. Quando é noutrodia que a gente vai pescá a gente percebe que hou-ve arrastão no lago. A pescaria de flechá no fundocom aquela máscara, aí também invade muito.”

Eurides dos Santos Pereira, 73 anos, pes-cador da região do Maicá, e morador doUrumanduba, também fez um breve relato de suaregião. “O pescador, existe também esse negóciode arrastão, tá deixando o coração... quase infarta.Ali prá baixo, daqui prá baixo existia muito pirarucu.Hoje em dia, no inverno, você não vê mais pirarucupor aqui. Eu matava pirarucu aqui. Agora, não vêmais pirarucu. Por causa de quê? Quando tempirarucu lá nu... ali no Jinitatuba, longe... muitoarrastão, sabe, ele puxa o peixe. O peixe que pulado arrastão, ele não volta mais ali. E o peixe quevolta é mesmo que nós três aqui: — Fulano, nãovai mais prá lá que o negócio lá... perigoso!”

E continuou... “ Era na frente da cidade, eraaqui nesse lago... ia até o poção... tambaqui,tucunaré... Nessa idade que eu comecei a pescar eu... A canoa, a cuia e o uru.

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esse igarapé aqui era muito farto. Mui-to peixe. Esse Vira Sebo aqui, a gentejogava tarrafa, tucunaré pulava. Eu di-zia assim: — Olha esse aí não vai darcerto. É isso que está acontecendohoje na nossa comunidade. Então, euespero que as pessoas entenda isso.”

Renato dos Santos Ribeiro écompanheiro de Eurides e falou so-bre tempos passados. Ele gostoumuito de “pescá o aracu e otambaqui porque é mais fácil. Olha,eu ia pescar, eu deixava minhamalhadeira n´água e vinha prá casa.E quando ia olhá, o menos tambaquique eu pegava todo dia era vinte. Omenos que eu pegava. Eu fazia umacaixa grande (de madeira) e deixavao peixe na caixa e deixava lá no fun-do e trazia só prá comê. Aracu, eu iabotá minha malhadeira e o menosque eu pegava era treze, quinze cam-bada. Todo santo dia, e só colocavauma vez. Aí eu pegava aquela quan-tia e vinha embora prá casa. Vendia

o peixe. Eu gostava de pescar, sempre gostava de pescar. Sempre fui pescador.”Ele conta com a sabedoria do profissional das águas sobre as ovas. “Você acre-

dita que o cará, ele desova duas, três vezes no ano? Você acredita nisso? O peixe, eledesovar, ele acompanha a natureza. Se a curimatá, a branquinha, aquele cascudo earacu ele desova conforme a chuva. Se a chuva for atrasada, ele não desova não! Ele sódesova quando vai chover. Quando a chuva é forte, mesmo que ele vai desovar. E oaracu, ele já vai largar a ova dele em terra. Você acredita?

O cascudo desova três vezes ao ano. A curimatá só desova uma vez. O tambaquié difícil porque a gente não vê a ova dele. Você acredita nisso aí? Você já viu ova detambaqui? Mudou muito, você sabe por que mudou? Porque na época, isso tá comvinte anos atrás, aqui num lugar chamado Vira Sebo, a gente andava bem devagarzinhocom a canoa porque o tucunaré era sujeito a pular na gente. Ele pulava, pulava, pula-va... quando ele sentia a canoa, ele pulava! Aí, a gente ia bem devagarzinho prá elenão bater a gente.

E hoje, isso tá diferente. Hoje, prá gente pegá um tucunaré grande, tá difícil.Por quê? Porque o pessoal tá arrastando muita malhadeira, tão boboiando, batendo

Arreios do pescador artesanal de subsistência.

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capim, tão acabando. E tem a proibição e a gente não vê que tem a proibição. Masnão tem a fiscalização. Se tivesse a fiscalização, aí não acontecia. Tem problema, tá?Tem a proibição, mas não tem a fiscalização. Aí, foi um descuido nosso. Aí, foi umdescuido porque se a gente pensasse e tentar se organizar, proibir o modo de pesca,isso não tava acontecendo.

Acho que a gente deixou prá os outros tomá conta. Deixou prá o Conselho dePesca da Z-20, prá o Ibama, prá polícia... ou a população aumentou? Uma nova gera-ção, cabeça nova. Não, a gente não fala da população porque se tivesse ordem, orespeito e o zelo isso não tava acontecendo.

Continuava sempre a mesma fartura, né? É por que a gente aí pegava o queera necessário. E hoje não. Antigamente, o pessoal pescava, pegava o que queria. Ehoje não! Vai pescar... é difícil pegá. Tá difícil mesmo. A gente ia no verão, pegava otucunaré graúdo, o surubim... a gente não vê mais. Se não for o mafurá prá gentepuxá, só a piranha preta.”

Existia tanto pescado, mas tanto peixe, que no tempo do inverno (estação daschuvas na Amazônia), eles se batiam nas margens dos rios. Ainda meio sonolentoscom o impacto, os pescadores(as) os pegavam facilmente com seus paneiros. Daí, essapescaria receber o nome de pesca de paneiro.

Eu vivi esse grande momento na minha vida. Com sete anos de idade, pegueia minha primeira ferrada de arraia praticando esse tipo de pescaria. Eu vi a fartura depescado no Lago Grande do Curuai, assim como todos os meus antepassados.

Delmo Rocha, 47 anos, da comunidade de São Jorge, Lago Grande do Curuai,me relatou como ele pescava no passado. “ Porque, na minha época, só era mesmo oarpão, a flecha, nem a zagaia (quis dizer que a zagaia também era arreio de sua época).Depois, isso foi reduzindoessas coisas. Naquela época,não tinha malhadeira, nãoexistia. Já de... um certo tem-po que foi existi a malha-deira, aí foi afugentando opeixe. Agora tá... nóis já nãopega divido a tanta malha-deira, arrastão...”

Foi então que, comas transformações sócio-eco-nômicas, o crescimentopopulacional e a disputacrescente dos pontos pes-queiros – entre a pescaartesanal de subsistência e a Pescador do lago do Juá consertando sua rede.

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pesca artesanal comercial – influenciaram a adoção de novas práticas na captura dopescado. Práticas legais como a malhadeira (70cm), a tarrafa (50cm de malha permiti-da), e ilegais como o arrastão, a cercadeira, a bubuieira. Arreios usados principalmentena pesca comercial.

Assim, as canoas modestas de antigamente foram substituídas pelos barcos mo-tores, bajaras e grandes barcos chamados de geleiras. As canoas servem como coletorasdos peixes. São com elas que o pescador coloca e tira as redes de pesca. As geleiras sãoos depósitos de conservação do pescado. Todo o tempo, o pescador tem que estar namedida da lei. Através das toneladas permitidas em cada região, seguindo a legislaçãopesqueira das portarias publicadas pelo Ibama/Ministério do Meio Ambiente.

“Hoje o povo compra malhadeira com mais facilidade. Vou dá um exemplo.Esse tempo, o tucunaré. O tucunaré, a gente vê muito tucunaré de filho. Muitospirarucu. Mas devido a situação tá muito difícil, muitos se arriscam a pegá o tucunaré,a pegá o pirarucu que tá com filho. Até o peixe do defeso. Por causa da situação, né?Porque nem todo... nem todas as pessoas, ele tem terra prá trabalhá, né? E mesmo apessoa não tendo terra prá trabalhar ele vai sobrevivê da pesca, as vezes só do

Lago do Juá: Geograficamente urbano, socialmente rural.

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extrativismo. Então, quando ele passa a viver só dessas coisas, então muitas vezes eledeixa de obedecer, né? As leis“. Depoimento do pescador Dileudo Guimarães dosSantos, comunidade do Bom Jardim, da região do Maicá.

Atualmente o pescador(a) como qualquer cidadão precisa respeitar as leis. En-tretanto, as mudanças ocorridas na categoria abriram um abismo entre o pescador(a)de subsistência e o comercial. Em função da escassez de recursos, o primeiro se tornamuitas vezes empregado do pescador(a) comercial. A autonomia do passado, de ummercado de escambo pode-se dizer assim, retrata na atualidade que, para viver dapesca o profissional tem que se aliar ao mercado de trabalho existente. Ele não podecrescer na competitividade usando somente os arreios de tempos atrás.

Em função do precário estado econômico que vive o pescador(a), ele acabatendo que entregar o seu produto para o atravessador. Por que ele entrega? Porqueele não tem dinheiro para pegar o gelo, não tem condições de atualizar seus arreios enem de adquirir embarcações pertinentes que estejam dentro dos acordos de pesca.O atravessador – que é um tipo de financiador – fornece o isopor, o gelo e o combus-tível para auxiliar o pescador(a). Mas, e se ele não pegar o peixe?

Barco motor e bajara: transportes utilizados na pesca artesanal comercial.

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Para Rainério Batista, comunidade do Inanu, Lago Grande do Curuai ainda seencontra pescador(a) que não tem ganância. Ajuda aqueles que não são sócios daColônia de Pescadores e que não podem possuir uma rede ou arreio semelhante paraaprimorar a pesca. Ou que não tem a habilidade da pesca artesanal de arpão ou fle-cha. Assim como tem pescadores(as) que só estão interessados na comercialização enada mais.

Já ouvi dizer que o pescador(a) não vende o pescado porque ele tem preguiçade esperar o consumidor. Será verdade ou ele é induzido? Bem pertinho dele está oatravessador com todos os aparatos para a venda! Quem perde é o pescador(a) e oconsumidor? Só quem ganha é o atravessador e os frigoríficos? Como reverter essasituação em favor do pescador(a)?

Raimundo Nonato de Sousa, comunidade do Juá, região da Cidade comentousobre essa questão. “É bom deixar bem claro, que o pescador vende o peixe muitobarato. Quem prejudica, na verdade o consumidor com os preços elevados é oatravessador. Pescador não rouba consumidor! “ A Colônia é quem poderá salvar a suacategoria, implementado cooperativas para que o pescado possa chegar a mesa doconsumidor num preço menor. Ainda mais porque o peixe é a base da alimentação naAmazônia, junto com a farinha de mandioca.

O defeso, as leis de acordos comunitários e portarias de pesca servem para apreservação e conservação do estado pesqueiro nas regiões. Isso é que vai garantir aeconomia do pescador(a) e do pescado. No caso do pirarucu, quando entra o defeso,de dezembro a maio, paraliza a pesca. O que faz o pescador(a) que só sabe pescar opirarucu?

Quem responde essa pergunta é José Orivaldo Silva Coelho, 40 anos, comuni-dade de Aracampina, região do Ituqui. “De certo tempo prá cá quem vivia só da pesca,atualmente não vive mais. Então a gente tem que ter outro lado, alternativa, a criaçãoe a agricultura. E assim, dá o tempo para a conservação dos lagos, obedecer as leis dedefeso, acordos e portarias de cada região. Melhora a situação para quem vive das trêsvariedades que é a pesca, a agricultura e a criação. Lá em casa, quando a gente traba-lha assim em grupo e então a gente faz o seguinte... Porque tem o tempo do defeso.Então, é o tempo que a gente quase... fica na parte da agricultura e um pouco nacriação, ajeitando a criação. E quando é agora, que abre, a gente pesca um pouco etambém é o tempo que a agricultura já tá eliminando, que vai enchê.“

A pesca predatória e o atravessador são grandes inimigos do pescador(a). Masnão são os únicos. Pescador(a) tem inimigos nas águas também. Esses são os botos,piranhas, traíras, o mandií, o puraqué, jacarés e a arraia. O boto ataca as malhadeirastirando os peixes e rasgando, acabando a pescaria. A piranha entra na malhadeira e seo pescador(a) não tiver cuidado pode sair sem seu dedo. Tem jacaré que come umpescador(a) adulto de dentro da canoa. Ameaçam os filhos e até comem mesmo. Asucurijú, a cobra grande, e os grandes temporais e seus raios mortais podem tambémceifar a vida do pescador(a).

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O pescador Aldo Santos, 56 anos, da região do Tapará, comunidade de Saracura,falou de outro inimigo do pescador(a). Com doze anos já arpoava pirarucu quandoroubou a canoa de vela de seu pai. “Saí e me alaguei lá fora, por descuido. O que maisme mata nesse naufrágio, é que o homem que me apanhou é o pai de minha mulherhoje. Ele que me tirou do naufrágio. Eu tava lá no meio do Amazonas e ele viu e foi mebuscá lá no meio do Amazonas. E me levou pro meu pai e recomendando pro meu painão me batê. E hoje eu faço parte da família dele. E eu me dou bem com ele.“

As doenças do pescador(a) adquiridas na pesca

Em função das carências alimentares – o não tratamento da água de beber e odescuido com a higiene do corpo aliado às condições de trabalho precário – o pescador(a)é atingido por muitas enfermidades. As dores musculares também são freqüentes devidoaos movimentos repetitivos de remar e da forma como se acomodam na canoa, na postu-ra de sentar. Rita Maria Silva de Sousa, Vila do Curuai me despertou para essas dores queatormentam a pescadora(o), “dói as cadeiras passando horas à espera do peixe.”

Delmo me lembrou que talvez o maior problema do pescador(a) sejam as doenças.“O pescador efetivo, ele tando mesmo na atividade ele não dorme. Toda hora da noite eletá... vigiando malhadeira, fazendo tudo, não dorme a noite inteira. Por isso que a gentefica muito maltratado com esse negócio de pescaria. As cadera... tudo, tudo, tudo...“

Grande pescador artesanal de subsistência, Dorinelson Lopes Barbosa, 29 anos,morador da comunidade do Inanu, Lago Grande, me revelou o que ele as vezes comena pescaria. “A gente não come o dia intero... A gente vai fazê comida, muitas vez táchovendo... não dá certo de fazê o fogo... chuva vem, apaga. Não tem lenha enxuta.Aí, sabe o que a gente faz? Pega um pouco de farinha coloca numa cuia. Toma chibé!Agüenta o dia inteiro. Aí, tu já pensô o alimento prum... pescador? Que tá ali direto...“

Dorinelson começou na pescaria com uns cinco anos e teve um grande mestrena arte de pescar o pirarucu, o pescador Olavo Rodrigues. Apesar de ter momentosduros na profissão não deixa de revelar sua paixão pelas águas amazônidas e pescarseus maravilhosos peixes. “ Gosto de pescá. Eu me dô melhor no rio do que em casa.Mas mil vezes no rio do que em casa! A gente pesca, porque a gente gosta. Mas, apescaria, nunca ouvi dizê que a gente ficava rico, não! Eu gosto dela. Eu não abro delanem um segundo! “

Arreios errados podem também contribuir na má qualidade da saúde do pes-cador, não só na do peixe. Que o diga José Maria Gomes, também conhecido comoPelé, comunidade do Juá, região Pesqueira da Cidade de Santarém. “O papai pescavamuito de lanterna de carboreto, né? Mas, só com... a pescaria dele era só com lanternade carboreto. Daí, nóis ia pescá com ele. E aquilo me prejudicô muito a vista. Aquelefogo da lanterna, né? Problema dos rim. E aquela... pegava muito temporal, vento,chuva. Pegava a noite todinha com ele. Eu era novo, né? Não sentia nada. Mas,

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depois, agora com idade de 40 prá 46, que eu tenho... Ontem eu cheguei lá em casa,tava pescando. Eu cheguei prá jantá. Disse ela:

— Vamo jantá!Eu disse:— Não, não quero jantá, não. Vou me deitá ali.— Que que tu tem?— O problema na coluna.Disse ela:— Eu não ti disse prá ti não pescá, rapá!Aí, eu fico... sinto muita dor de cabeça... que prejudica muito a gente, né? A

pescaria. A gente que é já acostumado pescá. Os meus filhos não, que não estãoacostumado pescá. Chuva, eles não querem pegá uma chuva. Não querem saí prápegar um temporalzinho! Eu não, eu com idade de três anos quase que fomo comidopela cobra grande.”

Apetrechos de pesca predatória também são nocivos à saúde do pescador(a).Em Santarém, existem muitas pessoas mutiladas pelas bombas caseiras. Sem braços,pés ou mãos. Tempos passados espelhados no presente. Uma vez, eu estava pescandono lago do Papucu, embaixo de uma árvore em meio a uma piracema de jaraqui. Elacobria a minha canoa e me escondia em seus galhos. Quando eu vi que se aproximavaum pescador bombeiro. Aí, me movimentei na canoa para que ele percebesse que euestava ali. Eles costumam acender o pavio de suas bombas explosivas com o cigarro.Mas, quando ele me viu ele não tocou no pavio da bomba. Se ele tocasse, eu nãoestaria escrevendo este livro.

Outra vez, pude perceber o grande impacto ambiental que causa essa pescapredatória. Estava pescando e minha garateia prendeu-se lá no fundo. Mergulhei pararesgatar. Foi na hora que soltaram uma bomba distante de onde eu estava, pois euouvi lá do fundo a grande explosão, a terra estremeceu e as árvores balançaram. Nasuperfície, notei que estava surda e assim fiquei por alguns minutos.

A partir desse acontecimento, pensei: vou ficar pegando bomba na minha cara?Não. Começamos, então buscar nossos direitos onde de fato existiam. Isso em 1997,por que essa prática de pesca com bomba já existia desde o final da década de 50. Abomba caseira foi usada em exaustão dentro da cidade de Santarém, no bairro doMaracanã. Exatamente no local onde os dois lagos urbanos se encontram, Mapiri ePapucu, região típica do peixe chamado jaraqui.

Somente em 1999, após uma mobilização dos pescadores(as), conseguimosexterminar essa pescaria nos lagos. Apesar da existência de uma torre de observação,outros tipos de crimes ambientais continuam adotados no tempo da seca, nos doislagos. É nessa estação que os dois lagos se unem através das praias. Me entristece verainda hoje, pescadores(as) utilizando práticas predatórias na pescaria como a bombacaseira.

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A salga

A salga era muito praticada no passado para conservar o pescado. Pois, naépoca não existia outra forma de conservação. E para contar sobre a salga, eu visitei aregião do Ituqui, na comunidade de Fé em Deus. Lá fui recebida com muito carinhopelo meu amigo Antonio Osmar de Oliveira Didiet, 45 anos, e sua esposa Dilza MariaFerreira dos Santos, 40 anos.

O Ituqui é muito famoso na tradição da pesca e consumo do acari. Peixe comcara de pré-histórico muito consumido pela população amazônida, onde cada estadotem seu sabor peculiar.

Osmar é quem conta a salga! “São três tipos de salga. Existe a salga seca, existea salga mista e existe a salga molhada. A salga seca é essa quando você abre o peixe,você lava o peixe, você coloca esse peixe prá ele escorrê. Toda aquela água, entende.Então, não tem nenhum tipo de água ali. Aí sim, aí você pega o sal grosso, o sal bemsequinho que tá ali, né? Aí sim, você vai salgá aquele peixe. Você usa ele no sistema devaral, fora. Prá ele pegando um pouco de sal e o ar. Aí, você tem o trabalho de viraresse peixe. Ele já pegou aqui, vamos dizê assim, duas horas de sol de um lado, aí pegamais duas do outro. Você também tem que tê cuidado, né? Esse é só pra salga seca.Chama-se secagem de peixe.

E como... a gente na época, a gente não tinha é... é...não tinha conhecimento,não tinha técnica de salga seca, salga mista e salga molhada, então a gente usavaconforme nossos antepassados iam dizendo prá gente como seria a forma.

A salga seca era a mais usada no passado, a tradicional. Ia pro varal, certo? Aí,você tinha que ter o cuidado. Olha, no mínimo, se for bastante sol, três dias é o suficien-te. De sol mesmo intenso, três dias é o suficiente. A durabilidade fica na facha de seismeses, se for bem feito o processo, bastante sal e a mão boa pra salgá, a ciência.

A salga era feita na própria comunidade e nos locais de salga também. NoIgarapé do Santíssimo, tinha local de salga. Outros faziam a barraca em determinadolocal aonde seria mais próximo do peixe que tava prá ser pego. Então, eles traziam essepeixe de lá já todo cuidado aí eles pesavam com o patrão que já tava lá prá compráesse peixe.”

Ou levavam o peixe salgado para os compradores na cidade depois que játinham uma carga em torno de 100 quilos. Nas paragens de salga os pescadores(as)montavam o jirau para secar o peixe, acampamento de salga. O peixe pequeno em

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geral perde metade de seu peso nasalga. Um pirarucu fresco de50 quilos quando salgado, bem se-quinho, fica em torno de 25 qui-los.

Os peixes da salga que temmais durabilidade são o pirarucu,surubim, dourada, cujuba e otambaqui. Tirando o pirarucu e osurubim como os mais vendáveis.Mas, o caboclo salga qualquer tipode peixe para seu consumo. Atual-mente a salga na região escasseouem função da vinda do gelo paraconservar o pescado.

“A salga mista ela já foi introduzida já há um tempo prá cá. Deve tá maisou menos com uns 10 anos que foi entroduzida. E já era uma técnica já usadapor até por outras cidades, né? Até mesmo por Santarém, mas nem todos, nãoera do conhecimento. Ela é mista porque é usado dois tipos de sal. Ela é usada osal grosso e o sal fino. Fica num depósito não precisa você colocar no sal. Quan-to mais a água tivé ali na salga mista melhor ainda. Então você tira o peixe daliparece que ele tá fresquinho. A salmora vai conservar o peixe, durando em tornode 15 dias.

A salga molhada, ela é uma salga onde você mistura também o sal gros-so com o sal fino em um recipiente, um tanque ou uma bacia. Aí, você colocaágua. Aquela água tem que ser água de sal mesmo. Aí, você pega o peixe de-pois do peixe bem cuidado, depois do peixe tirado todo aquele sarro que temno peixe. Porque o peixe, ele tem uma parte que fica aquele sarro, que é osangue que fica ali preso, sabe? Tipo uma veia assim. Se você não tirá bemaquilo, não limpá bem ele pode estragá. Aí, você mergulha ele naquela água.Você mergulhô pronto. Tá prontinho o peixe ali dentro. O peixe na salga mo-lhada também dura por 15 dias.”

A que dura mais é a seca. Infelizmente não tá mais se fazendo isso. Com achegada de gelo prá Santarém, lá por volta, acho que desde 60, no famoso Bar Mas-cote, a fábrica de gelo.

Primeiro chegou o gelo em barra, depois o triturado e em seguida o de escama.E com isso vieram também os grandes compradores, indústrias, filetagem do pirarucufresco realizado pela indústria do pescado.

O mercado de consumo incentivou a invasão?Sim, porque a demanda é maior que a produção do pescado.

Manta de pirarucu seco.

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A farinha de piracuí

A farinha de peixe é geralmentefeita do acari, como também dotambaqui, da pescada, do cujuba. Temmuita gente que faz até do jacaré. A tra-dicional e apreciada é a do acari. A maissaborosa, no meu paladar, é a dotambaqui.

A pescadora Rita Maria Silva deSousa, 53 anos, moradora na Vila doCuruai, no Lago Grande, já fez muitopiracui na várzea do rio Amazonas. E éela que conta como faz a farinha depeixe. Depois de pegar o acari, “limpa bem. Bota prá assá. Depois de assado, dispilicotudo. Coloco no forno... Corto tudo miudinho e boto prá cozinhá o peixe no forno. Atéque ele vá se dividindo todo prá fazê o piracui. A farinha. Tem que escolhê bem, tirá bemaquela espinha, aquele sarro do peixe, tirá aquele sarro do lombo prá não ficá cheio defarelo preto e gordura. Porque senão com, poucos tempo, dá o ranso.“

Também dá para fazer do acari cozido, sendo o processo mais rápido. A farinhafica mais limpa e mais branca. Mas, é do acari assado que a farinha é mais protéica,mais pesada e mais durável.Após o processo de transformação do peixe em farinha,aumenta o valor econômico e é uma forma de poupança para o pescador(a). Ele fabri-ca no verão, estação da seca amazônida e vende com um preço mais elevado na cheia,época do inverno na Amazônia, tempo das chuvas. E também é segurança da alimen-tação familiar dos povos tradicionais. Por ser bem leve rende bastante!

É muito apreciado na culinária. Assume variações gastronômicas na mesa docaboclo e nos restaurantes típicos da região. Assim como pode ser consumido natural-mente com farinha!

Acari.

Receita do Bolinho de Piracuí

• 400g de farinha de piracuí• 200g de mandioca ou aipim• Uma pitada de pimenta do reino• Coentro, salsinha e cebola a vontade• Pouco sal, porque a farinha já é salgada

Misture tudo amassando bem com as mãos. Faça bolinhas e leve para a fritura.Numa versão mais leve, coloque as bolinhas numa forma refratária e leve ao fornoaté ficar bem tostadinho. Pode servir acompanhado de pimenta no tucupi ou outromolho que seja adequado para peixes.

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A mulher amazônida e sua relaçãocom a pesca

Falar de mulheres pescadoras na Amazônia não é fácil. Encontrá-las tambémnão é. Por quê? Elas, assim como eu, acumulam muitas outras funções na vida familiar.São mães muito cedo e segundo dados de pesquisas estatísticas na região, têm emmédia, cinco filhos vivos. Mas, encontram-se facilmente mulheres que têm dez, doze,

quinze filhos. Eu conheço uma mulher que teve vinte filhos. Deixando transparecerclaramente uma ausência total de planejamento familiar.

Rita Maria Silva de Sousa, Vila do Curuai, é filha de pescador, mulher de pescadore pescadora. No começo de sua vida com Pedro Figueira de Sousa, o Pedro Cobra, seumarido, ela pilotava a canoa. Não tendo com quem deixar seu primeiro filho, levava napescaria. “Tinha um filho que hoje ele é cabo do exército em Manaus. Eu levava ele nomeio da perna. Ele tava assim, parece quase dum ano. Butava ele no meio da perna, eledormiazinho lá... E eu... empurrando aqui na popa. Quando clareava o dia, ele acorda-

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va, já ficava animadinho com peixe que tava na canoa. Ele passô... ele sofreu muitocomigo, aquele menino, muito mesmo. Prá não deixá ele só. Ele mamava.”

Como Rita, as mulheres sabem tecer, consertar malhadeira e tarrafa. Pescam decaniço ajudando na renda familiar. “Eu já pesquei. Uma chuva dessa prá mim não eranada (nossa entrevista aconteceu no início do mês de março, época de muita chuva naregião). Tava na popa da canoa, ele (seu marido Pedro Cobra) na proa... ia embora.Saía duas horas da madrugada. Tarrafiá prá pegá o peixe. Cuidava. Salgava tudo. Quandotava com umas caixa grande cheia, ele botava na canoa e vinha pegá o barco aqui prábanda do Acai. Ia vendê o peixe em Santarém prá comprá nossa despesa. E assim, nósia levando a vida. Cansei, duas hora da madrugada na popa da canoa tarrafiando... Asvez ainda me ralhava comigo:

— Mas, endireita a canoa!— Mas quando?! Eu tava meia... cochilando... Prá onde então?— Prá cá, tu não tá vendo prá onde a tarrafa caiu?Aí, eu puxava prá cá. “Torrão do Papa Terra é uma comunidade dona de uma paisagem bela e diferen-

te no Lago Grande do Curuai. É a região de várzea, onde tem muitos criadores debovinos e bubalinos, em função das extensões de campo que cobrem sua terra. Casasde palafitas marombadas, homens vaqueiros e mulheres pescadoras.

Lá, a pescadora Jocelina Rodrigues de Licata me informou que tem um grupode dez mulheres que ajudam na economia doméstica deixando-se levar pelas águaspuras que a Mãe D’Água lhes oferece. Mulher mãe da água e mulheres mães de ho-mens e mulheres, esposas... pescadoras. Mulheres que também criam pequenos ani-mais, fazem piracuí, fazem farinha, plantam o roçado, cuidam da horta, da família,mulheres extrativistas, professoras...

Sofrem discriminação, violência doméstica e ainda tem homem que diz quemulher não sabe nem pegar no remo! Mas, têm homens que valorizam a mulher. “Anossa sociedade é machista. Se as mulheres não se organizarem, mais machista vai sera nossa sociedade”, falou meu amigo lá da comunidade de Saracura, Aldo Santos.

Hoje em dia, já existem muitas mulheres pescadoras associadas na Colô-nia de Pescadores Z-20, o que no passado não ocorria. Isso não é garantia dedireitos na profissão. Aqui na região, a mulher pescadora já lutou muito no com-bate à invasão, corpo a corpo na proteção do lago do Juá. Mulher como MariaOrnelinda Caetano que colaborou muito junto com seu marido Raimundo Nonatode Sousa.

A mulher pescadora na Amazônia soma as funções da sua vida doméstica e desua vida profissional de mulher do interior. Elas são acostumadas a uma pesada rotinade trabalho. E ainda dizem que a vida é boa. Têm as mãos grossas, os pés rachados, apele marcada pela ação do tempo, chuva e sol. Mas, todas essas peculiaridades nãotiram sua alegria pela vida. Não tiram sua feminilidade, sua sensualidade. E isso está

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bem retratado na música “Mulher Pescadora”, de Francisco Cardoso Feitosa, o ChicoMalta, poeta e músico santareno.

“Vai, vai, vai mulherVai pescar nesse rioPois quem pesca é quem viuQue você sabe pescarPode ir de canoaDe bote, barjara ou de motorLeva também as criançasPra dá de mamá aonde forEla tece a tarrafaTambém a malhadeiraInda pesca de anzolPõe na costa a zagaiaCaniço, arco e flechaÉ de chuva a solEla cuida da casaDos filhos, do almoço, também do jantar.Quando chega à noiteTadinha cansada o marido inda quer amar.”

Maria Lázara Reis dos Santos, lá do Torrão, contou sua história de pescadora. “Opapai, no tempo dele, ele alumiava... tomei a zagaia dele e apontava prá lá, e lá vinha opeixe. Só jaraqui. Eu tô dedicada mesmo. Porque prá mim não tem outro trabalho. Criopato, porco, galinha, horta. Vendo, como, dô pros meus vizinhos. Vendo pro Curuai (Vila).”

Wilson Mota de Sousa recordou com carinho a vida de pescadora que sua irmã,Maria Nilza de Sousa, já levou. Ela foi pescadora de verdade. Imaginem que ela arpoavapirarucu? Faceta bastante rara na pescaria feminina. O pirarucu tem que ter força paraarpoar. Maria Nilza tinha essa força. Seu irmão falou que, do conhecimento dele, elapescou três pirarucus. Hoje em dia, segundo ele, ela tomou outra direção na vida.

Como mulher e pescadora, atualmente exerço minha profissão no lago doPapucu, no bairro do Maracanã. Portanto, sou pescadora urbana no meio de tantosoutros pescadores e pescadoras. Trago na veia a garra da pesca e, essa herança euganhei de meu pai, o pescador imortal de pirarucu. Muito do que sei na minha pesca-ria, também veio de uma pescadora, Maria Pinto de Sousa, senhora de 73 anos, mora-dora do bairro do Maracanã. Ela me ensinou a arte de puxar jaraqui com garateia.Maria é conhecidíssima no lago Papucu, onde todos a respeitam na profissão. Alémdisso, ela também é parteira, benzedeira e consertadeira. Está sempre entre os pesca-dores e todos a respeitam como pescadora.

Uma vez, eu e meu sobrinho de cinco anos estávamos pescando na praia doMaracanã, puxando acaratinga com minhoca. Já havia puxado umas cinco acaratinga. No

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meio das cinco, veio um mandií, um pequeno peixe que tem um esporão. Ele foi tãorápido, que quando eu dei uma das galhas entrou na minha coxa, bem pertinho do joelho.Como eu estava perto da torre de observação do Mapiri/ Maracanã perguntei ao vigia queestava lá se ele não sabia como tirar. Não se mostrou interessado em me ajudar. Meusobrinho estava apavorado. A minha perna já estava começando a ficar roxa. Como nãosaia nas minhas tentativas de puxar, eu quebrei o esporão do peixe e joguei-o para a canoa.

Meu sobrinho pegou o peixe com raiva e começou a cortá-lo com a faca. Resol-vi sair remando aturando a dor que sentia. Remei até o Mapiri, onde deixei minhacanoa para os pescadores cuidarem.

Dirigi-me ao Posto de Saúde. Lá, tomei uma antitetânica e me encaminharampara o Pronto Socorro Municipal de Santarém. Finalmente, retiraram o esporão daminha coxa, como objeto estranho!

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Contadores de histórias

Nós, pescadoras(es) somos famosos contadores de histórias. Histórias reais vivi-das por nós no dia-a-dia de nossas pescarias e histórias que são estórias de pescadores(as).Os contadores começam a falar muito timidamente da pescaria. Mas, aos poucos sesoltam quando falam do sobrenatural e dos contratempos existentes na pescaria.

Um desses contratempos é a sucuriju. Dizem que ela pode crescer muito ficarmuito grande, mas não é venenosa. Ela enrola, machuca e quebra o bicho grandematando-o e engolindo-o. Tem dentes fortes, e solta uma substância grudenta parapoder engolir.

