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III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS) DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE ALTERIDADE E SUJIDADE ALÉM DAS PALAVRAS: IDENTIDADES SILENCIADAS EM PRÁTICAS SOCIAIS PÓS-MODERNAS Julia Oliveira Osorio Marques 1 Sendo dinâmicas, heterogêneas e fragmentadas, as identidades do sujeito pós- moderno encontram-se em constante processo de mudança (HALL, 2006). Logo, identidades não são fixas, tampouco são determinantes de padrões comportamentais; ao contrário, elas são resultados transitórios das ações humanas. Pode-se dizer, então, que a identidade está relacionada à performance, pois o sujeito age para ser; ele não é antes de agir (BUTLER, 1990). A partir disto, e considerando-se que a diferença, – o outro, objeto externo ao sujeito – tende a ser visto como sujidade (BAUMAN, 1998), as práticas sociais estão permeadas de ações que podem desencadear o silenciamento. Isto porque o jogo de forças de poder exercido nas mais diversas situações de interação social (BORDIEU, 2009) potencialmente acarreta este processo de silenciamento e exclusão do outro. Além disso, por ter uma ideia de unidade essencial entre si mesmo e o outro, o ser humano tende a imaginar que o outro tem a mesma perspectiva que a sua (BAUMAN, 1998), e que as identidades são semelhantes. Diante disso, este trabalho visa explorar a questão da alteridade enquanto sujeira nas relações sociais pós-modernas, tendo em vista que o silenciamento de identidades julgadas como sujas está relacionado ao ato de preconceito e exclusão social. O silenciamento encontra-se, portanto, além das palavras enunciadas e dos instantes de silêncio; ele aqui é compreendido como o ato de silenciar, resultante de se tomar a palavra, tirar a palavra do outro, obrigá-lo a dizer, fazê-lo calar, entre outros (ORLANDI, 2010). Desta forma, ao deparar-se com a alteridade, muitas vezes o ser humano necessita enfrentar o pré-julgamento inadequado do outro, o que pode levar à violência simbólica (BORDIEU, 2009), ao silenciamento e à exclusão. A confrontação da imagem do outro com a própria pode trazer à tona características pouco toleradas de si mesmo, o que muitas vezes incomoda, pois desacomoda a ilusão humana de que se pode sentir o mesmo que o outro quando nas mesmas circunstâncias (BAUMAN, 1998). Sendo assim, o estranho, o estrangeiro, o sujo, o diferente, o marginal, ou simplesmente, o outro, nem sempre é bem aceito e como consequência, identidades são silenciadas. A pureza está relacionada à apropriação do local em que se encontra o objeto – o sujeito – julgado como puro (BAUMAN, 1998). E a sujidade seria este mesmo objeto fora do lugar considerado como adequado. Como consequência, o puro está relacionado à ordem, e o sujo, essencialmente à desordem. Além disso, tendo como base os estudos da língua em uso, na concretude das interações sociais (BAKHTIN, 1990), e tendo como pressuposto o 1 Mestranda no UniRitter.

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III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS)DILEMAS E DESAFIOS NA CONTEMPORANEIDADE

ALTERIDADE E SUJIDADE ALÉM DAS PALAVRAS: IDENTIDADES SILENCIADAS EM PRÁTICAS SOCIAIS PÓS-MODERNAS

Julia Oliveira Osorio Marques1

Sendo dinâmicas, heterogêneas e fragmentadas, as identidades do sujeito pós-

moderno encontram-se em constante processo de mudança (HALL, 2006). Logo,

identidades não são fixas, tampouco são determinantes de padrões comportamentais; ao

contrário, elas são resultados transitórios das ações humanas. Pode-se dizer, então, que

a identidade está relacionada à performance, pois o sujeito age para ser; ele não é antes

de agir (BUTLER, 1990). A partir disto, e considerando-se que a diferença, – o outro,

objeto externo ao sujeito – tende a ser visto como sujidade (BAUMAN, 1998), as práticas

sociais estão permeadas de ações que podem desencadear o silenciamento. Isto porque o

jogo de forças de poder exercido nas mais diversas situações de interação social

(BORDIEU, 2009) potencialmente acarreta este processo de silenciamento e exclusão do

