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Joo Ferreira de Almeida Jos Madureira Pinto

Teoria e investigao emprica nas cincias sociaisADVERTNCIA O tratamento de algumas questes relacionadas com a investigao em cincias sociais supe a prvia localizao de um conjunto de problemas surgidos da anlise do processo de produo de conhecimentos cientficos, das suas condies, dos seus mecanismos e fases de desenvolvimento, dos obstculos que se lhe opem. Em torno de problemas deste tipo se desenvolveu grande parte duma experincia docente de alguns anos em cadeiras introdutrias na Universidade, que teve tambm expresso em textos de ndole e inteno pedaggica \ No se trata aqui de retomar o conjunto desses problemas; justamente por isso se sugere para eles uma remisso genrica, sublinhando, ainda uma vez, o seu carcter prvio em relao aos aspectos que procuraremos abordar. Interessa, por ltimo, esclarecer que o texto agora apresentado se insere numa certa continuidade de trabalho pedaggico em relao s temticas anteriormente mencionadas. Essa a razo de algumas das suas caractersticas formais, como a existncia de glossrios: esteve sempre presente a preocupao de apoiar e facilitar o trabalho a desenvolver nos cursos.

CONDIES E PROBLEMAS GENRICOS DA INVESTIGAO EMPRICA1. CONDIES TERICAS DA PRODUO CIENTFICA1.1 INTRODUO

Uma proposio importante do mbito da sociologia do conhecimento e da epistemologia poderia esquematicamente resumir-se da seguinte forma: os produtos-conhecimentos resultantes de uma prtica cientfica so1 Assim o texto-base: A. Sedas Nunes, Questes Preliminares sobre as Cincias Sociais, Lisboa, Cadernos G. I. S., n. 10, 1973; tambm A. Sedas Nunes, Sobre

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duplamente determinados: directamente, pelas condies tericas da produo cientfica; indirectamente, pelas condies sociais dessa produo. As condies tericas envolvem, por um lado, um certo estado da problemtica (conjunto articulado de questes) no campo cientfico considerado e os problemas actuais ou virtuais que essa problemtica permite formular e, por outro lado, toda a instrumentalidade terica, metodolgica e tcnica (os meios de trabalho terico) disponvel e accionvel para dar conta dos referidos problemas. As condies sociais designam a pluralidade de estruturas e prticas da formao social em que a actividade de investigao se exerce e que nela por mltiplas formas interfere. Dessas interferncias, que constituem outros tantos sintomas da necessidade de ter em conta, ao analisar os conhecimentos cientficos, as condies sociais da sua produo, possvel dar mltiplos exemplos a vrios nveis. Pode mostrar-se como certos contextos histrico-sociais influenciaram o nascimento de determinadas cincias, ou como certas transformaes em disciplinas cientficas se relacionam com transformaes sociais e so por elas parcialmente explicveis. Mas no campo das cincias sociais bastar lembrar a aguda conflitualidade terica interna a cada uma das suas formaes disciplinares: tratar-se- de polmicas puramente cientficas? Parece claro que as suas manifestaes, os seus resultados, s podem entender-se como o prolongamento especfico da luta ideolgica nas sociedades de classes e se articulam assim, por seu intermdio, com o complexo conjunto de contradies da formao social considerada. Outros sintomas suficientemente ntidos da pertinncia dos efeitos das condies sociais sobre a produo de conhecimentos se encontrariam, por exemplo, quer no subdesenvolvimento generalizado das cincias sociais, quer no seu desenvolvimento desigual. H assim que recusar uma perspectiva idealista, que considere a cincia, no singular, como criao duma Razo universal, da Inteligncia, do Esprito humano abstractos e a-histricos; tal perspectiva tender a estudar os produtos-conhecimentos cientficos elidindo as condies sociais da sua produo. Mas ser pertinente uma concepo materialista vulgar (mecanicista) que postule o paralelismo imediato, o perfeito isomorfismo entre processos socieconmicos e processos cientficos? Que, elidindo desta vez as condies tericas da produo cientfica, pretenda resumir a anlise explicativa dos produtos tericos a uma tarefa de deteco dos respectivos geradores sociais? A colocao correcta do problema do estatuto da prtica cientfica e dos seus produtos exige tambm, cremos ns, a superao deste obstculo. Retomemos a questo geral: as estruturas e as prticas econmicas, polticas, ideolgicas, numa formao social dada, definem e delimitam espaos (tericos) diferenciais onde surgem, se desenvolvem e se transformam as formaes cientficas concretas. Ou seja, sendo inegveis as determinao Problema do Conhecimento nas Cincias Sociais, Lisboa, Cadernos G. I. S., n. 9, 1973; ainda o caso de uma srie de cadernos roneotipados elaborados pelas equipas docentes e que constituram o ponto de partida para o trabalho em aulas, entre os quais se destacam: A Cincia como Produto e como Sistema de Produo; Elementos de Sociologia do Conhecimento Produzido pelas Cincias Sociais; A Conflitualidade Interna das Cincias Sociais.