Quando pega uma presa grande, como a capivara, ela procura uma regiãoseca e fica quieta. A presa apodrece partindo a sua barriga para execrar os ossos. Ficahibernando até grudar sua pele e é quando ela torna a sair para caçar de novo.

A sucuriju é muito perigosa principalmente para as populações que moram aolongo dos rios. O Edmundo Branches Prata, morador da comunidade do Jacaré, LagoGrande do Curuai, me disse que quando tinha peixe, que pescava e salgava para levarpara suas famílias, após puxar o peixe, eles cuidavam para salgar e iam dormir em outraparte por causa do pitiú do peixe que atrai a sucuriju.

Tanto ela quanto a jibóia são muito traiçoeiras. Ele já viu uma luta entre uma jibóiae uma onça. Brigaram tanto que, na área da luta, derrubaram muito cerrado. Quem saiuvitoriosa foi a onça que comeu a cabeça e uma parte do rabo da cobra. Edmundo Pratalembrou que, ficou só o meio. A onça não voltou para comer o resto. A jibóia tambémacende os olhos de noite e faz batuque igual à cutia no mato para atrair a presa.

Wilson Mota de Sousa me falou que já ouviu dizer por aí, que o sucuriju é ocaçador da Cobra Grande. O caboclo pensa mesmo que a cobra grande é a sucurijuou a jibóia, pois cresce muito. Tem alguns pescadores(as) que já a pegaram na malhadeirapequena, média ou grande!

Foi ele também que me recordou que, se cortar a sucuriju no meio ela emendade novo. O conhecimento popular diz que se o corte for nas imediações ou entre seuintestino, não emenda mais. Dizem que sara o corte e o bicho volta a crescer.

Então, vamos às histórias ou estórias?Eurides dos Santos Pereira, é um pescador de 73 anos, bastante marcado pela

ação de sua profissão. E é ele que começa a contar histórias...

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“Um sucuriju que eu vi no aningal. Gostava muito de entrar no aningal, só eue Deus. Então, fiz eu entrar muito dentro do aningal e depois... tem aquele sentido,né? Lá prá dentro se acontece alguma coisa eu... Ninguém me acha. Não acha nem acanoa porque fica aquele esconderijo, ninguém sabe por onde eu entro. Aí, eu convi-dei um parceiro prá ir prá lá. Aí, a casa assim... ficava um buracão dele, no barranco!Eu vi aquele... fazê assim, assobiá fiiuuu... Peguei uma aninga, uma folha de aninga ejoguei prá lá. Não vi nada, né?

E quando foi no outro dia, fui prá lá de novo.

Que eu presta atenção prá trás, aquilo foi engrossando: uuuuu... Era um bichodessa grossura, assim (mostrou com as mãos fechando um círculo de uns dois pal-mos), cabeça enorme. Aí, fui voltando assim... Empurrei um bucadinho com o arpão,ele recolheu um bucado assim e voltô. Quando voltô, amassei com o arpão, mas comforça assim! Prá mim deu no olho do bicho, né? Bréééé... Rah...Quando voltou foiaquele estrupício prá trás. Aquele estrondo no aningal e eu me atraquei numamugumbeira lá. Bateu logo aquela catinga dele, de sucuriju e aquele... olhava assim ovento forte mesmo, olhava o aningal... saia assim (fez com os braços)... balançando osmatos... o aningal assim.

E aí, eu lá atracado na mucumbeira, em cima. De lá, eu olhava (deu risada). Aí,não... o parceiro saiu pro outro lado, ele tava na mucumbeira esperando o pirarucu.Aí, de lá eu olhava e o parceiro nada! Até que chegou, tá... só fartava me jogá lá decima, hum... de nervoso, sabe?

Aí, ele chegou:

— Rapaz, pega lá a canoa que eu tô aqui quase... sujo aqui!

Aí, ele trouxe e fui contando. Aí, por onde nós saia do aningal pro barranco, agente ia de varejão. Com três dias, nós fumo lá, aquilo tava sentado... a passagem dacanoa sentô! Ninguém sabe se foi o bicho que saiu no caminho da canoa, sai prá fora,né? Pro igarapé. A gente pensa que foi isso. A gente sempre saia de vara e entrava devarejão e saia de varejão. Que a gente vimo tava já prá entrá só de remo prá lá. Eramuito grande já... mesmo!

É porque eu não queria arpoá, porque se arpoasse me levava com tudo, tavaamarrado, era capaz de levar até a mucumbeira! A mucumbeira era pequena. Mejogava com tudo prá água. A catinga é muito forte, forte demais.”

Conheço um sócio da Colônia de Pescadores Z-20, morador da comunidadede Ilha de São Miguel, região do Aritapera, Dacildo Bertino, atual coordenador doNúcleo de Base. Ele sofreu um ataque de sucuriju. Ia sendo devorado mesmo pelacobra. Em seu corpo, hoje, ainda existem marcas do acidente. Ele é um homem cora-joso, mas não gosta de se recordar dessa tragédia em sua vida. Até se sente malquando as pessoas brincam com ele chamado-o de “Resto de Cobra”.

Edmundo Prata contou outra história triste:

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“Ali, na boca do que a gente vara acima de Óbidos, na boca do Muratuba. Láonde... tava tempo de cheia, não é? Casa marombada. E aí tinha, morava lá um casal,um homem com uma mulher, a mulher dele. Aí, ele não tinha farinha, ele veio proPiraquara, comprá farinha. E ela tava gestante. Aí, quando foi, que ele veio de tardi-nha, quando foi cedo (pois ele dormiu por lá em função da distância) ele travessô...

Quando ele chegô lá, ele chamô, chamô... nada! Que ele entrô, tava dessaartura (mostrou com a mão do chão até sua cintura) lá dentro da casa dele. Ele (osucuriju) pegô a mulher, matô com tudo a criança. Aí, ele foi embora prá chamá genteprá... irem matá o bicho. Engoliu com todinho!”

Sebastião Areis Farias, Vila Curuai, Lago Grande, senhor de 90 anos, aindaconserva em sua memória invejável as histórias que vivenciou. Elas realçam bem adiversidade econômica do pescador. Extrativista, criador, agricultor...

“Tava lá em casa, era um mulecotinho. Mais já trabalhava já. Pilotava bem,varejão... aí, por esse baixão aí. Aí, chegou um parente meu e disse:

— Eh, Roxo (apelido de Sebatião) umbora matá surubim prá nóis vendê hoje.— Rapaz, hoje é domingo!— Oh, domingo a gente come também. Nóis vende a carne e come.... as

cabeça, o espinhal.Uam... chamamo o varejão! Nós viemo saindo e fumo... atravessamos prá ali,

pro lado do Turrão. Viemo beirando... viemo até longe. E (...) aquele desgosto naminha vida!

Aí, saímo, fumo, fumo, fumo, fumo... Lá topemo um surubinzinho. E... arpoemo,jogô pro limpo, tuff... e saimo.

E chegamo lá de frente do finado Mereré, naquele baixão, vinha uma coisaassim turururru... Aí rapaz... vai purrudo. E, então naquele tempo, (...) tava o surubimprá arpoá, que... ele corria era todo baixo.

Ah, é, ele viu a gente. Aí ele viu, deixou ele se espantar e jogou o varejão eteeppei... Ichiii, minha irmã, olha o monstro de jacaré, (...) vinte e dois parmo. Abriu aboca e partiu direto no proeiro. A canoa era nova. Era uma canoinha nova. Ele meteua boca crauu... Quebrou dois dentes (...) Foi a minha valência e o companheiro tiobôpraquele lado (...). Ele meteu... foi embora, ele era mais velho né?

E eu fiquei, ali na popa sem ação, nem nada.... Olha, aquele monstro animal!O olho chegava a tá... Mas é que... eu digo que a história não foi em cima de mim,deixou ele lá prá que... quebrou dois dente na madeira. Ficou de fora prá dentro.

Aí, esse bichão ficou lá e aí... E que mal a mal que eu me acordei de um sonho!E aí eu... meti o pé, baixei, meti o pé, veio dos pé. Viichi Maria, até hoje quando melembro daquele animal. Aquele animal ia me comê.

Mas... Deus... Deus é bom demais, só pode ser! (...) Com a raiva que ele mor-deu, uma boca enorme que ele agarrou com a canoa, tudo. Tchauuu... alagou com a

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canoa, ficou com meio d’água. E ai, ficou lá, assim eu disse: aqui vou embora (...) ocompanheiro me largou... tirava o chapéu da cabeça, que tinha um cordão assim...Aquele cordão embaraçava e eu fui me puxando assim... Pois não é Deus? E graças aDeus (...). Aaaa, companheiro, foi... buiô muito dentro (...). Dentro d’água? Porque elequebrou as duas presas. E adormeceu o indivído. Porque senão ele tinha me comido.Eu tava ali perto dele – peixe nenhum – só o surubinzinho. Mas... santificado, né?”

Os pescadores(as), os grandes pescadores(as) santificam um dia da semanapara seu descanso. Geralmente é o dia de domingo. E essa história do Seu Sebastião érealidade. Ainda acontece com muitos pescadores(as) até hoje.

“ Outra. Vou contar mais uma! Bom, essa... eu escapei de chorar daquela e dessa eunão choro. Porque assim como tem gente bom tem gente ruim. E deixo pra lá... pois oindivido não vai... Eu tava com quatorze ano. Eu e esse rapaz fomo catá castanha (Castanhado Brasil, Bertholletia excelsa, mais conhecida como Castanha do Pará). Castanha, naqueletempo, dava dinheiro. Hoje em dia a gente não pode porque tudo tem dono.

Aí, me convidaram de me levar no castanhal. Quatro, cinco comigo, já gitinho eufiquei sem um par, né? Meu par era Deus. Uchi, fui embora. Fomo, chegamo lá, o patrãomandou nóis subir numa estradinha que tem na beira do igarapé. Uma barraquinhavéia. Aí, nóis consertamo a barraquinha véia, veia assim um... palha que tinha.

E trabalhemo! Primeiro, segundo, terceiro... quando foi na outra... terça-feirada outra semana, eles me levaram prá mata. Vê, sabe o que eles fizeram, os quatro? Seeles queriam um inocente? Eu era inocente memo, né? E eles já estavam acostumadono mato. Aí, nóis fumo numa estrada que chegava numa parte (...) que tinha umacastanheira lá. Pegaram castanha e eles ficaram... adentraram ali. E eu certo com eles.

Pois, a senhora sabe que aí, quando eu vi, quando deu um monstro de tempo-ral... esses homens não me largaram lá? Oh, Senhor, eu quis sair, um monstro de umananizal feio, eu quis sair... E peixe que eu perdi de dentro das matas!

Tar de Cachoeirinha... eiii... muito dentro. E eles... olha, foram embora se deitána rede, fumá o cigarro deles prá lá. E agora acha tapiri. E tive que ir no rumo. Eu ia norumo, e fui me embora naquele rumo da onde eu tinha vindo. Quando foi três horasda tarde, que o sor tava querendo abri, a chuva tava querendo passá... pois eu não fuivará bem mesmo no tapiri? Lá de detrás... eu ia lá (...). A castanha que eu tinha ajun-tado, tinha jogado tudo fora. Disse:

— É verdade, vocês me largaram no mato de manhã, fui vará três horas datarde. Isso pára, isso pára! (...)

Sujeito perverso, mardito, marvado, eles fizeram marvadeza. E aí... a sezão meabraçou. Eles iam me olhá lá na rede e eu tremia assim (...). A sezão é uma febre, masum monte de febre. É sezão, agora é malária, não é? Chama malária, mas naqueletempo era sezão. (...) Tremia... Quando foi um dia, um cearense que tinha uma mulher,bonita a mulher, mas as perna dela era só ferida! E eu estava... carreguei um montãode castanha assim. Me meti lá prá mim comê... Aí, disse assim:

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— Esse menino tá bom de morrê. (...) Aquele homem me disse:— Por que que não morre logo?!Foi embora prá lá com a mulher dele. Que de... aí nóis baixamo um pouquinho,

né? E eles ficaram prá lá. A sezão era muito comigo lá dentro do mato. Aí, me levaramprá lá, prá onde passa os barco, né?(o cearense morava com sua mulher nesse localonde os barcos chegavam. De lá para diante, somente em canoas pelo igapó) E elesficaram trabalhando. Não foi nada não! Aí, quando tava perto, eles disseram:

— O gitinho sai prá lá de morto.Tá com três dias prá lá na casa desse homem. Eu disse:— Vou me embora prá lá.Ele disse:— Pode ir.Ele não tinha jeito de sair. Me meti dentro da canoa, fui embora ajudando ele

remar. Cheguei lá, eles já tinham baixado. Tavam só esperando parece que eu chegarlá. Aí, eu cheguei lá. Ei, eu cheguei... malária, sezão, eles tremiam... castigo... E acanoa tava encalhada, bem na beira do barranco.”

Sebastião falou como era a alimentação nos castanhais. “Primeiro a gente ficavaruim da barriga, depois ia consertando, quando eu vinha de lá, tava gordo! Muito forti-ficante. Vou lhe falar... aí, não tem jeito, doença nenhuma... cada monstro de castanhal!”

Contadores de histórias... Valdemir da Silva, pescador e morador da comunida-de do Inanu, Lago Grande!

“Vou contar uma história de um camarada, que... que quando eu me entendi,ele já existia! Então, ele era um pescador aqui da região. Era Manuel Ferreira. É... aquida comunidade. Todo mundo conheceu. Aí, foi prá uma pescaria pro Jauarari, bemdaqui de fronte do Inanu. Aí, ele chegou lá, colocou tudo a malhadeira.

Aí, afincou o moirão, (...) e entrou prá baixo da tolda, né? Quando ele se espan-tou; foi cantiga de galo corococo, corococo... Aí, sai...

— Ah, aonde eu tô?Que ele saiu de baixo da tolda, que ele olhou... claro prá todo lado!— Onde eu tô, meu Deus...Caboco do sítio...— Onde eu tô...Ele olhou, ele tava em Santarém. Ele tava em Santarém. Tava, chegou na Ponta

Negra, ali naquela região, ali do... Zé Maria. Tinha a fazenda do Zé Maria, ele tavachegando por lá. Aquele claro que ele enxergava era a Ponta Negra. Aí, era... era porcausa da cidade que ele enxergava. E aí... que ele fez? Foi, que foi dá fé ele tinhafincado o moirão na costa de uma raia. E a raia levou ele e ele foi embora.

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Daí, chegou lá, ai vendeu os peixe que ele já tinha, por lá. Aí, vendeu os peixeque ele já tinha por lá e... ficou por lá. Depois ele veio embora. Comprou sal, comprounegócio prá pesca. Aí, veio embora.

E quando ele tá na Ponta Negra, quando ele viu um boto... boiô... Aí, quando oboto boiô... Aí, ele olhou... Aí tava escrito Óbidos direto. Aí, ele subiu em cima e arriô oferro. O ferro é o arpão que a gente fala, né? Arpôo o boto, amarrou na... rodela na canoa,entrô debaixo na... na tolda e deixou o pau correr frouxo. Esse boto se mandou direto.

Quando ele sintiu que tava chegando na boca da Santaninha (...) de fronte deÓbidos, Aí lá ele defendeu... tinha o arpão dele ali todinho direto e embarcou nacanoa e caminho... direto do Lago Grande (ele sacou o arpão do boto que o tinhatrazido de Santarém). Ele entrou no paraná. Quando ele vai na boca do paraná...daqui... de lá era boto, boto buiando, era boto prá todo lado. E quando ele viu umboto, boto assim... Aí, olhou... com placa... Esse boto ai... Jauarari direto.

Aí, ele ficou olhando, continuou remando quando o boto boiô di novo, Jauararidireto. Subiu em cima do boto e arreio o ferro, o arpão. Arpôo e amarrou lá. E o boto...tomô viagem afora.

Quando ele chegou... Que foi que ele fez: tirou o arpão, chegou na malhadeiradele, já no outro dia, tinha dois surubim e um cujuba. E ele fez tudo o percurso emmenos de dois dias. E hoje... a malhadeira dele tava em Jauarari.

Essa história eu tô contando aqui prá você porque veio dele, quando ele ainda erajovem que ele me contou, e quando eu era moleque... Manuel Ferreira daqui do Inanú.”

Histórias de pescadores(as)... Conta Pedro Santos do Amaral, pescador e mora-dor da comunidade de São Jorge, no Lago Grande do Curuai que “da outra vez, ele(Braço Forte era o nome desse pescador, que andava por todo canto na região do rioAmazonas como Santarém, Alenquer, Prainha) foi pescá, lá memo (lago do Camapú, nacidade de Prainha). Aí, ele já tinha mulhé. Aí ele tava pescando. Aí, ele ferrava o peixe, eletinha muita força, né? Quando ele ferrava o peixe, o peixe subia, quando via no anzol,vinha só a cabeça, né? Do peixe. Aí, diacho (...) Aí ele só tirava e ai botando na canoa...Só vinha as cabeça, mas que troço é esse? Aí, já tava só com aquele monte de cabeça nacanoa, ele foi embora prá casa dele. Aí, chegô lá, a mulhé dele tava com um monte depeixe. Quando chegô lá, trouxe só as cabeça (risada). Era o corpo dos peixe que... que eleferrava, caia... ficava a cabeça no anzol, ia cai na casa dele. Na casa dele.”

***“Pegava curimatá, né? E jaraqui. Baixei o caniço e fui me embora. (...) E o Décio

tava puxando o barco em terra ali. Digo:— Mas, vou robá este peixe!Mas nem prá mim conhecê que era meu o traste da malhadeira. Sacanagem.

Aí, eu... gritei prá Raimundinha.— Rapá, busca uma faca que eu vou robá esse peixe dessa malhadeira.

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Chegô lá, correu foi buscá uma faca aqui. Eu tinha uma faca só de descascáinajá, aquela gitinha. Levô a faca prá lá. Cheguei lá, fui puxando a malhadeira devagarassim por baixo, era um purrudão, purrudo de um cujuba. (...) Botei a cujuba passei-lhe a faca. A malhadeira embaixo tinha a cujuba. E ela tava ali atrás daquela árvore quetem. E lá eu joguei o cujuba (...) lá prá terra. Aí, fui embora. Quando eu voltei digo:

— Mas... vou espiá minha malhadeira...Aí, que eu fui me alembra da minha malhadeira. Eu:— Será que não caiu algum peixe?Fui lá não era a porra, não tinha feito tamanho buraco na minha malhadeira?

(risadas) Deu trabalho prá mim consertá, sabe? Diz que é o ladrão sujo! Porco!”

***

“Uma vez, eu tava pescando com o Décio. O Décio, quando chegamo lá, era omapará. E a mulhé disse:

— Oh, eu não compro mapará com barba.(...)Tavam tudo morto, peixe que morre logo, né? Eu digo:— Rapaz, isso aí não joga não, pô? Eu vou é barbeá esses filhas da puta! Faquinha

bem amolada, cheguei lá psiiiii, psiiiii... Tirei as barba de tudinho os mapará ! Quandofoi de noite, chegamo lá fomo pesá o peixe... o Décio disse:

— Pegaram o mapará?Digo:— Nós pegamo seu mapará mesmo, de lei mesmo.Butamo na saca, pesamo...Ele levô prá Santarém. Quando ele chegô lá, ele foi dá com os mapará.E ela:— Pô, Décio, diga-me uma coisa, tu tem algum pescador barbeiro, lá?Ele disse:— Por quê?— Pô, os mapará tão tudo sem barba ...Quando o Décio chegou disse:— Pô, Mazinho tu é muito artista.— Ah, tu não queria mapará sem barba, cara?!Eu... barbiei, os filha da puta. (Risadas)”Essas duas últimas histórias me foram relatadas pelo pescador aposentado da

comunidade do São Jorge, Hélio Rodrigues Pereira dos Santos, 62 anos.“Vou contá uma de quando eu pescava de lanterna. Lanterna era de carbureto!

Eu usava... a minha zagaia era grande cumprida, aquele pau, né? E eu gostava depegá aquelas estradas que vinha da beira do mato pro campo. E, as vez eu topava

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pirarucu; e surubim gostava de ir nessas estradinhas atrás daquele cará. O cará é umaraça da acaratinga, né? É aquele cará barrasco que chama. E eu picava. Eu era bonzi-nho de lanterna, de zagaia, que desde sardinha eu picava. E eu gostava desses cará.Quando eu alumiei assim na estrada, de longe, eu enxerguei o cará. Vinha de lá prá cá,né? Aí que quando ele chegou na posição, eu... carreguei a zagaia prá picá o cará. Noque eu ia saltando aí eu... peguei um surubim que ia atrás dele. Um surubim-lenha.Mas era grande, um surubim-lenha duns oito quilo mais ou meno. Aí, quando eu iasaltando prá pegá o cará eu enxerguei o surubim, arrecuei o braço e piquei o surubim.Só que deu na morte dele mesmo. Torô assim o espinhaço atrás da cabeça. Aí euembarquei. E quando eu embarquei, ele abriu a boca. O cará caiu da boca dele. Eletinha pego o cará na hora que eu piquei. Que quando eu embarquei o cará tavadentro da boca dele. Aí caiu na canoa. Então, peguei os dois, né? O cará e o surubim.”

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NOs pescadores(as) e suas regiões

Uma região: Lago Grande do Curuai

Num passado não muito distante o lago era muito fértil. Até os anos 60 e 70, apesca era muito rica no Lago Grande. Via-se muitos cardumes de peixes, vários tama-nhos e variedade de espécies, principalmente no verão, os apetrechos da pesca eram atarrafa, o arpão, a zagaia, o espinhel e a linha comprida.

Silvio Nogueira do Carmo, 67, ficou cego em 92 na pescaria. No início da entre-vista ele estava meio tímido, mais em função de uma vida no escuro. Quando elepercebeu que tinha uma oportunidade de contar seus conhecimentos sobre a pesca,ele alegrou-se. A varanda de sua casa, onde me recebeu, então vazia, de repenteencheu-se de uma platéia de netos, bisnetos, filhos, esposa e vizinhos.

O contador de histórias estava no palco. Suas cantorias pegaram todos desurpresa. Ele começou falando do seu Lago Grande do Curuai. E você, leitor, ainda vaiouvir neste livro mais histórias contadas por ele.

“O Lago Grande era tanto peixe que arauanã, que chamam também de peixe-macaco, molhava os pescadores de lambada, pela quantidade existente. De madruga-da, a gente levantava, pescando pirarucu, fisgando, né? Tem o negócio da fisga, poisfisgá pirarucu, a gente ficava tudo molhado, aqueles peixe, rapaz, quando se espanta-va era cardume (arauanã) e jogava com o rabo água tudo na gente.

Agora tem o negócio do arrastão. Aquele arrastão que é uma desgraça, viu?(...) Ele leva tudo que tá na frente! O arrastão, por isso que tá proibido, né? Agora, amalhadeira parada, o peixe só entra se quizé. Antigamente era bom, que o peixe aindaestava tolo, né? Agora, eles são sabido, já! O peixe agora estão sabido... E é por issoque apelaram pro arrastão aqui. Prá vê se pegam mais prá... por causa da da... daganância, querem ganhar muito dinheiro (...).”

Nos comércios, trocavam-se peixes por mercadorias, o pescado era pratica-mente dinheiro. O pescador(a) pegava o peixe, pesava e entregava para o comercian-te. Ir para cidade era difícil, pois não tinha embarcação constante, era apenas canoa àvela. Os pescadores(as) salgavam o peixe já reservado para os comerciantes da cidadeque iam buscar. Esses peixes eram o pirarucu e o surubim.

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Silvio lembra ainda o que faziam com tanto peixe no Lago Grande do Curuai.“Olha, esse pirarucu que a gente matava, tinha a taberna lá no igarapé. Tinha a taber-na prá comprá os peixe... deixava tudo lá. (...) Porque prá trazê pra cá, era dificuldade,sabe? Então, vendia logo tudo lá. Comprava a farinha, comprava a despesa... Trazia(produto), mas a gente pegava dinheiro (...).”

Neste século, tudo é diferente! Não se encontram peixes grandes com facilida-de, é o caso do pirarucu que está ameaçado. Isso tudo porque começaram os conflitos,as grandes redes de arrastão e as malhadeiras. Também os criadores de búfalos contri-buíram na diminuição do pescado. Os búfalos acabam com os anigais, locais de procri-ação dos peixes.

Hoje em dia, existem criadores de bubalinos que controlam sua criação e nãoprejudicam completamente o ecossistema. Também existem criadores que largam es-ses animais por conta da natureza. Sem um preparo de manejo coerente, pois os búfa-los são muito selvagens.

Conheço criadores que tratam desses animais de forma manejada, tornando-os dóceis iguais ao gado branco. É também fonte de renda para o pescador criador.Eles consomem e comercializam o leite, o queijo e a manteiga.

Voltando no tempo de novo, na época da grande fartura, quando a pesca eratotalmente artesanal de subsistência. Haroldo Viana dos Santos, pescador e moradorda comunidade do São Jorge extremando com Inanu, me levou para um lugar mágico,desconhecido para muitos moradores do Lago Grande. Eu mesma, depois de 40 anosé que conheci. Contam os antigos da região, que é uma construção que data da épocados jesuítas, mas não tem estudo arqueológico ainda. As informações são bastantedesencontradas.

O fato é que Haroldo preservou esse lugar que fica entre o roçado dele e ocemitério do Inanu, o qual recebeu o nome de Ponto, pois é o pedaço de terra maisalto na localidade, onde se tem uma visibilidade muito aberta da região.

Foi lá, então, que gravamos a entrevista. Haroldo também se mostrou umgrande contador de histórias. Quando percebi, sua família também estava lá com agente. Dei o gravador para ele porque senti uma força me puxando para visitar olugar. Mas, só encontrei o abismo do barranco. Só se ouvia o canto da floresta e suavoz. O cenário era muito lírico. “Eu sou filho do Lago Grande, nasci aqui nesse lugare ainda vi muita fartura. Eu me lembro, eu era jovem, eu ia com meu pai... Naquelaépoca, não existia nenhum tipo de proibição ainda, ele era um matador de pirarucue hoje, tá muito raro nosso Lago Grande em termo de... de pescado. (...) Nós quere-mos assim... ver nossos filho não passando necessidade, não passando fome. Aliás,tem, criança que... nossos filhos que não viram mais o que nós vimos, quando nóséramos jovens, quando nós era garoto... Então, hoje, por exemplo, tracajá hoje, prágente vê um tracajá é muito difícil. Prá gente vê um pirarucu hoje é muito difíciltambém. E... e outros e outros peixe. Em termo de caça também. Então, nosso Lago

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Grande tá explorado... mas, mesmo assim nós tamo sobrevivendo aqui. Temos sidotambém muito abençoado.”

É, muita coisa mudou no Lago Grande. comunidades divididas em decorrênciade atritos religiosos, carência de lideranças para encampar idéias e o desejo de lutar,descuido com as leis.

Lamentavelmente, o ser humano tem uma tendência a infringir as regras. Daí,surgirem os conflitos. E quando se fala em Amazônia esses conflitos se tornam maisabrangentes em função dos interesses políticos e econômicos. Momentos tortuosos econflitantes não cabem aqui neste livro, onde pelo título, supõem-se histórias para sedivertir, não é mesmo? No entanto, eu não posso deixar de contar para vocês o impassedo Lago Grande do Curuai. Mesmo porque, eu sou filha da comunidade do Inanu.

Como disse bem Haroldo Viana dos Santos, o lugar foi abençoado por Deusem muitos sentidos, apesar do castigo que sofre na época da seca. É, porque na Ama-zônia vivem-se duas estações. O inverno, caracterizado pelas águas volumosas que sedebruçam sob a floresta e seus povos, fazendo com que os rios transbordem em abun-dância do líquido precioso. Esse período varia entre dezembro e junho. Nesse período,o transporte é basicamente fluvial.

E o verão, quando as águas descem, descem, descem... E que percorre os mesesentre julho a dezembro. Essas estações são bastante variáveis. Dependemos muito dacolaboração do ser humano no sentido da preservação e conservação dos recursosnaturais para que as variações climáticas não ocorram bruscamente no planeta.

Então, onde antes era o Lago Grande do Curuai, no verão forma-se um cam-po muito extenso salvaguardando uma quantidade de água inimaginável para quemo vê no inverno. Nesse tempo, o transporte é realizado através de barcos até aRodovia Estadual Translago (PA–275). Por onde a população chega através de ôni-bus, motos, e carros.

Aí, temos outra ingerência da natureza humana. O lago está na ilharga de trêsmunicípios: Santarém, Óbidos e Juruti (no que se refere a ecossistamas, pois, afinalpeixe não tem RG nem CPF). A pergunta que não quer calar: como definir uma portariade pesca para os três municípios?

Eu compararia o Lago Grande a uma cobra grande. Sua cabeça está no rumode Óbidos (a ganganta da cobra grande) e Juruti. Seu corpo é o meio do Lago Grandee seu final, no início do lago, em Santarém. Percorri os três municípios em pensamentoe vi que estamos todos ligados com um propósito só: o bem-estar dos três municípiose de suas populações.

Lá, os três municípios se encontram, uma área só com um enorme potencialpesqueiro. As águas se entranham através de canais, furos e igarapés. O peixe do rioAmazonas entra e sai no lago através desses caminhos. Assim como os pescadores(as)entram e saem... Inclusive pescadores(as) de outras regiões. E aí, está configurado oconflito. É um conflito que está ligado a interesses econômicos e políticos.

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Antes de continuar essa história, vamos ver o que a pescadora Sônia MariaLeão Pereira, presidente da Associação das Mulheres Pescadoras, Artesãs e Agriculturas(Amupaa ) comentou muito sabiamente. “Os conflitos, eles se dão devido a... parte deeducação que as vezes as pessoas não tem. Um trabalho educativo! Prá nós aqui, emlugar nenhum nunca houve uma escola profissionalizante prá filho de pescador. Práque ele entrasse de manhã naquela escola e saísse a tarde com toda sua alimentaçãocorreta. Prá que, amanhã, ele fosse um pescador que soubesse tratar dos conflitos...prá não haver conflito na pesca, que soubesse respeitar o meio ambiente, que soubes-se também conversar com seus pais lá em casa, o que é prejudicial ao meio ambiente.Que a maior parte desses conflitos é porque as pessoas, eles ainda também, ainda nãotem condições de tê recebido assim... uma informação correta! (...) A gente tem quesabê mediá esses conflitos, que nós não podemos tomá parte do conflito (...) prá quehaja uma solução!”

E é exatamente mediação o que o impasse no Lago Grande precisa. Sendo o Con-selho de Pesca a instituição com o maior poder de articulação na região, caberia a ele amediação dos conflitos. A história mostra que anterior à criação do Conselho de Pesca jávigoravam acordos comunitários. Com o desempenho da Colônia de Pescadores Z-20fortalece a categoria e começa-se a desenvolver um trabalho mais consistente. Foi quandoem 1999, elaboraram a portaria de pesca e sua posterior publicação pelo Ibama.

Roberto Cardoso Marinho, um líder importante na organização do Conselhode Pesca do Lago Grande e atual diretor da Colônia de Pescadores Z-20 me disse que“a portaria é importante para o crescimento pesqueiro e infelizmente, por falta deexperiência na época, a portaria foi feita por tempo determinado. E com isso, a porta-ria se revogou e até hoje ainda tamos esperando.”

As portarias por tempo determinado de certa forma incentivam ou “obrigam”os envolvidos a realizarem uma avaliação. E para se chegar a isso, a mobilização eorganização comunitária são indispensáveis!

Emerson Batista Feleó, vice-presidente do Conselho de Pesca da região do LagoGrande do Curuai, me explicou em que situação se encontra a portaria de pesca hoje.“A portaria até hoje nóis temo tendo dificuldade com a portaria nossa porque era praela ter entrado em vigor, né? Mas, só que até agora a gente não tem uma soluçãocerta. Não sei se hoje (reunião do Conselho de Pesca do Lago Grande, dia 14/02/04),né? Porque hoje a gente ainda vai esperar o Ibama prá ele divulgá o que está aconte-cendo. A gente quer saber hoje, então hoje a gente vamo tê uma decisão certa. Saídaqui já com uma decisão (o Ibama não compareceu à reunião).”

E os conflitos que com portaria de pesca já eram difíceis de se controlar, agoradeslancham. Existe um grande mal-estar entre os pescadores(as) na região principal-mente quanto às invasões, assim como desrespeito às leis ambientais e do Conselho.Tanto entre as comunidades que estão instaladas dentro do lago como entre ospescadores(as) de Santarém, Óbidos e Juruti.

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Emerson Batista Feleó, disse que ”o município de Óbidos, já não tem essaintimidade muito, né? Porque você vê que a dificuldade maior que nóis enfrentamosnessa região é Óbidos, né? Então, a... a maioria dos pescadores não querem respeitarnossa região. Então, com isso vem trazendo é... dificuldade pra nós se acerta, né?Todas as comunidades elas (...). Olha, não tem a... o tem uma comunidade aí de Baixoaí que ela é meia, não gosta muito de respeitar. De vez em quando, ela tá furando osacordos, né? Que tem o acordo, tem a portaria mas eles pensam que... ficam pouco afiscalização, né? Eles acham que demoram um pouco, aí eles fazem o tipo de pescapredatória, né? Não querendo considerar, né?”