outro. Além disso, por ter uma ideia de unidade essencial entre si mesmo e o outro, o ser

humano tende a imaginar que o outro tem a mesma perspectiva que a sua (BAUMAN,

1998), e que as identidades são semelhantes. Diante disso, este trabalho visa explorar a

questão da alteridade enquanto sujeira nas relações sociais pós-modernas, tendo em

vista que o silenciamento de identidades julgadas como sujas está relacionado ao ato de

preconceito e exclusão social. O silenciamento encontra-se, portanto, além das palavras

enunciadas e dos instantes de silêncio; ele aqui é compreendido como o ato de silenciar,

resultante de se tomar a palavra, tirar a palavra do outro, obrigá-lo a dizer, fazê-lo calar,

entre outros (ORLANDI, 2010).

Desta forma, ao deparar-se com a alteridade, muitas vezes o ser humano

necessita enfrentar o pré-julgamento inadequado do outro, o que pode levar à violência

simbólica (BORDIEU, 2009), ao silenciamento e à exclusão. A confrontação da imagem

do outro com a própria pode trazer à tona características pouco toleradas de si mesmo, o

que muitas vezes incomoda, pois desacomoda a ilusão humana de que se pode sentir o

mesmo que o outro quando nas mesmas circunstâncias (BAUMAN, 1998). Sendo assim, o

estranho, o estrangeiro, o sujo, o diferente, o marginal, ou simplesmente, o outro, nem

sempre é bem aceito e como consequência, identidades são silenciadas. A pureza está

relacionada à apropriação do local em que se encontra o objeto – o sujeito – julgado

como puro (BAUMAN, 1998). E a sujidade seria este mesmo objeto fora do lugar

considerado como adequado. Como consequência, o puro está relacionado à ordem, e o

sujo, essencialmente à desordem. Além disso, tendo como base os estudos da língua em

uso, na concretude das interações sociais (BAKHTIN, 1990), e tendo como pressuposto o

1 Mestranda no UniRitter.

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fato de que a língua simboliza a realidade cultural (KRAMSCH, 1998), este trabalho busca

fundamentalmente trazer à tona a questão de identidades silenciadas em práticas sociais

pós-modernas em que o outro é visto como sujidade.

Para isso, inicialmente seria relevante explorar de forma sucinta a questão da

identidade a partir do teórico jamaicano Stuart Hall, o qual possui diversos estudos

referentes a identidade cultural do sujeito pós-moderno. O autor (2006, p. 25) traça uma

linha histórica com relação ao homem no tocante a sua identidade. Ele explica que a

modernidade surge entre a época do Humanismo Renascentista do século XVI, quando o

homem era o centro do Universo, e a do Iluminismo do século XVIII, a qual se baseava

na imagem do homem racional e científico. A partir de Descartes, estabeleceu-se uma

separação paradoxal entre matéria e mente. Assim, o “sujeito cartesiano” seria aquele

movido pela premissa “penso, logo existo”, “concepção do sujeito racional e consciente,

situado no centro do conhecimento (HALL, 2006, p. 26). Nesse sentido, percebe-se que a

noção de sujeito já teve diferentes concepções precedentes à pós-modernidade, sendo

que em períodos anteriores ao Humanismo, como a Idade Média, a vida individual

subordinada-se à da coletividade. Entretanto, em períodos posteriores ao Iluminismo, em

que a identidade era vista enquanto algo fixo e imutável, houve o processo de

descentralização do sujeito (HALL, 2006, p. 46), o qual resultou em identidades

fragmentadas, abertas, inacabadas e contraditórias.

Assim, Hall (2006, p. 10) classifica três tipos de sujeitos quanto a sua identidade

cultural: o sujeito do Iluminismo; o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. O

primeiro refere-se a um sujeito centrado, unificado, o qual possui um “centro” , um

núcleo de característica fixa e imutável. Já o segundo refere-se a um sujeito ainda

nuclear, porém, com uma essência “negociável”. Este sujeito, o sociológico, é mais

aberto a mudanças identitárias. E por fim, o sujeito pós-moderno é aquele cuja

identidade se caracteriza pela constante mudança. Aqui nem mais se fala em identidade,

mas sim em identidades (no plural) ou identificações. A partir dessa concepção, a ideia

de uma “identidade plenamente unificada, completa e segura” pertence ao mundo das

fantasias (HALL, 2006, p. 13).

