Almerinda Lopes - A Reversibilidade Do Tempo Na Pintura de Jorge Guinle

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PALÍNDROMO Teoria e História da Arte 2010 / n o 3 117 A reversibilidade do tempo na pintura de Jorge Guinle PROF A . DR A . ALMERINDA DA SILVA LOPES CNPq/Universidade Federal do Espírito Santo, UFES Resumo O carioca Jorge Guinle tornou-se o símbolo incontestável da chamada Geração 80, aclamado pela crítica como o autor da mais vigorosa e consistente pintura surgida naquela época. Lançou um novo olhar sobre as vanguardas da primeira metade do século XX, empreendendo uma arqueologia da memória artística do passado recente, ao dialogar de modo especial com o expressionismo abstrato, atualizando-o e ressignificando-o. Equacionou uma linguagem anacrônica, que desmontou e pôs em xeque a linha evolutiva das formas, na mesma acepção propugnada pelo teórico francês Didi-Huberman, mais especificamente em sua obra Devant le temps: histoire de l´art et anachronisme des images (2000), no qual se apoia a reflexão estabelecida neste artigo, sobre a especificidade da praxe daquele jovem artista brasileiro. Palavras-chave: revitalização da pintura, geração 80, Jorge Guinle, anacronismo. Abstract Born in Rio de Janeiro, Jorge Guinle became an uncontestable symbol in the 80´s, glorified by the criticizers as the author of the hottest and most consistent painting of that time. He changed the way to look at the vanguards from the first half on 20th century, undertaking an archeology of the artistic memory from the recent past, once he dialogued in a special way with the abstract expressionism, resignifying it. He equationed an anachronic language, which unmounted and put in doubt the evolutive line of the forms, the same way defended by the French theoretician Didi- Huberman, more specifically in his work called Facing the time: story of art and the anachronism of the images (2000), in which the reflection established in this article is aidded, about the specificity of that young Brazilian man. Keywords: the revitalization of painting, the 80´s, Jorge Guinle, anachronism.

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Guinle.

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  • palndromo Teoria e Histria da arte 2010 / no3 117

    A reversibilidade do tempo na pintura de Jorge Guinle

    Profa. Dra. almerinDa Da Silva loPeS

    CnPq/Universidade federal do esprito Santo, UfeS

    Resumo o carioca Jorge Guinle tornou-se o smbolo incontestvel da chamada Gerao

    80, aclamado pela crtica como o autor da mais vigorosa e consistente pintura

    surgida naquela poca. lanou um novo olhar sobre as vanguardas da primeira

    metade do sculo XX, empreendendo uma arqueologia da memria artstica do

    passado recente, ao dialogar de modo especial com o expressionismo abstrato,

    atualizando-o e ressignificando-o. equacionou uma linguagem anacrnica, que

    desmontou e ps em xeque a linha evolutiva das formas, na mesma acepo

    propugnada pelo terico francs Didi-Huberman, mais especificamente em sua

    obra Devant le temps: histoire de lart et anachronisme des images (2000), no qual se apoia a reflexo estabelecida neste artigo, sobre a especificidade da praxe

    daquele jovem artista brasileiro.

    Palavras-chave: revitalizao da pintura, gerao 80, Jorge Guinle, anacronismo.

    Abstract Born in rio de Janeiro, Jorge Guinle became an uncontestable symbol in the 80s,

    glorified by the criticizers as the author of the hottest and most consistent painting

    of that time. He changed the way to look at the vanguards from the first half on 20th

    century, undertaking an archeology of the artistic memory from the recent past,

    once he dialogued in a special way with the abstract expressionism, resignifying

    it. He equationed an anachronic language, which unmounted and put in doubt the

    evolutive line of the forms, the same way defended by the french theoretician Didi-

    Huberman, more specifically in his work called facing the time: story of art and the anachronism of the images (2000), in which the reflection established in this article is aidded, about the specificity of that young Brazilian man.

    Keywords: the revitalization of painting, the 80s, Jorge Guinle, anachronism.

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    Consideraes iniciais

    este artigo reflete sobre a potica pictrica formulada por Jorge Guinle (1947-1987), que revitalizou a pincelada matrica, a pulso do gesto expressivo, a escriturao sgnica e cores explosivas, dialogando de maneira particular com a abstrao de tendncia expressionista. a proposta no discutir e analisar a questo da retomada da pintura nos anos 80, numa linha analtica ou revisionista, mas discorrer sobre a maneira singular como o jovem artista carioca desarranjava a noo de passado e a estratificao da memria, fazendo incurses pela vanguarda histrica. o pintor voltava seu olhar con-temporneo para fontes heterogneas do passado recente, elegendo formu-laes e cdigos visuais que eram submetidos s suas injunes antes de serem realocados em suas telas, distendendo e redimensionando a noo de tempo/memria, atitude que nos parece alinhada com o conceito de anacro-nismo postulado pelo filsofo francs Georges Didi-Huberman.

    a pintura engendrada por Guinle sobre suportes de grandes dimenses, com golpes rpidos de pincel, gestos espontneos definidores de linhas, traos e arcabouos formais, que se desvelam em meio a uma profuso de cores vibrantes, auguraram ao artista notrio destaque entre os pintores surgidos naquela dcada. a crtica brasileira e estrangeira destacou a maestria, a ou-sadia criativa, o vigor e a coerncia potica, a exuberncia e a sensualidade da pintura do jovem, singularidades que a diferenciavam da de outros abs-tracionistas gestuais de sua gerao. a morte do artista (1987) interrompeu prematuramente um processo de produo pictrica no auge de sua maturi-dade e reconhecimento, mas em sua curta existncia construiu um enorme legado que atesta a perseverana e a coerncia potica de seu autor.

    o processo de reviso e avaliao a que foi submetida nos ltimos anos a pintura da Gerao 80 apenas confirmou a potncia e a consistncia plstica da gramtica guinleana. em contrapartida, tambm foi possvel confirmar que apenas uma parcela muito reduzida de jovens que emergiu na poca continuaria fazendo da pintura seu foco expressivo na dcada seguinte, sen-do que muitos outros iriam enveredar por distintas mdias. nmero no me-nos significativo de pintores da mesma gerao retirou-se ou foi excludo da

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    cena artstica com a mesma rapidez com que aflura e conquistara alguma notoriedade, principalmente por no ter flego intelectual e artstico para levar frente um projeto pictrico de notvel significado potico. Se isso atestava que o reencontro de muitos jovens com a pintura no passara de entusiasmo ou de oportunismo, tambm tornava patente que outra parcela tinha sido atrada preferencialmente pelo jogo do mercado de arte e no pelo chamado da vocao ou da vontade esttica.

    antes de se fixar definitivamente no rio de Janeiro, no final da dcada de 1970, Jorge Guinle j havia estudado e estabelecido livre trnsito por metrpoles de diferentes continentes, com destaque para nova iorque e Paris, com estadas intermitentes no rio de Janeiro, acumulava experin-cia no campo pictrico e mantinha a carreira artstica em franca ascenso. o contato com os principais cones da histria da arte mundial, que teve oportunidade de contemplar em alguns dos mais destacados museus euro-peus, permitiu-lhe digerir e assimilar lentamente um vasto e heterogneo arsenal de linguagens, imagens e formulaes artsticas. em depoimentos concedidos imprensa, o jovem assegurava que desde a infncia a pintura o fascinava, razo por que se mantinha silencioso e atentamente prostrado diante das telas de nomes emblemticos, como matisse e Picasso, que tanto o atraam como pareciam interrog-lo. Guinle iria inserir em seus desenhos seminais fragmentos de imagens e cores que remetiam s obras desses e de outros artistas, que persistiam em sua memria visual.