O pescador Jorge Raimundo de Sousa, 43 anos, pesca desde os sete anos deidade, e é sócio da Z-20 há seis anos. Mora na comunidade de Uruari e dá força para asdecisões do Conselho de Pesca do Lago Grande do Curuai. ”Prá mim o que eles estãofazendo é bom. Agora o que falta é eles expulsarem essas grandes geleira que tão aídentro, né? Olha agora, não tão respeitando... a pescaria do mapará tá proibida, doaracu tá proibida, malhadeira de mica tá proibida, mas só... tá proibida prá nós aqui.Mas, esse de fora vem invadí ai, como eles estão invadindo. Aí, não tem condição!”

Já João Antonio Barbosa, 41, pescador sócio da Colônia de Pescadores Z-19 deÓbidos é agente ambiental não credenciado pelo Ibama ainda. Morador da Vila Bar-bosa na beira do rio Amazonas, me contou como está a relação dos pescadores(as) doLago Grande da Franca como chamam o Curuai naquela região. Foi o primeiro nomedado à região em função da Vila Franca, situada nas imediações da boca do lago,onde foi a base governativa na época da colonização, antes de passar para a cidade deSantarém. O nome Curuaí se deve aos primeiros habitantes indígenas da localidade.

”A raiva deles (dos pescadores do Lago Grande do Curuai) é que nós pesca sóde bajara. Nós pesca só de bajara. Nós teve uma reunião aqui em Santarém. (...) Sabe,nós espera eles prá discutir isso aí, não vieram!

Ela (a bajara) tem uma rapidez. E a gente tem de pescar de... já pensou?! O caralascado do interior, compra um motorzinho prá ver se facilita mais a vida dele. Aí, oscara querem que a gente deixa o motor parado na beira e saia prá dentro. Ah, não temcondições! De canoa eu acho que economiza o peixe e mata o pescador! Porque... elefica baquiado e não tem condições de enfrentar uma ventania a remo. Eu acredito queeconomiza e mata o pescador. De bajara... as vez não pega nada... é pouco.

Olha, veio um pessoal de Monte Alegre, trás um negócio de trinta bajara, e saiaqui nesse Lago Grande aí. (...) Aí, não existe lei prá eles, lógico. Porque... sei lá... Elesjá sabem o dia que o cara vem.. Eu acho que tem uma jogada nisso aí. Ali... ele sai,quando os cara sai, eles entram... aí pegam aqueles porque que tão – no varejão – norebojo deles. Eles levaram tudo (...). Todo ano tem. (...) Eles só pescam negócio dequinze panos prá frente. Negócio de cinco palmo que a gente pesca aí não é nada.

Aí tem esse pessoal do Urucurituba. Eles não pescam de bajara, mas eles pes-cam de canoa e é muita malhadeira. É negócio de quinze, vinte palma emendado.

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Muito barco e muita canoa também. Todo jeito... É no meio do rio, é em cima domato, é de todo jeito. Eles não consertam a rede deles, pegam e vão levando.”

Interesses alheios aos interesses coletivos estão em jogo. Basta saber o que opoder público vai fazer para arrefecer os ânimos alterados dos pescadores(as) do LagoGrande do Curuai. Sim, porque a ausência da portaria de pesca poderá gerar deman-das complexas em função de sua geografia.

O pescador Emerson Marinho Barbosa, da Vila Barbosa, em Óbidos me contouque eles estavam pescando no Juquiri. ”Era eu com meu irmão. E aí, nós fomo revistáa malhadeira de manhã. Tinha peixe lá. Tiremo e butemo na caixa. Aí, quando fui detarde, esta hora assim, fomo vê a malhadeira. Tinha um tambaqui lá. Aí, meu irmãodisse bem assim:

— Pô, nós leva esse tambaqui prá nós comê lá em casa.E aí... aí... tá a gente ia levar.Butemo na caixa, dava uns quinze quilos o tambaqui. E aí, quando nóis nem...

tava lá no barco (...). quando nós demo, lá vem o pessoal do Curuai, pessoal do Curuainão, nós pensamo que não era. E aí, nós vimo em barco em barco, aí nós fiquemo jáaguniado. Lá do barco. Aí,... e aí, eles foram lá com nós. Pediram licença prá abrir acaixa. Dissemos:

— Pode abrir!Olharam lá os peixe.— Não tem peixe proibido aqui. Só esse tambaqui que tá proibido aqui.Eu disse:— Mais, tambaqui acho que não é proibido, que já é grande já.E aí...— Não, mas tá proibido, estão... Isso é uma multa muito grande prá vocês.— Ah, então se for por isso...Aí, meu irmão disse:— Deixa logo eles levarem.— Então leva o peixe, leva o tambaqui...Pegaram assim... quinze quilos, um tambaquizão, purrudo, aqueles pretão,

mesmo, aquele... Aí, eles pegaram butaram o tambaqui lá no barco, na voadeira,voadeira, o nome dela até Mapará, o nome da voadeira. E aí, eles estavam nessavoadeira mas num barquinho. E aí... eles pegaram...

Eles pediram licença prá abrir a caixa. Eu disse tá... Não deram o nome prá nóis.Eles disseram que eles eram do Curuai! É uma voadeira chamada Mapará. E eles pega-ram e levaram e nóis fiquemos só olhando.”

Enquanto a portaria de pesca não sair, os conflitos continuarão... A esperançatambém reside no diálogo e na vontade de se chegar a um entendimento. O que implicarecuos de opiniões individuais ou interesses em função da opinião e interesses coletivos.

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Outra região: Igarapé do Irurá e Igarapezinho

O pescador Moacir O. Ferreira, do Núcleo de Base do bairro do Maracanã,pertencente à Colônia de Pescadores Z-20, é uma liderança que guarda lembranças dapesca urbana em Santarém. Ele me falou muito das riquezas dos recursos naturais quejá não existem mais. Ele me descreveu um cenário que ninguém mais vai ver. Pois, estácompletamente transformado pela ação descontrolada do ser humano.

Conheço os mesmos desde 1953. O mesmo nasce na Rocha Negra e PonteAlta, passa pela Cambuquira se encontra com o Igarapezinho próximo ao SeminárioSão Pio X estas duas maravilhavas que Deus preparou com tanto amor e carinho parao homem zelar, esta aí o resultado negativo. Onde os peixes paravam para se alimen-tar, desovar, como também os tracajás, tatus, peixe-boi, pacas, cutias, porco catitu,lontras, ariranha, sucuriju, onça d’água ou tapirauara e a capivara, os macacos, patos,marrecas, malaris, papagaios, maracanãs, santa cruz, a nanai e mergulhão, a garça, oveado e outros. Hoje está na extinção por causa da ganância do homem.

Esses dois igarapés tão lindos, tinham uma água tão limpa e gelada e a profun-didade dava em certos lugares até sete metros. Os mesmos tinham e ainda têm muitariqueza, como o caranã para fazer o tipiti, a cesta, a peneira, o paneiro. O tucumã parafazer o chapéu, a bolsa, o leque e outros artesanatos também serve para fazer camba-das de peixes miúdos. Temos também o buriti, a bacaba, o açaí, o jará e outros queservem de alimento rico em vitamina como o bacuri.

Não esquecendo da beleza natural, o clima legal, a vista bonita, apesar dasbombas terem matado muitas árvores, mas ainda é bonito. E com uma política dapesca e da caça nós ainda vamos ver riqueza, não de tudo mas o que ainda resta.Podemos sim com ajuda de Deus fazer essa fartura.

De 1960 em diante, começou o desastre ecológico e ambiental. A bomba, oataque as casas, os desmatamentos. Criação de porco na margem do igarapé, esgotoda Seletto (indústria de produção do frango) e de outras residências, canaletas e outrostipos de ataque contra a natureza. Fizemos uma luta e conseguimos fechar o esgotodeles, já foi uma vitória. Só que aumentou a população e residência e posto e serrariase terminal de ônibus e aí fica difícil, que o poder público não faz nada

Se não bastasse tudo isso a Fernando Guilhon (grande rua que liga o aeroportoao centro da cidade) e o viaduto foram dois ataques à natureza imperdoável.

E hoje, o desastre esta aí para todos nós ver, as maravilhas desaparecendo mas60%. Os igarapés que tinham de 4 a 7 metros fundura, hoje nós temos o Igarapezinhoque não cobre o nosso pé. Só vemos os donos de serrarias ricos e os nossos igarapésacabados pedindo socorro, até a saída desses igarapés no igarapé do Mamiri esta aterra-do. Acabou aquela beleza, aquela disputa dos dois igarapés no encontro dos mesmos.

Então eu pergunto ao povo de Santarém: nós precisamos de água boa paranós matarmos nossa sede e que os peixes não fiquem contaminados.

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O que fazer? Vamos para a luta ou não?Mas eu tenho uma esperança muito grande de que, com ajuda de Deus, nós

vamos salvar nossos rios e igarapés e ter nossa cidade limpa. Todos os movimentosque estão surgindo como o Fórum do Lixo e Cidadania, o Conselho de Pesca daCidade criado pela Z-20, as ONGs, temos a CPP (Comissão Pastoral da Pesca) e a CPT(Comissão Pastoral da Terra). Temos que fazer alguma coisa que os grileiros estão aípara fazer seus grandes roçados para plantar soja e, quem sabe, os transgênicos, ecom isso vão expulsando os donos da terra, e aí vai ter mais violência e os nossosigarapés vão ficar envenenados, o nosso ar, o nossos rios estão... vai ... outro proble-ma mais sério ainda.

Então, vamos se unir e partir para a luta, quem ganha com isso é o povo.Se alguém precisar de mais informação eu estou à disposição.A vontade é de refazer o igapó do Mapiri, já temos algumas árvores que já foi

plantado. Quanto ao Conselho de Pesca da cidade, que Moacir se referiu no texto, quero

explicar que ele está em discussão. Não foi criado ainda! Eu sinto que em nome doprogresso nossas riquezas ambientais estão se acabando. O desenvolvimento é neces-sário, mas desde que venha acompanhado de estudos de impactos sociais e ambientais.Que sejam projetos de estruturas planejados, zoneados. Dessa forma, acredito quepossamos preservar nossas riquezas para nosso desenvolvimento e para nossas gera-ções futuras.

Mapiri, tu fostes um encanto! Hoje, ouço teu pranto

Falei com o pescador Moacir O. Ferreira, 58 anos, sobre o livro que estavaescrevendo. Ele, meio sem jeito e desconfiado pelos anos de luta em favor de suaregião, me disse que me daria um relato por escrito. Tal como ele escreveu, eu trans-crevo aqui. Relato apaixonado de um homem que lutou para tentar salvar um lago.Um lago onde seu pai viveu e ele aprendeu a pescar com ele. Um relato de um aguer-rido pescador!

“Eu conheci o Mapiri desde 1953. Até o ano de 1956 era muito difícil entrar umapessoa no Mapiri. Os pescadores só chegavam até a Ponta Grossa. Depois que viram opapai pescando jaraqui, alguns curiosos investigavam para saber como era a pescaria.Mas o papai não ensinava. Para dar um tempo aqui no Mapiri, nós íamos até o lago doJuá para pescar jaraqui. Aí, os pescadores do Juá procuraram descobrir como a genteestava pescando. Então, nós íamos para o outro lado, fazer outros tipos de pesca. Quan-do manerava a curiosidade dos pescadores, nós voltávamos a pescar jaraqui.

Em 1958, roubaram nossos anzóis. O papai costumava deixar escondido nacanoa. Demorou umas quatro semanas para a gente ver três pescadores pescando ojaraqui, João, Irdo e Ipifane. Com mais umas duas semanas, surgiram mais pescadores,

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Chandanga, Totó, Sizú, Nenê e Raimundo Lopes. Ipifane, Totó e Raimundo Lopes eramacompanhados por seus filhos.

Isto foi até 1960. Desse tempo em diante, foi aumentando a quantidade depescadores e, hoje, até as mulheres pescam. Mas o papai foi o inventor da pesca deanzol, hoje chama-se garateia. Também ele inventou o espinhel para pegar o jaraqui.

Mas, quero dizer que o Mapiri, no meu conhecimento da margem do Tapajós,era (ou é ainda) o único local que nós encontrávamos todas as espécies de peixe.Inclusive a tainha que não é da região. Enquanto que no lago do Juá não encosta ounão entra certos tipos de peixes porque eu nunca peguei e nunca ouvi dizer quealguém pegou. No Mapiri eu já peguei dourada, o filhote, pirarara e tainha. Essasquatro espécies nunca vi por lá. Então o Mapiri não é um lago. Dentro do Mapiri nóstemos dois lagos. O primeiro é o Laguinho de formato redondo, e o segundo – quetambém em tamanho é o maior em forma retangular – o lago Papucu.

Todos os lagos como os igarapés eram ricos em peixes de todas as espécies quetemos na região. Também muito farto em pássaros como mal-ari ou maguari, pato domar, pato da água ou mergulhão, marreca, arara, ananaí, coroca, papagaio, dois tiposde curica, tucano, santa cruz, garça e bichos como tatu, cutia, paca, veado, porco,catitú, capivara e macacos de diversas qualidades como a guariba, zogue zogue, mãoamarela e prego. Também nós tínhamos um bicho que não é muito comum, masbotou muito pescador para correr, era a tapirauara, a onça d’água. Tinha ariranha e alontra. É bom ficar certo que dessas três marcas talvez a lontra ainda, em algum mo-mento, entra nos lagos.

Nós temos a questão do Maracanã, qual foi a origem? É porque a Ponta dePedra era uma mata que metia medo de entrar na mesma. Com muito murucizeirose outras frutas que atraíam os maracanãs. Se juntavam em grande quantidade quepela porta do amanhecer era aquele estrondo de maracanã, parecia temporal. Asanta cruz também ajudava, era em quantidade. Juntavam outros pássaros como agaivota e o mergulhão – muito bonito. Mas, quem predominava era o maracanã.Então, ficou chamada de Ponta do Maracanã, hoje, chamam também de praia doMaracanã.

O primeiro nome dado foi praia do Pau-Rico porque nessa praia tinha muitasfrutas como o tucumã, a piranga, o perauixí, caju, cajurana, camo camo, jauari, seringabarriguda. Por causa dessa variedade de árvores frutíferas vinham também os bichoscomo a cutia, a paca, o caititu, veado, a mucura, catipuru, os macacos, e as aves.Todos vinham se alimentar e fazer a festa.

Como o papai sempre parava a pescaria para fazer comida, ele dizia:— Esta praia perto da cidade é muito rica.Um dia, conversando com dois ou três pescadores o papai comentou a ques-

tão do nome do lugar. Aí, começou a discussão: um dizia que era Praia Rica, outro queera Pau-Rico. Eu sei que o papai então disse assim:

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— Se tem praia e tem muita árvore, então é melhor praia do Pau-Rico. E atéhoje, eu digo para meus filhos: vamos lá no Pau-Rico pegar uns peixes. Nós vamos epegamos! Os pescadores antigos ainda se lembram que o nome continua esse.

Já falei das belezas e era, de fato, um paraíso. Já falei das farturas. Faltou umacoisa, que é a principal: a água. Quando eu conheci o Mapiri, podia jogar uma agulhacom três ou quatro metros de profundidade que a gente enxergava com a luz do dia aagulha lá embaixo. Hoje, é triste!

Mas, vamos falar... poluição primeiro. Começou a Petrobrás com as pesquisas,em 1958 para 1959. Chegaram em Santarém e vieram se alojar no Mapiri. Fizeram umcampo para jogar bola e aí começou o problema. Primeiro jogaram uma bomba dina-mite, próximo a saída do Mapiri. Depois, jogaram outra no lago do Papucu, e essasduas bombas fizeram um grande estrago de peixes de todas as espécies. Com isso, anossa tapirauara ou onça d’água saiu rapidamente e foi procurar outro lugar.

Eu e papai vimos toda a fuga da mesma. Tivemos notícias de pessoas do Juá ePajuçara, que a mesma foi se alojar no lago da Pajuçara, que é um local que ninguémentra por ser muito feio e coberto por aninga e outros tipos de cerrado. Então, sesupõe que a mesma se encontra lá. Com essas bombas, despertou os curiosos. Procu-raram saber com os funcionários da Petrobrás, informaram que em vez da dinamiteque era proibido, é um material que só o exército usa. Mas, disseram que tinha outromaterial que eles podiam fabricar a bomba caseira. Que era o colorato, o enxofre e ocarvão de cedro ou embaúba e o rastilho.

Aí, a dupla Dafinha e Jacaré, por sinal o primeiro jogava pedra na lua e corriaatrás de avião, aí fizeram a primeira bomba caseira e jogaram na entrada com o Mapiri,em uma piracema de jaraqui.

Passou mais de um mês a fedentina de peixe podre já começou a poluição. Em1959, pelo mês de maio, que era a força dos cardumes ou piracemas, esperaram serpunidos, não saiu nada, aí continuaram.

A Petrobrás voltou a jogar suas dinamites. Demarcaram da Ponta das Caieiras,hoje, Docas do Pará ou Cais do Porto, em direção a Ponta da Maria José. Eu não estoubem certo se de 200 metros ou de 500 metros uma bóia da outra. Cada bóia era umabomba. Não sei a potência, mas não era menos de um quilo.

E então, o que aconteceu? Morreu bastante filhote, dourada, pescada e outrasespécies. Com isso, os predadores que já não era só a dupla e sim, tinha outros mais.Mesmo assim, eu e papai nos cansamos de pegar jaraqui no paneiro. Eu ficava comdois paneiros feitos pelo papai naquelas enseadas. Me colocava em uma posição bemque eu sabia que o peixe ia passar. Aí, o papai saía com uma vara batendo na água, opeixe saía correndo prá fora, o paneiro já estava na posição, só fazia suspender omesmo cheio de peixe.

Prá se ter uma idéia, ninguém naquele momento, naquela época não tinhaporque jogar bomba. Porque o pescador que jogava tarrafa ele pegava quantidade.

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Você até tinha privilégio, eu digo. Por isso, aconteceu muitas vezes comigo e o papai,da gente ver cada piracema de peixe.

Aí, a gente olhava, aí o papai dizia: eu não vou jogar minha tarrafa porque épacu ou é jaraqui médio ou é aracu marinheiro. E tinha vezes que o papai não jogavaa tarrafa porque era cardume de tambaqui ou pirapitinga ou jutuara grande ou tucunarégrande. Mas, a ignorância e a ganância falou mais alto. Mas, mesmo assim tinha fartu-ra para pegar cinqüenta, cem ou mais jaraqui. Era fácil! E não só o jaraqui, o tucunaré,o tambaqui, o pirarucu, a pirapitinga.

Agora vamos falar do resultado. Acabaram com os grandes igapós da frente,do lado e dentro do Mapiri. Com isso, grandes quantidades de bomba foram jogadopor dia. Foram trinta e nove anos de bombardeios no Mapiri. Nas margens do rioTapajós, cabeceiras e lagos na várzea. E ninguém ligou para o estrago. Tinha dias dejogarem mais de cem bombas de trezentos gramas no Mapiri.

Vamos fazer um cálculo: quantas toneladas foram jogadas em trinta e noveanos? Isso só no Mapiri, (...) 252.720 toneladas. Isso por baixo. Eu pergunto aos en-tendidos no assunto: qual foi o teor de poluição ou envenenamento que isto deixou?Qual foi o saldo positivo e negativo? Gostaria de ter a resposta com todo respeito!

Uma coisa eu digo, que de positivo no meu pouco conhecimento não tem nada!Agora, negativo, tem muita coisa. Primeiro, muitos bombeiros (Moacir nomeia os pesca-dores que jogavam bombas caseiras como arreio de pesca, de bombeiros) acidentadospor bomba já se foram por causa das conseqüências. Outros estão aí, mutilados rece-bendo uma aposentadoria irregular. Porque, no meu entender, foi um acidente abusan-do da lei, enquanto que certas pessoas que vive sem condições de trabalho por causa deacidente que ele não procurou. O INSS recusa, diz que a pessoa está boa, enquanto queesses abusam da lei, ganham suas aposentadorias e ainda continuam fazendo crime.

Eu digo, provo, ok? E nenhum bombeiro daqueles mais perversos estão todosna miséria. Não vejo nenhum rico. Então, não adiantou fazer um crime tão grandecontra a natureza. Então, está aí o porque da poluição, do extermínio dos nossosigapós e igarapés.

Se não bastasse isso, veio a questão do garimpo para a poluição do nosso riomaravilhoso (Tapajós). E hoje, está aí a praia do Pau-Rico (praia do Maracanã) com asbarracas que ficam submersas no inverno. E o lixo doméstico e outros tipos de lixojogado na água.

Está aí, a Ponta do Maracanã. Segundo pessoas, tem residência com tubulaçãojogando os seus detritos para o rio ao lado das pedras. E aí, as pessoas, os banhistasestão lá, muitas vezes até bebendo aquela água. Está aí nosso Mapiri com a poluiçãodaquele estaleiro jogando todo tipo de material que poluí, pedaço de madeira comprego, com tinta, óleo e outros. Está aí o Candinho que aterrou a praia e hoje é umapoluição total. Os barcos que param por lá jogam seus lixos na água, muitos vão lavarseus barcos que vieram da pesca e óleo queimado.

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E tanta coisa que deixa a gente triste. Eu só penso nos meus filhos e netos e asfuturas gerações.Temos também outro estaleiro no lago do Papacu.

Aí, o leitor pode me perguntar, mas você fez alguma coisa em favor dessas coisas?Já em 1977, começamos fazer reuniões no Núcleo de Base que, na época, era Capatazia.O Lázaro era coordenador ou capataz e depois veio o João Bentes e o atual RaimundoGóes. Eu, na época, não era sócio da Z-20 mas já fazia um serviço da entidade.

E, quando em 1980/1981/1982 comecei conversas com os bombeiros. Unsaceitavam minha conversa, outros não. Até que chegamos a fazer um pega-pega debombeiro. E isso aconteceu em 84. Prendemos bombeiros, entregamos na marinha.Aí, foi para a Polícia Federal e o resultado disso: os cinqüenta e sete pescadores queestavam me dando apoio sumiu. Quem agüentou o pepino naquele momento foramuns companheiros do São Ciríaco (comunidade).

Os dois que foram pegos por nós quando jogavam bomba, eles foram presosde manhã e no início da tarde já estavam me procurando para me mandar pra cidadedo pé junto. Foram em casa, não me acharam. Mas eu fui perseguido quatro anos. Eu,quando saia prá pescar, saia escondido. Mas, duas vezes correram atrás de mim parajogar bomba na minha canoa.

Mais de um mês fui protegido da polícia federal por ordem do coordenador daSudepe/Pará, Dr. Edson Borges. O mesmo foi chamado pela diretoria da Z-20, e omesmo veio e manerou o problema. Falou que se acontecesse alguma coisa comigo, apolícia seria responsabilizada. Mas eu não parei.

Conversei com a minha filha, que na época tinha quatorze anos, para fundarum grupo de adolescentes. O grupo foi fundado com dezessete adolescentes. Era praver se as autoridades pelo menos ouviam e se sensibilizassem com o problema. Eu játinha feito duas reuniões e não fui ouvido.

Então, foi criado o grupo para ver se resolvia a questão. Foi feito o conviteassinado pelas meninas e vieram atender o chamado. A reunião foi feita na Igreja deNossa Senhora do Perpétuo Socorro. Aí, uma decepção para mim e mais bronca.

Eu fui na reunião, quando vi que todos os representantes estavam fazendojogo de vôlei, e ninguém queria segurar a bola, eu pedi a palavra. E comecei a colocaro seguinte: que ninguém queria se responsabilizar com o problema e aí eu fui fazer acolocação. Quando prendi bombeiro e entreguei prá Marinha e a Marinha entregouprá Polícia Federal, com três horas mais ou menos os mesmos andavam atrás de mimpra me matar.

O delegado da Polícia Federal se achou ofendido e levantou e veio em cima demim para me bater. Foi quando o representante da Marinha mandou o mesmo sentar egarantiu minha falação. Mas acabou em nada. Para me safar dos bombeiros, eu conver-sei com o Padre Leão e Eunice. Fizemos uma reunião com cento e quarenta e oito bom-beiros e mais outras pessoas, na Praia do Pau-Rico. Eu passei a explicar, até porque doismeses antes dessa reunião, mais de vinte bombeiros me peitaram e só não me mataram

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porque Deus não quis. Aí, eu mostrei para eles o prejuízo que estavam dando para elesmesmos. Inclusive, no dia anterior, tinham morto dois casais de tucunaré, um casal esta-va com os filhos de três centímetros e outro de cinco centímetros.

Então, nesse momento, houve um grande silêncio e da parte do chefe e maisuns dois exaltados pediram desculpas, perdão. Houve lágrimas e entenderam que defato eu estava fazendo o bem prá eles mesmos. Então, nós tivemos quatro dias conse-cutivos que ninguém jogou bomba. Aí, mais ou menos um mês e meio, ficaram jogan-do bem espaçado. Mas ninguém ligou e aí correu solto.

Mas, eu não parei. Fiz um relatório e mandei prá Brasília, onde nós temosrepresentantes do Monape (Movimento Nacional dos Pescadores). Não sei se che-gou... Quando foi um dia, o presidente do Monape chegou aqui. Aí, fiz outro relató-rio. Ele levou e disse que o problema pertencia à Prefeitura.

Então, eu acredito que aquela torre de fiscalização foi o resultado. Que nãofiscaliza nada, inclusive o fiscal, segundo outras pessoas, foi quem matou um pirarucuno lago do Papacu que pesou de 12 a 15 quilos. E todo ano pega os tambaquispequenos, ou seja, os bocós. Só este ano, fizeram o mesmo soltar oito peixes na basede um quilo prá frente.

Então, hoje está aí os nossos lagos e igarapés... Cheios de lixo, óleo queimado,pesca de arrastão e ninguém toma providência.

Quero dizer que já plantamos diversas árvores frutíferas como catauari, camo-camo, bacuri e outros. Inclusive, eu plantei uma muncubeira. E cadê os vigias? Ibama,o poder público? O Mapiri está dentro da cidade, não podemos aceitar esses tipos decrimes e abusos contra a natureza!

Ainda guardo na mente Mapiri, tua beleza e as paisagens lindas que Deus tedeu. Os pássaros cantando e os peixes e a água saudáveis.

Aqui vou encerrando esse triste histórico com muita tristeza. Que nunca pas-sou pela minha cabeça que as maravilhas que eu vi e conheci... Jamais pensei, hoje,escrever tudo isso que aí está. Conte comigo Mapiri!”

As bombas caseiras transtornaram a vida dos moradores-pescadores das loca-lidades urbanas do Mapiri, Maracanã e Juá. Complementando o relato do Moacir,Raimundo Nonato de Sousa, da comunidade do Juá contou como eles se defenderamdessa pesca predatória.

“Tivemos muito conflito. Não tinha segurança. Na época, a Z-20 não davaapoio. A Z-20 nunca deu apoio aqui no Juá na época que nós tivemos conflito com abomba. Mas, nós fumo levando com o nosso poder. Que Deus nos ajudando, brigan-do e fumo retirando e tirando eles daqui, levando lá pra fora.

E chegamo num consenso. Nossa arma era caniço e remo. Chegamo até... umcoronel, prendeu um bombeiro lá no Mapiri e veio fazê uma experiência no Juá. Evieram de lancha, entraram, ancoraram... Aí saíram duas lanchas. Quando eles joga-ram as bomba nós tava tudo dentro do mato. Quando nós saímo, prá pegá o bombei-

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ro e... foi na hora que o coronel disse, pediu paz. Aí, nós fomo lá e conversamo. Então,ele disse que aqui no Juá ainda tem educação de pescador. Tá. Então foi na hora quenós chegamos aí, passamo até não sei. Mas até na Rede Globo nós passamos. Nós nãovimo porque na época ninguém tinha televisão. Passô prá lá, ninguém tinha. Então, apartir daí, nós fomo respeitado aqui no Juá!

Nós tivemos também o apoio do Moacir. Apoiou muito nós. O Juá é muitorico, tem pirarucu. O Juá vende no Mapiri. O Cucurunã vende no asfalto, ponte daestrada para o aeroporto.

Na época da cheia, a praia do Maracanã e Salvação se ligam com o lago do Juá.Mas, no verão estanca completamente sua ligação com o rio Tapajós e Maracanã. Ospescadores do Juá têm suas próprias regras para o lago, seus acordos, sem apoio deuma portaria de pesca. Mesmo assim, essas regras são muito respeitadas pelos pesca-dores de fora. E todos conhecem as regras do Juá.

Conhecendo a garra, a força dos moradores do Juá, foi que fundamos a Asso-ciação dos Moradores do bairro do Maracanã e comunidade do Juá. Raimundo estevena articulação da organização e é sócio-fundador assim como eu.”

Como ex-coordenadora do Núcleo de Base do Maracanã e ex-diretora da Z-20e gostaria de esclarecer ao leitor que a Colônia de Pescadores Z-20 não é um órgãofiscalizador. A Z-20 somos todos nós associados. O que muda é a condução de cadadiretoria que executa seu trabalho.

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Acyr Correia Amaral.

Dilza Maria F. dos Santos.

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Dorinelson Lopes Barbosa ladeado por seus filhos.

Edimilson Galúcio

Rodrigues.

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Eurides dos Santos Pereira.

Jocelina Rodrigues de Licata.

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José Luis dos Santos.

Osmar de Oliveira Didiet.

Maria Lázara Reis dos Santos.

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Maria Luiza Pinto Sousa.

Pedro e Rita de Sousa.

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Olavo Afonso e família.

Sansan Bento Lourido.

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Raimundo de Sousa e

Ornelinda Caetano.

Valdemir da Silva.

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Renato dos Santos Ribeiro.

Wilson Mota de Sousa.

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VPescadores e suas histórias imortais

Vou contar histórias do passado mais do que do presente. Nesse tempo, existiamuita fartura do pescado, como também de animais silvestres como o tracajá, a marreca,o pato, entre tantos outros que servem de alimento para o povo ribeirinho tradicional naAmazônia. O pescador(a) variava o cardápio conforme a temporada de cada espécie.

Minha viagem começou no Lago Grande do Curuai, e foi lá que confirmei aexistência de um pescador imortal: Olavo Rodrigues. Muitos pescadores falam nele.De suas qualidades na arte descarada de matar o pirarucu. Como Olavo é meu pai,fiquei pensando muito se eu deveria escrever sobre ele. Eu sou pescadora também, deonde eu herdei essa profissão?

Quando aconteceu minha segunda viagem, no meio dela já tinha decididoque tinha que voltar para o Lago Grande à procura de pescadores(as) famosos napesca artesanal do pirarucu. Esse é o peixe que tem a pesca mais diferenciada naAmazônia, então porque não escrever sobre ele, o peixe e seus amantes imortais? EOlavo é um deles!

Nasceu em 21 de novembro de 1931, na comunidade de São Jorge, LagoGrande do Curuai. Desde os sete anos dedicou sua vida à pescaria. Pescou de tudo,várias espécies, mas uma sem comparação: o pirarucu, peixe gigante do rio Amazo-nas. Assim como também gostava de pegar patos e marrecas, ovo de tracajá, tracajá...

Depois Olavo passou a morar no Inanu, também na mesma região. Bem cedoele saia junto com seu piloto, o ajudante da pescaria. Ficava no seu pesqueiro, umaárvore bem grande, com belos galhos. Ali ficava só ele e o vento que batia em seurosto. Observava tudo calmamente; pássaros, capim e outros peixes. Ficava vendo atarde passar e a noite chegar ao redor da árvore em que estava. Vida de pescador(a) éassim mesmo! Vários dias observando, vendo onde o peixe bóia.

Ficando sempre à espera com a hastia e seu arpão na mão, continuava Olavo aobservar as águas turvas do Lago Grande. Usava para tanto aquela paciência depescador(a) a espera do momento certo para agir.

A mão do pescador(a) está sempre ocupada. Não pode nem piscar, pois numabrir e fechar de olhos perde sua grande oportunidade de capturar o maior peixe desua vida. Assim como Olavo, muitos outros pescadores(as) artesanais também saemcedo e não tem hora e dia para voltarem.

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Mais alguns minutos e ouviu barulhos. Nessa hora, quase que caia da árvore.Com resistência arrumou seu corpo atento ao barulho. Aí, percebeu que a zoada nãopassava de um cardume de aruanã. Desolado, pediu mais uma vez a ajuda ao seupiloto que lhe trouxe café.