Tendo como pressuposto que o sujeito pós-moderno já não se encaixa em uma

estrutura fixa e sua identidade é fragmentada, aberta e dinâmica, pode-se dizer que ela

está relacionada a noção de performance ao invés de posse. Ou seja, identidades são

resultados temporários das nossas ações e não algo que possuímos. Em seus estudos de

gênero social, a filósofa Judith Butler (1990, p. 33) explica que gênero é performativo, e

pode ser entendido como um “constituinte da identidade que ele pretende ser”. Ela traz à

tona a questão do feminino e masculino como características que não são propriedade

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nossa. Na verdade são “efeitos que produzimos por meio das coisas específicas que

fazemos” (Butler apud Cameron, 2010, p. 271). Portanto, pode-se dizer que nós somos

porque agimos e não agimos porque somos, seja em termos de gênero social ou em

identidade num sentido mais amplo.

Butler (apud Cameron, 1998) afirma que assim como identidade, gênero é

performativo. Ou seja, masculino ou feminino não é o quê somos, nem características

que possuímos, mas efeitos que produzimos baseados no modo como agimos. Nas

palavras da autora:

tornar-se uma mulher (ou um homem) não é algo que se atinge de uma vez por todas em algum estágio precoce da vida. Gênero social tem que ser constantemente reafirmado e publicamente exposto através da performance de repetidos atos específicos de acordo com as normas culturais as quais definem masculinidade e feminilidade. (BUTLER, apud CAMERON, 1998, p. 271)2

Essa forma de compreender gênero social reconhece que existe instabilidade no

que se refere às identidades de gênero. Ou seja, homens e mulheres não estão pré-

programados para repetir um comportamento considerado apropriado ao seu gênero

social pelo resto das suas vidas. Butler (apud Cameron, 1998, p. 272) comenta que,

ainda que por vezes haja um certo custo social, os indivíduos são agentes conscientes

que podem se engajar em atos de transgressão, subversão e resistência para com as

esperadas normas de conduta social com relação ao gênero. Além disso, a autora afirma

que as pessoas desempenham gênero social de forma diferente em contextos distintos e

muitas vezes agem de forma tal que seria considerada como pertencente ao outro

gênero. A partir disso, pode-se concluir que do mesmo modo que os gêneros sociais, as

identidades do sujeito pós-moderno também se caracterizam pelo potencial engajamento

em atos de transgressão, subversão e resistência. E não menos importante, as pessoas

também desempenham identificações distintas de acordo com o contexto em que estão

inseridas. Aqueles cujas performances identitárias não se encaixam nas normais culturais

esperadas por uma comunidade, podem ser, da mesma forma, silenciados e excluídos.

Se as identidades são dinâmicas e mutáveis, e se essa característica faz parte do

sujeito atual pós-moderno, parece contraditório pensar que a aceitação da diversidade

nem sempre ocorre, já que o quê as pessoas têm em comum é justamente o fato de

desempenharem identificações diversas e mutáveis continuamente. A questão é que, em

geral, não nos damos conta disso. Segundo Bauman (1998, p. 18), essa não aceitação da

2 “(…) ‘becoming a woman’ (or a man) is not something you accomplish once and for all at an early stage of life. Gender has constantly to be reaffirmed and publicly displayed by repeatedly performing particular acts in accordance with the cultural norms (…) which define ‘masculinity’ and ‘femininity’.” (Tradução da própria autora)

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diversidade é decorrente do fato de que tendemos a acreditar que olhamos para o mundo

ao nosso redor a partir de uma mesma – e única – perspectiva. Além disso, o autor

polonês afirma que tendemos a crer na “permutabilidade dos pontos de vista” (1998, p.