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es sociais dos produos-conhecimentos, no se pode ignorar a existncia de mediaes importantes as condies propriamente tericas da produo cientfica. As procuras sociais naquilo que se pode chamar o mercado do saber (e s so procuras efectivas as que envolvem um substrato de poder) solicitam por vezes, com relativa preciso, certas respostas cientficas. Ora as respostas que se obtm nem so fatalmente as solicitadas, nem surgem na imediata sequncia temporal dos pedidos, no havendo sequer garantia do prprio surgimento da resposta. O exemplo ilustra o que designaremos por autonomia relativa da produo de conhecimentos cientficos. Com efeito, dentro dos espaos cujos limites as condies sociais demarcam, podem encontrar-se desenvolvimentos autodeterminados, internos aos respectivos campos tericos. Podem perceber-se solicitaes de movimentos de recobrimento de vazios conceptuais, s referenciveis prpria inrcia do processo de investigao. Pode dar-se conta de diferentes ritmos, de diferentes temporalidades nas vrias formaes cientficas, que s so explicveis a partir do estado das respectivas problemticas, da organizao das respectivas racionalidades, a partir, numa palavra, das respectivas condies tericas de produo. Em resumo, e uma vez que, dentro dos limites determinados pelas condies sociais, so as condies tericas que directamente configuram os ritmos e o sentido dos desenvolvimentos e transformaes dos conhecimentos, legtimo constituir em objecto de anlise as relaes dos produtos cientficos com as suas condies tericas de produo, a partir de uma determinada situao da problemtica e em relao aos problemas por esta designados: a produo de elementos conceptuais, a construo da teoria, um processo com a sua prpria lgica interna de desenvolvimento. Pode o trabalho cientfico ser analogicamente assimilado actividade de apropriao material da natureza, na medida em que ambos se reconduzem forma geral: trabalho humano de transformao de matrias-primas em produtos, mediante recurso a determinados instrumentos. O interesse da analogia reside fundamentalmente em nos situar, desde logo, numa perspectiva antiempirista, ao acentuar o carcter de construo que o conhecimento cientfico reveste: o trabalho terico no consiste na manipulao directa dos objectos reais, no consiste na abstraco-extraco de essncias do real, mas antes na produo de objectos de conhecimento capazes de servir de instrumentos para a apropriao cognitiva (indirecta) desse real. A partir do conceito de prtica cientfica, o que nos vai interessar, nesta parte i, a caracterizao de um dos seus elementos: os meios de trabalho. So eles constitudos, em cada formao cientfica, pelo corpo de conceitos, mtodos e tcnicas disponveis num momento dado e accionveis, portanto, nas actividades de investigao que se processam no mbito dessa formao. Os meios de trabalho terico so assim, neste sentido, os elementos propriamente instrumentais do que designmos por condies tericas de produo cientfica. Mais adiante nos ocuparemos dos mtodos e das tcnicas de investigao. Vale a pena analisar agora a questo da teoria, tanto mais que se trata de um vocbulo comportando uma polissemia embaraosa, com mltiplas e por vezes contraditrias acepes, mesmo no interior do campo das cincias sociais, o que dificulta em extremo a tarefa de definio do conceito. foroso renunciar a uma recenso, que seria fatalmente parcial,