Agora não podia errar: o barulho era o dele! O pescador já sabia que a esperaestava no fim. Pegou o arpão e se ajeitou na árvore. Chegou a hora! Seu tão esperadopeixe deixou a cabeça aparecer por entre o capim. Olavo apontou o arpão em direçãoa cabeça do pirarucu. Foi certeiro! Afrouxou a corda para que ele pudesse correr umpouco. Chamou o piloto para trazer o outro arpão. Queria dar a segundona, a segun-da arpoada, ter certeza de que o peixe estava seguro.

O pirarucu é um peixe tinhoso. Gosta de mostrar que é mais forte que opescado(a). Este em especial era grande, devia ter umas quatro postas e dois metros emeio. As escamas apareciam avermelhadas e marrons.

O pescador Olavo pegou na canoa seu cacete de boteiro e deu umas cacetadasna cabeça do pirarucu ao mesmo tempo em que caia na água acompanhando o peixeque fora dominado por ele. Quando saiu da água, puxou o grande peixe para dentro deseu pequeno bote com a ajuda de seu piloto. O cansaço era tanto como o tamanho dopirarucu. Muitas vezes, quando ia pescar de bote e o peixe era grande que não dava noseu pequeno transporte, ele o amarrava atrás do botinho com a linha.

E assim este pescador passou sua vida nas águas da natureza. Ele me contouuma vez, que foi pescar e deixou seu filho dentro da canoa. Quando olhou procuran-do por ele,viu que uma enorme sucuriju estava prestes a se enrolar nele.

Aí, Olavo foi lá com suas duas mãos e se agarrou no bicho. Deu um puxão nacobra tirando-a de perto de seu filho!

Sérgio Duval dos Santos Pereira, conhecido como Basinho na Vila Curuai dei-xou transparecer sua admiração por esse grande pescador de pirarucu.

“O finado Olavo era profissional prá matar pirarucu. Ele matava pirarucu, tantofaz de choca como com filho, como picado do galho do pau. Prá ele não tinha proble-ma. Ele matava pirarucu do jeito que o pirarucu aparecesse prá ele. Ele era profissionalprá arpoar pirarucu. E quando ele arpoava ele no mato, ele via que o peixe ia trançá, eele não ia tê vitória, ele saia no reboque da linha destrançando até o peixe chegá nolimpo. Quando ele via que o peixe já estava no limpo, aí, ele apertava a linha e gritavao piloto prá vim buscar ele. Prá vim pegá que o peixe já estava numa paragem ondenão pudia mais enrascá. E lá o piloto chegava e ele subia prá proa da canoa e iam matáo peixe. Era assim que ele fazia. Era matador de pirarucu profissional! Isso aí eu possogarantir. Eu só vi dois profissional de pirarucu, prá matá pirarucu que foi o finadoOlavo e o velho Oscar Galúcio. Esses dois eu posso lhe garantir!”

Haroldo Viana dos Santos, aquele pescador que mora perto do cemitério doInanu, homem de fé, enalteceu a fama de Olavo com uma forma bastante respeitosa ecarinhosa.

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”O Olavo era o mais famoso aqui na região do Lago Grande prá matá pirarucu.A pescaria dele só era pirarucu. Uma vez, ele me contou uma história muito emocio-nante. Eu como pescador fiquei emocionado quando ele me contou aquela história.Ele me contou um dia que ele viu, tava pescando e viu um pirarucu boiá. Dentro deuma capoeira muito feia. Aí, ele pensou de todo jeito, quis pegá o peixe de todo jeito,não dava certo... Aí, ele... teve uma idéia. Ele disse:

— Eu vou trepar naquela árvore onde é que aquele pirarucu bóia. Porque eutenho certeza, ele boiô embaixo de mim, eu mato ele! Eu arpôo aquele peixe.

Peixe muito grande com uns sessenta quilos. Aí, ele foi. Chegou lá trepou naárvore, fez a espera. E não demorou o peixe veio. Ele picou o peixe. Aí, quando elepicou aquele pirarucu muito grande, ele caiu com tudo lá de cima. Ele não esperô, opeixe era tão grande, tão violento... Aí, ele foi no reboque da linha. Aí, foi destrançandolá pelo fundo... E quando foi prá ele boiá, ele boiô embaixo de uma galhada, quase elenão... não teve assim... suspiro prá, prá saí... debaixo daquela galhada. Aí, Deus deu...pela sua misericórdia, ele bóiô mais na frente... Aí, ele conseguiu respirá. Aí, ele puxouaquele pirarucu, matô ele. Sozinho, só ele e Deus. Então, ele me contou essa história.Aí, eu disse assim:

— O senhor mergulha pelo fundo?Ele disse:— É, as vezes, quando dá certo eu posso mergulhar.— E o senhor não tem medo de jacaré?— Não.— O senhor não tem medo de cobra grande?Ele me falou também que não tinha medo de cobra grande. Que no momento

que ele tava com aquele peixe no arpão ele... ele tava passando por uma emoçãomuito grande e a profissão dele era aquela. Ele sobrevivia daquilo.

Histórias não faltam desse homem fixado na pescaria do pirarucu. Pegava qual-quer tipo de peixe. Mas não tinha muita paciência para peixes pequenos. Olavo pres-sentia que o peixe estava para boiar. Quando o pirarucu está na choca que precisa sersilencioso para capturá-lo, tem que estar bem caladinho. Mas, no pasto, no capim nãoprecisa tanto silêncio. Penso que Olavo tinha uma obsessão em arpoar. Ele o fazia detodas as maneiras, mas o que mais gostava era a pescaria no galho do pau.”

Silvio Nogueira do Carmo, seu irmão, confirma a preferência de Olavo. ”Eu gos-tava de vê a coragem daquele homem. Aí, nesse igapó do Iauara, onde a gente fazia abarraca, né? No, inverno rapá, num casco, ia arpoá pirarucu do galho do pau. E iaembarcá. Quase cai n’água, lá pelo fundo prá destrançá a linha... Só ele e Deus, né? Mas,rapá, já pensô? Com tanto jacaré que tem naquele igapózão por lá! É muita coragem.

Embarcava aquele pirarucu naquele bote prá levá prá onde ele podia cuidá. Sóele e Deus! Aquilo gostava de arpoá um pirarucu debaixo do pau no igapó. Gostava

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memo, não tinha medo. Admirava que só ele! Embarcá um peixe num casquinhodaquele... (...) Mas ele tinha a canoa, tinha uma canoa grande, tinha... justamente.Levava a canoa grande, amarrava lá fora e... pescava no bote. A canoa grande era práele dormi dentro, salgá o peixe, agasalhá o peixe, lá era a casa dele. Pescava muito,aquele meu irmão!”

”Olavo era muito calmo. Se desse com um pirarucu acabava a fome. De noiteassim, ele acordava cedo e escutava onde tinha o peixe. Com o luar, noite de luar, eleia, dava com o peixe e conseguia arpoá logo. Gostava de conversá, contá muitashistória. Ele era alegre.” Assim o descreveu José Monteiro Guimarães, 75 anos.

Apesar de gostar de pescar só, Olavo teve muitos pilotos. José Monteiro foi umdos tantos pilotos de Olavo. Ele me revelou que ”o piloto vai levando e o proeiro vai coma hastia ali no fundo, sabe? Quando encontra nele, ele conhece e...Olavo tinha o pirarucuna mira de todo jeito. O piloto tem que saber a técnica da pescaria que está fazendo.”

Na fisga do pirarucu, o remador tem que ser bom. Quando o pescador precisa-va de alguma coisa, chamava baixinho o piloto, sem barulho para não espantar. Cha-ma para um pouco de água, café ou até mesmo comida. Coisas que Olavo esqueciacompletamente quando estava na pescaria.

Olavo Afonso e Antonio Matias, seus filhos, também foram seus pilotos. OlavoAfonso me contou que só conversavam quando não estavam na pescaria. ”Ninguémfalava pro lado do outro. Nem se mexia na canoa. Se você se mexesse, o peixe já sentia.

Meu pai tava prá Manaus. Deixô as hastia dele tudinho. Ele não gostava quepegasse a hatia dele, linha, nada, né? Eu peguei, robei dele a linha, o arpão... robei oarpão, a linha, a hastia tudinho e convidei meu tio. Eu dei com o peixe lá, né? Aí,convidei meu tio Teodomiro prá ir atrás do peixe. Prá capturá o peixe. Aí, na hora ele...ele foi comigo... Aí, eu disse como era tudinho. Eu sabia tudinho, como era o jeito de...Aí, eu deixei meu tio lá na árvore... Aí, o peixe era tão grande que arpoô o peixe e opeixe levô tudo. Levô a linha, levô o arpão, levô a bóia, levô tudinho... o peixe eragrande, né? Aí, ele gritô de lá. Eu deixei ele lá e vim prá cá, né? Prá tocá o peixe. Aí, elearpoô o peixe de lá e disse:

— Já foi, já foi tudo. Já perdi tudo. Já perdi a linha, o arpão, a hastia e opirarucu!

Aí, eu peguei ele lá e vim vim... viemo rápido, né? Só era só era o escumero prátodo lado, né? Aí, vinha vindo lá, quando chegô no buraco da cobra grande a bóia buiô.A bóia ia passan... buiô perto de mim, né? Aí, eu... teipei dentro d’água. Só deu tempodeu pegá na bóia e o peixe me levô por baixo do capim deu uma volta lá... aí eu...consegui pegá na no... com a mão no... no galho do pau, né? Aí, eu me segurei. O peixebateu. Aí eu consegui dominá o peixe. A gente matô o peixe, recuperemo tudinho, alinha, o arpão, a hastia, tudinho foi recuperado e o peixe! Contamos para ele.”

Não importava se a cobra grande estava por perto, se ele morresse. O queimportava era salvar o arreio do pai. Olavo Afonso costumava fugir da aula para ir

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pescar com Olavo e tal como ele também não gosta que peguem em seus arreios.Atualmente, vive da pesca comercial e é sócio da Z-20.

Muitos outros pilotiaram para Olavo. Dorinelson Lopes Barbosa, 29 anos, mecontou muitas histórias sobre suas pescarias. Ele me disse que começou a pescar depiloto com cinco anos. E que tudo o que aprendeu dessa prática, nessa vida, foi como Lavico, como ele chama “o pescador”.

Repepinilo, como era chamado pelo seu mestre, também se tornou um exímiopescador de pirarucu, assim como outros peixes também. Para sempre Repepinilo vaiguardar esse convívio que teve com o Olavo.

“A gente ficá lá namorando um peixe... Tu sabia que a gente namora peixe?Namora peixe... Não é só mulher que a gente namora, não! Olavo namorava muitobem. A hora que finca o ferro, acabô o carinho. Quando ele via um peixe assim, eusabia que tava morto. Não tinha jeito, não! Do jeito ou do outro, a gente ia vê ele. Eleera muito bom de arpão, ele. Aí, a gente foi prá lá, e quando a gente chegô lá... só quea gente pescava junto... que, o que eu dizia prá ele, ele aceitava. E o que ele me falava,do mesmo jeito. Eu era moleque ainda na frente dele. Ele era velho, ele já. Idosomesmo assim. Mas, a gente se tratava de brincadeira parece assim... eu com umapessoa do meu tamanho. Arpoava, não tremia, não tinha nervoso, ele. Era muito bomele mesmo.

Eu matava surubim. Matava surubim. Surubim eu arpoava muito. Pirarucu euainda não tinha matado depois dele morrê. Quando foi um dia, veio um amigo meuali daquele lado, que é um cunhado meu. Aí, ele veio. Quando um dia, ele chegôcansado aí em casa. E... meu apelido é Piquê, tenho tanto apelido, né? Aí, ele disse:

— Piquê? Pô, tem um pirarucu muito grande ali no Santinho, cara. Eu queriaque tu fosse lá, prá gente matá ele.

— Mas, tá amarrado?Eu disse prá ele. Aí, ele disse:— Não rapá, ele não tá amarrado não. Ele tá só manso. Ele tá besta, ele...Aí, eu disse:— Ma... agora de noite, rapá?Ele disse:— Não. Não sei, tu que sabe aí!?Aí, eu disse:— Tu qué matá o pirarucu?Ele disse:— Eu quero.— Então, tu passa aqui comigo quatro hora da madrugada. Eu tô te esperan-

do aqui.

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— Tá.Aí, eu dormi... quando foi quatro hora da madrugada eu varei prá fora. Fiz o

café tudinho... Coloquei na garrafa. Aí, ele chegô. Disse:— Já tomô café?— Ainda não.— Então, toma logo aí!Aí, ele tomô o café dele. Aí:— Leva essas hastia prá mim. Aí, eu levo os arpão. E aí, nós fomo embora.

Baixamo... Aí, a gente rodamo rodamo rodamo nesse dia... Nós saímo era quatro horada madrugada. Aí, quando nós... isso deveria sê meio dia... ia dá meio dia... Onze horaia dá. Aí, nada de vim o pirarucu que ele tinha visto. Ele disse prá mim assim:

— Ma, rapá, eu vi o peixe aqui. A gente tarrafiava perto dele.Eu digo:— Pô, foi por isso cara! Tu tarrafiô perto dele, ele se espantô, foi embora. Por

que tu fez isso?— Não, mas ele ficô aí.Aí, eu disse:— Então, o seguinte. Tu qué matá o peixe.— Eu quero.— Então, embora voltá, tu vai lá trabalhá...Que ele tava é... batendo feijão, sabe?— Aí, quando for uma hora tu vem daqui... daquele lado prá cá... Eu te pego

aí, nós vamo embora.— Tá legal.Aí, quando foi uma hora ele chegô aí. Aí, eu disse prá ele assim:— Olha, sabe porquê nós não matemo o peixe? Não tem cachaça! Vão bora

levá cachaça?— Vão bora.Aí, eu:— Aonde a gente pega? Tem crédito lá!— Vá lá, pegue meia garrafa de cachaça prá mim.Aí, ele foi lá, pegô meia garrafa de cachaça. Aí, agarrô, foi, pegô meia garrafa

de cachaça. A gente foi embora, sabe?Quando chegô lá na... na onde ele tinha visto o peixe... Aí, eu disse:— Me dá uma dose aí?Aí, ele agarrô me deu uma dose lá. Eu tomei. Aí, ele tomô outra. Aí, eu disse:— Olha, essa cachaça aqui nós só vamo tomá quando nós embarcá o pirarucu!Aí, ele:

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— Tá legal.— Tu viu ele aqui memo?— Então o seguinte: das hora que tu viu ele ontem de tarde a gente vai vê ele hoje!— Tá legal.Aí, ficamo lá, colocamo uma malhadera lá. Aí, deu quatro horas, deu cinco

horas. Quando acho que deu umas... cinco e meia... quando eu vi, o peixe vinhavindo, sabe? Com filho bem pequenininho. Aí, eu disse prá ele:

— O filho do peixe tava grande?Aí, ele disse assim:— Não, tava pequeno.Eu digo:— Rapaz, tira esse bote, tira essa malhadera daqui... tem tudo que lá vem ele ali, ó!?Aí, ele disse:— Porra, é ele mesmo, cara?Aí, a gente agarrô, puxô a malhadera... É... ele vem com os filho dele assim.

Boiando assim... igual a escuminha assim. Ele vem vem... bóia aqui... bóia ali... bóiaaqui... bóia ali... De vez em quando eles bóia tudo os dois, vem os dois o macho e afêmea. Aí, eu agarrei, tirei a malhadera. Aí, nem terminô de ajuntá direito ela, joguei lá amalhadera pro fundo. Lá tá amarrado lá no galho do pau. Eu digo depois a gente pegaa malhadera. Aí, eu garrei a haste, tava armado, eu molhei ela rapidinho. Aí, eu disse:

— Me dá essa cachaça aí, porra!Aí, ele me deu a cachaça de lá, sabe? Eu tomei mais uma. Aí, eu me ajeitei

tudinho lá. Aí, quando eu vi, o peixe passô assim. Bem onde tava a malhadera prolimpo. Aí, o peixe passô. Aí, eu disse prá ele:

— Leva, leva... leva, leva...Aí, ele... tava remando devagazinho, sabe. Aí, eu chamei o nome prá ele.— Mas leva, caralho! Porra, tu não tá vendo que o peixe vai boiá, porra?Aí, ele agarrô e levô, né? Aí, ele deu uma remada, canoa chegô bem perto.

Quando ele chegô assim o peixe saiu, espalhô assim. Aí eu disse:— Ih, rapaz, arrecua, arrecua, arrecua...Aí, ele arecuô a canoa, sabe?— Agora, quieta aí.Aí, ele pegô de novo os filho. Quando pegô os filho. Aí, o peixe virô bem de frente,

assim, com o filho sabe? E veio pro meu rumo assim. Aí, eu disse prá ele arrecuá... eu disseprá ele arrecuá. Aí, ele arrecuô a canoa. Aí, quando eu vi... o peixe boiô assim. Boiô primei-ro um, aí era o macho. Quando eu vi, a fêmea boiô. Aí, eu levantei e disse assim:

— Olha, isso daqui que o finado Olavo me deixô de herança!

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Soltei! Aí, o peixe bateu prá lá, levô prá lá... ai, eu agüentei aqui. Aí, foi aqueleescumero lá no fundo. E aí, o peixe batia em cima d’água bem forte: quepei! Aí, eudisse assim. Aí, eu disse assim:

— Ih, rapaz, acho que tá bem arpoado, porque o arpão é grande!Aí, o peixe bateu prá lá:— Me dá aqui essa outra hastia aí.Ele deu. Eu armei outra hastia prá segundá o peixe. Aí, só que eu tinha aparpado

o peixe no fundo, né? Prá mim eu tinha aparpado na costa dele. Quando eu levei ahastia assim, pegô no rabinho dele já no fim, bem no fim mesmo do rabo. Aí, euaparpei. Prá mim era na costa assim. Aí, eu aparpei, soltei... Rapaz, eu errei o peixe prásegunda ele. Aí, o arpão... acho que devia tê entrado... acho que aquele ganho dele,primeiro, acho que entro tudinho numa raiz (risos).

— Rapaz, eu errei o peixe, e agora?Aí, o peixe correu de novo, sabe? Tava com o primeiro arpão. Aí, ele bateu de

novo. Aí, eu segurei. Aí, eu disse:— Rapaz, ele não vai embora não. Ele tá seguro! Vá lá no fundo e tira meu

arpão lá.Ele ficou olhando... Esse rapaz ficô me olhando... Aí, eu disse:— Vá logo lá, pô!? Me trague lá, nem que seja enrolado que assim mesmo eu

segundo ele.Aí, ele foi prá lá com medo... caiu, puxava o arpão, puxava... aí, saiu o arpão. Aí,

ele disse:— Eu tirei, tirei cunhado, tá aqui ó!— Tá enrolado?— Não, tá inteirinho.Eu digo:— Então é marca boa! Me dá aqui ele.Aí, meti na hastia. Aí, eu disse:— Agora, eu vô segunda ele na linha. Não vou mais segundá aparpando não.Aí, eu tezei a linha onde eu tinha arpoado e acertei ele. Segundei ele. É, joguei

o arpão assim tchá, lá pro fundo. Aí, eu acertei ele de novo. Aí, eu agarrei, puxemo ele.Aí, eu disse:

— Agora, me dá o cacete!Aí, ele me deu o cacete. Aí, ele já tava rindo já... meu cunhado tava rindo. Aí, eu

disse prá ele assim:— Não acha graça não, pô! O peixe ainda tá no fundo... ainda não tá na canoa,

não!

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Aí, ele ficô sério comigo.— O peixe ainda não tá morto!Aí, ele ficô sério. Aí, ele agarrô me deu o cacete de lá. Aí, eu peguei o peixe

assim, meti meu... minha mão assim pelos olho... os dois olho dele assim, né? Segurei,cacetei ele. Aí, ele disse:

— Pô, é grande...— É, é grande... agora faz peso pro outro lado que eu vou embarcá ele na

canoa.Aí, ele fez peso pro outro lado. Aí, eu dei um impulso no peixe, puxei com tudo

prá cima. Aí, eu embarquei ele. Aí, a gente chegô aqui já era de noitinha já. Aí, não deuda gente cuidá ele... bem aí... nessa casa lá, passando essa daí, tem uma cozinha depau lá. Deu lá da cumieira, o rabo dele ficava assim na terra (mostrou que a ponta dorabo arrastava no chão). Desde disso, pronto! De vez em quando a gente mata.

José Monteiro é incansável para falar de Olavo. “Ele pegava o pirarucu deonda. Na seca, quando ele espanta, ele levanta a onda sabe? Aí, o pescador conhecea posição que vai... e arpoa. No igarapé de salga, era na fisga. A fisga não pode terpressa nem muito devagar.

Era difícil de Olavo errá. Ele tinha muita coragem. Olha, quando... ia... nessascabeceira de igarapé assim, tinha pirarucu assim ele trepava no galho do pau. Ficavalá. Olhando pro fundo. Certo ali. Quando o pirarucu passava ele ferrava-lhe o arpão.E, quando lá via que o pirarucu ia com muita violência que ele... ele caia na... na água,na ponta da linha. Não tinha medo. Tinha matupá, esse capim que dá matupá, aí elemergulhava aquilo... com a força que o peixe faz, né? Ele ia no reboque lá na frente.Ele controlava, ele sabia controlá. (eram lugares fundos, em geral que não davam paraficar em pé) Se pegava no galho do pau, mesmo no capim... chamava o piloto. Opiloto ia e aí ele matava.“

Histórias e mais histórias... Quem conta é Edimilson Galúcio Rodrigues, outrofilho de Olavo.

“Trabalhava numa fazenda lá prá cima, perto do Piracuara. Aí, sempre meu paiia prá lá. Pescá pirarucu. Chega... chegaram lá ele com meu primo Delmo, era o pilotodele. Aí, mataram um pirarucu. Aí, tiraram a ventrecha, tiraram o... a cabeça, costela...levaram pru... a carne lá pro meu patrão em terra.

Lá, eles trouxeram uma garrafa de pinga... Tornaram a pescá de novo mas nãoconseguiram mais nada. Vieram embora de volta pro Inanú. Aí, deixaram as carne dopirarucu lá em terra. Aí, ele tinha deixado prá mim uma hastia, com linha e arpão. Aí,eu saí prá ir... eu trepei no galho do pau, arpoei o pirarucu. Aí, o pirarucu saiu doarpão, foi embora. Aí, ficô só a escama do pirarucu no arpão.

Aí, eu tinha guardado as escama prá mostrá pro papai quando chegasse. Aí,tornaram a voltá, eles dois de novo, Olavo e o Delmo. Aí...

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— Cadê os peixe? Tem aparecido os pirarucu?Disse:— Rapaz, tem uns peixe aí mas... estão viaco. Eu arpoei um pirarucu. Só veio as

escama no arpão. Ele bateu... consegui só as escama. O peixe foi embora! O arpãoarrancô. Vou buscá as escama prá vocês vê ele aqui. Aí, fui lá dentro, peguei as escamado pirarucu. Aí, mostrei pro papai com Delmo. Aí, disse:

— Mas rapaz, o peixe era grande! Picaste de mal jeito o pirarucu.Aí, o Delmo ficô olhando prás escama e disse:— Mentira, pai Olavo! Essas escama é daquele pirarucu que nós matemo no

mês passado. Que ele foi buscá lá na ilha e meteu aqui prá lhe enganá.”

***“Tinha o Matias (que na época tinha uns sete anos) que tinha uma brincadeira

deles que ele... Matias foi pro galho do pau. Ele era pequeno... não... deixô primeiro opapai no galho do pau. Aí, o Matias foi escondê o bote prá longe. E quando o papaiviu, só o barulho prá lá. Aí, ele gritou:

— Que foi?— Seu peixe já tá no arpão!Disse:— Má rapá...Disse:— Não, mas fique prá lá mesmo que eu dô conta!Aí, o papai ficô. Quando ele... E aí o papai não ficô conformado. Foi prá lá,

chegô lá tava... Matias tinha picado o pirarucu no galho do pau, e ajudô ele a matá.Aí, Matias disse que era prá ele ficá mesmo ali no galho do pau e í prá lá que ele

ia picá mais um. Aí, o peixe tornô batê... Ele disse que não queria que papai ajudasseele, matava só ele. O peixe foi embora e ele não pegô nada. O primeiro ele conseguiu,era pequeno.

Manuel Idalécio Borge Rocha, contou que uma vez ele foi pescar com seu ir-mão Olavo. “Grande homem científico do pirarucu. Aí, nós ficamo lá mesmo, na casado velho Mereré, né? E quando foi cedo ele disse assim:

— Vão bora, vão bora vê um pirarucu com filho aqui que eu mato no Jauarari.Aí, tinha um bote pequeno mas que só agüentava mal a mal duas pessoa, né? Aí ele seacalcô lá pro lado da proa, né? É, com o famoso uru, aquele uru que o pescador usavamuito. É. Sento lá... eu aqui na popa, né? Eu meio desajeitado aqui, eu me desequili-brava aqui ele ajeitava lá.

Aí, fomos, fomos, encostamo assim num pirantão. Ficando lá. Rapaz, de repen-te ele se desequilibra lá em cima do uru e quando ele se desequilibra lá, né? Que ele láele acompanhô, que ele teipei... prá água, eu... aí, o bote sentô comigo,né? De bun-

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da... Aí, ele pegô o uru e jogô em cima do matopá, do pirantão, muito rápido, né? Aí,puxa vida, ajeitamo, puxamo o bote pro matopá... e com muito cuidado naquele uru,né? Aí, desalagamos o bote, ele pegou, embarcô, né? Ajeitou a haste, tudo bem... ele disse:

— Umbora, umbora que não vai dá certo nada aqui. Umbora... Agora, lá nafrente, na enseada chamado... do Buieiro, lá eu vi um pirarucu com filho.

Aí, fumo embora prá lá. Chegamos lá, ele encostô assim, tinha um matupánovamente, encostô o bote. E o pirarucu boiava lá prá dentro do matagal, lá dentrodo igapó, tinha um igapó grande lá. Aí, eu pensei só comigo “será muita burridadedaquele pirarucu vim prá cá... Prá lá nós não passa, porque não tem jeito. Ele prá vimprocurá macho, tá difícil. Ele sabe se defendê também, será que esse homem vai subipor cima desse matupá prá i lá práquela árvore?” Eu pensando, né? Aí, ficamos lá, né?Ele olhando lá pro lado do pirarucu. Tava sortando os filho, e eu aqui na popa, quieto,né? Por incrível que pareça, quando eu vi o pirarucu solta os filhos bem no lado que euestava, mas ilharquinha de mim, ilharga do bote, sabe? Quando ele soltô os filho, queele vira de lá com a hastia, eu só vi meio disviá assim meio pro lado que modo o arpãovinha no meu peito, sabe? E aí ele encontrô aqui, piii... Aí, o pirarucu correu prá baixo

“O porto de Olavo, Canarana, ainda é o porto de Olavo. Ele mesmo plantou esse capim queseu porto leva o nome. Pode faltar peixe em outro lugar, mas lá não! Até mesmo o pirarucu vaivisitar... Se tornou um lugar preservado e solitário...Seu bote ainda está lá mas o marinheiro, opescador já não mais vai para a água...Ninguém pesca lá...Olavo partiu... não habita maisInanu... São Jorge... Lago Grande... “

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do pirantão, ele agüentô, e agüentô, e agüentô... até que ele cansô e o peixe veio, né?O peixe veio, aí pegô, cacetô e matô o peixe. Eu fiquei olhando, né? Eu disse assim:

— Mas Olavo, mas como foi que esse peixe veio se entregá? Porque esse peixetava difícil de se matá ele!?

Ele disse:— Não, mano, é porque a cachaça tá embaixo dele (...). Você sabe que cachaça

tudo gosto, então ele veio por causa dessa cachaça. Isso é a traição do pirarucu.Ele disse:— É que cachaça tudo mundo gosta, a gente tem que usá a cachaça pro pirarucu vim!Matô a charada!”Olavo era matador de peixe, mas ele respeitava muito a natureza. Homem com

uma sabedoria popular inimaginável. Pegava o pescado que ele precisava no momen-to. Muito cuidadoso, sabia que se matasse o macho e a fêmea do pirarucu, por exem-plo, os filhos morreriam todos. Muitas outras histórias ouvimos desse pescador. Comobem disse Idalécio, homem científico do pirarucu.

De boca em boca, a imortalidade continua...

O pescador Valdemir da Silva é um contador de história nato. Ele sabe explo-rar muito bem as expressões faciais e tonalidades vocais. Não sabemos ainda se elevai ficar no imaginário coletivo do Inanu como um exímio pescador ou como umfabuloso contador de histórias. Sim, porque entre os pescadores(as) também temmuito talento oculto.

Assim como já divagou por outras artimanhas, ele lembra de Oscar Galúcio,um grande pescador imortal.

”O Mané Galúcio, ele era um grande pescador também. O Oscar também. To-dos esses eram velhos pescadores que fizeram a mídia deles quando ainda eram jovens.Olha... o Oscar foi prá várzea matar pirarucu. Convidou o cunhado dele Antunico Silva.

Então, o problema era o seguinte: era matá pirarucu do galho do pau. Mas,naquele tempo, tu sabe... dava muito pirarucu. Aí, o que ele disse, falava assim:

— (Afinando a voz) Olhe cumpadre, quem matá é seu. Se eu matá o peixe, émeu; e se você matá é seu!

Aí, o Antunico Silva meio... (afinando a voz de novo):— Tá bom.Aí, foi embora. Sabe... disse (mais uma vez ele deixa a voz fina):— Cumpadre, fique nessa árvore, fique nessa árvore que aqui é passagem do

peixe. Ele vai buiá. E eu vou prá li que o peixe num bóia aqui, bóia lá.

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Aí, o Antunico Silva, o amigo falou assim (de novo, afina a voz):— Tá bom!Ficou lá na árvore. Aí, chegou lá, na árvore. Trepou, se ajeitô bem. Com pouca

hora, o peixe boiô em baixo dele. E ele ferrô no peixe. Prá pegar o peixe, pegô o peixe,não conseguiu matá. Aí, gritou:

— Ei cumpa...Eles eram cumpadre. Disse:— Ei cumpadre! Ei cumpadre Oscar, já piquei o peixe. Venha me ajudá a matá.Ele saiu e foi lá.— (Ele voltou a afinar a voz) O peixe é seu, buiô prá você, mate! Porque se você

não matá o peixe ele vai embora porque eu não vou lhe ajudá.E aí, o... Antunico Silva só tinha um arpão que já tava fisgado o peixe. E pelejô, pelejô

com muita sorte conseguiu matá o peixe. Quando escutô o parceiro cacetando o peixe, disse:— Já matou.Veio embora. Embarcaram o peixe... do Jauarari aqui na Ponta do... lá no São

José, ali dentro. Ele não falou mais com o Antunico. O Oscar, que morava no São Josénão falou mais com o Antunico Silva que era o piloto e que era cunhado dele, e que...convidado dele. Aí ficou assim. Que não veio nada, prá ele, né? Mas, veio o peixe sópro Antunico. Aí, o Antunico o que fez? Ele disse:

— Cunhado... umbora discorá o peixe que eu vou lhe dá uma banda do peixe.Aí, ele respondia:— (Retoma a voz fina) Não senhor, leve o peixe, o peixe é seu! Você arpôo, você

matô o peixe é seu! Não vou lhe ajudá discorá. Não vou fazê nada. Pode levá o peixe.Ficou com muita raiva do Antunico Silva. Pois... quem tinha feito a proposta era ele,

e aí veio nada. Quem matô o peixe foi o Antunico Silva. Então, esse... tudo quanto pesca-dor se lembra... Aí, o Oscar começou a contar por aí essa história. Ainda temo até hoje.

De um parceiro, né? Quando sai dois parceiro prá pescá... eu entendo diferen-te né? Penso assim... porque a hora que... Se saio com um parceiro, nós já somos umgrupo, né? Então, nós vamo trabalhá juntos. Se nós perdemos, vamo perdê juntos, senós ganhamo, vamo ganhá juntos também. Se nós ganha dez reais, cinco dele, cincomeu. Não vou embarcá um parceiro e dizê:

— Olha, se dé cinco... se tu consegui pega cinco é teu, se eu pegá cinco é meu. Não!Então, no caso do Oscar, na época tinha muito peixe... Há trinta ano atrás. Que

eu tô com trinta e sete. Acho que ele pensou diferente, né?”Benedito Monteiro me contou de outro imortal. Tito Galúcio. Era o maior

arpoador de pirarucu no baixo (ele se refere ao verão). Ele dava três oportunidades proparceiro dele arpoá sozinho. Se ele errasse nas três, ele arpoava por cima da canoa docara. Tito não errava não!

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Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio

UTrês peixes na Amazônia

Pirarucu, o gigante pré-histórico

”Um pirarucu, dois pirarucu, um casal de pirarucu, sabe? O cara butô a malhadeiraprá pegá eles. Na passagem deles, onde passava. Mas, só que eles... eles aram catequista,sabe? Um pirarucu com a pirarucua. Eles andava... ele ia andando assim, ele ia com aBíblia embaixo do braço, da galha dele, aquela galha que ele tem, sabe? (Risadas) Aí,chegô... quando ele enxergô a malhadeira ele escorrô... quando ele enxergô a malhadeiraele escorrô... Ele ficô parado, aí veio a... a mulher dele, atrás, disse:

— O que foi? Disse:— Rapaz, tem um negócio aqui. Puxô a Bíblia debaixo do braço e... espiô, né?