18), que seria a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro e sentirmos e virmos

exatamente o mesmo que a outra pessoa sente e vê, havendo uma ideia de “unidade

essencial entre o mim e o outro” (BAUMAN, 1998, p. 18). Esse tipo de fantasia humana,

onde extremos opostos competem e são excludentes entre si, são típicos da infância,

mas muitas vezes permanecem vivos na idade adulta e se perpetuam no imaginário

devido a uma certa segurança e conforto psicológicos que o conhecido traz. Acreditamos

“que as nossas experiências são típicas” (1998, p. 17) e que portanto, quem quer que

olhe para o objeto “lá fora” vê o mesmo que nós. Assim, não é preciso lidar com o

diferente, com o outro, com o desconhecido, afinal “somos uma unidade”. Entretanto, a

confrontação da imagem do outro com a própria, que ocorre nas situações de interação

social por exemplo, pode trazer à tona características pouco toleradas de si mesmo, o

que muitas vezes incomoda, pois desconstrói a crença de que se pode sentir o mesmo

que o outro quando as circunstâncias são as mesmas (BAUMAN, 1998, p. 18). Aceitar a

diversidade pode ser, portanto, algo difícil, pois lidar com a alteridade implica maturidade

e abertura para olhar para si mesmo e para o outro de modo mais flexível e desprovido

de julgamentos e ideias de pertencimento. Em suma, significa ter que desconstruir a

fantasia de unidade essencial entre as pessoas.

Partindo-se do pressuposto de que essa fantasia predomina entre as pessoas,

Bauman (1998) afirma que o sujeito externo ao “eu” – o outro – sendo este diferente de

mim, pode ser encarado como “sujo”, que nada mais é do que aquele que está “fora do

lugar” (1998, p. 14). O autor contrapõe a ordem e a desordem; a limpeza e a sujeira.

Assim, o sujeito – ou comunidade – que se encontra em um lugar diferente do esperado,

ou que se define por algo diferente, pode ser considerado como sujidade. Bauman (1998,

p. 16) afirma que “a sujeira transgride a ordem” e, portanto, medidas devem ser

tomadas; a sujeira deve ser limpa. A pureza e a impureza estão intrinsecamente

relacionadas e são dependentes do contexto em que se encontra o objeto julgado como

puro ou impuro. Sendo assim, aquele que é puro é associado à ordem e o sujo

essencialmente à desordem. Corroborando com esta ideia, Mary Douglas (apud Bauman,

1998, p. 16) afirma que, embora possa mudar de acordo com a época e com a cultura, o

interesse pela pureza e o sentimento de rejeição contra a sujeira são essencialmente

universais nos seres humanos. Então, o sujo é o estranho, o estrangeiro, o diferente, o

outro. Segundo Bauman (1998, p. 27) estranhos são “pessoas que não se encaixam no

mapa cognitivo, moral ou estético do mundo”.

No dicionário Michaelis, constata-se que a palavra pureza refere-se também a

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“estado ou qualidade do que não tem mácula moral”, o que possibilita inferir a concepção

de sujidade enquanto qualidade de se ter mácula moral. Basta que se observe a falta de

aceitação e respeito pela diferença em geral, tanto em termos humanos e sociais quanto

em termos linguísticos propriamente. Essa é justamente a questão aqui levantada. Se as

pessoas, em geral, têm dificuldade em reconhecer a diversidade nos mais diversos

aspectos, não é difícil concluir que em termos linguísticos, não seria diferente.

O que mais pesa, no final das contas, é na verdade, segundo Bourdieu (2009), o

jogo de forças simbólicas exercido nas interações sociais permeadas pela linguagem.

Para sociólogo francês, o valor das línguas está ligado a hierarquias de poder a elas

relacionadas. O autor explica:

Em consequência da relação que une o sistema das diferenças linguísticas ao sistema das diferenças econômicas e sociais, os produtos de certas competências trazem um lucro de distinção somente na medida em que (...) se trate (...) de um universo hierarquizado de desvios em relação a uma forma de discurso reconhecida como legítima. (BOURDIEU apud GRILLO, 2004, p. 514-515)

Ou seja, a ideia de interação sem que se considere as relações de poder entre as

pessoas é um tanto ingênua, pois em cada evento de uso da língua, a questão do poder

está presente e é determinante no que se refere ao conteúdo enunciado assim como

àquilo que deixa de ser enunciado e que, portanto, reside no universo do silêncio. Nesse

sentido, é elementar que se considere os níveis hierárquicos e portanto, as relações de

poder entre as pessoas participantes de um evento interativo.