    na adolescncia, quando passou a fazer exerccios criativos com maior assi-duidade e perseverana, eram os pintores abstratos europeus e americanos os que mais imantavam o seu olhar e instigavam a percepo e a imagi-nao. o jovem empreendeu verdadeiro priplo pelos museus americanos, europeus e brasileiros detendo-se a observar as nuances cromticas e su-tilezas dos traos, gestos e signos de obras de diferentes artistas que, por algum motivo, o fascinavam. essa experincia visual e perceptiva contribuiu, segundo Guinle, para despertar precocemente o seu interesse pela pintura abstrata. ainda na adolescncia elaborou as primeiras aquarelas e guaches de formulao no figurativa, nas quais j se desvelava o refinamento e a elegncia de suas formas e cores, e que pareciam ser extrados de dife-

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    rentes estratos da memria e da histria da arte. esses exerccios criativos talvez possam ser entendidos como a gnese do projeto pictrico que ele iria formular anos depois, quando optou profissionalmente pela arte.

    na mesma dcada acompanhou, atentamente, o desenrolar dos aconteci-mentos artsticos, de modo especial o movimento de retorno pintura que comeou primeiramente na europa e, em seguida, se estendia aos estados Unidos, revelando particular interesse pela revitalizao do expressionismo abstrato em que iria ancorar sua praxe individual. Compulsivo, irreveren-te e impetuoso, o artista parecia no separar experincia de vida e ao pictrica. fazia do processo pictrico o principal veculo de acesso e de in-terlocuo com o mundo, por meio do qual pensava e interrogava os acon-tecimentos que mais o tocavam. Pintava para melhor compreender, supor-tar e se posicionar criticamente diante das incoerncias do mundo. o olhar retrospectivo que Guinle lanou sobre a pintura moderna confirma-se tanto na gramtica que articulou como em depoimentos e em textos crticos de sua autoria. neles sobressai uma bem articulada base intelectiva, e ajudam a compreender a desenvoltura com que o jovem transitava pela histria da arte e a segurana e convico com que digladiava o pincel sobre a superf-cie pictrica em construo.

    a reflexo sobre a obra do artista comeou a ser formulada pela autora em textos anteriores, que assinalaram o livre trnsito empreendido por Jorge Guinle pela histria da pintura da primeira metade do sculo XX, desmon-tando a linha evolutiva das imagens e, consequentemente, da histria da arte. entretanto, se essas anlises apontavam para o carter diacrnico da pintura do jovem, no se detiveram na questo nem teceram maior aprofun-damento sobre o conceito de anacronismo, tal como proposto por Georges Didi-Huberman, mais especificamente em sua obra Devant le temps: histoi-re de lart et anachronisme des images (2000). Pautando-se numa reflexo crtica construo evolucionista da histria da arte e num dilogo que vai estabelecendo com artistas, historiadores e filsofos, de diferentes tempos, Didi-Huberman ancora suas ideias, de modo especial no pensamento mo-derno alemo de Walter Benjamin, aby Warburg e Carl einstein. Deve-se considerar, porm, que o conceito de anacronismo comeou a ser formulado

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    e utilizado pelo filsofo francs em obras anteriores por ele publicadas, entre elas: Devant limage (1990), Ce que nous voyons, ce qui nous regarde (1992), la ressemblance informe (1995) e lempreinte (1997).

    em suas reflexes, Didi-Huberman nos ensina como filsofos e historiadores da arte, de modo especial a partir do final do sculo XiX, deram incio a um processo de fratura da viso historicista instaurada com o iluminismo (sculo Xviii), quando se precisou encontrar uma explicao para as imagens e as formas artsticas, relacionando-as com o espao geogrfico e o desenvolvi-mento histrico. Desenvolvia-se, assim, uma teoria que refora muito mais o ponto de vista de quem a formulou do que do objeto a que ela se reporta. em dilogo com vrios tericos que o antecederam, Didi-Huberman mostra como a filosofia alem iria redigir um movimento antagnico ao evolucio-nismo da histria da arte, a partir do idealismo de Hegel, que, entre outras questes que nos interessam destacar para a compreenso da praxe do nosso artista contemporneo, considerava que enfrentar a morte condio necessria para o exerccio da liberdade, concepo que encontraria maior eco no incio do sculo passado, quando uma pliade de artistas e pensado-res descobre nas culturas primitivas a metfora e o simblico (enquanto ima-gens da subjetividade) ignorados pela civilizao industrial. essa descoberta instaurava, ainda, outras possibilidades de reformular as sintaxes plsticas tradicionais e de questionar os valores institudos pela cultura ocidental.

    a leitura recente da citada obra Devant le temps reacendeu a vontade de retomar e ampliar a reflexo sobre a praxe guinleana. assim, no discurso persuasivo do historiador e filsofo francs que pretensiosamente nos res-paldamos, com o intuito de dialogar e aprofundar a conexo entre o olhar es-ttico do artista carioca e o conceito dialtico de anacronismo. recorremos a Didi-Huberman sobre tal conceito, na tentativa de compreender a cons-truo do projeto potico contemporneo do jovem pintor, que, ao buscar reatar relaes com o modernismo, punha em xeque a ideia de tempo linear e a temporalidade das formas artsticas, propugnadas pela histria da arte. entretanto, o discurso tambm se apoia em depoimentos e textos do prprio artista e em outros tericos estrangeiros e brasileiros.

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    vale ressaltar, ainda, que alm da obra guinleana no se deixar apreender facilmente, justamente pelo jogo de articulaes e de imbricaes tempo-rais que se desvela nas telas do artista, transformar linguagem pictrica em texto no deixa de ser tarefa difcil e ao mesmo tempo controversa, con-siderando que quanto mais reflete sobre ela mais a obra expande o seu sentido, transbordando para alm da palavra. Se isso torna a empreitada to desafiadora quanto abusiva, h necessidade de um tempo maior para digerir a argcia intelectual e o vasto espectro de ideias, conceitos e desdobramen-tos enredados no leque de questes postas por Didi-Huberman. Sem essa maturao corre-se o risco de desvirtuar o pensamento do autor ou cair na redundncia de apenas repeti-lo. alm disso, emitir um pensamento crtico construo da histria da arte ocidental exige uma reformulao de nossa prpria experincia como historiadora, refutando a concepo evolucionista das imagens artsticas que nos foi impingida e que, de maneira acrtica e impensada, acabamos acatando e repetindo ao longo de nossa trajetria.

    o pensamento de Didi-Huberman tanto impulsionou a vontade de rever posturas e conceitos quanto de escavar mais profundamente as intrincadas tessituras sgnicas e as camadas de matria das telas de Guinle, na esperan-a de abrir uma outra perspectiva de compreenso da praxe desse artista contemporneo, que se desviou das propostas conceituais dos anos 60/70 para empreender a volta pintura, revitalizando a linguagem abstrata. mas o jovem no deixaria de entrelaar e realinhar em suas telas tambm refe-rncias figurais, emprestadas por ele a artistas de diferentes movimentos e tempos estticos, razo por que sua pintura no deixa de se mostrar, em vrios sentidos, rizomtica e anacrnica.