Contô lá o que era. Ele disse:— Olha mulher, prá cá é fora e prá cá é bera. Vão bora vortá que este aqui é a

tal de malhadeira. Ele dobrô de volta e foi embora. (Muitos risos)”Estória contada pelo Silvio Nogueira do Carmo.

O pirarucu é o maior peixe de escama da água doce. O pirarucu só existe naAmazônia, e eu o comparo ao gado. Aproveita-se tudo desse peixe, da escama a lín-gua. A pesca do pirarucu é permitida, por lei, de maio a novembro. O defeso, portan-to, é entre os meses de dezembro a abril.

O pirarucu é uma espécie ameaçada! Na Ilha de São Miguel, na região doAritapera, tem uma experiência recente de manejo do pirarucu. José Eli Rocha Sá, 30anos, é presidente da Associação Comunitária da Ilha de São Miguel me revelou que o

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acordo de pesca deles só permite caniço e arco e flecha. O espinhel estava prejudican-do em baixo na fruteira e eles resolveram suspender essa pescaria também, assim comoa malhadeira.

José Eli Rocha Sá me disse ainda que ”eu até mesmo aproveito essa entrevista,eu até mesmo fazê um apelo prá todas as comunidades, que elas colocassem na cabe-ça que manejá, preservá, vivê com a natureza é muito importante, não teria esse con-flito que hoje tá tendo, até mesmo com nós aqui. A natureza faz parte da vida do serhumano! Hoje num lago onde tem um pirarucu com filho que tá com dois centíme-tros, você matá o macho, você mata a fêmea, você vai acabá com mais ou menosquinhentos pirarucu” (aproximadamente é esse número que tem uma desova). Umpirarucu para reproduzir ele terá entre dois e três anos. Em um ano ele atinge 90centímetros, conforme o crescimento, uns desenvolvem mais, outros não.

”Estamos pensando em parar a matança do pirarucu aqui na ilha. Depois queela desova a primeira vez ela vai direto, todo ano, o peixe anda pela área toda e otrabalho não é só prá nós. Quando sai não volta mais. O pessoal mata. São poucos ospescadores que sabem de arpoá. Por isso tá beneficiando um grupo, um pouco.” Elesestão pensando em levar os melhores na arte do arpão para ensinar os outros. Osjovens já arpoam, segundo José Eli Rocha Sá, estão arpoando mais que os antigos, quevão parando.

A fêmea do pirarucu é maior que o macho, mais velhaca e sempre fica longe domacho. Quando o macho tá com filho, ele é muito manso, ele pode ficar uns quinzesegundos em cima d’água.

Pedro Figueira de Sousa, 54 anos, é o pescador de pirarucu da Vila do Curuai.Ele é mais conhecido como Pedro Cobra. Foi ele, diante de sua sabedoria popularincomparável que me traçou o perfil desse cobiçado peixão da Amazônia.

“Ele é um peixe tão tranquilo, que se a senhora der com um casal de peixe comfilho aqui, a senhora errá, a fêmea, principalmente, vai batê água lá naquela ponta deareia ali do outro lado. O macho começa de novo prá ali. Com poucas hora, os filhos... osfilhos ficam tudo aqui, espalhado, mas com poucas horas eles somem daqui. Se vocêpresenti que buiô... buia prá lá. Você pode ir lá. Chegá lá, eles estão tudinho prá lá.

Só dois que anda, só o casal. Muitos filhos andam juntos do casal. Quando ficamde quilo, assim, no caí da água (característica do verão amazônico), eles abandonam.

Quando o pirarucu está gito, o pai guarda toda a ninhada dentro da boca. Ele cavaburaco na terra, mais ou menos com a fundura de um parmo. E assim, uns três parmoassim... aquele buraco aberto, né? Aí, ela põe. Depois dela por aqueles... os ovos tudinho lá,ela sai fora. Põe bago por bago de farinha. E, depois de tá no buraco, o macho é quemencapa (o macho é que choca os ovos). Mas aquilo é muito bonito! É igual ova de aracu.

Aí, ele encapa, fica uma bola, maior que uma xícara dessa (apontou para umaxícara de café). Igual, assim uma bola de siringa (de látex). Aquilo é só uma pelezinha,não é? Tudinho, ele encapa tudinho aquilo! Ele agarra, pega... quando... se não mexe-rem com ele, com poucos dias de... doze dia, quinze dia, vinte dia ele tá tirando osfilho. Sai aquela farisca. Senhora pressente só aquela fumaça.

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Hoje, quando amanhece, a senhora já enxêrga aquele mosquito. Quando édepois de amanhã, já está, já deixa aquela escuminha na coisa da água. Quando elesai, aquilo faz tiic. Também ele sai naquilo e e... o pai engoli, mete na boca. Ela (afêmea) só vive passiando.

Aí, de... nessas arrumação, ele méti na boca e vai, e vai, dali um... quando elefica meio grandinho ele não, não méti mais na boca. Sai aqui, no nível da água. Etambém quando ele tá na boca, o peixe não anda duas braça, ele bóia.

Ele fica aqui, no nível da água, é minutos. E se ele for, se ele não tiver com filho,ele leva mais de hora no fundo prá ele pudê vim suspirá. Ele só bóia... eu... os antigosfalavam, tio Ernesto e outros, cansaram de me dizê que ele só bóia quando... Pirarucutem um bofe... que acompanha o espinhaço, não tem? Diz que aquilo quando enche,né? Ou seca o ar parece é que ele vem pegá o ar dele. E aí, torna a sentá.

Quando o pai bóia é que os filhotes já crescidinhos bóiam também, em qual-quer idade o pirarucu respira. A função da mãe é fecundar e parir. Quem cuida é o pai.Só se o pai morrer ou for capturado é que a mãe toma conta dos filhotes. Só se mata-rem o macho que ela fica só ela chocando. Quando o pescador(a) mata o pai e a mãeos filhotes morrem, os peixes e os pássaros são os predadores.

O pai e a mãe ficam em volta da ninhada. Se piranha ou outro peixe tentarpegar naquela ocasião que eles estão ali, ele rimpa o rabo. Se a senhora tivé pescandoaqui e... tivé um ameaço deles assim, a senhora vê distância, como daqui mais longeque essa cabeceira grande aí (a casa de Pedro está localizada na frente do Lago Gran-de. Onde antigamente se chegava na Vila do Curuai) rimpá rabo. De manhã vocêpode ir que você vai dá de carada com ele lá.“

Silvio Nogueira do Carmo, me contou sobre a fartura do pirarucu no passado ea imponência do grande peixe. Assim como, dos tipos de pesca artesanal do pirarucu.

“A gente matava pirarucu, tinha muito, tinha muito, tinha muito, Dora, que atéaquilo... mulhava a gente, viu? Quando tava pescando ele. Eram fácil de boiá, respirar,era toda hora, não tinha tempo.

Que quando a gente fisgava um, porque a gente... o negócio de fisga era assim,sabe? Um arpãozinho desse tamainho (mostrou com os dedos da mão), metia numahastia grande e vai com, com ela lá no fundo, sabe? Lá no fundo. Aí, mede a fundura...

A procura do pirarucu é que é difícil, achar o peixe. Não, a gente vai procurar,que a gente não vê não... Contava mais ou menos de... ele mede lá no fundo, quandoele esbarra lá na terra, ele carrega mais o menos um palmo, que é a altura do pirarucu,né? Mais ou menos um palmo e vai com aquilo, o piloto remando lá e o proeiro vaiaqui com o pau no fundo, sabe? Vai até quando esbarra nele e só faz amassá.

E aí, que quando um... um fisgava um, tinha outro arpão prá segundão, né?Tem dois arpão. Aquela fisguinha era só prá ir guiando. Outro arpão, que era prásegunda, é pra matá. E em vez dele arpoá aquele um que estava no arpãozinho, ele asvezes já acertava no outro. E acertava no outro, e acertava no outro que quando umcurria pra cá, outro curria pra ali, sabe? Aí, ficava enrascado, disse:

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— Rapaz, já arpoei o outro.Aí, chamava o cumpanheiro, né? Prá tumá conta dum e ele tumava conta do

outro. Já se viu que tinha muito peixe, né? Mas olha, com sinceridade que eu ainda vifartura aqui nesse Lago Grande.” A água dos lagos, em geral é turva.

Uma das características dessa pesca artesanal de subsistência é que o pescador(a)não vê o peixe. Na pesca do pirarucu no galho do pau com o arpão, o pescador vaidentro da canoa para a paragem onde ele sabe que o peixe bóia. Sim, porque o pirarucu,dizem os pescadores(as), só suspira embaixo de uma árvore. Aí, ele deixa seu piloto(a)ou proeiro(a) na canoa e vai prá árvore onde vai picar o peixe. Fica trepado esperando,isso acontece no igapó, quando o pescador(a) sabe onde é a passagem deles. Ele trepano galho do pau só para picar o pirarucu. Tal como na fisga, o pescador(a) utiliza doisarpões, um para dar a primeira fisgada e o outro para a segundona e certeira. Nessecaso, o pescador(a) enxerga o peixe. A água é clara no igapó.

Silvio também comentou a pescaria no galho do pau. “(...) É assim no galho dopau que o... Que o finado Olavo gostava, o pai dessa aqui (apontou para mim). Gos-tava muito de picá no galho do pau. (...) É, não, não gostava de barulho, só ele mes-

mo. Só ele, era caladinho ali, o peixe nãosentia, (...) era por isso que gostava de pes-ca só, gostava de pesca só.”

O mutá, muitá ou mutar no ga-lho da árvore é um suporte para o pes-cador picar o peixe no igapó. Essa pes-caria é realizada na cheia das águas, noinverno amazônida. Então, o pescadorarruma paus ou no próprio galho sentae espera o peixe. A espera é longa. Elelimpa as folhas somente para cima, paranão atrapalhar a hastia, não engatar porentre a folhagem. A hastia tem em tornode três metros de comprimento. O com-primento da linha no arpão varia entre20 e 50 metros. Arpão numa ponta e abóia na outra!

Para baixo, na direção da água elesnão limpam. Justamente para ficar escon-dido, pois se o peixe ver o pescador ele seassusta, ele enxerga o pescador(a) no ga-lho da árvore. O pescador(a) tem que serbom de olho porque o peixe estranha.Quando arpoa, o arpão sai por entre osgalhos e folhas.

Pesca de subsistência artesanal do pirarucu:

no galho do pau!

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Inexperientes, às vezes, limpam tudo. Aí, o peixe não vem. Olavo Afonso medisse também que o pirarucu bóia brabo se ver o pescador. E nunca mais volta naque-la paragem. O peixe é muito arisco.

Pescar o pirarucu no galho do pau é uma observação. Dorinelson Lopes Barbo-sa, me contou que “o pirarucu todo tempo ele vem torto, assim devagar, assim que elevem prá dá a volta, prá ele boiá em cima d’água, né? No que ele bóia, se a gente forarpoá ele, a gente não consegue arpoá ele. Ele estranha. Ele é mais ligeiro de quequalquer charutinho desses aqui que são piquinininho!

Aí, quando ele vem prá boiá aqui, a gente tem que deixá ele boiá, enfiá acabeça em baixo de alguma coisa prá podê a gente arpoá ele.

Aí, tem a árvore certa que ele bóia. Não bóia em todo lugar, não. Tem umburaquinho certo lá, limpo. Aonde ele bóia assim sempre fica escumoso. Aí, ele vemde lá... Quando ele vem a gente tem que ficá certo lá. A gente não pisca um segundosequer e nem pode se mexê, nem balançá. Tem que ficá quieto. Aí, no que ele vem ,então a gente tem que tá certo lá, né? Que tem vezes que, quando a gente se espantaele já... boiô, já foi embora, a gente não viu. Lá ele... ele se muda, ele. Se a gentecomeçá a persegui ele lá. Ele saí prá fora. Aí, se a gente for persegui ele lá fora, ele vaiembora... Aí, a gente não vê mais ele. Outra pessoa que já vai matá ele em outras ilhaque ele vai se amoitá de novo.”

Pedro Cobra comentou como eram as duas formas de pescar o pirarucu com oarpão. Arreio dos imortais, de pescadores que fazem da pesca uma arte!

”Numa época dessa (inverno), eu preferia era tá só eu de joão-de-pau. Amarra-va joão-de-pau na canoa. No verão, na época de fisga, eu gostava de piloto. Na fisga,a senhora... vamo dizê... é o canal, não é? (mostrou com um espaço no chão) Então,a senhora nunca rema direto. Parece que vai fazendo um viagem... A senhora tem quedá uma volta prá li, volta prá cá, vai prá li, volta a canoa prá li, volta prá cá... Você tábrincando ali, só você remando eu tô com a hastia aqui no fundo, né?

Numa época desta, de inverno, então vamo dizê, você sai remando lento vaiembora remando sozinho! Se dé com o pirarucu, se tivé em posição, vamo dizê, de dáuma maresia, fazê zoada na canoa... Eu , principalmente, eu tirava a camisa, usavacamisa de punho... tirava a camisa, pegava, amarrava na rodela da canoa prá água sófazê pô pô. Não batia aquele plá plá. Quanto mais silêncio melhor se torna. Até umcapim, se aprendê na canoa, a maresia não bate.

Quando era em tempo de ficá, a gente andava fisgando. Até hoje... no passadomatei três de fisga. A fisga é pequena. E o arpão é grande. Então, esta fisga você mete nopé de uma hastia grande. É porque ele é picado... o peixe, assim... Você não enxerga, só vêaparpá, que ele estrala, né? Que o ferro estrala igual um vidro (na escama do peixe).

Olha, o peixe maior que eu já matei, foram três peixe. Durante eu pescá. Um,com seis dias de sarmura, ele deu 113 quilo, só as duas manta (tirando a ossada ecabeça).” O peixe vivo pesa muito mais que o salgado visto que perde toda a água,

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ossada, cabeça e buchada. “O outro, no sangue, deu 112 quilo, e o outro deu 106 quilo.Foi os três peixe maior. Olha, o primeiro peixe, esse peixe que deu 113 quilo, com seis diasde salmura, foi no intermédio da quaresma, eu matei até aqui na bera do Torrão, e euvendi... Só nessa época, eu matei parece que 12 ou 13 pirarucu. Nessa dita semana daquaresma, eu vendi tudinho...“

Depois de morto, como colocar esse monstro dentro de um botinho? É simplespara o pescador(a). Trazem-no para o meio da canoa. Pegam com uma das mãos nosolhos dele, e a outra pela bochecha. Aí, puxam o peixe de lado já. No que puxam ele,que a cabeça dele sobe passando a bochecha pela beira da canoa, os pescadores(as)amassam-no e ele sobe para dentro da canoa. Ele vem, ele corre prá dentro da canoa.É liso! Agora, depois que seca aquela goma dele aí fica áspero.

A escama do pirarucu é semelhante a uma unha gigante. Quando seca, ela ficamuito dura e curva. Usa-se para fazer acessórios ornamentais, roupas e outros fins.Para descamar o maior peixe de escama da água doce do planeta, o pescador(a) batecom o terçado em seu corpo. Dessa forma, ela solta e fica mais fácil para limpá-lo. E,nessa tarefa, o pescador(a) cuida do pirarucu montado por cima dele, para tirar o cou-ro. Para abrir um peixe grande, leva-se em torno de duas horas. Dizem que a carne deum pirarucu muito grande não é das melhores.O peixe passou de 60, 70 quilos a carnenão presta. É só nervo!

O pirarucu come outro peixe. Basta tá com fome, ele come o próprio filho dele,é igual ao tucunaré. Igual ao baiano. O baiano é um peixe que cresce de todo tama-nho. Ele pula que nem macaco, mais conhecido por aqui como aruanã. Seu Edmundo,do Jacaré que pescou muito no Amazonas, me contou que lá eles também o chamamde sulamba, e o tambaqui de fivela. Ele me contou, que já veio muita gente do rioArapiuns fazer piracui no Lago Grande, “de noite ficava tão claro que parecia Santarémdeles muquiarem o peixe. Hoje em dia, não tem mais nada! “

Olavo Afonso me lembrou que “hoje em dia, o pescador pega o pirarucu namalhadeira. Eles não têm mais paciência, tempo prá ficar no galho do pau. Essa pesca-ria é muito demorada. O pescador fica às vezes 10, 12 horas na espera. Prá você pescápirarucu tem que pescá pirarucu. Você não diz que vai colocá malhadeira na água ematá um pirarucu. Você não mata. Quando peixe tá de filho ele é rápido. Ele sente asua canoa, ele pega os filhos e vai embora prá outra, cabeceira. Se é pescador depirarucu pesque só pirarucu.“

Um dos arreios mais usados na pesca atual do pirarucu é a cercadeira, quetambém é pesca ilegal. Mas, mesmo assim, ainda é muito usada pelos profissionais. Nacercadeira, eles pegam os dois peixes: fêmea e macho, diz o ensinamento tradicional.Entretanto, já existe no mercado malhadeira apropriada para pegar pirarucu.

Penso eu, uma pescadora de jaraqui, um dia vir a dominar um peixe desse! Semmedo de nada, me atirar na água em busca do domínio do pirarucu. Ser arrastada porele, entre canaranas, aningais e igapós!

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Jaraqui, o cardume listrado

O jaraqui é um peixe bastante apreciado na mesa dos santarenos e não temproibição para esse peixe. Ele costuma andar em cardumes. A pesca do jaraqui é tradi-cional nos lagos do Mapiri, Papucu e Juá, onde ele aparece em dois tipos, o escamafino e escama grossa. O primeiro é mais compridinho e o outro é mais chato e curtinho.Encontra-se jaraqui até de um quilo.

Há três anos, é realizado no Mapiri, o Torneio de Pesca. Nossa pescadora MariaPinto de Sousa, no ano de 2003, ganhou o terceiro lugar no campeonato com umjaraqui que pesava um quilo.

O jaraqui dos lagos a que me refiro, é pescado com um arreio que se chamagarateia: um feixe de sete anzóis, tipo uma mandala. É presa num caniço onde nomeio da linha tem uma bóia.

E sua isca é o fruto de uma palmeira chamada inajá, não muito alta, mas densaem cachos de frutos e folhas. O cacho é protegido por uma casca que depois de secase transforma em uma barca, chamada carauatá. É bastante usada pelos povos tradi-cionais como depósitos de comidas entre outras coisas.

Com uma faca bem amolada, é retirada a polpa da fruta que servirá de isca.Uma linha de pesca fina molda-se a polpa na linha acima da garateia. A isca fica com oformato do fruto, só que sem o caroço. O pescador(a) usa o caroço preso numa linhaque fica atada numa bóia solta no meio do rio ou presa numa árvore, chamado deroedor. O roedor tem o objetivo de atrair o peixe para a garateia. A boca do jaraqui émuito pequena, ele não morde, ele chupa o fruto!

No tempo da piracema, uma isca dessa pode pegar até cinqüenta jaraquis. Opescador(a) não deixa o peixe morder a isca. Assim que ele chupa, o pescador(a) sentee com os anzóis que estão abaixo da isca, fisca o jaraqui e... canoa!

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Lorivaldo Rebelo Miranda também é pescador de jaraqui. “A pesca de jaraqui éde tarrafa também, O peixe que mais adorei pescá foi o jaraqui. Quando tá no tempode pescá jaraqui é tão rápido. É engraçada a pescaria do jaraqui. Me chamô a atenção,quando eu não conhecia a pescaria do jaraqui, é o seguinte: se você tiver aqui conver-sando, se você tivé dentro da canoa aqui conversando, você tivé achando graça, vocêbarulhando, pulando na água, pensa que ele corre? Ele não corre. Tanto prova, que ojaraqui quando tem muito numa paragem, a gente na pescaria, a gente pega umpedacinho de pau, com a mão mesmo, faz zoada n’água, ele vem vê! Ele não corre.Não é como outro peixe que vê uma zoada, vê uma coisa assim, ele se afasta, ele vaiembora. Jaraqui não. E com essa arrumação de pegá ele no inajá, na garateia que agente chama.

Rapaz, quando você chega num lugar que tem ele, ele pega de repente, vocêpega setenta, oitenta, cem, rápido, não é? Na garateia as vezes vem mais, as vezes atétrês. Mas você consegue pegá mesmo só um, os outros soltam do anzol. Mas pega detrês, pega de dois.

Pelo memos aí, no Juá, nós temos uma maneira de pescá que você pega ojaraqui. Pegou ele, a canoa tá com um pouco d’água, né? Dentro da canoa. Aí, vocêpega, você usa um sangrador. Um ferrozinho apontado. Aí, você dá uma anestesianele. Já sabe a posição. Você mete ele (o ferrozinho) bem no lombo dele, no espinhaçodele. Trisca a ponta dele numa veia que ele tem réz ao espinhaço, pronto! Ele ficaanestesiado. Aí, ele passa todo o dia naquela água. Só se ela esquentá muito que elemorre. Aí, quando chega de tarde assim, na hora de vendê, você faz aquelas cambadadaquele peixe que estão vivo. Você chega no asfalto, em qualquer paragem, os quevão comprá, olham e dizem assim:

— Esse peixe tá vivo, não tá? Manda aí, manda, manda... Eu quero esse vivo.É o que eu digo pros companheiros:— Esse pessoal aqui é engraçado, né? Eles compram mais o peixe pela vida.Que o bichinho tá bem vivinho. Aí, não sobra nenhum. É muito bom assado.Isso só mesmo os pescador que pescam ele é que sabem. Nós temos pessoas aí

que... Nós temos vários pescadores que não sangra porque não sabe, né? E quandovai anestesiá, vai sangrá, fura fora da onde é, e ele morre.“

Raimundo Nonato de Sousa, aquele pescador do Juá, gosta mesmo é depescar tucunaré. Mas, como um bom pescador sabe a arte de pescar o jaraqui tam-bém. “A garateia é uma ciência de pescar o peixe. No verão, a gente entoca amalhadeira num saco e só puxa no inverno. Agora, no inverno mesmo a minhapescaria mais, todo mundo me conhece, eu sou tucunarezeiro. Puxo mais é tucunaré.A isca é xaperema, se nós dizê o nome daqui você... vai vocês vão até ignorá, é arari.Um charutinho assim que tem o rabo vermelho. Puxa com a linha 0,40 e anzolnúmero sete.”

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Peixe-boi, o mamífero aquático

O maior mamífero das águas é o peixe-boi. Já foi muito combatido na Amazô-nia, talvez por isso, está em extinção. Muitos projetos de preservação desse dócil ani-mal já estão em desenvolvimento na região.

Os povos tradicionais, que o consumiam, já o respeitam como um peixe depreservação. Lorivaldo Rebelo Miranda contou como os pescadores(as) do lago do Juápassaram a proteger o peixe-boi.

“Entra muito peixe-boi no lago do Juá. E produzem aí dentro. Só que nós...Tinha um cidadão que matava os peixe-boi aí no lago. Aí, eu era o capataz (do Núcleode Base da Z-20). A gente entrou num acordo, de não deixá ele matá, desde um diaque nós vimo ele matando um peixe-boi, era a fêmea, como a gente chama, a vaca,né? E ela estava com o filho pequeno, filhote pequeno, né? E quando ele estava ma-tando a mãe, cacetando com um pau prá matá a mãe, o bichinho tava rodando assim,rodando. Aquele bracinho, aquele bracinho dele, aquela mão dele assim...

Ah, mas aquilo... Nós era diverso lá olhando ele matando. Que não era proibi-do, na época. Aí, o bichinho ficou por lá. Quando foi no outro dia que nós fomopescá, encontrava o bichinho por lá se batendo, boiava assim, aquele nariz dele pedin-do socorro, com fome. Aí, foi que nós entramo num acordo e proibimo a matação depeixe-boi no lago do Juá!”

Pronto, mês de maio, venha no Juá que você vê o peixe-boi, de certeza! E émuito. Hora de meio-dia, uma hora da tarde ele bóia no meio do lago. Pirarucu que nãomata mesmo. Esses pessoal não sabe nem como mata um pirarucu. Tem muitos delesque nem conhece o que é um pirarucu. Não sabe a arte da pesca e nem liga prá aquilo.”

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Infelizmente, ainda não podemos dizer que acabou definitivamente a capturado peixe-boi na Amazônia. O importante é que os pescadores(as) mais antigos, e quepegavam o peixe, já não o fazem mais. E isso, é um bom exemplo.

O Pedro Cobra, me falou também sobre a natureza desse belo animal aquático.Tem uma parte de sua carne de peixe e outra parecida com a carne bovina.

“Olha, o peixe-boi é mais difícil de encostá nele do que o próprio pirarucu. Quese a senhora cuspi na água ele desaparece. Se pegô a mão no fósforo tira... de rependeque for abrí a caixa de fósforo, cai um palito no fundo da canoa... já era. E também práembarcá ele depois de morto, ninguém pode embarcá ele de cabeça. Não vem. Derabo, ele é o contrário do pirarucu.

O peixe, ele só anda, pode tê cinco metros de fundura, mais ou meno, mas elesó anda depois dele boiá. Quando chega no nível da terra. Ele vai, puxa o fôlego delee volta. Quando ele deu na terra, aí... vai embora. Tem duas marca de peixe-boi que euconheci: o preto e o azeite, um malhado.”

Edmundo, da comunidade do Jacaré me disse que o peixe-boi “cisma com agente. Ele urra, o filho berra, o seio dela é embaixo do braço. Quando vaza, eles vãoembora, só param quando tem capim.”

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AComo surgiu a Colônia de Pescadores Z-20

As colônias de pescadores(as) foram criadas a partir de 1920 com o objetivo decoletar informações para a defesa da costa brasileira, em nome da Marinha. Até 1988,as colônias de pescadores(as) eram associação de todos: funcionários públicos de ór-gãos reguladores ou de fomento de pesca, vendedores de peixe, donos de frigoríficos,armadores, militares da marinha e outros. Assim, a associação colocava em últimoplano os interesses dos pescadores(as).

O pescador Eurides dos Santos Pereira, 73 anos, aposentado pelo Sindicatodos Trabalhadores Rurais, demonstrou na entrevista realizada com ele como era a Z-20no passado. “Olha a Z-20 era a Z-24 (antes da Z-24 era a Z-11). Era comandada peloMão-de- Borracha, presidente. Ele vinha todos os mês, ou as vezes de ano em ano, asvezes três vezes por ano ele vinha fazer reunião. Ai, colocar aquelas coisas que a gente,as vezes, o pescador não sabia, né? Regulamentos, uma base da pesca, longe doterreno da margem do terreno, né? Você tem um terreno, né? Você tem um terrenoaqui. O que ele colocava prá gente era:

— O pescador, ele tem o direito!”Antes de passar para as mãos do pescador(a), os estatutos das Colônias eram

aprovados por decretos do Ministério da Marinha. E eram eles que decidiam quem iriapresidir as colônias. A partir do final da década de oitenta, após uma grande organiza-ção, vindo a democracia, a Colônia, através de seus associados, tomau a direção como apoio da igreja católica, da Federação dos Órgãos de Assistência Sócio Educacional– Fase e Sindicato dos Trabalhadores Rurais. Com a vitória da categoria pesqueira naseleições, um dos primeiros passos foi a eliminação de sócios não-pescadores e o come-ço dos trabalhos diretamente voltada para a categoria dos pescadores(as).

A partir daí, através de articulações com outras iniciativas em diversas regiõesdo Brasil, os pescadores(as) garantiram na Constituição Federal de 1988 a equiparaçãodas Colônias de Pescadores ao formato dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais. Então,atualmente, as Colônias são associações sindicais dos pescadores(as) artesanais e deâmbito municipal. Os associados eram tanto pescadores(as) de subsistência comopescadores(as) comerciais, de pequena e média escala.

Assim, o estatuto foi reformulado e a direção da Colônia de Pescadores Z-20 éformada por quatro diretores que trabalham diretamente em cima das decisões de umConselho Administrativo composto de vinte e seis conselheiros pescadores represen-

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tantes das dez regiões Pesqueiras: Lago Grande do Curuai, Aritapera, Tapará, Arapixuna,Urucurituba, Ituqui, Maicá, Cidade, Tapajós e Arapiuns. Sendo que as duas regiõesmaiores são Cidade e Lago Grande, geograficamente e em número de associados. Adiretoria é escolhida pelo Conselho. E o Conselho é escolhido através de eleições nassuas regiões. A Assembléia é soberana e é realizada uma vez ao ano, no dia 29 dejunho, dia do padroeiro dos pescadores(as) São Pedro.

Roberto Cardoso Marinho, diretor de Organização e Meio Ambiente da atualdiretoria comentou sobre a importância do Conselho Administrativo. “Antes o presi-dente que mandava em todas as atividades. O Conselho Administrativo delibera todasas atividades, são da base. É o pulmão da Z-20, a responsabilidade está toda nele.”

A Colônia de Pescadores Z-20 aumentou seu poder de articulação e mobilizaçãoem função de parcerias com órgãos governamentais, ONGs, igrejas, partidos políticos,iniciativa privada. Um grande movimento também apóia as colônias, o Movimentodos Pescadores do Baixo Amazonas – Mopebam e a Associação de Mulheres Pescado-ras Artesãs e Agriculturas – Amupaa .

Entretanto, a Z-20 se mantêm financeiramente através das mensalidades deseus sócios e da renda da Feira do Tablado, administrada pela entidade em parceriacom o município. Nos últimos dois anos, a Colônia recebe apoio financeiro, destinadoàs atividades de logística para os trabalhos de base, do Projeto Manejo dos RecursosNaturais da Várzea – ProVárzea/Ibama. Além do projeto de construção da sede comestrutura para um centro de capacitação que tem o apoio técnico do Instituto dePesquisa da Amazônia – Ipam mas com suporte financeiro do ProVárzea/Ibama.

O pescador aposentado pela Z-20, Renato dos Santos Ribeiro relembrou o iní-cio das lutas por uma Z-20 de pescadores(as). “Astésio (Manuel Astésio Rodrigues daMota), Coé (José Rodrigues Campos) e Valdomiro (Ribeiro) trabalharam direto com oscoordenadores de base, e foram os primeiros articuladores da Z-20. O trabalho, nessetempo era voluntário, para eu sair com eles, eu tinha que arrumar meu dinheiro parasair. A família ficava por conta dos amigos aqui. Os pescadores daqui era que davamcomida para a nossa família.”

Aureliano Branches, da comunidade do Cururu, Lago Grande do Curuai tam-bém se recordou da década de oitenta quando ajudou na organização da Z-20. Ele foium dos fundadores do Núcleo de Base da comunidade, da Associação de Pescadoresdo Baixo Lago Grande e do Conselho de Pesca da mesma região.

Naquela época, os pescadores eram solidários uns com os outros. “Agora tá muitobom. E mais bom vai ficá. Porque hoje a gente sai de casa, a gente tem aquela merendalá, tem o almoço, tem a refeição. E nesse tempo, nós não tínhamos. Se a gente quisessetinha que levar nossa merenda para poder comer.” Sobre o início da construção daZ-20, do movimento de base, Renato contou que no bairro do Mararu (onde está a sededo Núcleo de Base, apesar dele morar no Urumanduba, bairro situado próximo ao Mararu,que está inserido na região do Maicá) “quando a gente começou aqui, nós começamos

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a reunir por baixo das árvores. Depois, nós pensamos em fazer um barracão. A genteconseguiu fazer um barracão de palha. Isso foi em 82, nós construímos o primeiro barra-cão de palha. Mas depois, no decorrer... quando foi em 84, a gente foi que mudou práoutro de telha. E agora, a gente tá tentando mudar. Se Deus quiser, com a ajuda deDeus, a gente vai derrubar ele e fazer outro barracão agora.”

Pescador de grandes qualidades, Renato dos Santos Ribeiro fez um relatocomovente sobre sua paixão pela Z-20. “Eu vou ser franco prá vocês: eu gosto daminha entidade. Eu amo ela! Prá mim... eu saí como representante da direção mas eucontinuo nela porque tenho amizade. Isso eu não nego. A Z-20 faz parte da minhavida. Isso eu tenho dito! Eu já tenho dito prá meus colegas:

— Olha, quando eu morrer eu quero que vocês me levem lá prá parte daminha sede velha.”

Tantos pescadores(a), tantos lutadores(as). Eurides dos Santos Pereira, “sou agar-rado a duas entidade, sabe? Sempre sócio. Associei com 16 anos, mas com aquela idadenum dava pra associá. Então, eu aumentei minha idade prá podê se associá. Porquenaquela época, existia assim... clandestino, né? Hoje não sei nem como se chama.

Mas a maior parte deles são avacalhador. Sabe por que avacalhador? Porquevocê tem um tipo de pescaria... você está acostumado a pescá de um jeito e o cara vai,chega lá avacalha sua pescaria.”