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dessas diversas acepes. Tambm sero postas provisoriamente entre parnteses, para s mais tarde serem referidas, certas classificaes que parecem pertinentes uma vez fixado o conceito geral de teoria. Tentaremos por agora situar o conceito a dois nveis: teoria em sentido amplo e teoria em sentido restrito. Em 1.4, a ttulo informativo genrico, referiremos a proposta de classificao de teorias de R. Boudon, cujos critrios e alcance no so, de resto, coincidentes com os nossos prprios.Glossrio (i, 1.1) Condies tericas da produo cientfica Condies sociais da produo cientfica Autonomia relativa da produo de conhecimentos Prtica cientfica Elementos da prtica cientfica Meios de trabalho terico 1.2 PROBLEMTICAS E PROBLEMAS. MATRIZ TERICA OU TEORIA EM SENTIDO AMPLO

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Duma disciplina cientfica constituda pode dizer-se que corresponde, antes de mais, a um conjunto estruturado de questes, que se designa por problemtica terica. essa problemtica terica disciplinar que delimita um espao de visibilidade definidor das condies de surgimento dos problemas, no percurso da disciplina considerada. Por outras palavras, as contradies ou anomalias que solicitam novos conceitos para delas dar conta, que propiciam o trabalho de construo de novos objectos de conhecimento, s surgem, s podem surgir, dentro desse campo de visibilidade que a problemtica terica institui. certo que o aparecimento de um problema no tem apenas que ver com as condies tericas da produo cientfica, mas tambm com as condies sociais dessa produo, como temos vindo a acentuar. Na verdade, ele determinado por um conjunto complexo de relaes de natureza diversa, que poderiam esquematicamente enunciar-se assim: relaes entre os conceitos disciplinares (intracientficas); relaes entre os conceitos e os objectos reais que eles visam apropriar (infonmao-observao sistemtica e controlada-validao); relaes entre a formao disciplinar considerada e outras formaes disciplinares (complementaridade-interdependncia-pluridisciplinaridade-interdisciplinaridade); relaes entre as prticas sociais no seu conjunto e a prtica cientfica em causa. Mas a problemtica terica constitui sempre pressuposto do surgimento dos problemas enquanto propriamente cientficos, o que no mais do que uma outra forma de reafirmar a prioridade das perguntas sobre as respostas. Ser, no entanto, sempre assim? O desenvolvimento normal de uma formao cientfica traduzir-se- grosso modo num processo acumulativo de conhecimentos sem solues de continuidade, ou seja, movendo-se dentro do domnio de compatibilidade de uma problemtica terica dada. Porm, como o mais elementar conhecimento da histria das cincias demonstra, as coisas no se passam por vezes deste modo. Mesmo no considerando os casos espectaculares de inaugurao das cincias novas, feita contra problemticas ideolgicas anteriores, sabe-se que muitos dos progressos cientficos implicaram descontinuidades, saltos, com mutao mais ou menos radical e mais ou menos

extensa das problemticas tericas existentes. Estas situaes de crise, obrigando a reformular conhecimentos anteriores, podem designar-se por rupturas intracientficas. Ora justamente aqui que a questo da prioridade das problemticas pode suscitar dvidas, uma vez que contra a problemtica existente que os novos problemas surgem, impondo a futura destruio, ao menos parcial, dessa problemtica. Que sucede ento neste caso? Pode dizer-se que os novos problemas aparecem na sequncia e por virtude de perguntas diferentes que, ainda que apenas implcitas e tacteantes, nem por isso deixaram de se demarcar das perguntas institucionalizadas, oficiais, do sistema terico precedente, de forma a constiturem o sinal prenunciador da crise e a sua condio necessria2. Explicada a questo da anterioridade das problemticas em relao aos problemas cientficos, e portanto igualmente aos conceitos que deles do conta, agora possvel centrar as duas condies que permitem falar duma formao cientfica (disciplinar) constituda. Por um lado, a existncia duma problemtica; por outro, o preenchimento do espao aberto por essa problemtica por um conjunto de conceitos e relaes entre conceitos aptos a serem utilizados na produo especializada de conhecimentos da disciplina em causa, ou seja, na apropriao cognitiva de uma pluralidade de objectos reais. A esta segunda condio chamaremos matriz terica: a matriz corresponde assim a um corpo conceptual disciplinar, ou seja, teoria em sentido amplo. Os elementos de uma matriz terica poderiam notar-se, genericamente, Cu; o ndice i representa a linha / da matriz, identificando, em termos de problemtica, uma das dimenses desta; o ndice 7 representa uma coluna da matriz, uma zona de problemas. Ser assim possvel identificar o corpo conceptual de que uma formao cientfica num dado momento dispe atravs de uma matriz com n linhas representativas das n dimenses exploradas da problemtica e m colunas correspondentes s m dimenses dos problemas visveis. Portanto = / Cu ... Cim \)=