    O transitar pela histria da arte e a questo do anacronismo

    ao afirmar que, por motivos emocionais, estticos, sua pintura mescla do abstrato-expressionismo gestual, de De Kooning e de matisse, at um sur-realismo automatista, Jorge Guinle (1983, p.201) no apenas confirmava transitar ousada e livremente pela histria da arte, interrogando-a e lan-ando sobre ela um novo olhar, como nos advertia que na contextura de suas gigantescas telas se imbricavam resqucios da visualidade de diferen-

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    tes tempos e memrias. esclarecia, ainda, que a alegria das cores e certo decorativismo da pintura de matisse o atraam, mas esses efeitos eram negados pelo ritmo exacerbado do abstrato expressionismo (GUinle, 1983, p.201).

    nas declaraes do artista devem ser ressaltados pelo menos dois aspec-tos: primeiro, ao mencionar a palavra negao, revitalizava um conceito da arte moderna, considerando que algumas vanguardas negaram a linha evo-lucionista da histria, voltando-se para o passado (arte primitiva, caligrafia oriental); segundo, assinalava no proceder a uma mera apropriao, pois no tinha o propsito de duplicar o j feito. ao contrrio disso, realizava um processo dialtico, contrapondo ao otimismo, extraordinria calma, planaridade, sobriedade da cor e fluncia construtiva e decorativa da linha matissiana o gesto impulsivo, trgico e exasperado do expressionismo abstrato. Deve-se considerar, todavia, que determinadas pinturas fauvistas de matisse (a exemplo de a Cigana, 1906) anteciparam a dramaticidade da pincelada fragmentria, a matria adensada, encrespada e exaltada, e uma verdadeira orgia de cores, orquestradas pelo vermelho e o amarelo, to cara aos expressionistas abstratos, o que, certamente, no passou desper-cebido ao jovem artista brasileiro.

    na sua declarao, o jovem no escondia que sua pintura derivava da mo-dernidade, extraindo referncias heterogneas ou mesmo contraditrias, de algumas das vanguardas que mais contriburam para modificar as bases de sustentao do pensamento artstico e a concepo criativa das formas plsticas. Talvez para demover a falsa impresso de que ao recorrer s gra-mticas do passado, ele estaria buscando uma abordagem esttica mais f-cil ou menos complexa, Guinle procurava esclarecer sobre a maneira como submetia ao seu laboratrio transfigurador as referncias emprestadas por ele da histria da arte moderna, com o intuito de atualiz-las em suas telas.

    a praxe guinleana, embora se nutrisse em fontes do passado, no estabe-lecia uma mera assimilao ou transposio de cdigos de um tempo para outro tempo. o passado reconfigura-se pelo pensamento e pela experincia do presente, pois, os cdigos do passado, ao serem realocados na pintura

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    contempornea, estabelecem uma ciso com a sua origem, dinamizando-se e ressignificando-se no agora. assim, quando constatava, por exemplo, que em algumas superfcies de suas telas o azul ou o verde intenso domi-navam e essas cores produziam um efeito de profundidade unificador ou calmo que estabelecia alguma similitude com os planos chapados das telas de Henri matisse, essa analogia era logo desmontada ou dissimulada por Guinle. a mesma operao era empreendida pelo jovem quando um plano de esfuziante amarelo se salientava e parecia remeter s telas de Willem De Kooning.

    Para demover tal aluso ou possvel simetria, o artista brasileiro fustigava a cor-matria, escriturando sobre ela signos variados e texturas speras, sem um significado aparente; pinceladas rpidas e arredondadas, de tons terro-sos ou musgosos, para atenuar ou esgarar a potncia dessas superfcies picturais. os azuis intensos, os verdes e os amarelos eram rebaixados e ga-nhavam assim uma outra densidade, submergindo em meio a uma profuso de pinceladas turbulentas, elementos figurais, letras soltas, nmeros, pala-vras, escorridos, entre outros cdigos e formulaes visuais. estabelece um processo em que letras, palavras e figuras so despojados de seu sentido semntico, no se articulando como elementos dspares para no causarem estranhamento nem gerar conflito. Dissolve, assim, os limites, as especifi-cidades e as hierarquias entre as linguagens, transformando as diferentes sintaxes em imagens visuais, atribuindo-lhes o mesmo grau de equivalncia e a mesma potncia, num processo em que uma no deve prevalecer sobre a outra, mas interagirem entre si.

    a referncia de Jorge Guinle a Henri matisse e a Willem De Kooning tambm encontrava explicao no fato de ambos terem contribudo para reformular as gramticas pictricas do sculo XX, libertando a cor, a linha e a pincelada de regras, e a composio da iluso perspctica, sem deixarem de lanar um olhar para as obras dos mestres do passado distante, ou mesmo pr-ximo, com a experincia e a ao do presente. Se os desenhos iniciais do brasileiro remetem, de alguma maneira, s formas esquemticas das ba-nhistas de matisse, os corpos femininos que transparecem nas pinturas da maturidade de Guinle parecem espraiar-se na srie de mulheres de Kooning

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    ou mesmo nas silhuetas masculinas que esse ltimo pintara na dcada de 1930, por meio das quais mostrava uma assimilao particular do cubismo analtico. a fatura guinleana, tal como a de De Kooning, era retrabalhada indefinidamente, de modo a no ocultar retomadas e sobreposies (ou ar-rependimentos?), procedimento que remetia aos mestres holandeses e fran-ceses que tanto fascinaram o europeu antes de ele emigrar para os estados Unidos (1926), onde se tornou um dos principais nomes do expressionismo abstrato, aps o contato com arshile Gorky. embora Willem De Kooning nunca negasse o significado desse encontro nem o fascnio que lhe causou a pintura do armnio, reafirmou inmeras vezes seu tributo pictrico a ingres e Soutine.

    Por essas e por outras razes, pode-se afirmar que a praxe de Guinle no se resumia a um simples processo de deslocamento passado/presente, mas procedia a uma operao sincopada, em que fragmentos de prticas e gra-mticas estticas da memria de outro tempo tal como no ritmo do jazz, msica que ele apreciava e embalava as sesses de pintura , para rearti-cular no presente uma nova operao de transformao, transfigurao e recodificao de sentido. ao revitalizar e amalgamar cdigos e cores ex-trados da pintura modernista, inserindo-os em pinturas formatadas por ele no agora, propunha a desmontagem da memria cronolgica, submetendo as formulaes estticas do passado a uma nova dinmica, retirando-as da acomodao ou do repouso e promovendo um permanente fluxo e refluxo da memria visual. atravs de sua ao reflexiva, Guinle desarticulava e es-vaziava a referncia apropriada, inserindo-a em um outro contexto, que era a sua prpria pintura em processo de construo, negando dialeticamente a ideia de passado.

    no se tratava de uma montagem de tempos ou de insero de um tempo em outro tempo, mas de clivagem e esvaziamento da memria do passa-do, provocando um movimento que tensiona, instiga e renova o presente, atravs da atualizao e ressignificao da memria. a pintura do passado saa assim da inrcia e do esquecimento, adquiria uma nova potencialidade, vitalidade e dinmica no agora, ou seja, nas telas de um artista contempo-rneo, pertencente a um novo tempo/vivncia/experincia. esse cdigo em-

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    prestado tornava-se atemporal, ao perder o significado anterior, adquirindo um novo sentido e memria ao ser amalgamado numa pintura formulada pela mo, pelo pensamento, pela vontade e pela ao transformadora e reconfiguradora do jovem pintor contemporneo.

    enveredar pela histria da arte da primeira metade do sculo XX no dei-xava de ser um meio encontrado por Guinle e por outros congneres da Gerao 80 para revitalizar, decantar e manipular a pintura modernista, atra-vessando e pondo em xeque a linearidade da histria da arte ocidental, pau-tada, desde a sua origem, no evolucionismo das formas. ao empreender um processo arqueolgico, escavando a memria da pintura moderna, de modo particular o abstracionismo abstrato, o artista submetia essa tendncia do passado ao seu impulso operatrio e sua inteno irnica, lanando sobre ela um olhar inquiridor e problematizador. essa ironia parece manifestar-se, inclusive, num certo frescor no brilho e na viscosidade da matria pictrica que se mantm impregnado nas telas guinleanas, singularidade que, mesmo decorridos mais de 20 anos de sua execuo, um artifcio que nos induz a acreditar que acabaram de ser pintadas. a articulao dos elementos visu-ais plsticos e poticos da pintura do carioca continua a causar impacto e a surpreender seus interlocutores, instigando um nmero cada vez maior de reflexes sobre ela.

    essas e outras razes talvez nos autorizem a afirmar que a pintura elabo-rada pelo carioca, nos anos 80, embora derivasse em vrios aspectos da abstrao histrica, no deixava de reivindicar e se impor como novidade, isto , deixava de ser passado para ser arte do agora. e como tal, negao do modernismo e tambm derivao dele, reafirmando a descontinuidade da memria e a ideia de tempo no como evoluo e sequencialidade, mas como montagem de transitoriedades, entendida no como um tempo que se sobrepe ao outro, mas como desvio, mudana de sentido, possibilidade de cruzamentos, de retomadas e reencontros.