Com a intenção de levar as informações da categoria até as mais longínquascomunidades pesqueiras, a Colônia mantêm o Programa de Rádio, Sintonizando aZ-20, na Rádio Rural AM. A programação e locução é realizada pelo(a) diretor(a) deRelações Públicas e Cultura.

O modelo de gerenciamento das atividades relacionadas à organização e fo-mento da pesca realizado pela Z-20, se tornou exemplo para outros municípios e suascolônias. Mesmo assim, Z-20 ainda tem muito a conquistar. Ainda mais no que serefere à questão de gênero, apesar de ter garantido seu lugar na associação em 30%como relatou, Roberto Cardoso Marinho. E, de novo é a pescadora Sonia, da Associa-ção das Mulheres Pescadoras, Artesãs e Agricultoras (Amupaa ) quem nos elucida so-bre o assunto. “Os pescadores às vezes, muitas das vezes não querem associar àsmulheres dentro das Colônias de Pescadores. Eles, na hora de,... de... dá devido a... agrande modificação que houve no estatuto da Z-20. Hoje, a... tem os artigo que tápedindo... que só pode associar mulheres se os pescadores derem todo um aval decondições prá associá. E a maioria delas, elas tão enfrentando. Mesmo mulher depescadores que tão tecendo a malhadeira, consertando a malhadeira, elas tão nesseconflito. Querendo também garantir seu espaço mas muitas das vezes os pescadores,eles estão sendo muito machista junto com nossas companheiras.”

Isso também é uma forma de conflito na categoria. Os homens amazônidas são,em geral, intolerantes com a equiparação das mulheres em profissões até então exclusi-vas a eles. Mas, é a mulher cabocla que gera toda a família. É ela que cuida dos filhos e

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dos maridos, trabalha no roçado, pesca, lava, cozinha, como já abordamos aqui! E quan-do, em plena sociedade contemporânea, ela vai requerer seus direitos, além de enfren-tar oposição em casa ainda enfrenta o preconceito dentro de sua própria categoria!

Sônia, mulher de fibra, lutadora ardorosa na questão feminina, ainda relevaque a mulher é “maltratada pelos nossos próprios companheiros. (...) Até entre qua-tro paredes as pessoas tão discriminando a gente, tão sendo machista com a gente,entendeu? Então, nós temos que entendê que nós somos capazes. Nós temos queenfrentá porque essa barra é pesada. Mas, nós mulheres vamos vencê. Nós tamos nosorganizando prá um dia vencê. Não prá tomá o lugar de nossos companheiros ho-mens! Mas sim, para ocupar nossos lugares!”

É Aldo Santos quem toma a palavra, “através da Z-20, então podemos reinvindicartodos os direitos que temos como pescador. A Colônia passou das mãos de não pesca-dores para pescadores. E todos os diretores contribuíram para que a Z-20, hoje, tivessede uma maneira mais organizada. Então, praticamente todos trabalharam nesse rumo,né? Por exemplo, o aspecto social mudou muito, né? De antes prá agora, e os nossosdiretores se atualizaram buscaram as alternativas. E hoje, a Colônia, eu vejo que já temum lugar mais previlegiado. Eu me orgulho de sê duas coisa: pescador e negro.“

Núcleo de Base

Os Núcleos de Base são veículos de grande valia na organização e mobilizaçãoda Colônia de Pescadores Z-20. Os responsáveis por essa tarefa são coordenadores-sócios escolhidos pelos próprios sócios de cada comunidade. Somente no Lago Gran-de do Curuai, em função de sua grande extensão territorial é que tem dois coordena-dores, um no baixo lago e outro no alto lago. Os coordenadores, através de suadiretoria executiva, realizam o trabalho de encaminhamento dos sócios junto a seusbenefícios, coleta da mensalidade, associam novos sócios, além de serem a ponte deinformação entre a diretoria e os associados.

Os coordenadores de Núcleo de Base são voluntários. Se doam como sóciospara a organização de sua entidade. Apenas, do total da arrecadação de seus Núcleosde Base, tem por direito estatutário um pró-labore de 20% e mais alimentação e trans-porte nas atividades relacionadas a sua função.

Renato dos Santos Ribeiro, diante de seus 62 anos, vinte dos quais como Coor-denador do Núcleo de Base da Z-20 no Mararu, hoje aposentado pela Colônia, co-mentou que “sempre fui, sempre foi, todo tempo trabalhei, nunca deixei. E hoje, saíagora, mas continuo com meus amigos. Nós tínhamos, nessa época, nós chegamos aassociar 58 pescadores.”

Essa dedicação o levou a São Paulo como representante da Z-20 na edificaçãoda maior de todas as entidades de trabalhadores do país, a Central Única dos Traba-lhadores – CUT. Segundo ele, problemas estruturais do grupo afastaram os sócios.

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“Agora que nós estamos resgatando novamente, tamo nos associando de novo. Játem 22, já tem 22 pagando corretamente. E tamos nos associando, né? Já temosquatro para associar. A gente vai associar esses quatro já em janeiro, se Deus quiser.Teremos quatro novos associados.”

Lá no Lago Grande do Curuai, na comunidade de Peré Boa Vista, o pescador jáaposentado, Manuel Pedroso de Lima Ferreira, falou que a Z-20 insistiu para que ele setornasse um coordenador de base. Justamente por sua característica de líder, quemsabe. Assim, ele cedeu e o levaram para Santarém onde agilizaram seus documentospessoais e a carteira da Colônia na coordenação da capatazia da localidade, onde eletrabalhou 30 anos nessa função.

“A gente sabe que numa coordenação dessas a gente tem que orientá aspessoas, tem muitas pessoas que eles num... Não tem assim uma idéia boa, né? Por-que aqui sempre a gente foi, trazendo orientação das pessoas, porque a gente quéque as pessoas... eles tenham assim se orientado de não ficá sem uma entidade. (...) Ea gente não ia dize: ‘oh, só prá Z-20’. Não, mas... dizia pro pessoal tudo, “oh, a gentesó qué que vocês não ficam sem uma entidade”. (...) Sabe que são duas entidadeque... elas são do pobre, né? (ele se referiu também ao STR) Como eu sempre digo;olha a Z-20, ela é uma entidade formada por nós. Somos nós os dono dela. Se nósfracassa com a nossa mensalidade, (...) a nossa entidade vai quebrar porque não temoutra solução, né? Sempre dizia, a Z-20 é uma entidade de encaminhamento, o traba-lho da Z-20 é o encaminhamento.”

O coordenador tem, também, a função de defender os diretos dospescadores(as) em suas localidades. Antes dos pescadores(as) conquistarem umaColônia que dedicasse sua causa em favor da categoria, muitos conflitos se passaram.O pescador Renato me contou dois conflitos que vivenciou:

“Olha o primeiro conflito que nós tivemos foi num amigo, por causa de umaterra. Tomaram a terra dele. E aí, ele chamava-se Capito. Aí o que foi que aconteceu?Ele era sócio e nós, um dia, reunimos e decidimos receber a terra dele. Aí, quando foium dia ele mandou recado prá mim que o cara tava cercando a terra dele.

Aí, nós reunimos, nesse dia nós fomo trinta e dois pescador. Chegamo lá, tavamcercando, nós fomo arrancando das estacas tudinho. Disporamo o arame e dissemospro cara que, daquele dia em diante, a propriedade era de nosso amigo pescador por-que ele nasceu e se criou lá. E como era tudo uma terra dele, prá onde era que ele ia?

E desde esse dia foi... desde esse dia, o cara não foi mais lá e ele ficou sendodono da terra. Era terra central.

Aí, o outro conflito foi em 1981. Cercaram a nossa descida da estrada que agente pescava. Isso foi na beira do rio. E o que aconteceu... Nós tornamos a se reunir,fomos pessoalmente falar com o dono da cerca. Ele diz que não abre a cerca. Aí, nósdemos um prazo prá ele de quinze dias. Se ele não abrisse a cerca, nós íamos abrir anossa passagem.

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Aí, nós levamo esse papo prá ele. Ele não tirô a cerca. Aí, nós reunimos, isso foide novo um trabalho de grupo, de muitos pescadores e a comunidade também.Chegamo lá, nós abrimo a cerca. E está aberta até hoje, ele não se revoltou. Nessaépoca, nós éramo organizado.”

Acordos e Conselhos de Pesca

A imensidão amazônica nos leva a pensar que não tem como regular, controlare fiscalizar todo aquele mundão de água e terra. Mas não é bem assim. A Amazôniadepende muito de seus povos assim como eles dela. É através das populações tradici-onais que a preservação e conservação dos recursos naturais vão se concretizar.

Os acordos de pesca já existiam entre os pescadores(as) e suas comunidadesespontaneamente, e ainda existem. Só que, a partir dos incentivos ao setor pesqueiro,esses acordos podem ser respaldados na legislação pesqueira. São representaçõesparticipativas, incluindo todos os grupos sociais, que tem a incumbência de elaborarum ordenamento pesqueiro para suas regiões. Fica por conta do governo federal,através do Ibama, transformar esses acordos em portarias, em leis.

São os Conselhos Regionais de Pesca como entidades jurídicas que colocam emprática as portarias. Os acordos comunitários passam a vigorar através da portaria depesca de sua região.

Em Santarém, existem sete Conselhos funcionando em sete regiões: Conselhodo Maicá, do Ituqui, Lago Grande do Curuai, Tapará, Aritapera, Arapixuna e Urucurituba.Está em discussão um futuro Conselho de Pesca da Cidade.

Essas instituições tem apoio logístico da Z-20. Os Conselhos são instituições co-munitárias e se mantêm através de promoções. Roberto Cardoso Marinho me relatouque os Conselhos encaminham as decisões através das assembléias comunitárias. A dire-toria dos Conselhos também não é remunerada. Roberto diz que “se trabalha por amor!”

Enéias da Silva Nogueira, 49 anos, mais conhecido como Maguari, tem 15anos de sócio na Z-20, e atualmente é presidente do Conselho de Pesca do LagoGrande. Ele reitera a posição de Roberto. “Não, ele (o Conselho de Pesca do lagoGrande do Curuai) não tem apoio financeiro, realmente, porque agora (2004) nóisfizemos um progresso debatendo alguma coisa prá ser aprovado, prá realmente vê sedaqui mais uns ano chegue mesmo um colabore para nossa região.

O Conselho (...), eu falo sobre meu Conselho, que aonde nós temo se manten-do através de um bingo que a gente, que nóis sempre organizamo por assembléia.Aonde sai 15 cartela pra cada comunidade prá ser comprado. Aonde sai os prêmios devalores.

Eu creio que os Conselhos devam procurar apoio financeiro dos pescadores(as)e comunitários(as). Porque, enquanto, esperam respaldo de fora, a população espera

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que o Conselho faça aquilo que antes eles é que faziam. Agora, se os comunitários éque estão envolvidos diretamente, colaborando com pequenas quantidades em di-nheiro, haverá mais participação e mobilização de novo. O financiamento externo virácom o trabalho já em desenvolvimento de cada Conselho.“

O envolvimento dos Agentes Ambientais Voluntários – AAV junto ao Conselho dePesca Regional é importante quanto à questão de educação ambiental. O que é precisopara o pescador(a) praticar os acordos e portarias de pesca? É preciso incentivar opções degeração de renda sustentável e mais do que tudo, criar opções de autogerenciamentoatravés de capacitação sobre legislação de crimes ambientais, pesqueira e meio ambiente.Educação ambiental quanto ao uso da água e o que se retira da água.

A Colônia que sonheiUma Colônia, um sonho... uma possível realidade?

A Colônia com a qual eu sonho, e muito pescador(a) também sonha, é umainstituição com assistência direta ao pescador(a). Com uma fábrica de gelo e umacâmara fria de estrutura comercial do pescado, garantindo assim a exportação. Assimcomo também, uma fábrica de beneficiamento do pescado. Por exemplo, a transfor-mação do coro em tecido para indústrias. Que pense estrategicamente nos canais decomercialização.

Do sonho para a realidade tem um grande caminho. Este que poderia determi-nar através da legislação das terras de Marinha que, onde houver estados pesqueiros epopulações que dele dependam, sejam de uso exclusivo da categoria.

Uma Colônia que busque recursos direcionados para a diversificação da rendafamiliar e da permanência do pescador(a) em seus locais de origem. Já que a Amazôniatem tanto potencial turístico, por que não projetos de ecoturismo em áreas de pesca?

O sonho da Colônia seria a edificação de uma cooperativa para garantir umpreço justo tanto para o pescador(a) quanto para o consumidor. Um projeto demarketing que envolva desenvolvimento de marca do pescado em escala comercial,trabalhando de acordo com as leis de higiene e saneamento. Por que não pensar emum restaurante com comidas típicas onde a matéria-prima venha diretamente dopescador(a)?

Já que o pescador(a) devota uma grande parte de seu tempo na prática dapescaria, também sonho com um barco-hospital e odontológico, e ambulâncias paraatender os sócios em suas localidades de origem. Linhas de créditos em supermerca-dos, postos de venda de combustíveis, farmácias, plano de saúde próprio, entre tantosoutros benefícios para a categoria.

Uma Colônia que promovesse as relações públicas, não somente institucional,mas também com relação a seus associados. Que proporcionasse canais de informa-ção mais abrangentes. Que apoiasse e intensificasse a educação formal através de

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cursos de capacitação e reciclagem para seus líderes. Que incentivasse bem mais ainformação ambiental de tal forma que pudesse atingir crianças e jovens filhos(as) depescadores(as). Que como bem apontou Sônia Leão, uma escola para filhos depescadores(as). Mas, que tivesse currículos adaptados!

Uma Colônia que tratasse com mais igualdade a competência das mulherespescadoras. Incentivando o planejamento familiar e alternativas de geração de rendadiversificando a atividade econômica.

Isso é um sonho e sonhos realizam-se com ações!

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OO poder da fé e da magia

Crenças

O pescador(a) tem sua fé em São Pedro, o protetor dos pescadores(as). Naépoca de Jesus, ele deixou a pescaria para evangelizar pessoas. Assim, na SemanaSanta, paixão e morte de Jesus, os pescadores não pescam, o fazem antes desses diaspara ter o pescado em abundância. Os pescadores(as) acreditam muito que São Pedrointercede junto a Jesus pela boa pesca alcançada.

Na astrologia, São Pedro é representado pelo signo de sagitário. Esse apóstolotem “a chave do céu”, tamanha a importância de sua figura para a Igreja Católica.Divide com quem é de sagitário, os princípios da generosidade e da fé. Quem conhecePedro, sabe que ele negou Jesus na sexta-feira da Paixão. Então, como o santo, nóspescadores(as) também fraquejamos e porque não dizer que, algumas vezes, até nega-mos que somos pescadores(as).

A história bíblica, também conta sobre o “pescador de homens”, na figura doapóstolo André. Porque era ele quem recrutava novos discípulos para Jesus. Ele é re-presentado na astrologia com o signo de capricórnio, sendo uma de suas qualidades adisposição para o trabalho, responsabilidade e determinação.

Há muitos anos, a Colônia de Pescadores Z-20 realiza a Procissão de São Pedrono final de sua assembléia ordinária, que acontece exatamente no dia 29 de junho, diado santo. Atualmente tem o apoio da gestão municipal, Diocese de Santarém, Delega-cia Fluvial, Corpo de Bombeiros, as Polícias Militar, de Trânsito, entre outras parceriasde âmbito privado.

Do local da assembléia, a procissão segue até o barco ornamentado especial-mente para receber a imagem do santo. Os fiéis em suas embarcações acompanhamSão Pedro que percorre toda a frente da cidade. Após a procissão fluvial, o bispo cele-bra a missa campal solene na praça da Igreja Matriz Nossa Senhora da Conceição.

Em seguida, os fiéis acompanham de novo São Pedro até a sede da Z-20, con-siderada sua casa. O lugar é bastante visitado por seus devotos onde depositam osagradecimentos de suas graças.

A crença na ajuda de São Pedro já não sensibiliza mais tanto o pescador(a)como antigamente. Sim, porque o mundo espiritual das águas também mudou comoo mundo que gira atualmente em volta dele. A troca do arpão, a pesca artesanal de

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subsistência pela pesca artesanal comercial, dos grandes barcos pesqueiros, colaborounessa transformação.

Na minha gestão de relações públicas na Colônia de Pescadores Z-20, em 2003,realizamos a procissão com o apoio da devota e professora de turismo Andréia Imbiribae da sociedade civil. O objetivo é justamente resgatar a cultura e a crença em São Pedro.

Crendices

O pescador(a) para ter uma boa pescaria se prepara na terra. A sabedoria po-pular dita muitas crendices. A mais famosa, na região, é a panemice. A palavra panema,que em tupi é pa’nema, significa a infelicidade na caça ou na pesca, azarado e vítimade feitiço.

E o que o pescador(a) faz para se livrar disso, para se proteger? É o que vamosver agora!

Dorinelson Lopes Barbosa, me contou como Olavo se cuidava para afastar asmalícias da penemice. “Ele me convidô prá gente vim a pesca de novo. Aí pro... Jauarari.Que isso daí é muito falado isso. Tem muito peixe. Aí, quando a gente foi... prá lá. Aí,ele ia esmigalhando umas sete pimenta malagueta prá... passá nos braço. Aí, ele tavaesmigalhando tudinho. Aí eu disse:

— Prá que isso daí?Disse:— Ah, meu mano, isso aqui é prá tirá a panemice prá mim matá o peixe.Tá bom. Aí, ele ia fazendo.— Cadê tua hastia?— Taí!Aí, ele pegô, fez... jogô na hastia tudinho. Aí, passô no braço dele, né? Aí, eu

fiquei olhando prá ele. E aí:— Eu vô passá no meu braço também. Quero vê... tirá a panemice.Aí, eu passei. Rapá, não te conto nada. Ardeu! Quando eu atrepei no pau lá

rapaz, na mesma hora eu baxei prá água e fiquei de molho lá, quase umas meia hora lá.E ele passava nas costas dele, no espinhaço dele, na pá dele, batia... não ardia, não!”

Dizem, que só sente a ardência aquele que tá com panema. Assim como falamque a panema se pega quando o pescador dá um pedaço de seu peixe para umamulher grávida, principalmente se for de pirarucu. Depois disso, o pescador não pegapeixe, só vive querendo dormir, abrindo a boca.

Mais uma prova do machismo amazônico está nessa outra crendice, contadapor Osmar Didiet. Quando a mulher está menstruada:

Ela não pode passar por cima do arreio de pesca do marido, não pode pegá naflecha, na hastia ou na linha, porque pode empanemá.

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Pirarucu usa e abusa dele e ele não acerta. Peixe vira de folha para ele e nãoacerta no peixe.

Prá pessoa voltar de novo a ser o pescador bom que pega bastante peixe eletem que tomar banho de curuatá e outros paus. Ir no pajé, no curandeiro e depoisfazer uma defumação de tauari nas mãos, pés e na linha de mão.

Osmar me relatou que “já aconteceu de caboco pegá espingarda, e dizê práfulana que se ela não mordesse no pé da hastia, ele matava ela. E a pessoa teve quemordê. Porque ela tinha comido da embiara dele. Se a mulher tiver gestante nova,pescador nenhum te dá embiara prá comê. Seja carne, seja peixe, não te dá porquevocê pode empanemá.“

Para tirar a panema, eles costumam também dar banho na canoa, na malhadeira,nos arreios dele que é para ele sempre pegá bastante peixe.

E foi o Osmar que deu um exemplo real da crença do caboclo. “Fiquei chatea-do mesmo, fiquei chateado com um próprio tio meu. E ele errava pirarucu bem pertinhodele, eu pescava com ele. E ele disse que era minha esposa que tinha empanemadoele. Quase eu brigo com ele.

Eu disse que eu não admitia isso porque minha mulher era uma mulhertrabalhadeira, não era uma mulher vadia, e eu acho que talvez se desse panema era damulher vadia. Cismou que ela tava grávida e ela podia ter comido do pirarucu que nósmatamos. Particularmente eu não acredito. Agora eu respeito a cultura. Se eu errei eraporque tinha que errá.“

Ele nega a crença quando diz que, “existem certos detalhes, certos detalhes emcada rede. Se a rede não for bem talhada não pega peixe. A maré é muito influentenuma boa pescaria. A lua, se é quarto minguante não pega, pega no quarto crecentee lua nova. É um fenômeno.“

Dorinelson, o Repepinilo ou mais conhecido como Piquê, lá do Inanu, nãopermite nem que sua própria mulher toque em seus arreios. “Ela pode... usá as mãodela prá outras coisa (sorriu ele). Passa panemice.“

Eu, como pescadora, não gosto também que pegue nos meus arreios. Quan-do confeccionamos ou compramos um que não combinamos com ele abandonamosou queimamos até. Quanto à questão do peixe, quem vai consumir, já fica no meupensamento que não tem muito respaldo. Veja, o pescador(a) vende seu pescado,como ele vai saber quem comeu? Pescador(a) é muito cuidadoso com seus arreios. Oser humano vai continuar pescando. E é dessa forma que fica comprovada a competi-ção entre a natureza e a humanidade!

A crendice popular amazônida reza que o pescador(a) tem, também, que termuito cuidado ao cuidar de seu peixe. Tem um pescador no Mararu, o ClaudomiroPerreira Dias, também conhecido como Codó, que não deixa ninguém jogar as espi-nhas de sua pesca no quintal de sua casa. Ele queima tudo!

Assim como ele, os pescadores vão traçando sua cultura!

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Não jogar a escama em qualquer lugar; para os pescadores, nunca passar de-baixo de varal, ainda mais se tiver roupa íntima de mulher; fazer uma defumação compimenta malagueta; limão galego no corpo...

Carlos dos Santos Moraes, morador no bairro do Maracanã, é pescador de jaraquicom tarrafa, tira a panemice limpando a tarrafa com galho de limoeiro para tirar o azar.

Os banhos também são potentes eliminadores de panemice, mas tem que usá-los de acordo com cada panema.

A quantidade de pimenta malagueta, também varia conforme o tipo depanemice. Deixar secar bem e passar no corpo, na canoa, nos arreios. Ela também éum ótimo remédio para reumatismo. Junte-a com óleo de andiroba ou piquiá. Para ogalo lerdo, passar pimenta nas canelas; as galinhas botam prá valer!

Pataqueira, alho, pião-roxo, pião-pajé, tajá pirarucu, sacaquinha, sal grosso,cipó cabi.

As puçangas são os feitiços que afastam ou atraem. Silvio Nogueira do Carmo,lá do Uruari, me contou que ele foi pescar com seu parceiro. Pegaram um pirarucu evoltaram para cuidar em casa. Foi quando deram a miudeza para outro pescador.

Em geral, o pescador(a) não costuma dar a miudeza de um grande peixe paraninguém. E nada de pegar peixe mais. O parceiro de Silvio contou para a mulher dele queeles estavam com panema em função das miudezas que eles deram para o pescador.

A mulher de Cacique, parceiro de Silvio, disse para ele que conhecia uma puçangapara aquele feitiço. Silvio não queria contar essa receita. Insisti tanto com ele que dei-xou a vergonha de lado e me contou: “Olha, eu vou contá sabe? Querem que euconto, eu conto. Olhe, a barba da mulhé, viu? A barba da mulher quando ela é muitoa safada por causa de homem, minha filha! Tira um poco, tira um poco. E essa uma, amulher do meu proero era parceira dessa mulher. Ela gostava muito do homem, sabe?Gostava muito de homem e ela bibia uma pinga, sabe? Ela bibia uma pinga e ela...Nós fumo numa festa lá na Vila Socorro. E aí... ela foi, sabe? Ela estava lá, esta ditamulher tava lá. Lá ela se meteu na bebida e dormiu perto da, da conhecida memo, né?Dormiu perto da mulher, dessa... até minha tia. Mulher desse meu proero, né? Dormiue aí ela se alembrô da puçanga que... ela sabia que era bom. Eles contavam, né? Queera bom. Aí, ela pegô a tesoura muito bem, foi lá, tirô lá... um poco, né? Tirô um poco,rapá! Embrulhô. Mas só, aquilo tem que embrulhá bem com cuidado que aquilo fogeque só... Num papel, bem embrulhado, rapaz, e aí deu prá ele... o nome dele eraCacique, né? O marido dela. Tá bom. E nós enchia mesmo, rapá! Nós enchia se nãofosse essa, esse feitiço, né?(Veremos logo a seguir qual foi esse feitiço.)

Como é feita a puçanga? Aquele fio, aquele fio do cabelo que é a puçanga, né?Amarra no arpãozinho, lança com outra linha por cima, passa uma cera de... uma cerade mel, breia bem aqueles fiozinhos. Aí, passa uma linhinha por cima, aí estruva denovo, e pronto. Só que não é prá contá prá ninguém. Não tem que contá prá nin-guém, pois é?

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— (Fez uma voz meio envelhecida e forte) Olha Cacique, tá aqui a puçanga!Agora, tu vai enchê a canoa, meu velho.”

Silvio e Cacique tinham toda a sorte do mundo nesse feitiço. Não fosse, Caci-que repartir a puçanga com outro pescador amigo seu. “E pro parceiro que nós demoum poco, aí ele matô muito, ele matô muito pirarucu. E prá nós não prestô!”

Foi depois da puçanga, que eles descobriram que o pescador a quem deram amiudeza também tinha feito maldade com eles. “Descobrimo que o cara que tinhajudiado, feito isso, essa judiaria. Que de formas, que, que não prestô prá nós. A miudezaque é ciência, rapaz, e... E, o cara com inveja, pegô uma miudeza do nosso pirarucu foimetê bem na casa onde tem tapecuim. Tem aquele buraco, né? Lá ele meteu aquilo láprá dentro. Tapô aquele buraco, pronto! Pois é um feitiço dos maiores aquele lá.”

Silvio se refere às pessoas malvadas como se elas nascessem diferentes dasdemais. “Eu digo que... essas, essas pessoa que nascem diz que encapado, né?Encapado, é que tem uma capa na cabeça quando vem... Tu nunca viu falá? É, diz queé... venenoso. Sei lá, de que... sei que é uma capa, encapada a cabeça da criança.Porque foi só, porque o primeiro que eu fui no primeiro dia que nós usamos a puçanga,sabe? Que nós viemo pra terra firme. Se nós ficasse prá lá, então nós tinha pego muitopor onde que nós não vinha prá cá, o cara não ia judiá de nós, né? E essa puçanga, dizque a gente não deve dá prá ninguém! Se dé prá outro, já fica ruim prá gente e vaimelhorá prá ele.“

Já ouvi falar de um ditado assim: por trás de grandes homens, existe umagrande mulher. No passado, estávamos ocultas pela fama masculina. Acredito quehoje, as grandes mulheres estão no mesmo patamar que os grandes homens. Precisojustificar isso porque tem muitas puçangas e feitiços amazônidas onde a mulher écolocada sempre como a vilã!

O que me entristece é que o homem, não conseguindo conquistar mulher comsua própria sabedoria natural, usa do peixe para seduzi-la. Silvio, que não me passou aimagem machista, se revelou um conhecedor dessas artimanhas masculinas. É o casoda puçanga da acaratinguinha ou parapataca, como também acaratinga doida. Umapequena da espécie, que não cresce.

O pescador pega a acaratinga facilmente nos rios ou lagos. Põe para secar, masbem sequinha no sol. Aí, o pescador que quer conquistar vai a festa com a peixinhomorto e seco no seu bolso, pois ele atrai a mulher.

Já aconteceu, de um cara pegar a acaratinguinha e como ele não secou bem, opeixe estava com mal cheiro. A puçanga ao invés de seduzir afastou a pretendida. Oefeito virou contra o feiticeiro.

O peixe de novo é alvo na conquista das mulheres, dessa por pequenos meninosjá habituados a conviver num universo machista. Quem conta é o pescador Valdemir daSilva... “Nosso amigo de infância... aí foi pescá com o pai dele.. Aí, ele chegô lá, pegaramum bocado de carauaçu... Salgaram, tempo que era de sal. Salgaram e trouxe.

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Quando foi de noite, o velho saiu prá casa da... da quenga dele... Afonso ficôpor lá. Aí, tinha uma... que mora ali na cabeceira, onde é a Maria Ciloca (risos)... E aí,ele convidô meu primo Jorge e foram lá.

Aí, pegaram uma cambada de carauaçu do finado pai dele e levaram prá ela.Aí, chegaram lá, ele chamô ela e... e ofereceram o carauaçu prá ela a troco de... passáumas hora com ela. Ela aceitô a parada. Aí, quando eles tavam lá, tudo curumim, né?Aí, fizeram a janta muito bem, arrumaram a mesa e quando... tavam jantando... Aí,quando arrumaram a mesa aí chamô:

— Venham cá!Aí, esse... meu primo Jorge, que ele era meio esperto disse... sentô e pegô um

prato e... começô... Comê junto com elas, né? Elas eram três.Aí, o... Afonso ia lá e cutucava na costela dele assim com a mão e dizia:— Sai daí! Sai daí! Não come! Isso é só prá ela porque nós vamo pegá...Aí, o Jorge nada. Comeu. Comia lá com elas. Esse Afonso muito puto não quis

comê. Quando terminaram muito bem... Por lá andava outros com... outros compa-nheiro mais velho, né? E quando eles tavam lá numa boa, chegô o... o chefe da véia,mas um outro véio. Chegaram lá, deram com eles lá...

— O que esses curumim fazem aqui?Passô a mão no terçado deu umas duas ripadas em cima de um banco que

tinha no terreiro... Esse Afonso mais o Jorge saíram quebrando mato na frente... Edeixaram os carauaçu do finado pai dele prá elas comê de graça.”

Cobra grande

A cobra grande aparece nas noites escuras, nos temporais. No rio, aparecem duasgrandes tochas de fogo em alta velocidade na direção das canoas. O pescador(a) tem queremar depressa e, sem barulho, puxar a canoa para a margem. Aí fica quieto até amanhe-cer. A cobra grande então se afasta para sua morada num grande aningal ou num buracoem algum lugar dos rios ou lagos, ficando a espera de uma nova oportunidade.

Silvio Nogueira me relatou que os temporais seguidos da aparição da cobragrande são muito violentos. “E aí, a gente pegava aquele grande temporal, né? Agente foi já no barco, rapaz, o temporal arrastava a gente... no barco, lá naqueles (...),a gente não conhecia por lá. Aí, de vez em quando eu carregava a saneva assim, dobarco prá vê se enxergava um pouco dela.” Hoje em dia, Silvio acredita que ela andaescondida depois que apareceu o motor. Sebatião Aires Farias me descreveu o mons-tro da Amazônia como um bicho que tem veneno, traiçoeira.

Ouvi muitas histórias sobre a cobra grande. Mas, aqui não vamos falar da len-da propriamente dita. Para os pescadores(as) a cobra grande existe e são essas históriasque vamos retratar aqui.

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Wilson Mota de Sousa é um pescador que passa o maior tempo de sua vida norio. O seu barco B/M Meu Torrão é sua casa. Lá, ele namora com sua mulher, RaimundaSueli, que também é pescadora. Eu costumo chamá-los de casal 20 da pesca. Quandoseu barco não está em Santarém, encontra-se ele no meio do Lago Grande, ancorado.E ele vai nos contar uma outra história. Agora sobre a cobra grande.

“— Tinha um caçador... Nesse tempo, o tabaco ele não vinha moído assim. Eracortado em molhe. Tinha que tê uma faca prá cortá assim, prá podê fazê o cigarro. Láo caçador, se perdeu. Se perdeu e começô a andá prá cá, prá li... Foi quebrando as-sim... o mato. Que quando ele prestava atenção, tinha um pau grande assim. Grandemesmo. Ele passava em cima daquele pau. Um pau... tava limento, devido chuva essascoisa, no mato... tava limento aquele pau. Aí, ele tava no mesmo caminho. Daí, eletirava o rumo, quando ele dava ele tava naquele pau de novo. Numas três vez mais oumenos...disse:

— Mas eu vou fazê um cigarro!

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O pau era alto, quase dava assim no peito dele. Pegô, tirô o tabaco, a faca dabainha e raspô assim o pau prá saí aquele limo prá ele podê migá o tabaco. No que eleraspô aquele limo, aí surgiu tipo um sangue. Tipo um sanguizinho. Disse:

— Mas que diacho é isso?Limpô, limpô aquele sanguizinho, prestô atenção, era uma escama grande as-

sim. Daí, ele agarrô, não fez mais o cigarro. E saiu beradiando assim ele. Foi beradiando,foi, foi... Aí, quando foi chegando assim prá banda da onde ele ia, foi afinando assimum pouco aquele pau, né? Aí, ele foi se afastando também. De longe ele olhô assimtinha aquelas pena de bicho, pêlo de animais... E ele foi se afastando, foi... Ele perce-beu que ele tava na cabeça dela. E aquele limpo era onde ela atraia... Então ele pensaque ele tava sendo atraído. Depois dessa altura que ele descobriu, ele tirô rumo, ele...acertô prá onde ele tinha que ir.”