Bourdieu (2009, p. 18-19) afirma que, do mesmo modo como ocorre com o

vestuário, enquanto sistema simbólico com função expressiva, a língua também expressa

interesses de diferenciação ligados ao desejo de se ser reconhecido como pertencente a

uma determinada posição da hierarquia social. O autor menciona também (2009, p. 20)

que marcas de diferenciação linguísticas podem ser observadas no modo como as

pessoas pronunciam as palavras. Ele coloca que “em todas as línguas há uma oposição

entre a pronúncia do campo e a pronúncia das cidades, bem como entre a pronúncia das

pessoas cultas e a dos ignorantes.” (BOURDIEU, 2009, p. 20) Da mesma forma, Bakhtin

(1990) afirma que não há enunciação inocente. Ou seja, as nossas escolhas vocabulares

não são desprovidas de sentido ideológico. Tenhamos consciência ou não, aquilo que

elegemos expressar possui carga de sentido e está ligado à relação de poder que

exercemos com os nossos interlocutores em cada evento interativo. Dessa forma, a

questão da variabilidade linguística pode ser vista através das diferentes maneiras de

expressar e desempenhar parte das nossas identificações. E sendo diferentes, como o

sotaque ou a pronúncia, por exemplo, esse modo se ser e/ou de falar pode ser

considerado como “fora do lugar” , como não pertencente, como inapropriado, maculado

e portanto, sujo. A partir disso, surge a violência simbólica, que pode levar ao

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silenciamento.

Pode-se dizer, então, que o ser humano tem a ilusão de que somos uma unidade

essencial (BAUMAN, 1998) e ao mesmo tempo, ele busca a diferenciação do outro

(BOURDIEU, 2009) através de diversos sistemas simbólicos expressivos, para assim,

delimitar a sua posição enquanto pertencente a um certo nível social hierárquico ou

quaisquer outros grupos os quais julga ser relevante o seu pertencimento. Contudo, isso

implica incluir, juntamente com o que é expresso, aquilo que não é expresso. Ao escolher

uma determinada vestimenta que demonstre o seu posicionamento ideológico, o sujeito

igualmente se expressa por aquilo que não está vestindo. Comparativamente, ao eleger

certas palavras, línguas, sotaques, etc., o indivíduo automaticamente expressa sentido

também com aquilo que deixa de enunciar, assim como com a língua que escolhe falar,

com o sotaque que elege utilizar e assim por diante. A partir disso, em se tratando de

língua, que aqui não pode ser entendida enquanto mero sistema abstrato nem tampouco

enquanto absoluta subjetividade (BAKHTIN, 1990), há que se considerar nela, portanto, a

presença do silêncio, que, possui um sentido próprio.

Orlandi (2010, p. 35) afirma que “quando não falamos, não estamos apenas

mudos, estamos em silêncio: há o ‘pensamento’, a introspecção, a contemplação, etc.” A

autora coloca que “o nosso imaginário social destinou um lugar subalterno para o

silêncio” (2010, p. 35) e que há uma ideologia da comunicação, do apagamento do

silêncio, muito pronunciada nas sociedades atuais. Ela afirma ainda:

Isso se expressa pela urgência do dizer e pela multidão de linguagens a que estamos submetidos no cotidiano. Ao mesmo tempo, espera-se que se estejam produzindo signos visíveis (e audíveis) o tempo todo. Trata-se da ilusão de controle pelo que ‘aparece’: temos que estar emitindo sinais sonoros (dizíveis e visíveis) continuamente. (ORLANDI, 2010, p. 35)

O silêncio faz parte da língua. Em se tratando da interação face a face, “Bakhtin

se ocupa não com o diálogo em si, mas com o que ocorre nele, isto, é, com o complexo

de forças que nele atua e condiciona a forma e as significações do que é dito ali”

(FARACO, 2003, p. 59, grifo adicionado). Não obstante a isso, o silenciamento encontra-

se além do silêncio, ele inclui o silêncio, leva ao silêncio, cala, não permite que se diga o

que se deseja, e como uma cadeia de ações e consequências, o silenciamento ocorre nas

mais variadas instâncias da interação social e pode levar à exclusão do indivíduo.