    Se para ronaldo Brito e vanda Klabin (2009) o mrito incontestvel da cur-ta e fulgurante trajetria de Jorge Guinle foi o de promover e liberar a pintura brasileira da tradio modernista, o que cumpriu com absoluta acuidade

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    e competncia. em textos de sua autoria, o prprio artista confirmava ter sido essa sua principal inteno. Preconizou, ainda, tanto a efemeridade da retomada da pintura, por carecer de definio ideolgica e de arcabouo te-rico que a prolongasse e a negao imediata de qualquer ismo, e conclua que a Gerao 80 propunha uma quebra da Histria da arte de vanguarda Brasileira (in BaSBaUm, 2001, p. 233), provas incontestveis de seu posi-cionamento crtico e da inteno consciente, que o levou, assim como outros jovens pintores do seu tempo, a afrontar e interrogar a pintura histrica da primeira metade do sculo passado.

    Para Didi-Huberman, a reflexo histrica deve ser pensada em termos de origem e a origem em estrita relao com a novidade, a repetio, a fratura, a transformao e a ideia de sobrevivncia, possibilitando que a potncia dinmica do presente impregne o olhar lanado sobre cada objeto do passa-do, atualizando-o e atribuindo-lhe novos sentidos. Por esse vis postula uma nova atribuio e entendimento da histria da arte:

    [...] a origem (...) cristaliza dialeticamente a novidade e a repetio, a sobrevivncia e a ruptura: primeiro anacronismo. a este respeito a histria da arte sobrevm no relato histrico constitudo como uma fala, um acidente em mal-estar, a formao de um sintoma. Uma histria da arte capaz de inventar, no duplo sentido do verbo, imagi-nativa e arqueolgica, novos objetos originrios` ser uma histria da arte capaz de criar torvelinhos, fraturas, transbordamento do saber que ela mesma produz. Chamaremos a isso uma capacidade de criar novos umbrais tericos para a disciplina (DiDi-HUBerman, 2000, p.110, grifo do autor).

    a apropriao e a reintegrao de formas, linguagens e materiais do passa-do no presente articulam um processo que tanto de dessubjetivao quan-to de subjetivao das gramticas visuais codificadas, envolvendo o olhar seletivo e a potncia transformadora e transfiguradora do pensamento e da mo do artista contemporneo. assim procedendo, Guinle fazia com que os signos extrados por ele do passado perdessem a carga semntica ou o significado que mantinham no seu tempo/lugar histrico de origem, ao se-

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    rem realocados e ressignificados num outro tempo, o presente ou o agora. ao concluir essa ao, o agora j passado, o que faz com que a cada nova visada esses cdigos se ressemantizem e se atualizem num outro agora. nesse sentido que o terico francs considera as imagens artsticas como estratos arqueolgicos, que fazem vir tona um enredamento de tempos. mais do que apontar para o passado, elas instauram novas perspectivas para o futuro, pois, potencialmente, a perenidade da arte a projeta para alm de seu tempo e de nossa prpria existncia. e a ideia de sobrevivncia exige uma permanente ressignificao e atualizao dos objetos artsticos, sem o que eles se fossilizam, caem no esquecimento, perdem o seu sentido e se esvaem da memria.

    respaldado no conceito de autonomia da arte, na liberdade de escolha pos-tulada muito antes por Duchamp, e numa rebeldia prpria dos jovens de sua gerao, Guinle iria negar a vinculao de sua praxe aos processos arts-ticos de seu tempo para lanar um olhar contemporizador sobre a pintura da primeira metade do sculo XX. resgatava a artesania, os materiais, as tcnicas pictricas tradicionais e revitalizava a gramtica pictrica abstra-cionista articulada por seus antecessores elaborando uma praxe expressiva que propunha tanto o dilogo reflexivo com as vanguardas histricas1 como um processo de desmontagem e remontagem da abstrao. o frenesi com que movia o pincel, amalgamando gestos expansivos e potentes camadas de matria e cor, com esmiuamentos mnimos e ntimos, no deixava de revelar identificao com o mtier e uma indiscutvel segurana ao construir composies precisas e equilibradas sobre suportes avantajados. Por meio de um olhar seletivo e, ao mesmo tempo voraz, uma mo experiente e uma slida bagagem intelectual, o pintor articulava e justapunha um universo de cores e formas, que surgiam da correlao imperturbvel entre ordem e desordem, definio e indefinio, subvertendo as profecias de que a pintura havia sido definitivamente morta e enterrada nos anos 60.

    o jovem pintor engendrou um projeto criativo que dialogava com o expres-sionismo abstrato, mas que no deixava de se mostrar, em vrios aspectos, plural e polifnico. Sua praxe mesclava cdigos figurais ou icnicos e signos abstratos, amalgamados em composies singulares, mas que tambm se

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    revelam carregadas de referncias irnicas e metafricas, extradas da me-mria visual e do priplo que ele empreendeu intencionalmente pela histria da pintura moderna. o artista articulava, assim, um processo de afronta ao sistema evolucionista da histria da arte, ao sobrepor escolhas variadas ou mesmo aparentemente dspares, estabelecendo, sem qualquer constran-gimento, o que ele chamou de ambiguidade cmica, expressa por uma fatura reflexiva que enfatizava o prazer de alargar e nutrir as contradies (GUinle, ibid.).

    Segundo Didi-Huberman, um dos primeiros e mais convictos crticos do evo-lucionismo histrico foi Walter Benjamin, tanto por propor a desmontagem da histria da arte como uma histria de profecias, quanto por considerar que a ideia de passado s existe a partir do ponto de vista do presente ime-diato, atual; e que cada poca traz sempre uma nova possibilidade (2000, p. 127). ao evolucionismo da histria da arte, o filsofo alemo contrapunha uma histria de suas extemporaneidades, como um eterno recomear, no qual estariam enredados os conceitos de ironia, imaginao e alegoria, pro-cessos que potenciam a percepo e a subjetividade, fazendo transbordar os limites da arte, pois o seu sentido, alm de nunca ser definitivo ou per-manente, se manifesta e desaparece alternativamente. Tal concepo pos-sibilitaria imprimir uma nova dinmica obra de arte, entendendo-a como atemporal e diacrnica, subvertendo, assim, a sua linha evolutiva da histria (id., p. 128 e seguintes).

    o filsofo francs dialoga e presta tributo tambm ao pensamento de Carl einstein, para quem a histria da arte deve ser entendida como um fenme-no dialtico, que preconiza sincronia e diacronia, avano e recuo, evoluo e involuo, tempos contnuos e descontnuos (destempos). esse alemo per-cebia em movimentos artsticos, como o cubismo, o desvelar de um olhar retrospectivo ao dialogar com as culturas primitivas, recodificando-as com ideias e intenes do tempo presente, preconizando ou antecipando, por-tanto, potencialidades e atitudes futuras. Para einstein, a histria da arte no deve ser entendida como um campo de conhecimento que investiga a evoluo das experincias visuais, dos estilos, do simbolismo e da funo social, mas como um conhecimento terico que expressa uma concepo

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    agonstica, uma tenso inextinguvel, isto , que se apresenta como uma luta, um conflito de formas contra formas, de experincias ticas, de es-paos inventados e de figuras sempre reconfiguradas, tornando possvel compreender a transformao temporal que cada obra produz sobre as demais (in DiDi-HUBerman, 2006, p.232, grifo do autor).

