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  • 7/21/2019 Alteridade - Fr. Beto

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    ALTERIDADE, SUBJETIVIDADE E GENEROSIDADE

    Frei Betto

    A dificuldade, dentro da tica neoliberal, trabalhar a dimenso da

    alteridade. O que alteridade? ser capaz de apreender o outro na plenitude dasua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, da sua diferena. Quanto menosalteridade existe nas relaes pessoais e sociais, mais conflitos ocorrem.

    A nossa tendncia colonizar o outro, ou partir do princpio de que eu sei eensino para ele. Ele no sabe. Eu sei melhor e sei mais do que ele. Toda a estruturado ensino no Brasil, criticada pelo professor Paulo Freire, fundada nessaconcepo. O professor ensina e o aluno aprende. evidente que ns sabemosalgumas coisas e, aqueles que no foram escola, sabem outras tantas, e graas aessa complementao vivemos em sociedade.

    Possivelmente, a cozinheira do meu convento sabe muitas coisas que nosei, e eu sei muitas coisas que ela no sabe. Mas se pesar na balana, e perguntar

    quem pode prescindir do conhecimento do outro, tenho certeza de que no possoprescindir da culinria dela para sobreviver. E ela, seguramente, pode prescindir daminha filosofia e teologia para sobreviver.

    Numa sociedade de tamanho apartheidsocial como a brasileira, predomina aconcepo de que aqueles que fazem servio braal no sabem. No entanto, nsque fomos formados como anjos barrocos da Bahia e de Minas, que s tm cabeae no tm corpo, no sabemos o que fazer das mos. Passamos anos na escola,samos com Ph.D., porm no sabemos cozinhar, costurar, trocar um equipamentoeltrico em casa, identificar o defeito do automvel... e nos consideramos eruditos.E o que pior, no temos equilbrio emocional para lidar com as relaes dealteridade. Da por que, agora, substituram o Q.I. para o Q.E., o Quociente

    Intelectual para o Quociente Emocional. Por qu? Porque as empresas estoconstatando que h, entre seus altos funcionrios, uns menines infantilizados, queno conseguem lidar com o conflito, discutir com o colega de trabalho, receber umaadvertncia do chefe e, muito menos, fazer uma crtica ao chefe.

    Bem, nem precisamos falar de empresa. Basta conferir na relao entrecasais. Haja reaes infantis...

    Quem dera que fosse levada prtica aquela idia de, pelo menos a cadatrs meses, cada setor de trabalho da empresa fazer uma avaliao, dentro dametodologia de crtica e autocrtica. E que ningum ficasse isento dessa avaliao.Como Jesus um dia fez, ao reunir um grupo dos doze e perguntar: O que o povopensa de mim? E depois acrescentou: E o que vocs pensam de mim?

    Quem de ns capaz disso? Sempre acho que o outro pensa de mim aquiloque eu gostaria que pensasse. E morro de medo de ele falar aquilo que realmentepensa. Por isso mantenho o meu ego aprumado, pois, se ele falar, verei no olhardele uma imagem que no aquela que eu gostaria de projetar.

    A questo da alteridade sria. No temos mais alteridade com a natureza.Essa uma perda irreversvel da nossa civilizao. No sei se um dia serresgatada, duvido muito. A nossa relao com a natureza de sujeito para objeto.S temos relao de sujeito a sujeito, como o ndio tem, at os cinco anos de idade.Veja o exemplo de uma criana lidando com um cachorro bravo. Ela monta nocachorro como se fosse cavalo, enfia a mo na boca, sem risco, porque o cachorro

    percebe que a relao de alteridade. de sujeito para sujeito.

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    A partir dos cinco anos, perdemos a alteridade frente ao animal e elepercebe. A relao passa a ser de sujeito para objeto. O ndio no. Ele mantm coma rvore, o rio, a mata, uma relao de sujeitado para sujeito. Da a dificuldade dostelogos cristos de entenderem. "Ah, isso animismo, isso superstio". No,isso relao de alteridade. Ou seja, o outro to sagrado e dotado de dignidade e

    direitos quanto eu.Eis a dificuldade que temos de entender o outro na sua dimenso. Mesmonas filosofias progressistas, h sempre algum marginalizado. O marxismo, porexemplo, convoca a classe trabalhadora como sujeito histrico, mas no os ndios,no os desempregados, que no sculo passado eram chamados delumpemproletariado. Em todas as culturas h sempre um setor secundrio,considerado objeto, no sujeito histrico.

    Quem, a meu ver, na cultura ocidental, melhor enfatizou a radical dignidadede cada ser humano, inclusive a sacralidade, foi Jesus. O sujeito pode ser paraltico,cego, imbecil, intil, pecador, mas ele templo vivo de Deus, imagem esemelhana de Deus. Isso uma herana da tradio hebraica. Todo ser humano,

    dentro da perspectiva judaica ou crist, dotado de dignidade pelo simples fato deser vivo. No s o ser humano, todo o Universo. Paulo, na epstola aos romanos,assinala: Todo a Criao geme em dores de parto por sua redeno". Os catlicosrezam no Credo "creio na ressurreio da carne". Hlio Pellegrino dizia que no hnada mais revolucionrio do que proclamar a ressurreio da carne. Portanto, aressurreio no do esprito. A carne representa a materialidade do Universo.