Quando você vai até o contador de histórias, você tem que estar preparadopara ouvir. Depois que ultrapassam os limites da timidez, desatam a contar muitas emuitas histórias. Ouvir as histórias dos pescadores(as) é necessário ter tempo. Para ospovos indígenas, a história da criação do mundo não se conta num dia só... HaroldoViana dos Santos, do São Jorge extremando com Inanu, me contou duas históriasdesse ofídio encantado.

“Olavo certa vez, ele me contou uma história. Ele chegou cinco horas da tarde,numa cabeceira chamada Buiar, aonde sempre ele fazia o paradeiro a noite. Aí, quan-do foi lá por volta dumas nove horas, dez horas da noite, ele viu um fogo, um fogo norumo de outro lago. Aí, ele ficou olhando...

— Aquele fogo não é embarcação!Era um fogo assim... bem vermelho e outro era bem azul. Aqueles dois fogos,

um na ilharga do outro. E quando ele prestou atenção, aquilo vinha parece um cami-nhão, holofote de um caminhão, em direção dele. Aí, chegou meio próximo, aí deuuma volta.

Aí, tem um lugar lá chamado Portão e tem outro local chamado Boca das Ga-linhas. Nesse Portão tem um lugar muito fundo. Na Boca das Galinhas tem um poçode novo muito fundo. Aí, aquele, aquela... aquela claridade foi em direção primeiro aoPortão, deu a primeira volta, aí ficou lá... uma meia hora, em cima d’água. Os fogos,eles abaixavam e eles hastiavam de novo. Parecia que ia acabá tudo!

E não tinha nada... nenhuma nuvem. Aí, começou um grande vento. De re-pente. Aí, a cobra grande foi no rumo da Boca das Galinhas. Quando chegou na Bocadas Galinhas dobrou em direção a outro local que chama Poço das Pedras.

Tu lembra do Poço das Pedra!? Quando chegou no Poço das Pedras, que ficavaquase em direção a ele, o fogo parou lá. Aí, teve... uma hora mais ou menos. Aí, lá ofogo correu em direção dele. Aí, ele se meteu por trás do mato. Aí, começou cai aqueletemporal e o fogo bem próximo dele. O fogo quase apagando, aí mesmo ele hastiava,em direção dele, clareava tudinho ele e a canoa. E ele com muito medo lá.

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Prá ele entrá foi muito fácil, mas quando ele tava lá, com muito medo, que elefoi olhá, era muito feio prá ele voltá de volta, lá de dentro daquele mato. Aí, teve...muitas horas... Aí, quando foi precisamente umas três horas da madrugada, o bichosumiu em direção ao Portão. E lá sumiu o fogo... e ele pode ir prá canoa dele de novo.”

Quantos fogos tem a cobra grande? Lourenço de Sousa Rodrigues, da VilaCuruai, no Lago Grande, diz que ela tem um só fogo!

“Eu ainda estava no Preguiça ainda quando aconteceu. Eu... nós fumo pescarlá do outro lado. Era eu, meu amigo Lúcio, o filho, João Galúcio, o Tcho, cria dele e oAntonio, genro dele. Aí, nóis fomo chegando era umas cinco horas da tarde. Tinhamuita cujuba boiando, naquele tempo existia, né?

Arreamos as malhadeira lá. Aí, quando foi... umas sete horas nós fumo ver asmalhadeira, tiramo os peixes. Fomo fazer a janta lá. Jantamo, quando foi meia noiteque nós saímos prá pegar as malhadeira, os meninos saíram prá ver a deles, né? E nóssaímos prá ver a nossa. E quando, e quando nós chegamo (...) eu terminei prá tirar oúrtimo cujuba, que tinha parece que cinco peixe lá, eu ouvi o barulho da lamparinaprá lá! Caiu lá no... eu disse:

— Meu Deus!Aí, nessa hora foi que ele gritou:— Parente, pelo amor de Deus que vai um bicho prá lá!Eu vi que era um bicho aquilo que tinha assustado ele. Aí, ela veio e se aproxi-

mou do motor lá. Alumiava aquilo, clareava aquilo, clareava tudinho nas árvore lá.Nóis (...) sabendo de tirar o peixe. Tirei o peixe. Aí, fui... embora prá beira.

Fui desviando daqueles paus e fui e fui até prá me aproximar lá do barco, né?Tinha que rodar uma ponta era limpo, e eu ia com a lanterna de carboreto acesa assim.Aí dei com aquele clarão. Eu virei a lanterna da minha mão. Aí, a bicha tá de fora lá. Aí,enxerguei aquele brilho. Mas aquilo me deu uma coisa que caiu a lanterna da minhamão. Eu soprava prá apagar e... e quando eu prestei atenção a canoa já tava de popalá na terra. Ele já tinha... deu coragem nele já tinha puxado a canoa.

E se nós mete a cara, ela tinha pego nós... Tava perto, próximo assim uns dezmetros. E aí, fiquemo lá. E ele de lá embarcou um menino, tinha um outrozinho quetava durmindo essa hora (...) Embarcou e veio... aportou no meio do burizal com umaboroca e se amontoamo lá na canoa. Ela clariava, ela boiava na beira do capim. Aí, elaboiava lá fora... ficava lá... Aí, ela clariava... Aquilo clariava igual a um holofote. Nósficamo até cinco hora da manhã. Lá que ela acentou... E só aparece um fogo. Nóis nãovimos dois fogos, só um fogo. Acho que ela só bóia de lado. E foi o que aconteceu...foi isso.” Isso foi uma verdade, eles ainda estão vivos.

Haroldo Viana dos Santos pede a palavra...”Um dia eu foi pescá, eu e um irmãomeu. E, as seis horas da tarde, nós saímos prá vê uma malhadeira. E quando nósaproximamos da malhadeira, um fogo saiu na nossa direção. Aí, eu falei pro meuirmão, eu disse assim:

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— Rapaz... tá vendo aquele fogo lá? Naquela direção ali...Se levantou e disse:— Tô vendo, mas aquilo é uma embarcação!Aí, quando ele falou assim que era uma embarcação, eu avistei o fogo já vinha

na nossa direção. Mas, vinha muito próximo e... quando chegou próximo de nós, eufalei o seguinte:

—Vão bora corrê em direção daquela ilha.A ilha tava próxima. Aí nós... deslocamo em direção aquela ilha. Ficamos lá. Aí,

aquele fogo se aproximô, se aproximô e só não pegou nós porque nós entramos nailha. Aí, não tinha vento, não tinha nada. Não tinha sequer nenhuma nuvem no céu,não aparecia. E de repente, tornou um grande temporal. Muito temporal. E o fogo lápróximo de nós. Aí, eu falei assim, eu disse:

— Rapaz, o que que nós faz!?A malha... a rede tava n’água. Ele disse:— Eu vou arrancá o moirão da bera e vou puxá porque o moirão de fora ele vai

arrancá, e nós vamo consegui puxá a rede prá canoa.E foi assim que nós fizemos. Depois de muito tempo, aquele fogo desapare-

ceu. Deu cinco voltas, próximo àquela ilha, depois desapareceu e se deslocou emdireção à Boca das Galinhas, onde... o povo fala que é o buraco dessa cobra grande.É uma cobra grande muito atrevida. Nós escapemos nesse dia!

Nunca ninguém conseguiu pegar uma cobra grande. O fogo ele tava na águamesmo, rente a água! (...) Agora, não sei se tem alguma energia. Não sei se ela temalguma energia, eu acho que tem, né? Porque prá dá um foco daquele muito claro, evai muito longe, e anda muito rápido.”

Seu Edmundo Prata, do Jacaré, e em seguida, Wilson Mota do Torrão compro-vam a teoria de Haroldo que ninguém ainda conseguiu quebrar o encante capturando-a. “Conta uma história da cobra grande que correu atrás de dois pescador. Eles eram sónuma canoa mas eles tinham um rifle. Aí, ele remaram, remaram, remaram encostaramna bera. Puxaram a canoa em terra e ela veio. E quando ela veio, que ela encalhô, queela ficô de fora, o proero passô a mão no rifle deu um tiro nela... Aí, ela deu aquelebaque, fico aquela ruma grande lá. Aí, eles foram embora. Quando foi de manhã...

— Agora nós vamo vê que ela tá morta lá!Chegaram lá, não era ela. Foi na hora do tiro que ela bateu, que ficô aquele

monte de barro, nessa artura (como estava sentado num banco ele dimensionou amão na sua cabeça) pro um lado e outro, pensavam que era ela, quando acaba, elavortô, foi embora, mas não pegô eles.”

***“Uma cobra grande que tinha ali prá banda do Pução, né? Um fulano de tal,

Quintiliano, ele era destemido, né? Bebia umas cachaça. Aí, quando foi uma tardezinha

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ele ia viajando prá atrevassá o Pução prá Pirapitinga. Um lugar que tem prá lá. E chegônuma casa lá dum ribeirinho. Teve conversando.

Quando ia dando seis horas ele disse que já ia. A canoa dele tinha tolda. Umatolda de palha. Era canoa de pesca mas a gente usa uma toldazinha prá proteção dachuva. Usava de primeiro. E, ele disse que ia. Não queriam deixá ele ír por causa dacobra grande que quando era umas sete horas ela passava lá no lago, né? De cima prábaixo, de baixo prá cima. Ele disse que ia. Ele usava vela. O vento tava bom.

E as velas, a gente sempre coloca um pau chamado mastro. Era de muraúba,pau pesado, pau bom mesmo. E carregou a vela e saiu. Tomô lá a dose dele, levô nacuia ainda. Levô a garrafa lá prá perto dele, só ele e Deus. E foi embora. Que quandoele saiu assim uns cem metros da bera prá fora, ele enxergô um claro na vela dele.Enxergô um claro na vela e disse:

— É a bicha que vem!Pegô a cachaça, botô na cuia... tomô aquela dose... e esperô! Quando ele deu,

já vinha mais perto, ele levantou e... passou por baixo da tolda, arriou a vela, pegou omastro, né? Não tinha outra coisa, não tinha nenhuma arma diferente... o mastro. Aí,a bicha veio. Ele dobrô a canoa bem de frente com ela. Quando veio, o mastro temsempre o pé meio apontado prá dá certo lá na sarlinga. Lá ele pegô com as duas mãose soltô. Direito no olho dela, do lado esquerdo. Aí, entrô assim um... diz que entrômais ou menos um palmo assim nos olho dela, né? Quando ele arpôo. Lá, ela mergulhô.Quando ele arpoô ele puxô o mastro que era prá dá outra, ela mergulhô assim. Que ocorpo dela era muito grande, aí ele ficô arpoando assim nela tim tim... e ela passandoaqui. Ele arpoando ela como se tivesse socando café tim tim... até que ela passô.Quando terminô, o mastro não deu mais nela.

— Acertei nela, ela foi embora agora.Carregô a vela e foi embora. Atravessô... ela não veio mais atrás dele. Ih, mas

passô tempo. Os pescadores já tavam acostumados. Que não existia mais a cobragrande. Também não acharam ela morta, né? Que quando foi um dia, o caboco játava acostumado com ela também, né? Que não via ela mais, não perseguia ninguém.Aí, quando foi num dia, um ia atravessando a noite lá... lá vem só um fogo. Só um ladoaceso. Aí, quando chegô perto, o caboco não tinha o que fazê, né? Não tinha omastro que o Quintiliano tinha... Daí ele gritô:

— Lá vem o Quintiliano!Aí, ela mergulhô... Pronto!”

Boto

Laurimar Leal, 65 anos, artista plástico santareno é muito arraigado à culturalocal. Ele me contou que “antigamente houve uma falta de comida muito grande.

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Tinha um índio que foi tentar pescar, quando chegou lá ele não pescou nada. Quandoviu tinha uns botos atrás da canoa, fazendo aquela arruaça. Ele levou aquilo comouma gozação. O que ele fez? Pegou, arpoou o boto. E foi embora prá casa. E o botosaiu nadando até a beira do rio. E lá ficou retorcendo. E o índio deixou o boto lá como arpão e tudo.

E foi embora prá casa. Quando ele chegou na casa dele, ele viu o filho queestava doente se retorcendo, fazendo a mesma gesticulação, a mesma coisa que oboto estava fazendo lá no rio.

Aí, ele achou que deveria ser qualquer coisa a ver com o boto que ele haviaarpoado. Ele voltou no rio. Quando ele chegou na beira do rio, ele puxou o arpão doboto e o boto morreu. Ele disse:

— O boto morreu, tá bom!Voltou para casa. Quando ele viu, o filho estava morrendo, fazendo a mesma

gesticulação que o boto. Então, em decorrência disso, a tribo todinha quando soubecomeçou a não querer comer boto. E isso vai até hoje! Ninguém come boto.”

Laurimar ainda falou sobre os dois botos que temos na região. O boto tucuxinunca foi garanhão, sempre foi o boto salvador. Porque se uma pessoa cai lá no meiodo rio, a tendência do tucuxi é empurrar a pessoa para a beira e não deixar morrer,servindo de apoio.

Já o boto cor-de-rosa é um boto brabo ele vai até a beira do rio com a botapara fazer suas transas. Então, na região quando aparece uma pessoa grávida e nãoqueria dizer qual era o pai, dizia que era do boto cor-de-rosa.

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Ele acha fricote, falta de personalidade as pessoas se referirem ao boto branco,ou vermelho, também chamado por alguns povos indígenas de Uiara, de boto cor-de-rosa. Segundo Laurimar Leal, essa denominação foi criada pelo cientista francês JacquesCosteau,que em suas andanças pela Amazônia, filmou o boto vermelho e passou achamá-lo de boto cor-de-rosa.

Os pescadores realmente não costumam comer boto. Eles dizem que a carne émuito pitiu. E se comem é a carne do tucuxi.

Eu acredito que o boto encanta mesmo. Nas noites de luar ele costuma ir àsfestas nas comunidades. Meu pai me contou uma vez, que ele viu um homem quehavia saído de uma casa. Ele ficou em cima de uma pedra e se transformou em boto.Jogando-se ao rio, ele sumiu!

Contam que ele se transforma em homem nas noites de luar. Suas roupas sãobrancas e chapéu branco, para não aparecer o buraco na cabeça dele. Uma dascaracteríscas do boto é o assobio fino que chama para o encante!

As gêmeas Francisca e Ester Gonçalves, da comunidade do Acutireça, no LagoGrande do Curuai, me descreveram esse mito das águas amazônicas. ”Quando elessaiam d’água, eles iam na festa, tratavam todo mundo bem e o sapato dele era umbico, só que deram que ele era boto por que o calcanhar é prá frente. Ele era o moçomais cheroso que tinha e por isso as moças dançavam e se encantavam com ele. Elesaiu do encante naquelas horas e aí... aproveitava de dançá com elas. E dançava,dançava até aquelas horas da madrugada. Aí, ele voltava pro encante.

Toda festa ele vinha misteriosamente. E as moças namoravam com ele pelacuriosidade de saberem quem era ele. Contavam os velhos que ele gostava de ir proscampo, Tapajós, Tucumão, praí prá esses central. Eu ainda era criança, a vó da Zilda, elateve um filho de boto. Ela tava de parto, e a casa era na bera. (Elas disseram que amulher estava só, sem o marido). Quando foi de noite ele foi com ela, fez o filho. Eladormindo não sabia. O marido dela ia com ela e aceitava ele. Já estava gestante. Erado marido. Quando ela teve era do boto. Tinha o buraco bem na cabeça dele. Era oboto ligítimo... morreu! Era boto ligítimo, tinha as abinha, o rabinho.”

Ester me disse que uma vez ela vinha para Santarém. No caminho, presenciouum cardume de botos. E lá, “eu já vi filho de boto. Ele traz o filho no queixo.”

Oscar Didiet me falou sobre o boto. Ele tem um sistema de computador, umradar. Quanto mais confiança prá ele mais ele te sacaneia. Bate o rabo que nem bateroupa, bate no remo, puxa o casco pela quilha, pula, borbulha. Se ele enxergar vocêpegando um objeto para fazer mal para ele, ele não vem. Prá mim boto é um mistério,com toda essa idade que eu tenho. Osmar não quer brincadeira com o boto, não.

O pescador Ezaltino, falou das peculiaridades para o boto não encostar:

“Amarra uma faca inox na ponta da rede; amarra uma cabeça de alho; ummolho de pimenta.”

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Falam que quando um homem fica com uma bota ele se apaixona. Não desfa-zendo das mulheres, mas diz que é melhor que as mulheres.

O pessoal reclama que o boto rasga a rede e tudo o mais. Claro que ele rasgase ele não consegue pegá um peixe solto, o peixe amarrado na rede ele pega. Então,você faz uma proteção com uma rede mais malhuda, cerca a área onde, que você quépescá, coloca a rede mais fina e... Pesca tranqüilo sem preocupação de boto nenhum.

Uma pescadora contadora de histórias, Dilza Maria Ferreira dos Santos, 43 anos,moradora da comunidade de Fé em Deus I, na região do Ituqui, é quem nos conta umfato que aconteceu com um conhecido. “Pois é, era um pescador que ele tava pescan-do lá no Retiro Vai Quem Qué, aí perto de Monte Alegre, atrás de Santa Rita. Aí, ele foibotá as malhadeira e viu os boto boiando. Aí, ele disse que se a bota tivesse coragem,que fosse dormi com ele de noite, lá na rede dele. Quando foi de noite, ele tava atéesquecido já da história que ele tinha falado. Aí, deitô, fez um travesseiro de lençol,deitô em cima do assoalho. Ele sozinho na casa. Quando foi de noite, umas oito horasda noite, ele escutou pra banda do caminho lá do porto da onde tava a canoa dele.Aquela música de mulher, uma cantiga de mulher vinha cantando: na nana, nanam,na, nana, nam, nana, nanam...

Ele começô ficá já crescido, cresceu o corpo dele, cresceu... o cabelo arrepioutudo. Aí, ele percebeu que aquela pessoa vinha no rumo da escada. Quando chegouna escada, subiu. Subiu todo tempo cantando, na nanananam na nananam nanananam... não mudava o jeito de cantá. Todo o tempo era o nananam. Quando eledeu, chegô na porta. Era de palha, feito tipo japá, abriu a porta e ele quieto lá. Ele nãopodia nem se mexê porque o corpo tava grande, cabeça tava crescida... Ali, ele ficôtodo arrepiado ali. Quando ele olhô assim, ele enxergô aquela mulher bem alta, todavestida de branco, muito bonita e o vestido dela brilhava. Aí, quando ele deu, elasubiu em cima dele, atravessou a perna em cima da barriga dele (risada dela). Sentôcom as perna em cima da barriga dele.

Quando sentô, ele disse:— Oh, meu Deus, valei-me!Ela disse (afinando a voz):— Oh, meu Deus, valei-me!Ele disse:— Livrai-me desse... desse bicho que tá aqui em cima de mim.Ela disse (afinando a voz):— Livrai-me desse... desse bicho que tá aqui em cima de mim.— Credo Cruz Ave Maria!— (afinando a voz) Credo Cruz Ave Maria!Todo tempo, o que ele dizia ela respondia. E ela carinhava a cabeça dele, era o

rosto dele, era os pé, era por onde dava, ela carinhando. E ela só assim aberta em cima

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dele, com as pernas pro lado e pro outro, né? E ele aperriado lá embaixo. Não podiamovê nada lá, quieto. Aí ele disse:

— Oh, meu Deus, me ajude nessa hora!Aí, ela dizia:— (Afinando a voz) Oh, meu Deus, me ajude nessa hora!Tudo o que ele falava a mulher respondia. E assim ela ficou a noite inteira

perseguindo ele. Ela fazia carinho nele todinho, e ele não fazia nada, nada, nada! Eletava acabado ali. Por conta dele, tava ali... ela fizesse dele o que fizesse, né? Aí, eledisse que quando foi chegando assim prás duas horas da madrugada, aí ela foi saindode cima dele. Olhando prá ele e ele sem podê dormi, sem nada. Passou a noite aperriado.

Aí, ela saiu de novo, foi no rumo da porta por onde ela entrô. Desceu a escadatodo tempo com a mesma música que ela chegô. Ela fazia na nanananam na nananamna nananam... prá banda dele. Ele escutô até quando ela chegô prá banda da canoa.No porto ele escutou ela cantando. Aí, foi se soltando. Levantô, pode andá, levantô e

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aí ele não dormiu mais. Com medo, com medo, ele disse. Prá nunca mais brincá comboto. Ele jura prá gente que era uma bota fêmea que foi aperriá a vida dele. Ele tá vivo.Ele conta prá gente, o Coló.”

Em minhas viagens de campo à procura de histórias de pescadores, tive o apoiode meu amigo Rionaldo, dono da frota B/M Esperança. Só que na última, o barco foi oB/M Paulo Victor no comando de Manuel Jorge Perreira dos Santos, 46, anos, filho daregião do Tapará. Homem acostumado a andar pelas águas do rio Amazonas carregan-do gado, com certeza tem muita história para contar. E ele nos contou uma do boto queele mesmo vivenciou. Quando o boto se transforma em homem... “Isso aí, aconteceu láno interior onde nós morava, lá no Catauari. Apareceu esse... esse camarada lá, né?Simpatizando as menina lá. Aí, primeiro foi com a Rosa do seu Gitico. Aí, a meninacomeçô a mudá de feição. Aí, o pessoal cismô que era ele, né? Aí... aí depois ele pegôsimpatizô já das minhas irmãs lá em casa, né? Elas eram bonita que só. Aí, simpatizôdas minhas irmãs. Aí, o pessoal não queria me contá, né? Aí, foi um dia, mamãe mecontou... aí eu... foi vê se era verdade. Aí, era verdade mesmo. Aí, eu foi... vou pegá ocabra de jeito. Trepei numa cuieira.

Quando foi umas dez horas da noite ele apareceu lá. Aí, subiu, os cachorros jáconhecia ele mesmo, os cachorros já conhecia ele, né? Passava a mão na cabeça doscachorro e ia lá pro quarto das menina. Eram muito brabo! Deus o livre! Cê chagá lá,tinha que trepá na cuieira e chamá. Se não, não encostava em casa. Aí, ele adomô oscachorro de um jeito... adomô os cachorro e adomava as meninas também.

Aí, quando foi nessa noite ele... eu foi esperá ele lá na cuieira com o arpão. Aíquando... umas dez horas da noite ele apareceu, lá. Uma hora mais ou menos, achoque ele não conseguiu entrá, né? Aí, ele desceu pro porto, eu arpoei ele! A linha tavaamarrada no galho da cuieira. Ele esticô a linha todinha... (quando ele entrou dentrod’água) Ele se transformô, não era mais um rapaz. Ah, metia medo boto. Aí, estronda-va boto de todo jeito, lá ao redor. Acho que queria bem salvá, né? Mas, não tinhacondições...Aí quando foi de manhã, nós fumo vê, aí... tava morto.

Vi, matei, matei o boto gente. Camisa branca de mangas cumpridas e calça azul...e chapéu branco na cabeça. Vi ele vestido, o rapaz mesmo. Vi ele sendo uma pessoa, umrapaz qualqué. Igualmente um rapaz qualqué! Muito luar, bem luarzinho mesmo.”

Como ficam as mulheres que são namoradas de boto? É o Renato dos SantosRibeiro quem responde essa pergunta. “Eu gostava da minha esposa. Namorava comela, e eu saía daqui... ela morava longe, Cristo Rei, na Estrada Nova. Eu ia e voltava depés, de noite. As vezes, eu ia e escutava aquele assobio atrás de mim:

— Fiiiiiiiiiiiiii...Era o boto, com toda certeza. Eu ia embora. As vezes eu conversava:— Qué ir? Qué ir? Então vão bora...Aí, ele passava por mim. Passava por mim, aquele vento dava ni mim. Aí, eu

ouvia ele assobiá mais prá frente.

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Por ali, morava uma família. Segundo contavam, segundo contavam que eleandava com a mulher do cara. E ela, se você visse, ela era uma mulher bem clara, masela não tinha um pingo de sangue. De toda certeza. Ela era pálida, pálida a mulherdele. Mas, era muito pálida! E diz que era ele que perseguia ela. De toda certeza. Elateve uns filho, mas não sei se era de boto. Não dava essa aparência não.

E outra vez, eu tava passando pro lado de lá, numa parte estreita, o boto nãodeixou eu passar. Passava por baixo da minha canoa, suspendia a minha canoa e sófaltava me lambá. E foi que eu entrei no capim e só saí quando amanheceu o dia. Elefez isso comigo!”

Boto homem... boto mulher... Quem relata é Evaldo Venâncio, pescador emorador da Vila Barbosa, em Óbidos. “Em outra viagem, em Terra Santa, eu moreicinco ano em Terra Santa (município Paraense). Aí, nós pescava, eu e um colega meu.Todo dia, nós ia e voltava, ia e voltava. E aí, esse boto acompanhava sempre nós,sabe? Aí, nós ia bebe, nós ia bebendo um negócio de uma pinga. Sempre tomava. Eaí, a gente disse:

— Olha boto, se dá bastante peixe, nós vamo te dá uns pra ti comê aí.Aí, nós ia aquele bicho acompanha a gente sempre. Aí, ele começou a aperrear

o meu colega, sabe? Ele não dormia de noite. Só enxergava aquela, aquela mulhersentada, deitada ao lado dele e amortecia ele.

E aí, disse:— Olha, não vamos mais pescar que eu tô me sentindo ruim. E bora parar com

a pescaria, não tô mais dormindo a noite.Aí, ele disse:— Olha, tem esses que mexem com negócio de... de... macumba. Sabe? Eu

vou com o curador, prá vê o que acontece.É foi um trabalho prá espantar esse boto. E aí, ele foi lá com ele e me chamou

no trabalho que ele ia fazer. Mas olha, o homem se atuou lá e benzeu lá ele. Fumaçô eaquilo igual boto mesmo: frrrrraaaa, frrrrraaaa...

Lá, invocado no curador que chama, curador, sabe? Curandeiro. E aí, fez aque-les trabalho que eles tem de fazer e... aí afugentou ele. E ainda ele falou que a vontadedele era me levar pro fundo prá mi encantá. Me puxá, que nós só ia bebendo cachaçae dizia que eu ia dá peixe prá... prá ele... Não jogava nenhum no mar prá ele. É por issoque ele ficou brabo. E também eu passei um mês sem pescar, nesse tempo (risadas).”

Ezaltino é quem conta mais uma do boto. Botos do Tapajós... “Dizem que oboto se gera, dança, atrai mulheres... eu não sei afirmá. Só sei que uma vez eu tavapescando e tinha uns botos boiando lá perto com uma bota eu acho... acredito queno cio, né? E a festa era tão boa e eu fiquei olhando assim, intertido né? Com umamão segurando a rede e a outra a canoa.

Aí os botos pararam de boiar. Aí, eu até me espantei, né? Tão perto de mim lá. Aí,eu olhei prá, prá beira... Tinha uma pedra alta assim, tinha um homem de branco. Cha-

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péu branco, uma bengala branca, tudo branco. Não dava prá notá direito, porque anoite, no luar, mas dava prá vê a fisionomia de um homem branco, tipo um marinheiro.

Aquilo me arrepiou todo assim, eu baixei a vista... Que eu olhei, ele puloun’água, né? Pulou na água e lá na frente boiou, começou a boiar assim... Mais quedepressa eu tirei a rede, desloquei, cheguei lá em casa deu febre. Lá um negócio...papai foi com a lanterna lá olhá e tal... mas não viu mais nada. Isso eu falo porque euvi, isso aconteceu lá no nosso interior, lá no Surucuá. Inclusive, essa pedra ela é meio...cheia de mistério porque ela fica em frente ao cemitério. O cemitério fica próximo deum barranco. E lá é uma parte que ninguém gosta de passá a noite sozinho. Eu tavapescando lá que eu não tenho medo de nada, e eu vi esse fato!”

Estávamos ancorados no porto da Vila Curuai, quando meu padrinho, SansãoBento Lourido, gravou a entrevista comigo. Senhor de seus 85 anos, com a garra deum jovem conhece muito bem a região do Lago Grande do Curuai. Muito já fez por lá!Nesse dia, ele estava bastante inspirado e feliz. Viajou comigo de Santarém a Vila Curuai,mas foi somente no porto de sua terra que ele abriu sua caixa de memória.

Ele contou que o Graciliano Silva morava no Aritapera e quando a epidemia damalária chegou por aqui matou muita gente. Inclusive sua mulher. Então, ele se des-gostou saiu por aí. Foi quando entrou no Lago Grande do Curuai. E lá, encontrou-secom uma mulher, Almerinda, se juntou com ela e se casou. “Essa mulher tinha umfilho, se chamava Pedro. No apelido Pedro Fino. Graciliano casou com a mãe de Pedro,Pedro ainda era pequeno. E Pedro se viciou a chamá-lo de tio Graciliano. Tratava comopai. Obedecia. E ele tratava o Pedro como filho. Graciliano gostava de pescá. De vezem quanto ele saia em pescaria. Ele se alagou sete vezes.

Um dia, ele chegava e tinha que entrar por aqui (mostrou por trás de suascostas) a pé prá ir deixar a canoa lá... dentro. E... uma das vezes, ele chegou, já eratarde, resolveu deixar a canoa aqui no porto da vila. Aí, de fronte daquela escola quetem. Lá tem umas árvores. Ainda tem uma. Naquele tempo eram três.

Junto da escola, tinha uma mulher que se chamava Nenê Silva. E se dava comtudo. Não tinha tempo mais de subi com a canoa, deixou aí. Encosto, tirou os arreiotudo, juntô, enfiô os peixes frescos... na enfiada, e guardou os arreios na casa de Nenê.E pendurou os peixes no pau-de-carga. Amarrou a saco com outros apetrechos aqui,pegou o porongo e subiu.

Quando subiu a ribanceira, ele deparô... O prédio Antonio Figueira era novo,estava novo e a luz elétrica também começava a funcioná. Sob a luz ele deparou comdois homens que estavam sentados na calçada do Antonio Figueira. Vista boa. Eleconheceu os dois. Um era Pedro, o enteado e outro era cunhado dele, Genézio. Elesse levantaram, ele... a carga dele era pesada, se levantaram e vieram no rumo dele.Aí, ele disse:

— Ei, cumpadre Genézio, prá onde o senhor vai.— Nós tamo esperando o senhor.

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E ele ficou alegre, porque ele disse, com certeza esses vão me ajudá a levar acarga. É longe. Graciliano tinha uma faca amolada aqui na cintura, na bainha, não? Eleera homem valente, robusto, disposto, apesar de seus setenta anos ele era disposto.Subiram. Chegaram nessa segunda rua, tinha um toco alto, ele deixou o pau-de-cargae disse:

— Vamos lá na casa dona Benzinha, tomá um trago.Chegaram no comércio de Sarmento, de dona Benzinha, ele pediu meio quar-

to de cachaça que era para os três. Ela botô. Ele pagô e chamô pelos companheiros.Eles ficaram afastados assim numa escuridão.

— Ei, Genézio, vão bora cumpadre, vamo tomá um...— Não, ninguém qué.— Não qué, Pedro?— Não.— Puxa, é muito prá mim. Ele já tinha pago, tomô tudinho.Voltô, se meteu no pau-de-carga e se empurraram nessa estrada. A estrada era

nova, essa estrada aqui, que vai aqui pro... ligá com a Translago. Quando chegaramadiante do lugar Pajurá, ele diz pra o Pedro:

— Pedro, me ajuda a levá o cambada a... o pau-de-carga. Pesa.Pedro não deu resposta. Quando chegou próximo de Magarati, outro lugar

onde eu tenho um terreno, ele disse:— Pedro, mas me ajuda rapaz, leva um bucado desse pau-de-carga!Nenhuma resposta. Aí, consigo mesmo ele diz, sortou uma enorme imoralida-

de, só com ele:— Porra, também não chamo esses filha das puta. Corno, vão comê amanhã o peixe

que eu tô pegando. Não querem nem me ajudá a carregá! Também não chamo mais.Passou uma área, um pedaço de estrada que aquele tempo não tinha, e até

agora, não tem moradores. A estrada era nova, derrubaram um pau e os galhos veiona margem da estrada. O pessoal cortou aqui os galhos e ficou as pontas dos pausassim. Quando chegou naquela ponta, naquele ponto, deu vontade dele fumá. Tavacansado, contrariado porque os companheiros não queriam ajudá, não? Ele deu umjeito pendurou o pau-de-carga aqui. Tinha... a tabaqueira. Foi prá ali focando com aluz da poronga. Um pau ele lavrou, migô tabaco. Meteu o terçado na tabaqueira... nana bainha. Estava migando tabaco, puxo o papelinho, butô no beco. Tava migandotabaco. Que quando ele botô tabaco no papelinho, os dois se aproximaram. Um pelafrente outro por trás. E foram querê tirar-lhe as carças. (pausa) O que vinha na frentefoi direito aqui (mostrou na sua frente) e o de que veio atrás, querendo tirá...