\Cm

... Cnm /

A construo progressiva e incessante duma matriz terica disciplinar, nos moldes que designmos por acuimulativos, corresponderia, pois, ao acoplamento de linhas suplementares representativas das dimenses inexploradas da problemtica. Se se entendesse que esta tinha n + l dimenses, a matriz T conteria uma zona de manobra correspondente a essas / dimenses e, em termos de problemas, s eventuais s dimenses da nova zona de visibilidade.2 Valer a pena, a este propsito, ler em [14] os textos de bibliografia e de aplicao do Caderno n. 3, especialmente o n. 9, de Lecomte du Nouy, e o n. 11, de Gaston Bachelard, bem como o texto de Peter Berger, includo no Caderno n. 1, onde aparecem Ilustradas com nitidez as consequncias tericas da formulao de questes diversas sobre um mesmo domnio do real.

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A zona de manobra da matriz, o seu campo de visibilidade, revela o seu esgotamento quando surgem contradies ou anomalias, isto , problemas, insusceptveis de integrao sistmica na matriz existente. Estamos ento perante a j considerada situao de crise terica, s passvel de soluo em termos de alterao da problemtica de referncia e, consequentemente, da reestruturao da prpria matriz. As rupturas intracientficas impem uma mudana de campo. O movimento traduzido pelo acoplamento de linhas e, forosamente, de colunas processa-se atravs do recurso aos elementos integrantes da matriz. O corpo conceptual que ela representa contm, portanto, operadores de denncia dos seus prprios vazios, o que ilustra a autonomia relativa da produo de conhecimentos cientficos. Para utilizar a terminologia proposta por Desanti, designaramos esse duplo movimento de denncia e recobrimento de vazios, suscitada por novos problemas, por descompactificao e compactificao da matriz.Glossrio (i, 1.2) Problemtica terica Problemas Ruptura intracientfica Matriz terica teoria em sentido amplo Descompactificao e compactificao da matriz 1.3 TEORIA EM SENTIDO RESTRITO

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Ao falar, no nmero anterior, de teoria em sentido amplo, fizemo-la coincidir com a noo de formao cientfica disciplinar. A nossa preocupao e da o recurso ao conceito de matriz consistia em mostrar como os conceitos, as relaes entre conceitos (proposies), as relaes entre relaes (leis), de que uma disciplina se pode, num dado momento, servir esto duplamente referenciados: a problemticas e a problemas. Mas, se uma matriz coincidente com uma formao cientfica dada, isso significa que ela inclusiva no apenas de conceitos substantivos (que, estando mais ou menos distanciados do real conforme o seu grau de abstraco, no entanto se lhe reportam sempre), mas ainda de conceitos processuais (mtodos e tcnicas), que, sem se referirem ao real, sem serem sobre ele conhecimentos, desempenham tambm funo essencial de instrumentos na prtica cientfica. Adiante procuraremos precisar melhor o lugar dos mtodos e das tcnicas; para j, apenas nos interessa acentuar que a matriz engloba o conjunto dos meios de trabalho terico disponveis. No ser tal afirmao contraditria do facto de a matriz ser considerada de um ponto de vista sincrnico, isto , fazendo abstraco de tudo o que no pertence a um estado historicamente determinado da formao cientfica em causa? No o cremos: os ccmceitos-conhecimentos so, a certo nvel, indissociveis da actividade cientfica que os produziu, e nesse sentido condensam todos os elementos processuais operados nessa produo. Ler uma matriz terica significa, assim, ler a espessura operatria do que nos aparece em primeira anlise como mera articulao sistmica e lgica de resultados puros. Nem de outra maneira se poderia retirar da matriz a fora instrumental que permite o seu contnuo movimento de auto--superao.