    No podemos, pois, partir do princpio de que isso aqui o fim da histria,como quer Fukuyama, idelogo do neoliberalismo. A nossa humanidade muitorecente, neste Universo de 15 bilhes de anos. H apenas 2 milhes de anosapareceu o ser humano. absurdo achar que esse modelo neoliberal de sociedade definitivo. Basta dizer que um fator to natural e elementar, como a necessidadeanimal de comer, ainda privilgio entre os 6 bilhes de habitantes do planeta.Sobretudo no Brasil. Aqui o escndalo maior. Estamos entrando no sculo XXI,convivendo com a fome num pas que tem potencial de trs colheitas por ano. Oseuropeus esto vindo plantar uva em Pernambuco, porque em nenhum lugar daEuropa d, como ali, duas ou trs safras de uva por ano. Somos o maior produtormundial de frutas, o sexto produtor mundial de alimentos, e possivelmente o nicopas do planeta, com dimenso continental, sem nenhuma catstrofe natural. Notemos furaco, ciclone, maremoto, vulco ou deserto. Nosso nico problema queno temos governo. Por culpa nossa, que votamos mal.

    Nossas concepes ticas so forjadas por um processo social onde o

    capital, um bem finito, tem mais prioridade do que os bens infinitos - a dignidade, atica, a liberdade, a paz, a experincia espiritual etc.Estamos perdendo a vida interior, e entrando em outra anomalia, a hipertrofia

    do olhar e a atrofia do escutar. Estamos perdendo a experincia do silncio. A perdada experincia do silncio a perda da possibilidade de encontro consigo mesmo.Quanto menos apreenso tenho do meu ser, mais dependente fico do meu ter. Aponto de a relao ser humano-mercadoria-ser humano se inverter. Passa a sermercadoria-ser humano-mercadoria. Se chego na sua casa de BMW, tenho umvalor A. Se chego de nibus, eu tenho um valor Z. Sou a mesma pessoa, mas amercadoria que reveste o meu ser humano passa a ter mais valor do que eu, epassa a me imprimir valor. a sndrome da grife. O bem que eu porto que

    imprime valor minha qualidade como ser humano.

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    Dentro desse quadro, o desafio que se coloca para ns como transformaressas cinco instituies pilares da sociedade em que vivemos: famlia, escola,Estado (o espao do poder pblico, da administrao pblica), Igreja (os espaosreligiosos) e trabalho. Como torn-los comunidades de resgate da cidadania e deexerccio da alteridade democrtica? O desafio transformar essas instituies

    naquilo que elas deveriam ser sempre: comunidades. E comunidades de alteridade.Aqui entra a perspectiva da generosidade. S existe generosidade na medidaem que percebo o outro como outro e a diferena do outro em relao a mim. Entosou capaz de entrar em relao com ele pela nica via possvel porque, se tiraressa via, caio no colonialismo, vou querer ser como ele ou que ele seja como sou -a via do amor, se quisermos usar uma expresso evanglica; a via do respeito, sequisermos usar uma expresso tica; a via do reconhecimento dos seus direitos, sequisermos usar uma expresso jurdica; a via do resgate do realce da sua dignidadecomo ser humano, se quisermos usar uma expresso moral. Ou seja, isso supe avia mais curta da comunicao humana, que o dilogo e a capacidade deentender o outro a partir da sua experincia de vida e da sua interioridade.

    A nossa identidade construda pela nossa histria. A minha histria aminha histria, e ningum ter uma histria idntica minha. E isso que faz aminha identidade.

    Quando eu estava preso na ditadura, vivi uma experincia pela qual nuncapassei antes nem depois. Foi to marcante, que nunca mais esqueci, e talvez issome faa entender um pouco melhor os povos indgenas hoje, porque eles, commuita freqncia, vivem essa experincia.

    Fiquei algumas semanas privado da possibilidade de ver o meu rosto numespelho. uma experincia terrvel: no se ver no espelho. E cheguei a umaconcluso que me pareceu absurda, mas que pode ser constatvel por qualquerpessoa. Nenhum de ns, por mais que se olhe no espelho ao longo da vida, guardaa memria das suas feies. Sei como voc porque estou olhando-o agora, masvoc no sabe como so as suas feies, a no ser quando se olha no espelho. como se a natureza quisesse nos dizer que fomos feitos para olhar o outro, e no asi prprio.

    Como os povos indgenas tm pouca relao com o espelho, possivelmentetm essa possibilidade de desenvolver o olhar para o outro, mais do que para simesmo. Isso deve ter alguma influncia. uma experincia emprica minha. Masque me levou a pensar o seguinte: Como me espelho no olhar do outro? Como ooutro se espelha no meu olhar? S posso saber isso pelo caminho mais curto - odilogo, que a possibilidade de expressarmos o que somos e sentimos, mais do

    que aquilo que pensamos. E, atravs dessa expresso, comearmos a apreender ariqueza do grupo social, da comunidade que ns formamos.

    ___________________________________________________________________Frei Betto escritor, autor do romance sobre excluso social "Hotel Brasil" (Atica),entre outros livros.

    REFERNCIA

    FREI BETTO. Alteridade, Subjetividade e Generosidade. Frei Betto. 2010.

    Disponvel em: Acessoem: 03 fev. 2011.