    Parece ter sido nessa mesma acepo propugnada por Carl einstein que Guinle formulou as bases de uma praxe artstica que se institua como um campo de ao e de luta, conflito e apaziguamento, destruio e construo, inveno e apropriao, ordenao e transfigurao, subtrao e acrscimo, subjetivao e corporeidade, experimentao e inteleco, renovao e res-semantizao de processos, gramticas e sintaxes do passado no presente.

    nas superfcies abstratas guinleanas possvel desvelar, igualmente, cdi-gos que parecem dialogar com formulaes emprestadas das telas de Pi-casso e Pollock, referncias essas que no se estabelecem, obviamente, por uma equivalncia ou afinidade visual, mas se projeta no mpeto da linha, na simplificao e incompletude desconcertante das formas, na liberdade e no frenesi com que o artista digladiava com os imensos campos pictricos, espargindo sobre eles as massas informes de cores esfuziantes e goteja-mentos. Trabalhava simultaneamente sobre diferentes telas, posicionadas no cho ou suspensas na parede, prtica adotada anteriormente por dife-rentes protagonistas das vanguardas abstratas. Guinle passava de uma tela outra, lanando sobre elas gestos expansivos e potentes, sem estabelecer uma ordem sequencial ou prioritria, nem definindo uma lgica prospecti-va dos signos. empreendia um processo de sinestesia e sinergia corporal, deslocando-se incessantemente: aproximando-se e afastando-se das telas, ou girando em torno delas, para visualizar melhor cada etapa de sua formu-lao pictrica, proceder aos realinhamentos poticos ou desfazer o que no lhe parecesse coerente ou necessrio.

    Durante esse processo, que imbricava devaneio, emoo e especulao in-telectual, prazer e drama, ordem e turbulncia, o pintor fazia o agenciamen-to entre os signos (linhas, gestos, manchas, escorridos) figurais e abstratos retirados de diferentes estratos da memria, dispensando o acidental e o

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    episdico. em muitas telas do artista a figura humana parece estar ausente ou invisvel; em outra parcela, os espectros humanos desvelam-se abrup-tamente, atolados num magma de matria e num turbilho de cores. Se nessas pinturas se esboam como seres fictcios ou em metamorfose, que passaram por ali deixando impresso na pele do suporte apenas uma parte de seu espectro, em outras o artista subverte os parmetros do real, por meio de operaes que imprimem s formas uma estranha configurao ou atestam a sua incompletude.

    a vontade de desmontar as hierarquias pictricas parece ter levado Guin-le a fazer emergir, em meio profuso de manchas adensadas pela carga de matria, signos figurais ou representacionais, construdos com uma pin-celada frentica e gestos pulsantes, mas que nada parecem traduzir com exatido. Trata-se de esboos de figuras humanas e objetos, que incitam a memria; no permitem precisar onde comeam e terminam no se des-velando por inteiro; escondem mais do que mostram, por que so seres em trnsito, deixam-se entrever apenas pelo rastro fugaz de sua passagem. Haveria alguma similaridade entre a atitude do artista carioca e os pintores abstracionistas que o precederam de intermediar o fluxo entre abstrao e figurao?

    arthur Danto, ao discorrer sobre os postulados do abstracionismo abstrato americano do segundo ps-guerra, chamava a ateno para a recorrncia simultnea de duas tendncias pictricas antagnicas figurao e abstra-o nas telas pintadas por alguns dos principais protagonistas daquela van-guarda. reportando-se a um ensaio de autoria de Clement Greenberg, publi-cado em 1962, denominado aps o expressionismo abstrato, Danto (2000, p.158) discorre sobre a praxe adotada por expressivo nmero de pintores, entremeando formulaes estticas oponentes abstrao e figurao , o que corrobora a compreenso da potica guinleana. o terico americano observava, ainda, que a partir da dcada de 1950 o expressionismo abstrato daria sinais evidentes de seu esgotamento, fazendo nascer um significati-vo nmero de signatrios daquela linguagem e a necessidade de reordenar o espao de uma maneira que parecesse mais coerente ou ilusria, o que explicaria, por exemplo, a origem da srie de mulheres pintada por De Koo-

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    ning, entre 1952 e 19532, e qual o pintor retornaria intermitentemente.

    nessa mesma esteira, torna-se pertinente indagar: teria Guinle, e outros jo-vens pintores que emergiram na dcada de 1980, se apoiado na prerrogati-va aberta por aqueles predecessores? ou ainda: teria sido essa possibilidade de tensionar a histria da arte para frente e para trs abrindo uma fresta para se desviar das linguagens conceituais e de uma produo que mantinha interface com a tecnologia que motivou o carioca e alguns outros jovens pintores a revitalizar a abstrao de tendncia expressionista?

    embora no seja possvel responder com segurana a essas e outras inda-gaes, Jos Gil contribui de alguma maneira para ampliar a reflexo sobre essa problemtica. Destacava no existir mais a mesma unidade e coerncia entre as sintaxes surgidas a partir da dcada de 60 em relao s tendncias artsticas anteriores, o que ocasionou o fim das vanguardas, a instaurao da crise da arte e uma sensao de vazio. o fazer artstico reduzia-se, a partir de ento, a um projeto conceitual ou terico, no datado, destitudo de qualquer programa esttico a ser seguido e no mais conectado com a ideia de originalidade. Para o mesmo terico, o vazio transbordar da pintura (contempornea) atravs de mltiplos cruzamentos, enxertias, hibridaes, contaminaes, particularidade que se desvelava j nas ltimas vanguar-das, e que, segundo ele, explica, tambm, o que denomina de miscelnea e de confuso generalizada da arte contempornea, impedindo-a tanto de produzir aderncias, como se desvinculando da ideologia utpica e dos dis-cursos legitimadores (Gil, 2005, p. 85).

    Segundo o terico, isso no modificou a compreenso da historiografia da arte ocidental, que continuaria a ser escrita e estudada tomando como pre-missa a evoluo das formas, mesmo que alguns tericos europeus profe-tizassem, j nas primeiras dcadas do sculo XX, sobre as evidncias es-tticas e os rumos imprevisveis da arte, o que exigia a problematizao da histria e a reviso radical de seus prprios fundamentos.

    ao revitalizar o fazer artesanal e a praxe pictrica, a Gerao 80 tentava, no entender de Gil, pr um freio na barafunda da arte contempornea (balizada

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    pela onipotncia da indstria cultural e das tcnicas de comunicao), instau-rando, assim, um movimento crtico ao evolucionismo histrico e um curto-circuito no processo de produzir e de absorver imagens. o terico portugus no deixa de ter razo quando observa que parte dos jovens pintores tencio-nava a memria artstica, lanando um novo olhar sobre cones da histria da arte moderna, como Picasso, Klee, e sobre pintores abstratos.

    mesmo que esses dois artistas europeus tenham sido citados como a prin-cipal referncia, por expressivo nmero de abstracionistas, deve-se consi-derar que Klee foi tido pelos protagonistas da abstrao informal europeia como o mais emblemtico e o pintor que exerceu maior fascnio sobre eles. Quase sem exceo, as geraes mais novas ressaltaram a fora do ima-ginrio e da subjetividade das criaes de Klee e a liberdade e autonomia com que esse pintor suo transitou por diferentes gramticas, numa ex-tenso que aproximava figurao e abstrao, projetando-se para alm de seu prprio tempo esttico, concebendo a superfcie pictrica como um campo de coexistncias e como devir mltiplo (Gil, id. p. 82-84). Para os abstracionistas do ps-guerra, a potica de Klee instaurara uma espcie de tenso entre completude e inacabamento, entre o todo e o fragmento, que caracterizou na verdade uma das aspiraes da utopia modernista, mas que, na arte abstrata, parecia conectar-se diretamente subjetividade e propalada ideia de formao da forma, ou ao conceito teleolgico de dar forma, de trazer luz, enquanto maneira de se opor evidncia retiniana da representao ou mmese (Gil, id., p. 82-85).