A referncia global a uma formao cientfica, enquanto conhecimentos e disponibilidade instrumental para novos conhecimentos, tem uma utilidade bem clara, mas insuficiente. De facto, qualquer cincia heterognea, contm subconjuntos de conhecimentos susceptveis de desenvolvimentos autonomizados, embora necessariamente referenciados ao sistema conceptual da matriz. Por outro lado, e a este nvel, lcito e indispensvel distinguir os conceitos a que chammos substantivos (referidos ao real) dos processuais. Estes ltimos, como veremos, desempenham funes diversas daqueles e obedecem a lgicas diferentes na sua produo, no seu desenvolvimento e na sua aplicao. Uma dupla reduo nos conduz portanto da matriz terica teoria em sentido restrito: esta , por um lado, um subconjunto organizado de conceitos e relaes; no inclui, por outro, os conceitos processuais. Resta fundamentar sumariamente o interesse deste segundo nvel, que nos levou a propor o conceito de teoria em sentido restrito; ser ele pertinente para a colocao de questes especficas nas cincias sociais? Julgamos que sim. Como j vimos, aqui que fundamentalmente se torna possvel entender o alcance analtico da distino entre elementos dos meios de trabalho terico teorias, mtodos, tcnicas. Tambm outras vrias acepes de teoria (grandes teorias, teorias de mdio alcance, teorias principais, teorias causais, etc.) podem, em geral, ser pensadas como classificaes que, embora decorrentes de diversos critrios, se referenciam ao conceito de teoria em sentido restrito. Por ltimo, ainda ao mesmo nvel que se pe o problema do hiato, nas cincias sociais, entre as linguagens da teoria e da investigao emprica, problema de que adiante tentaremos esboar algumas dimenses.Glossrio (i, 1.3) Proposies Leis Conceitos substantivos Conceitos processuais 1.4 TEORIAS E PARADIGMAS: PROPOSTA DE CLASSIFICAO DE R. BOUDON

O facto de termos afirmado o carcter polissmico do vocbulo teoria no nos impediu, portanto, de tentar fixar-lhe um contedo semntico til, distinguindo embora atravs de um critrio de incluso ou excluso do seu mbito dos conceitos e relaes entre conceitos processuais o sentido amplo do sentido restrito de teoria. Outros critrios tm, no entanto, sido utilizados para assinalar a diversidade de acepes do vocbulo. Por nos parecer particularmente sugestivo para uma anlise das condies tericas das cincias sociais, referiremos seguidamente um deles com certo pormenor. Proposto por Raymond Boudon ([6]), tal critrio conduz-nos distino entre teorias propriamente ditas (de carcter axiomtico) e paradigmas (tericos, formais e conceptuais). O facto de Boudon alternativamente designar as teorias propriamente ditas por teorias em sentido estrito de forma nenhuma significa que o seu mbito coincida com o das teorias em sentido restrito, tal como foram

consideradas no nmero anterior: o critrio de distino que a se utilizoudiverge em absoluto do que preside classificao que ora nos preocupa. 371