Tomemos como exemplo a sala de aula, que em nível microssocial, pode ser considerada

uma comunidade. Ela ilustra e é refletida pela coletividade maior; ou seja, ela é uma

amostra da sociedade como um todo. Na sala de aula silenciar pode significar impedir ou

dificultar o aprendizado.

Ao observarem diversas aulas de EJA (Educação de Jovens Adultos), Mota e Souza

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(1999, p. 11) perceberam que, em muitos casos, os alunos consideravam-se

“incompetentes” para falar em sala de aula. Para esses alunos, a sua primeira língua era

vista com se fosse uma língua adicional, uma língua estranha, devido ao fato de sentirem

uma grande distância entre o que consideravam a fala esperada e as suas “reais

possibilidades” de fala. Sendo assim, eles se viam desqualificados para desempenhar um

papel por eles compreendido como adequado para uma sala de aula, o que parece ter, ao

menos parcialmente, resultado no seu silenciamento. Sentiam-se sujos, deslocados, não

pertencentes ao universo letrado. Julgavam que a pureza estava em outro lugar, alheio a

eles.

Conclui-se, então, que para alguns alunos, acreditar que devem produzir

enunciados dentro de uma certa norma em determinadas práticas sociais, pode fazer

com que se sintam como estranhos estrangeiros do seu próprio idioma. Então, por não se

considerarem competentes, tendem a ficar em silêncio. No tratante a aprendizes de uma

nova língua não é muito diferente. Além de se depararem com estruturas gramaticais

desconhecidas e outras formas de negociação de significado, o que deles exige o

aprendizado de uma certa “competência comunicativa”, eles ainda precisam se deparar

com o fato de se sentirem muitas vezes “exilados” linguística e psicologicamente, e ainda

precisarem enfrentar uma certa autocobrança quanto ao tipo de linguagem que eles se

sentem exigidos a desempenhar na sala de aula e fora dela. Tudo isso pode ser visto

como condições potenciais de silenciamento por considerarem-se sujos frente a

alteridade.

Como visto até então, assim como pessoas e objetos, língua pode ser considerada

suja. Mas língua e identidades não podem ser separadas de cultura. De acordo com

Kramsch (1998, p. 3), a língua é o modo principal pelo qual o ser humano conduz a sua

vida social e, quando utilizada para a comunicação, ela se relaciona à cultura de modos

complexos e diversos. Pode-se dizer, então, que língua e cultura são inseparáveis. A

autora também explica que a língua expressa a realidade cultural humana, pois ao

enunciar, o sujeito se utiliza de palavras as quais referem-se a experiências que possui

em comum com os demais. Assim, palavras refletem atitudes, crenças, pontos de vista,

os quais são igualmente comuns a outros. Da mesma forma, Bourdieu (1983, p. 156)

entende que língua e cultura são inseparáveis, sendo que a língua está em uma posição

que é, ao mesmo tempo, interna e externa à cultura e à sociedade. O autor afirma:

Podemos nos perguntar por que um sociólogo se imiscui, hoje, na linguagem e na linguística. Na verdade, o sociólogo não pode escapar a todas as forças mais ou menos larvares de dominação que a linguística e seus conceitos exercem ainda hoje sobre as ciências sociais se não tomar a linguística como objeto numa espécie de genealogia. (BOURDIEU, 1983, p. 156)

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Nesse sentido, estudar a sociedade implica estudar a língua e a cultura. Além

disso, Kramsch (1998, p. 3) explica que falantes identificam-se uns com os outros

através do modo como eles usam a língua; ou seja, eles vêem a língua como um símbolo

da sua identidade social. A autora (1998, p. 3), que define língua como um sistema de

signos que contém o seu próprio valor cultural, acrescenta que a língua também

simboliza a realidade cultural. Então, se a língua for marginalizada e, portanto,

considerada como não pertencente, ela é vista como suja; ou melhor, os seu usuários –

as pessoas – o são. E da mesma forma, a cultura vista como sujidade pode ser

linguisticamente julgada e expressa nas práticas sociais.