    essas e outras reflexes expressas pelo terico portugus ajudam a escla-recer, por analogia, a atitude de Guinle e de outros pintores da Gerao 80, que dialogando com a pintura de diferentes antecessores modernistas iriam justapor em suas telas determinados elementos figurais e abstratos. Segun-do Gil, esses jovens artistas,

    fingiam retornar ao passado, (...) quando se empenham numa fuga para a frente em relao s imagens, na esperana de encontrar um solo frtil, (...) um espao e um tempo para sua pintura. (...) num mun-do oco e vazio, quando at as palavras se esvaziam do seu sentido,

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    reduzindo-se a algarismo ou a traos, procurar referncias em artis-tas do passado era tambm resgatar o vnculo com os seus afetos e com a expresso, para devolver arte um sentido vivo, uma coern-cia maior entre o que percebiam e o que sentiam, e para criar novas

    imagens e novos pensamentos (2005, pp.89-90)

    nessa mesma acepo, o jovem pintor carioca parece ter percebido clara-mente que num mundo em que tudo se equivale nada se torna possvel. em seu trnsito pela histria da arte pde constatar que, j nas ltimas vanguar-das de modo especial na abstrao informal e no expressionismo abs-trato , os artistas empreenderam um processo criativo que empreendia um retorno ao passado, revelando contaminao, hibridizao, cruzamento de materiais e com diferentes tendncias da pintura moderna (da pincela-da fragmentada do impressionismo ao gesto automtico surrealista), bem como com outras mdias artsticas e outros campos do conhecimento.

    assim, ao fascnio declarado que exerceram sobre os integrantes dessas duas tendncias abstracionistas, Kandinsky, Klee, Tobey, masson, matta, Gorky, entre outros, se juntava, igualmente, o interesse que muitos pinto-res do segundo ps-guerra revelaram pela msica, pela caligrafia oriental, poesia, garatuja infantil, pela fenomenologia, cincias ocultas, matemtica no euclidiana, teoria da dissoluo da matria. Se tal multiplicidade hetero-nmica parecia atestar que informalistas e expressionistas abstratos fizeram uma autorreflexo crtica negando a utopia do novo pelo novo, para iniciar o processo de revisita histria da arte; por outro lado, isso no deixava de ser paradoxal, pois iriam lanar as bases de uma metalinguagem, reali-zando negativamente a desconstruo da razo pictural, para se pintar a si mesma, chegando ao que alguns denominaram de pintura-pintura, tal como nos ensina Gil (2005, p.88).

    a Segunda Guerra e as atrocidades que ela provocou acarretaram um clima de crise e um vazio sem precedentes na histria da humanidade, fazendo ruir todas as certezas. os artistas seriam os primeiros a se conscientizar da falncia da razo, da ideia de progresso, o que punha fim utopia do novo pelo novo. Consequentemente, isso iria repercutir, de diferentes maneiras,

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    no processo de compreenso da histria, que deixava de ser uma sequncia evolucionista do tempo/memria.

    num mundo em que tudo se mostrava pulverizado, massificado, fragmenta-do, descontnuo, esse estado de indefinio generalizada e de fratura ou de clivagem, que iria implodir o campo tradicional das artes visuais e o exerccio esttico, gerando uma diversidade de prticas e de projetos no consensuais a partir dos anos 60, provocando o afastamento do pblico da arte e a crise do mercado. e mesmo que a realidade do mundo, na dcada de 1980, apa-rentasse ser diferente da do ps-guerra, a queda das ideologias e a formu-lao de uma nova geofsica econmica, cultural e poltica provocavam uma situao paradoxal: de um lado um estado de otimismo e de outro gerador de incerteza, de perplexidade, de dvida e de uma sensao de vazio que encontrava alguma simetria com o clima existencial do segundo ps-guerra. as rpidas transformaes do mundo provocaram mudana nas relaes de trabalho, aumentaram os conflitos sociais, cerceando a liberdade indivi-dual, por meio de um sistema de controle social invasivo, gerando uma crise existencial e, consequentemente, a necessidade de reatar o vnculo com a subjetividade, a individualidade, a noo de identidade e de pertencimento, enquanto condies para a superao do sentimento de vazio e de impo-tncia.

    Por esse vis torna-se possvel entender, de alguma maneira, a razo de Guinle ter optado tanto por revitalizar a pintura quanto por dialogar com o expressionismo abstrato, empreendendo um processo que tanto atual e particular quanto anacrnico, escavado e alocado de um tempo pretri-to. Com o intuito de eliminar as fronteiras estanques do tempo, ciente que essas delimitaes conceituais passado, presente e futuro no passam de articulaes da histria, o jovem artista carioca entre outros congne-res da mesma Gerao 80 dialogava com as formas do passado recen-te, desterritorializando-as e descontextualizando-as, para realoc-las num outro tempo e lugar. resgata o fazer pictrico, distendendo a histria da arte para trs e para frente, subvertendo a ideia de passado, instigando-o e interpelando-o. intentava assim desvelar-lhe os vus, fazendo com que toda a ideia de evoluo se invertesse, desmantelando ou pondo em xeque

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    os modelos de continuidade histrica (DiDi-HUBerman, 2000, p.136).

    Tal qual fizeram os expressionistas abstratos e os pintores informais que o precederam (Pollock, Kooning, newmann, motherwell, Hofman, rothko, Bazaine, Wols, fautrier, mathieu, Bandeira, iber Camargo), pintores que igualmente deixaram aflorar em suas respectivas telas arcabouos figurais, Guinle deixava esses mesmos elementos fluir espontaneamente como es-pectros, enredados numa verdadeira teia de linhas e manchas coloridas, na superfcie epidrmica de sua pintura. esses pintores modernistas atriburam ttulos s suas respectivas pinturas, ora com um sentido referencializador, ora sem imprimir-lhes um nexo aparente, mas com a inteno de instaurar uma conotao irnica ou pardica. as denominaes atribudas por Guinle s suas telas, parecem ter conotao anloga, ao se esboarem como meros jogos de palavras ou remeterem a referncias extradas de diferentes ex-tratos da memria cultural (cinema, literatura, histria, objetos, territrios)3. Com esses artifcios, procurava persuadir o olhar do espectador, instigar-lhe a memria e obrig-lo a deter-se diante delas, tentando desvelar entre uma formulao aparentemente catica e construda com generosas camadas de matria pictrica, diferentes possibilidades configuradoras e pertinncia entre os elementos sensveis.

    tambm nos ttulos de suas obras que se evidencia a potncia intelectu-al de Jorge Guinle e a sintonia que procurava estabelecer com o mundo sua volta, ao remeter a uma gama de referncias artsticas culturais, acu-muladas e digeridas ao longo de sua curta existncia, base cultural que o diferenciou da maioria dos pintores de sua gerao4. Que outro sentido tm esses ttulos paradoxais, a no ser a vontade de estabelecer um processo narrativo gerador de uma relao de atrito, conflito e choque, por meio da disparidade entre o lxico e o visual? mas talvez possa, ainda, ser aventada alguma simetria entre a inteno do brasileiro e a mxima de Duchamp: eu tratava o ttulo como uma cor invisvel? (apud Gil, id., p. 85).

    a pintura de Guinle reordenava e atualizava uma gama de referncias estra-tificadas, que passavam pelo fauvismo, expressionismo, cubismo, surrealis-mo, abstrao informal e culminavam no expressionismo abstrato , como