Ele era um homem sério, moral e valente, não? Quando ele viu, tavam puxan-do a carça ele retorceu e disse:

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— Que diabo já?! Cês querem tirá minha... minha carça!E diz prá...— Oh, cumpadre Genézio, você qué me enrabá? Que negócio já esse de vocês

quererem me enrabá?!E diz pro pro filho pro...— Puxa Pedro, tu sempre me respeitaste, rapaz! Como teu pai, tu sempre me

consideraste. Como é que agora já tu está querendo que... fazê com o cumpadre...querendo já me enrabá?!

Se afastaram, aí quando ele vai...foram apertando... eles tornaram dá outroassalto. Ele... foi o outro negócio, mano... Mas ele já tava prevenido. Ficou irado, não?Ele retorceu o corpo, puxô pelo terçado e disse:

— Olha, seus filha das puta o primeiro que saí... que se aproximá morre! Quecorno! Pedro, mas eu me admiro de ti, rapaz! Tu não me considera mais já querendome enrabá. E o senhor meu cumpadre, meu amigo, sempre me tratou bem, tá queren-do me enrabá? Primeiro que aproximá morre. Eu golpeio.

Nem mais fez o cigarro de aborrecido, não? Meteu o... saiu. Uns cinqüentametro, descia prá casa do amigo dele, José Lúcio. E a estrada passava aqui. Ele pensô:vou escapuli pelo Zé Lúcio vou saí lá adiante prá esses corno irem embora. Porque seeles tornarem a fazê essa bandalheira, eu corto! Aí, ele entrô pro caminho do Zé Lúcio.Andô uns vinte metros deu uma pontada na... na espinha dorsal. Aí, parô, imobilizô.Ficou lá. Depois ele foi enfraquecendo, ele foi pendendo o corpo prá cima da... do paude carga. E retorceu o corpo que ele ficô dobrado por cima do pau de carga. Ascambada de peixe deram deram... deram no chão. Que, já estavam seca, né? Queapoiaram um pouquinho, ele ficou arriado. Imobilizando tudo o mais.

Aí, ele se lembrô de chamá pelo amigo dele Zé Lúcio. Dona Margarida, umasenhora muito prestável, muito relacionada... Zé Lúcio que havia trabalhado no roça-do, tava cansado, dormiu. E dona Margarida foi acordada com um chamado:

— Ei, Zé Lúcio! Zé Lúcio... Ei, Zé Lúcio...Margarida acordô. Prestativa como era, não? Chamô...— José! José!José:— O que é?— Tão te chamando lá pro lado da estrada.— É, esses caboco que tão porre passando por aí. Tu não sabe que eles pas-

sam...?! Só vem porre aí. Baixam porre...tão chamando!— Mas, a modo que eles tão pedindo socorro.— Ah, é porre que tá passando.Dormiu. Aí, a voz:— Zé Lúcio. Zé Lúcio... me acode!

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E era o Zé:— José, José tão te chamando. Vai vê quem é... tá te pedindo socorro.Viviam bem, ele se levantou, deu luz no farol, saiu. Quando saiu na varanda da

casa dele, ele gritou:— Ei, quem é?Um já estava na frente dele e outro estava prá trás do... do Graciliano. Ele podia

bem vê um que estava prá frente... Quando o Zé Lúcio apareceu lá com a luz, esse quetava aqui na frente, passou de novo prá trás, e os dois desapareceram. Aí, veio o ZéLúcio, chegou aqui...

— Ei, quem é?— Sou eu, meu amigo.— Graciliano, és tu?!— Sou. Me acode tá me dando um problema aqui, rapaz.Aí, Zé Lúcio, caboco também prestativo, ajudô ele, levou prá casa. Chamô a

mulher, tinham trabalhadoras. Aí, a mulher se levantô, foram assá os peixes do Graciliano.Hum... Mandô fazê o café. Ele tomô e contô que... do caso que aconteceu. E dairritabilidade dele. Tomô o café, disse;

— Olha, Graciliano tu vai dormí aqui.Elas assaram o peixe...— Vai dormí aqui, vai já de dia.— Não, eu vou embora.Enquanto os peixe se assavam, ele teve uma idéia esdrúxula.— Eu vou matá-los! É muita sacanagem... É muita sacanagem esses filho da

mãe querê fazê de mim de moleque. Vou matá. Eu sou homem.Pegou o terçado, amolou bem de novo. Afiou. Disse:— Dona Margarida me dê um paneiro.— Prá que?— Prá mim botá meu peixe.— Mas, tu já vai Graciliano?!— Eu já vô.— Não, fique seu Graciliano.— Não, eu já vou Zé. Desculpe, eu já vou, cara.— Bem, como você já qué...Agasalharam ele, botô paneiro... Mas, com uma intensão. Com uma intensão.

Ele foi contrariado porque a vontade do dono da casa era prá ele ficá. Mas, ele foi comuma intensão. De ir aquela hora prá se reencontrar com eles. Que agora, ele não iaconversá. O terçado tava pronto prá ele...

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Quando ele se aproximava da casa, os cachorros ouviram o atropelo dele ecorreram, né? Quando chegaram perto, era o dono da casa, não é? Aí, passaram aagradar. A Arminda soube que era o marido. Ele chegô, naquele propósito firme de...Agora era com Pedro que morava com ele. Primeiro que ia morrê era o Pedro, o ente-ado. Deixou o paneiro em cima da mesa. A mulher veio, se cumprimentaram, fez ofogo. Tava fazendo prá botá a chocolateira no fogo. Ele lá, assuntando. O que eleescutava, se Pedro vinha chegando, qualquer remorso do Pedro.

— Tu aparece, eu te meto o golpe.Mulher trouxe o café. Ele fez o cigarro. Puxô umas duas baforadas. Terçado

aqui (mostrou ao lado do corpo). E ficou pensando como ele ia fazê uma perguntaemboscada para a mulher. Confiava na mulher, tinha sido boa amiga. Com o Pedro,ficou pensando, imaginando como ele ia fazê...

— Aiii...”A voz embargou na garganta.Sansão, homem de voz pausada e muito expressivo, relembrou a história di-

zendo que Graciliano perguntou, então, para sua mulher Arminda, onde estava Pedro.Ela disse que ele estava dormindo. Aí, perguntou pelo cumpadre Genésio. Armindarespondeu que tinha ido para a casa dele. Os dois estavam cansados da lida que ele,Graciliano, havia deixado ordem para fazerem.

Ele ficou surpreso com a revelação de sua esposa. Desde que ele saiu da casade seu amigo, ele alimentou uma ira tão grande que o impeliu a prosseguir a viagematé sua casa. Pois, lá ele mataria os dois que haviam perturbado muito desrespeitosa-mente sua caminhada. Trabalhou tanto na pescaria para depois, já tarde da noite,carregando seus arreios e os peixes, no escuro... Como pode? O que era aquilo então?

Pensou, pensou... Não comentou nada com sua mulher. O que mais o intriga-va agora era saber quem eram aqueles dois que se fizeram passar por Pedro e Genésio!Quem poderia sair da água do mesmo jeito que ele saiu? Quem tem o poder de setransformar em gente? O que ele fez de errado na pescaria?

Visagem

No respeito aos limites da natureza, sobressaem os elementos sobrenaturais. Esão eles que amenizam a convivência do ser humano com a natureza. Crenças e cren-dices estão em volta do convívio entre pescador(a), as águas e as matas.

Eu acredito no poder espiritual que habita a natureza. O das águas é a MãeD’Água, Iara, Yemanjá, Minha Avó, Santa Bárbara entre tantas outras denominaçõesmais pessoais para essa entidade. Ela dá força e resistência para o profissional que vivena superfície da água no planeta!

Por passarem muito tempo flutuando, tem muitos pescadores(as) que quandomorrem o seu espírito permanece por lá. Muitos outros pescadores(as) passam a vê-los e

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escutar suas vozes. As histórias são contadas, os lugares se tornam sagrados e assombra-dos, até recebem pedidos para uma boa pescaria. É o que os povos na região chamamde visagem ou visão. Entidades que povoam de diversas formas o imaginário coletivo.

É tudo aquilo que é invisível. Eu acredito que devemos respeitar as matas, pelassuas profundezas não tocadas pelo ser humano, como é na Amazônia. As entidadesprotegem e expulsam aqueles que desejam explorar a floresta sem controle. Assimcomo tem na mata tem nas profundezas das águas!

A história que segue, contada pelo sábio Sansão Lourido, demonstra bem opoder que as entidades têm de protegerem a noite e o dia, do respeito que têm pelaordem da criação do mundo!

“João, mora em Santarém, já velho também. Caçava aí. Por essa redondeza aí.Um dia, caçava e... era muito distante da Vila Paissandu, nas matas né? Mas, elesgostavam iam embora, não é? Corajoso mesmo, né? E João Viana caçava. Sabia. Se-guro na pontaria. A arma boa. Lanterna. Chego lá, amarrô a rede dele, diz aqui, omuitá. Amarrô a rede, prá descansá. Tá lá esperando a caça. Bóta uma perna prá cá,bota a outra prá cá... não pode fumá, não pode cuspí. O animal sente. Aquilo é água,mas se for um cuspe o animal sente a diferença.

Cada um... no seu habitat, não é? E ele ficou lá esperando. Quando deu umastanta, umas dez horas da noite. Lá vem... a caça! Ele acostumado a caçá, ele sabe se é onçaque vem. Ele sabe se é o veado, que o veado lá, ele... ele... quando ele ele está no meio daroça, ele pisa devagar. Lá na mata ele só zou zou zou... pisa... E sabe se é capivara, ele sabese é paca e sabe se é um tatu que vem arrastando. Eles sabem tudo isso. E... e ele percebeum passo diferente. Não é nem passo de veado nem de tatu, nem de paca nem de porco,nem mesmo de onça. E percebe, tem a intuição ... que o caçador... ele é diferente.

Quando chegou no ponto que ele era acostumado a focá prá atirá. Eles metema lanterna por baixo do cano, fez a pontaria. Quando chegô naquele ponto ele focô!

Era uma tartaruga. Aqui na cara... carapaça da tartaruga, não é? Vem um pre-tinho sentado. Seguro. Cabeça da tartaruga aqui no meio da perna e ele seguro aqui.E a tartaruga andava e ele dava o passo dele. A tartaruga andava e ele dava o passo. Opreto... baixinho... sentado em cima da costa da tartaruga. Aí, teve muito medo. Nun-ca tinha acontecido e ele não atirô, aquilo passô zaap zaap zaap zaap... Tartaruganaquela lambada de mato. Nesse dia não veio mais nada prá ele. Quando foi quatrohoras da madrugada, ele cansado, deprimido com aquela aparição. Arriô a rede, des-ceu, foi embora prá casa dele. Nair, a mulher dele lá... João Viana. Contô prá mulher.Dois ou três dias, ele sonhô. No sonho dele, veio uma mulher idosa, perguntou o queele tinha... Ele contou, em sonho o que aconteceu. E ela disse que aquilo era um aviso.Que nunca mais fosse caçá só. E nunca mais fosse prá lá, prá aquela imediação.

— Olha meu filho, isso ele me contou, cada um na sua casa é rei. Tudo tem oseu dono. A mata tem o seu dono. Vocês tem o direito de trabalhá de dia. A noite é právocês descansarem. E os animais tem o direito de procurar o que comê de noite.

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Nunca mais. E ele deixou de caçá. Ele mora lá prá banda do Mararu.”Visagem gosta de encostar nas pessoas. Eu creio que existem visagens do bem

e do mal. As primeiras gostam de assustar brincando. As outras gostam de malinar.Isso varia de acordo com as pessoas as quais elas estão afrontando. Eurides dos SantosPereira viveu uma experiência como essa. “O que eu já vi, durante a minha vida, umavisão, não sei se era uma visão, o que que era. Mas, eu... aconteceu. Tem até o parcei-ro, ainda é vivo. Então, quando estava pescando, era seis horas mais ou menos. Man-dei fazer um café (pediu para o parceiro. Nesse meio tempo, a visagem apareceu paraele). Aí, ela bateu assim:

— Xeeee, xeeee, na canoa.Vi que deu um gemido bem assim:— Nheamm!Mas, é uma pessoa que não espanta, né? (ele quis dizer que ele não se espanta)

Não me espantei. Aí, olhei para o parceiro... mudou de cor.— Não, pode continuar, já vai sair daqui, graças a Deus, tenho fé em Deus. (o

parceiro estava assustado, com medo até de fazer o café.) Ele disse:— Não... vão bora sair daqui.— Não... quieta aí no serviço.Quando foi de madrugada, muito peixe, bom de peixe, bom de pegá peixe. E

aí, eu disse:— Olha, o café prá não esfriá... a espinha...Aí, nós encostamo, ficamo perto assim... o negócio. E a noite inteira lá gemen-

do. Eu não ligava. Aí, eu disse assim:— Afinca visagem.Aí a... que eu disse afinca visagem, um pouco... mais ou menos... foi prá lá e

prá cá, o espinhel foi prá lá e prá cá...— Rapaz, agora vamo deixar o dia clareá prá lutar com esse peixe.Aí, o dia clareou, passei a mão no espinhel e foi prá lá e cheguei lá uma coisa que

contando assim prá senhora, é mentira né? Eurides chegou lá no espinhel e ele foi puxarpara ver se tinha peixe. Quando puxou, percebeu que a linha estava muito pesada. Ficoufeliz porque pensava que seu peixe ainda estava lá. E o espinhel pesava para o fundo epara os lados. Quando ele conseguiu puxar, tinha um peixinho somente.

Agora, a visão que fez essa bandalheira. Quando disse assim:— Afinca visagem!Ela brincou comigo puxando o anzol. Aí, saí e vim embora.Bom, passou-se um tempo. Aí, no inverno, já um cunhado meu vai pescar

peixe-boi. Bem defronte assim (de onde tinha acontecido o caso da visagem com

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Eurides). E aquilo veio... aquele gemido. O gemido veio e veio chegando perto, che-gando perto e quando chegou perto da popa da canoa dele, deu aquele gemido. Aí,disse assim:

— Rapaz, eu não tenho remédio prá dor de estômago, mas se tu quiser tomarcafé, tem café quente aí.

Aí, deu aquela ferrada: xiissp... na cabeça dele. Se espantou, jogou a hastia,meteu o remo e (...) chegou na casa dele... foi caindo... Então, naquela época, tinha aMaria Farias ainda. Chegou aí, trouxeram ele, aquela hora da noite, chegaram de ma-drugada. Veio amarrado, pulava... Aí, chegou aí, ela rezou e ela falou:

— É uma arma (alma)!”Aí, uma colocação que... desde o primeiro lugar, se ficou alguma coisa que

ficou devendo é só pagar que pode ficar limpo!Eurides deixou claro que com visagem não se brinca. Quando aparecer uma, a

gente costuma perguntar se ela precisa de alguma coisa. Se podemos fazer algumacoisa por ela!

Renato dos Santos Ribeiro já viu muita visagem por esse Maicá aí. Ele conta:“Eu saí daqui de casa e ía, seis horas, passando por uma rama de mata, sabe?

Eu sempre fui um cara corajoso, de visagem nunca tive medo porque visagem nãomorde ninguém. Quem mata é o tal do homem, né? Aí, um negócio vinha caindo, elevinha caindo em cima de mim. Aí, só caiu mesmo aquela folha, aquela poeira. O bichoficou engatado. Foi... o homem ficou engatado lá! Aí, eu senti aquele arrepio no cor-po, subiu do meu pé prá cabeça. Aí, que eu fiquei um pouquinho espantado, mas eunão tenho medo e fui falar com ele. Eu fui falar...

— Olha Deus te dê sua salvação. Se tu precisares. Foi o que eu falei. Isso acon-teceu muito.”

***“Tinha um outro lugar chamado Jinitatuba. Também lá morou um homem. Era

conhecido por Argemiro ele. Ele morreu. Aí, os pescadores passaram a pernoitar lá nacasa onde ele morava. Ai, tinha o curral, lá no lugar do curral. Aí, quando era de noite,vinha ele gritando com o gado, prindia o gado... o gado no curral.. Ele lá dentro docurral. Aí, o pescador olhava prá vê quem era... não tinha nada. E ele prendia gado denoite lá. Isso aconteceu muito com muitos pescadores.

Hoje, a gente não vê mais porque a gente já tá mais conscientizado, mais prepa-rado, tem mais fé em Deus. Não tá mais acontecendo. Hoje, muitas vezes, muitas pesso-as sai de casa preparado, já reza. Antigamente não, a gente não tinha essa idéia!”

***“Tem um fogo fantasma que chama... Onde eu moro, lá na várzea, chama-se

Curicas (igarapé do Maicá), tem uma ilha lá na baixa, chamada ilha do Jacurutu. Eu

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moro na ilhas das Curicas. Quando eu tava lá, isso já foi uns vinte anos atrás. Aí,chegou um colega meu e disse:

— Renato, rapaz, nós vimo um currido. Rapaz, tá pegando fogo na ilha doUrubu todinho.

Eu digo:— Mas como?— Acorde, vou te mostrar agora de noite. Porque... vão bora atravessar o rio

prá gente olhá lá, prá tu vê como tá se acabando de fogo ali.Aí, eu fui. Ele me levou, eu atravessei o rio, nós olhamo prá lá num tava mais

pegando, sabe? Só tava aquele resto de cinza caindo. Aí, quando amanheceu o diatava feito como era. Não tava nada queimado!”

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Glossário

Crendices

Miudeza: relativo ao pirarucu; ventrecha, espinhaço e costelas, cabeça.

Panema ou panemice: azar, pé frio, infelicidade na caça ou na pesca, azarado evítima de feitiço.

Tapecuim ou tapicuim: um certo tipo de formiga que faz o ninho de terra parecidocom o do cupim.

Elementos culturais

Os povos indígenas são os antepassados que plantavam, manufaturavam econsumiam a farinha da maniva, do tupi mani’iwa, também conhecida como mandio-ca-brava ou mandioca d’água. Assim como seus antepassados, os povos tradiconaisna Amazônia também utilizam a farinha de maniva como alimento básico de sua dietaalimentar. Uma das comidas que fazem é o chibé, mistura da farinha com água e àsvezes com açúcar. Retiram a raiz da maniva e a deixam de molho na água em umburaco na terra forrado e coberto de folhas especiais. Depois descascam, ralam para,em seguida, espremem a massa no tipiti, tecido de tala ou fibra, cilíndrico e longo comaberturas na ponta. Colocam a massa da madioca dentro e espremem-na até sair todaa água. Esta água é chamada de tucupi, com o qual se faz comidas típicas no Pará, otacacá e o pato no tucupi. Os subprodutos são, além do tucupi, a farinha de tapioca(que fazem a tapioquinha e três tipos de beiju, a goma que é utilizada no tacacá e acroeira (restos da mandica que serve para fazer mingau e biscoitos).

Após sair do tipiti, a massa molhada é colocada na gareira, uma barca de ma-deira. Usam-se também a barca do inajazeiro grande. Essa é a casca do cacho defrutros do inajá, uma palmeira típica amazônica.

As gareiras, em geral, são tiradas do caule da Castanha do Brasil. Depois deseca, são peneiradas para tirar o graúdo. As peneiras são tecidas de talas e fibras(como o arumã; espécie de cipó dividido por canudos longos não muito grossos deonde se tira a fibra). Enfim, são levadas ao forno para serem torradas. Uma grande

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chapa de madeira acondicionada a uma armação de barro com uma boca para alenha (esta pode ser carregada nos jamaxins, que é uma dessas cestas abauloadascom uma abertura em um dos lados). Essas aberturas são fechadas com tiras dacasca da árvore. Com ela também se amarram os peixes em cambada ou na enfiadapara a venda. Nas cambadas ou enfiadas veêm entre dez e quinze peixes, varia como tamanho. Os jamaxins são carregados nas costas ou na testa. Os povos indígenasusavam e ainda o usam muito. É visível a perda desse elemento cultural nas popula-ções tradicionais.

Jápá: tecido de palha muito usado ainda nas moradias amazônidas. São utilizadoscomo portas, janelas e coberturas.

Jirau: armação de madeira utilizada para apoiar panelas, flores; ou para edificar ascasas na várzea. Cama de madeira.

Tecido ou teçume é a tecelagem de tramas oriundas da manufatura de palha e/outalas.

Terçado: facão grande; machete ou faca de mato.

Tolda é a cobertura das canoas e barcos. No passado era feita de japá.

Paneiro: cesto de vários tamanhos feitos de talas que servem para armazenar ali-mentos e coisas afins.

Sororoca: palha de uma palmeira chamada popularmente de pariri. Serve de enchi-mento entre as palhas que formam o japá que será utilizado como tolda.

Frutas, árvores e capim

Ananizal: área cheia de ananás (abacaxi selvagem).

Aninga: árvoré típica da várzea.

Aningal é o lugar onde tem muita aninga.

Bacuri: uma fruta muito azeda.

Cuieira: árvore típica da várzea; seu fruto assume diversas formas e serve comoprato ou tigela (cuia de tacacá) e artesanatos.

Mungubeira também denominado pelos povos tradicionais de mugumbeira: árvo-re típica da várzea.

Muriruzal (muriruzar) ou mureru vem da palavra maruré: capim natural da várzea.

Matupá, também falado de matopá; agrupamento de capim (canarana, marurés eoutras plantas aquáticas) partido que encosta à beira dos rios ou lagos. Move-sedescendo com as enchentes.

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Tauari: árvore típica da região. Dela de tira uma fibra que seve para enrolar o tabacoassim como para fazer cambada ou defumação.

Medidas

Panos: mediada popular usada na medição das malhadeiras; um pano é correspon-dente a cem metros de comprimento por três metros de altura

Uma braça: em torno de um metro e meio

Um palmo: comumente falado de palma ou parmo(a): a medida referente à distân-cia entre o dedo polegar e o mínimo

Nome de comunidade

Piraquara: também chamada de Piracuara: nome de uma comunidade no LagoGrande do Curuai

Outros

Aperriado no texto é sinônimo de amedrontado, desesperado.

Baixão: margens do rio no sentido em que as águas descem.

Baquiado é uma referência ao pescador que está fraco, sem alimentação.

Burizal: denominação popular para buritizal; área cheia da palmeira buriti.

Boroca: saco de carregar a roupa para a pescaria.

Colônia: é uma área de terra boa para o plantio. Ficam localizadas em terras altas,distantes das margens dos rios onde os povos tradicionais moram.

Curuatá: tipo de bromélia parecida com o curauá, mas com espinhos .

Escumero: um monte de espumas.

Estrupício: estrondo na água seguido de um grande barulho.

Farisca vem de faísca; uma centelha de fogo.

Fazendeiros da pesca: administradores de sistemas de pesca manejados.

Gado branco é uma denominação dada a qualquer raça bovina.

Gito(a) ou gitinho(a): denominação popular para pequeno(a); pequenininho(a).

Grelá vem do verbo grelar que significa brotar, nascer.

Ilharga: flancos, beiras.

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Ilharguinha: pertinho, juntinho.

(...) local que ninguém entra por ser muito feio (...): feio, neste caso, foi usado comosinônimo de matagal fechado, difícil acesso em decorrência do entremeado de ca-pins, cipós, árvores, espinhos.

Marombada: é onde se coloca a criação na várzea; assoalho da casa típica da vár-zea que sobe conforme a cheia do rio.

Molhe: no texto é uma referência popular para o fumo de rolo

Muraúba: espécie de árvore da terra firme

Pirantão: capim agrupado numa área onde também tem árvores em seu interior

Purrudo: no linguajar caboclo é dado para tudo que é forte e grande

(...) que quando eu me entendi (...): deixou de ser criança para assumir sua própriavida

Quenga: mulher da vida, prostituta.

Sezão: nome popular da malária.

(...) Quem agüentou o pepino (...): pepino é sinônimo de problema.

(...) _ Rapaz, pega lá a canoa que eu tô aqui quase... sujo aqui (...), quis dizer que detanto medo já tinha “quase” defecado na calça.

Taberna: entreposto de revenda ou mercearia.

Tapirauara é a denominação de uma onça. Na lenda, ela tem as patas traseirasiguais aos do burro.

Tapiri: uma casa rústica coberta de palha na mato, acampamento.

Velhaco(a) no discurso falado e popular viaco .

Sobre pesca

(...) Aí, eu... teipei dentro d’água (...): caiu dentro d’água.

Agasalhá ou agasalhar: sinônimo popular para guardar o peixe.

Aparpado, , , , , parpei, , , , , aparpá vem do verbo apalpar que se refere a quando o pescadorcoloca o arpão no peixe e força-o para arpoá-lo.

Arrastão: tipo de malhadeira que pesca de arrasto no rio.

Arrecua vem do verbo recuar ou de arrecuas (andar para trás).

Bajara: canoas motorizadas.

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Bubuia: é um arreio de pesca muito grande, uma malhadeira, que é solta no meio dorio. A água deve estar baixa para esse tipo de arreio. A canoa é usada somente parafazer o cerco. Boboiando ou bubuiando é correspondente à bubuia.

Buiar e buiando vem do verbo boiar. No caso do pirarucu, quando usam o verboreferem-se ao ato do peixe vir à tona para respirar.

Cacete de Boteiro: um pau cilíndrico que serve para matar o peixe.

Cará, , , , , acaratinga e cará barrasco são peixes típicos da região.

Casco: pequeno bote .

Cercadeira: uma malhadeira própria para pegar o pirarucu.

Charutinho: é um peixe pequeno muito comum nos rios amazônicos.

(...) ele encapa, fica uma bola, maior que uma xícara dessa (...): é o macho quemchoca as ovas do pirarucu agrupando-as numa bola.

Embiara são pedaços do peixe ou carne.

Espera: tempo de aguardar o peixe chegar.

Estradinhas: passagens ou corta-caminhos em lagos ou no igapó.

Estrala éo ato do arpão de fisga bater na escama do pirarucu.

Geleiras: são barcos pesqueiros que levam canoas ou bajaras. Os pescadores(as) saemnelas para jogar a malhadeira e pegar os peixes que os trazem para o barco deixando-os no gelo. Daí, funcionarem como coletoras.

(...) ela tá furando os acordos, né? (...): furar nesse caso quer dizer violar, desrespeitaras leis.

(...) Já deita aquela escuma (...): deixa aquela espuma.

Invasão: esse termo é usado quando se referem a pescadores que não fazem partedo lago de referência e que estão usando arreios proibidos, número de canoas oubajaras acima do permitido pelo Conselho de Pesca. Enfim, que não respeitam aportaria ou acordos comunitários de determinados pontos pesqueiros.

João-de-pau: pedaço de pau usado na popa da canoa como leme.

Lambada: é quando o peixe bate com o rabo n’água.

Lanterna de carboreto: instrumento de metal com uma pedra que quando misturadana água vira fogo, serve para iluminar na pescaria

Mafurá: peixe de couro.

Mandií: peixe com três esporões afiados.

Mica é um tipo de linha industrial que tece a malhadeira.

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Amazônia: Pescadores contam histórias

Moirão: vara que serve para segurar a malhadeira.

Mutá, muitá ou mutar lugar onde o pescador se aloja para captura o pirarucu sen-tado no galho do pau. Tanto pode ser entre os galhos ou numa armação de pausque ele mesmo constrói.

Puçanga são os feitiços que atraem ou afastam.

Talhada: maneira correta de tecer a rede ou malhadeira.

O Proeiro ou proero é o pescador(a), aquele que lança o arpão amarrado à haste ouhastia, uma vara feita de pau d’árco ou ipê que serve para armar o arpão e picar opeixe! O piloto é quem rema na popa da canoa. Um grande segredo, dizem ospescadores(as), é saber tecer a linha no arpão de ferro, que eles denominam estruvaro arpão, muito usado na pesca de pirarucu no galho do pau ou na fisga. Ospescadores(as) pescam de arco e flecha nas águas límpidas dos igapó (quando aágua adentra a floresta, também chamada de floresta alagada).

Pau-de-Carga: pedaço de pau que serve para carregar coisas atadas em cada pon-ta; balanciar o peso.

(...) peixe vira de folha (...): quer dizer que o peixe se mostra inteiro para o pescadore ele não o captura.

(...) picado no galho do pau (...): uma das formas de se pescar o pirarucu no igapó(na estação das chuvas o rio sobe e adentra na floresta. Com ele os peixes tambémentram pelos igapós tornando presas fáceis para esse tipo de pesca.). O pescadorsabe onde o peixe bóia e lá escolhe uma árvore para fixar o mutar.

Picar: ato de fisgar o peixe com a zagaia ou com o arpão.

Pitiú: na região é o mal cheiro do peixe principalmente.

(...) Põe bago por bago de farinha (...): quer dizer que o peixe desova de ova em ovae não é redonda, é alongada.

Porongo ou poronga: um tipo de lamparina.

Posta, banda ou manta: cada parte que se tira do pirarucu, do rabo ao início dacabeça.

Puraqué: peixe elétrico da Amazônia.

Quepei: barulho forte do peixe batendo n’água.

(...) rimpa o rabo (...): no texto é sinônimo do ato do peixe bater o rabo na superfícieda terra.

Raia no linguajar popular vem de arraia.

Rodela da canoa: a proa da canoa, a frente.

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(...) saia no reboque da linha destrançando até o peixe chegá no limpo (...): em umadas pontas o peixe arpoado e na outra o pescador que adentrava na água seguran-do seu peixe arpoado, salvando a linha de se enrolar nos capins e paus até o peixesair para o limpo dentro d’água.

Sanefa: também denominada de saneva; lona de plástico que serve para fechar aslaterais do barco.

Sarlinga é a denominação popular para carlinda: tábua que serve para apoiar omastro da canoa.

Sarro do peixe: sangue coagulado que fica na barrigada do peixe. O sarro deixe umgosto amargo na carne.

(...) Suspirá (...) vem de suspirar. No texto, é sinônimo de respirar.

(...) Tão boboiando, batendo capim (...): vem do arreio bubuia, bater o capim paraespantar os peixes e capturá-los.

Trançar: denominação popular dada ao ato do peixe arpoado correr e a linha enros-car por entre o capim ou o mato no fundo do lago ou rio.

Uaiú ou iaiú é o nome dado pelos ribeirinhos para o fenômeno da friagem (inversãotérmica) na Amazônia.

(...) uma capoeira muito feia (...): capoeira é o termo usado pelos povos tradicionaispara aquela área que já sofreu a ação devastadora do ser humano. No lugar daantiga vegetação brota muito mato, espinho, cipós formando uma mata densa ebaixa. Quando alaga o pescador vai buscar seu peixe nesses lugares.

Varejão ou vara: pedaço de pau cilíndrico e longo usado para empurrar a canoa.

(...) vinte palma emendado (...): referência a várias redes de vinte palmos emenda-das umas nas outras.

Zagaia: lança curta de arremesso, muito usada pelos povos indígenas e tradicionaispara capturar peixes.

Verbos

(...) Breia (...): cobrir ou revestir de breu ou de outra coisa qualquer.

(...) Dispilico (...): na linguagem popular local é sinônimo de soltar ou tirar a pele dealguma coisa.

(...) Disporamo (...) no linguajar local é sinônimo de arrancar estacas; tirar arame.

(...) migô (...) no discurso falado popular migar; esfarelar, esmigalhar o tabaco.

(...) malina (...) no popular vem de maligna. Malinar é fazer travessuras.

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Amazônia: Pescadores contam histórias

(...) manerava (...) na linguagem popular falada é sinônimo de diminuir a velocidadeou de curiosidade

(...)muquiarem (...) (moquia): secar ou defumar o peixe numa armação de varasroliças

(...) pilotiar (...) no linguajar popular é remar, pilotar a canoa

Salmura ou sarmura: denominação popular para salmora

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AAmazônia, pescadores contam histórias é um conjunto de depoimentos

colhidos por Dorenilce Maria Rodrigues Galúcio, pescadora e militante do

movimento de pescadores da região de Santarém. Dora, como é chamada pelos

amigos, tem uma extensa folha de serviços prestados à luta pela preservação de

lagos, pela cidadania e melhoria das condições de vida dos pescadores

artesanais. Participou da direção da Colônia de Pescadores Z-20

(2001-2003) e atualmente preside o Conselho Fiscal do Movimento dos

Pescadores do Baixo Amazonas (Mopebam). A seqüência de depoimentos

organizados pela autora forma um panorama da história tecida no cotidiano

das famílias de pescadores, cujas crenças, sonhos, decepções e esperanças são

reproduzidas na relação com o espaço e o tempo que caracterizam as áreas de

várzea. A história, todavia, narrada na linguagem do homem ribeirinho,

delineando seu modo de organização e interação com a natureza é também

a expressão de sua identidade cultural. Nesse sentido, o presente livro é uma

valiosa contribuição na reafirmação dos pescadores e pescadoras como sujeitos

de sua própria história. É, portanto, uma obra em sintonia com a filosofia

do ProVárzea, uma vez que valoriza os moradores da várzea e os esforços

de preservação dos recursos naturais.