Mas este não é o único modo de se ver cultura. Há também a perspectiva

histórica, que seria relativa aos modos que evoluíram e se solidificaram. Kramsch (1998,

p. 7) afirma que estes tendem a ser vistos como comportamento natural, que se

sedimentaram na memória dos membros do grupo, que os passam de geração a geração.

As pessoas se identificam como membros de uma sociedade de modo que eles possam

ter um lugar na história daquela sociedade, chamar atenção para o presente momento e

antecipar o futuro. Desse modo, cultura enquanto história e passado remete

fundamentalmente a uma ideia de pertencimento, de “lugar certo”, de limpeza. Aqueles

sujeitos que não se identificam com uma determinada cultura, ou quaisquer normas

sociais vistas como “puras”, e que buscam não reproduzir a história do seu grupo de

origem, tendem a ser excluídos, pois vistos como impuros.

Kramsch (1998, p. 65) explica que se costuma crer que existe uma conexão

natural entre a língua falada por membros de um grupo social e a sua identidade. As

pessoas se identificam e são identificadas como membros de uma comunidade de fala e

discurso por elementos como o sotaque e o vocabulário. Devido a este sentimento de

pertencimento criado pelo fato de dividirem a mesma língua ou o mesmo sotaque, etc.,

as pessoas desenvolvem um senso de importância social e continuidade histórica (1998,

p. 65-66). Dessa maneira, a dificuldade em aceitar e incluir a diversidade linguística –

aqueles que falam de forma “diferente” – tende a levar ao silenciamento e à exclusão.

Isso porque não são meramente as línguas, as culturas ou os sotaques que são julgados

como deslocados, estrangeiros e sujos, mas acima de tudo, são as pessoas.

Em suma, assim como as identificações são constantes, híbridas e mutantes, são

também as línguas, e da mesma forma, o sujeito pós-moderno. Ele não possui mais uma

estrutura fixa e imutável. Tampouco se caracteriza por superficiais mudanças ao redor de

um núcleo identitário. Ele agora é a própria mudança. Ele facilmente se identifica com o

externo. Ele é líquido (BAUMAN, 2001). Não se trata de um julgamento valorativo; trata-

se de concebê-lo como um ser múltiplo, complexo e fragmentado, cuja identidade não

mais é; ela está, visto que é resultado de ações humanas e não de algo que se possui.

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Assim, a diferença faz parte dele. A exclusão da alteridade, do diferente, do sujo, do

estrangeiro, do outsider3 demonstra, pelo menos, a não compreensão das características

do sujeito pós-moderno. No caso de aprendizagem de línguas adicionais novas

perspectivas somam-se às da primeira língua. O ser humano que agrega a cultura alheia

através do aprendizado de uma nova língua, amplia o seu leque de identificações. Aliás, o

termo alheia é aqui relativizado. Ao aprender uma língua adicional o sujeito se apropria

de uma nova cultura, sem necessariamente deixar de lado a primeira. Ambas se

misturam, se intercalam e se alternam. Neste processo, os sentimentos de posse e

pertencimento são, na verdade, uma questão de escolha.

É possível ver-se através do outro. A alteridade é um espelho através do qual o

sujeito, por vezes, teme se enxergar. Talvez o mais confortável seja ignorá-lo e

permanecer no mundo das fantasias onde acreditamos que somos todos iguais; onde a

minha língua, sotaque e cultura são puros; onde os outros são os sujos; onde podemos

nos colocar perfeitamente no lugar do outro; onde o meu passado é imaculado e

desprovido de contaminações linguísticas e culturais; e onde as minhas ações são

oriundas da minha aparente identidade fixa. Bauman (1998, p. 21) diria que este mundo

é o das utopias, onde não há “’nada fora do lugar’; um mundo sem ‘sujeira’; um mundo

sem estranhos”. Para que haja centro, é preciso que exista margem; por isso, tentar

alcançar a pureza gera, automaticamente, a sujeira. Assim, buscar definir e diferenciar,

nas práticas sociais, a pureza e a sujeira talvez seja um dos mais rápidos caminhos que

levam à exclusão.

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3 Outsider (em inglês) significa aquele que vem de fora.

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