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    se seu pincel arrastasse todo o peso da memria visual das vanguardas histricas. o fato de ele no se deter numa nica referncia especfica, no deixava de sinalizar que o jovem concebeu o campo pictrico como um jogo de ocorrncias, de cruzamentos e de infinitas possibilidades.

    ao optar por articular na contemporaneidade uma pintura abstrata que re-velava forte vnculo com as tendncias informais ou de matriz expressionis-ta, Guinle parece ter atinado, com absoluta clareza, que, aps a Segunda Guerra, tanto quanto em seu tempo histrico no existia mais a compulso do novo, nem a busca de unidade entre as linguagens, capaz de orientar um caminho para a arte, o que, consequentemente, tambm impedia de preco-nizar qual a trajetria que ela iria empreender no futuro. Talvez isso explique por que o carioca assumiu transitar pela histria da arte da primeira metade do sculo XX sem se agarrar ou se fixar em uma nica tendncia, atitude que seria demonstrada, igualmente, por muitos outros jovens da mesma gerao, que, sem preconceito e cerimnia, optaram por potencializar, rea-locar e ressignificar imagens, tcnicas e procedimentos do passado que, por algum motivo particular, lhes interessavam e os instigavam.

    a esse processo que moveu os artistas do presente a interrogarem e se apropriarem, consciente e intencionalmente, de fragmentos da histria da arte de um tempo pretrito elegendo imagens, cdigos, sintaxes e outros elementos visuais , lanando sobre eles um novo olhar desconstrutivo, in-terpretativo e recodificador, Georges Didi-Huberman denomina anacronis-mo. ao empreender um verdadeiro priplo pela histria da arte moderna, Guinle fazia emergir movimentos, conceitos, gostos, imagens e cores, que a mobilidade do tempo relegou ao esquecimento, ou colocara margem e condenou imobilidade. Com sua ao/tempo/vivncia/experincia, esse jovem artista devolvia s imagens e procedimentos do passado pictrico ainda recente uma nova sintonia temporal e, portanto, uma outra memria. assim, o espectador, ao interrogar a pintura guinleana, no poder tentar estabelecer uma correspondncia temporal precisa passado/presente, pois o que se dar a conhecer nas telas do artista no mantm uma correlao precisa entre o significado do passado, e o que elas enunciam no presente.

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    Como bem observa Didi-Huberman, essa ao tensionadora da memria para trs e para frente no seria exclusividade dos pintores contemporne-os, localizando, ao longo da histria da arte ocidental obras que revitalizaram imagens pictricas e outras formulaes que se anteciparam ao seu tempo. o terico destaca a existncia j em obras do sculo Xv de processos de releitura e recodificao de aspectos da cultura greco-romana, e localiza em obras do mesmo perodo formulaes que antecederam em muitos sculos os signos abstratos do sculo XX 5.

    nessa mesma acepo que entendemos a relao que Jorge Guinle pro-curou estabelecer com a abstrao informal e o expressionismo abstrato, tendncias que inspiraram a prxis do artista, isto , forneceram-lhe os n-dices de natureza visual ou externa, modulados por ele com um acento de subjetividade. o jovem artista empreendeu verdadeiro mergulho dentro de si, para revitalizar elementos que pareciam adormecidos na sua memria, ativando-os por meio de sua ao e experincia, ndices que se revelam no frenesi da pincelada, na impulsividade trgica ao manejar a matria e na ma-neira como equilibra reas de verdadeira exploso de cores vibrantes com superfcies em que predominam os tons soturnos e de menor ressonncia

    luminosa.

    Consideraes finais

    ao definir sua pintura como uma iconografia da histria da arte (1983, p. 201), Guinle postulava que suas gigantescas telas so depositrias de ima-gens de todos os estilos e tempos, oferecendo-nos a chave para a compre-enso de sua potica e facultando-nos uma aproximao com o pensamen-to de Didi-Huberman.

    a afirmativa do artista brasileiro no suscitava a volta melanclica ao pas-sado, mas tinha um sentido otimista, transgressor e irnico, subvertendo conceitos estratificados pela histria da arte ocidental. requeria a atempora-lidade das formas pictricas, mostrando que elas enredam em sua tessitura e na sua histria um acmulo de tempos que se aproximam e se imbricam

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    na memria visual. Guinle interrogava, assim, o passado, instaurando um abalo no presente; inquietava e desestabilizava o olhar, formulando imagens que atravessam, subvertem, dobram e desdobram a linha evolucionista da histria. advertia-nos da impossibilidade do interlocutor do presente dialo-gar com as imagens artsticas do passado, ancorado no mesmo aparato es-ttico e nos paradigmas visuais em que se pautaram os artistas modernistas que o precederam, no sentido de que jamais se conseguir reconstituir no presente o significado e o juzo de valor que as formas angariaram na poca em que foram concebidas ou formuladas.

    o pintor brasileiro parece ter compreendido que ao interrogar as imagens do passado, era o presente que se projetava nelas e se reconfigurava, o que por si s desmontava a linearidade do tempo, a cronologia evolucionista da histria da arte e intercambiava o tempo como memria, pois o tempo que no exatamente o passado, no pode ser outra coisa a no ser mem-ria, nos ensina Didi-Huberman (2000, p.41).

    ao ressaltar que sua obra imbrica imagens da histria da arte, de diferentes tempos e memrias, Guinle inquietava e instigava a percepo do interlocu-tor com seu processo arqueolgico, engendrando uma fatura pictrica que ao mesmo tempo abstrata e indicial, articulada por signos e cones, que aproximam ou fazem confluir polos opostos presente e passado, subjetivi-dade e objetividade, clareza e obscuridade tal como assevera T. J. Clark, que na arqueologia da histria da arte se imbrica a arqueologia do sujeito (2007, p. 333).

    o artista carioca consignava igualmente que, assim como o tempo e o sentido das coisas so ficcionais, tudo o que o olho visualiza nas suas telas ilusrio, um quase, um espectro gerado pela vontade transfiguradora e pela ao criadora, pois o elemento material por excelncia da pintura o pigmento de cor. (DiDi-HUBerman, 1990, pp. 289-290). ao transpor e amalgamar em sua praxe cdigos revitalizados da memria evanescente do passado, Guinle parecia entender que a referncia no era mais que um quase, isto , uma transfigurao desnudada ou esvaziada de sua significao original, espectro do que j foi e do que poder vir a ser, num novo contexto visual,

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    na superfcie de suas telas do agora. Para Didi-Huberman (1990:284), na pintura o tudo um quase, no sentido de que nada se desvela ou se apre-senta como na realidade objetiva, e como tal no poder ser apreendido, pois se tudo parece celebrar-se e encenar-se no campo magntico de uma tela, quase nada do que visualizamos est posto l.

    ainda segundo o terico francs, numa pintura se cruzam diferentes tempos, memrias e sentidos, o que torna redundncia afirmar que ela se refere ex-clusivamente ao passado ou ao presente, da mesma forma que uma pintura no pode ser tida como descritiva ou narrativa, nem figurativa ou abstrata, mas o entre elas, aquilo que viceja na fresta ou na dobra entre as duas pro-posies ou contraposies. o que se d a ver sempre a maneira como o artista maneja o pincel, para evocar postiamente determinadas articulaes visuais, numa relao que ele tenta estabelecer com o mundo analgico, alo-car da memria ou arrancar da imaginao; e no estilo, que nada mais do que a maneira como ele dispe e atribui nexo s unidades mnimas da obra, e como estabelece a lgica entre as partes e o todo, como integra e pe em interao os elementos visveis e os sensveis (materiais, forma, cor, luz, tex-tura, ritmo, harmonia, equilbrio) (DiDi-HUBerman, id. ib).

    as reflexes de Guinle e sua maneira peculiar de interagir e se posicionar diante da pintura universal, particularmente a liberdade e a sagacidade com que o mesmo transitava pelo universo das imagens e pela histria da arte moderna, parecem alinhar-se, em vrios sentidos, com o pensamento do filsofo francs. Citando uma heterogeneidade de fontes de onde assegu-rava extrair referncias, recorreu, com a mesma voracidade, a estruturas figurais e a abstratas, dialogando com obras de autoria de alguns dos mais emblemticos pintores modernistas. Por meio de uma ao subversiva e intelectiva, imagens e cdigos eram deslocados de seu contexto temporal e reconfigurados e reinscritos num outro territrio/tempo/memria.

    embora o jovem artista carioca tenha se deixado contaminar pelo fenmeno internacional da retomada da pintura na europa e nos estados Unidos, sua gramtica pictrica dialoga com o expressionismo abstrato norte-ame-ricano, para restabelecer o nexo com a subjetividade e a emoo, mas no

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    deixaria de revelar assimetria com os neoexpressionistas germnicos, en-cabeados por anselm Kiefer, ou mesmo por alguns italianos. entretanto, as telas guinleanas foram rotuladas apressadamente de neoexpressionistas pois, como bem observam alguns historiadores e filsofos, nas sociedades ocidentais h sempre urgncia de classificar tudo.

    a sintaxe guinleana distancia-se do pastiche de materiais, do sentimentalis-mo exaltado, do discurso da identidade nacional e da memria histrica, e da viso apocalptica que caracterizou a pintura europeia dos anos 80. man-tm, ao contrrio, uma gestualidade impulsiva, otimista e selvagem, que se desvela na vertigem da linha da cor e da pincelada, na sensualidade e vol-pia dos signos e na sinergia da cor e da matria. embora a fatura pictrica do carioca mantenha uma formulao aparentemente catica, em meio qual se desvelam arcabouos figurais, que parecem ter sido gerados de maneira aleatria, nas telas do artista tudo era medido, calculado e ajustado por uma mo experimentada e um pensamento argucioso.

    o pintor no acreditava no olhar puro ou ingnuo nem na sincronia das for-mas artsticas, mas entendia que o fenmeno artstico era diacrnico ou anacrnico (como prefere denomin-lo Didi-Huberman). Colocava-se con-victamente como herdeiro do modernismo, com a certeza que a ideia de ori-ginalidade h muito tinha sido transgredida, no pertencendo, portanto, ao seu tempo histrico. Por esse vis, o novo no deixava de ser uma evoluo ou um recondicionamento da tradio (tal como prognosticou Carl einstein), o que autorizou o jovem carioca a empreender um verdadeiro trnsito pela histria da arte moderna, prtica que no deixava de ser, tambm, uma maneira encontrada para assentar sua praxe em uma base slida e atribuir a seu projeto criativo sustentao esttica.

    o olhar lanado pelo carioca sobre a pintura de seus antecessores no pode ser entendido, obviamente, por uma nica angulao, pois o significado de suas escolhas j demarcava uma visada tanto reconfiguradora, quanto mo-bilizadora e transgressora do tempo/memria. o artista contemporneo mostrava-se consciente, de que o olhar antropofgico e ressignificador contaminado por referncias/experincias mltiplas , o que explica a au-

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    toridade de que se investiu para retirar do esquecimento obras de tendn-cias artsticas e tempos dspares, revigorando-as e atualizando-as atravs da ao e reflexo do agora. alinhava-se, assim, em vrios sentidos com o pensamento de Didi-Huberman, reafirmando, inclusive, a ideia por ele ex-pressa de que preciso compreender (...) que a autntica tarefa de uma histria da arte compreender as imagens da arte consiste em entender a eficcia dessas imagens como sobredeterminada, extendida, mltipla, in-vasora. (2000, p. 230).

    Referncias Bibliogrficas

    ClarK, T. J. modernismos: ensaios sobre poltica, histria e teoria da arte. org. Snia Salzstein; Trad. vera Pereira. So Paulo: Cosacnaify, 2007.

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    Gil Jos. Sem ttulo escritos sobre arte e artistas. lisboa: relgio Dgua, 2005.

    GUinle, J., in Catlogo da Xvii Bienal internacional de So Paulo, 1983.

    ________. Papai era surfista profissional, mame fazia mapa astral legal. Gerao 80`ou como matei uma aula de arte num shopping center, in BaSBaUm, r. (org.). arte contempornea brasileira: texturas, dices, fices, estratgias. rio de Janeiro: rios ambiiosos, 2001, p. 231-235.

    Notas1 a euforia que a retomada da pintura ocorrida na dcada de 80 provocou foi enten-dida como um fenmeno contemporneo, que resgatava um fazer h muito esque-cido. vale lembrar, porm, que, tanto no contexto brasileiro quanto no estrangeiro, inmeros artistas que emergiram nas dcadas de 60 e 70 nunca abandonariam as telas e os pincis. Pintores como iber Camargo, antnio Henrique amaral, Joo Cmara, Wesley Duke lee, Siron franco, luiz quila, Carlos Zlio, marco Tlio re-sende, entre outros, continuaram pintando, com exclusividade ou em paralelo a outras linguagens.

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    2 Deve-se considerar que a insero nas telas de cdigos abstratos e figurais seria adotada, tambm, por vrios outros artistas norte-americanos, europeus, e por brasileiros, entre os quais destacamos: Pollock, Wols e Bandeira.

    3 alguns ttulos atribudos por Guinle s suas telas parecem ter sido emprestados de expressionistas abstratos, entre as quais a que batizou de Ulisses, em 1983, deno-minao que coincidia com a de uma pintura de newmann, de 1952, mesmo que do ponto de vista formal e compositivo elas no revelam afinidade. o ttulo de ambas as telas parece ter sido emprestado, todavia, da obra literria homnima de autoria de James Joyce (1882-1941). a adoo de ttulos que remetem a personagens ou referncias histricas encontrava correspondncia, tambm, em outros abstracio-nistas, a exemplo do francs Georges mathieu.

    4 Para melhor juzo, eis alguns dos ttulos das telas do artista: van Gogh pastor; Walt Disney, Cobertas Coarctadas; auroras Hidrulicas; amante revolucionria; Disp-nia Parafernlia; night Club; macunama; D. Quixote dos morros; Quem tem medo de virgnia Woolf; Galicneo Galhardeado; nos confins da cidade muda; Paladar dos Santos, Cavalo de Troia; Carta do cativeiro; Sincronizador para os quatro cavaleiros do apocalipse...

    5 o terico francs refere-se ao afresco executado por fra anglico no convento de So marcos, em florena (1440). apesar de tratar-se de uma cena religiosa, de carter figurativo, o fundo da pintura possui manchas, que produzem como que uma deflagrao: um fogo de artifcio colorido, que reconfigura a pintura e proble-matiza a experincia visual. o artista antecipou, assim, em alguns sculos, o cdigo abstrato, atribuindo a determinadas reas pictricas que negavam o sentido mera-mente visual das imagens, que no era prprio do seu tempo histrico, mas que se tornou possvel como uma construo da memria ou, talvez, da imaginao. Como a pintura sobreviveu muito mais que o artista, pode-se dizer hoje que fra anglico antecipou-se no tempo, atribuindo-se uma formulao esttica no representativa que s ocorreria num futuro distante, isto , o espectador atual percebe a existncia na obra do passado remoto de atributos estticos prprios de seu prprio tempo/memria. Tal peculiaridade leva Didi-Huberman a afirmar que a imagem tem mais de memria e mais de futuro que o ser que a contempla (2006:12). Posio seme-lhante assumida por T.J. Clark, ao observar que devemos dialogar com a histria da arte com o pensamento dialtico, que possibilite perguntar por que a inovao est tantas vezes ligada a uma renncia das realizaes anteriores, como tambm pode se conectar a retrocessos e inverses (2007, p. 333-334).

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