Segundo Boudon, a noo de teoria em sentido estrito assimilada de teoria axiomtica. Supe, portanto, a existncia de um conjunto de proposies primrias (ou axiomas) do qual seja possvel derivar, por meio de procedimentos lgicos de deduo e de equivalncia, um conjunto de proposies tericas verificadas. Embora nas cincias sociais escasseiem exemplos de teorias entendidas nestes termos, poderemos ir buscar um deles a O Suicdio, de Durkheim. Para que uma proposio como a seguinte: os catlicos acusam uma percentagem de suicdios inferior dos protestantes, deixe de traduzir apenas uma regularidade estatstica constatvel, para assumir um significado terico preciso, tem de ser derivada de um conjunto de proposies primrias que podem resumir-se do seguinte modo: A coeso social fornece um apoio psicolgico aos membros do grupo sujeitos a tenses e ansiedades acentuadas; A percentagem de suicdios funo das tenses e ansiedades no superadas a que os indivduos esto sujeitos; Os catlicos tm uma maior coeso social do que os protestantes. S a partir do conjunto de proposies anteriores se pode, portanto, fundamentar a expectativa de que nos catlicos se verifique uma percentagem de suicdios inferior registada nos protestantes. Quando acima se define teoria em sentido estrito, fala-se em derivar consequncias de um conjunto de proposies primrias. Ora, no exemplo de O Suicdio, este derivar de assume claramente a forma da deduo de tipo silogstico. Acontece, porm, que nas cincias sociais (particularmente em sociologia) nos encontramos com muita frequncia perante situaes tais que, dado um conjunto de proposies primrias, possvel dele derivar proposies verificveis, sem que essa extraco adopte os protocolos da deduo. Estaremos, em casos como estes, perante aquilo a que Boudon chama paradigma, mas que nos textos de cincias sociais surge tambm correntemente designado por teoria. Parece legtimo considerar trs tipos particularmente importantes de paradigmas: a) tericos ou analgicos; b) formais; c) conceptuais.a) Paradigmas tericos ou analgicos

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Neste caso, as proposies a explicar no so deduzidas, mas sim tiradas, por analogia, de um corpo de conhecimentos referenciado a um outro domnio da realidade ou a uma realidade artificial. Um exemplo: a formalizao da noo corrente de jogos de sociedade com dois ou mais protagonistas deu origem chamada teoria dos jogos, que assenta numa definio muito precisa de jogo. Um jogo implica regras perfeitamente definidas e conhecidas dos jogadores, supe que o que est em jogo (enjeu) seja fixado, conhecido antecipadamente e que a sua relao com os resultados do jogo seja claramente definida. Pois bem, a teoria dos jogos tem servido como paradigma analgico em trabalhos de cincias sociais (relaes internacionais, relaes industriais ou econmicas), podendo ser utilizada para explicar observaes feitas em situaes s assimilveis a jogos stricto sensu atravs de uma analogia mais ou menos indirecta.

b)JParadigmas formais

So sistemas de proposies que no se referem a qualquer contedo particular, orientando porm a investigao e a anlise na medida em que estipulam a forma sintctica adoptada pelas proposies explicativas. A relao entre tais paradigmas e as explicaes dos fenmenos sociais uma relao de subsuno, em que os primeiros funcionam como quadros de referncia aos quais as 'proposies explicativas vo buscar as suas regras sintcticas. O funcionalismo organicista de Radcliff-Brown que se pode considerar um paradigma terico, j que postula uma analogia entre os seres vivos e a sociedade foi criticado por R. Merton com fundamento na ilegitimidade dos seus postulados de base. Merton conservou, contudo, do funcionalismo primitivo a ideia de que os fenmenos sociais no podem ser explicados sem ter em conta as suas funes. Por isso mesmo, procurou delimitar com rigor a noo de funo, especificando as suas diferentes acepes. Desse modo pde elaborar um quadro formal capaz de conduzir formulao de proposies explicativas por subsuno. A validade das explicaes compatveis com o paradigma depender tanto do grau de validade atribuvel anlise funcional, como do grau de validade das subsunes propostas. A anlise mertomiana da mquina poltica americana, por exemplo, mostra, ainda segundo Boudon, que o funcionalismo pode ser aplicado explicao de casos singulares que no so susceptveis de constituir objecto de uma teoria em sentido estrito (a existncia do singular no se deduz explica-se). Se os paradigmas formais (tal como os tericos, alis) no correspondem, portanto, dum ponto de vista lgico, a teorias em sentido estrito, desempenharo, contudo, numa perspectiva epistemolgica, papel anlogo: permitem a descoberta de explicaes e a recolha de factos pertinentes e podem ser avaliados segundo critrios semelhantes (generalidade, poder heurstico, etc). Esta semelhana epistemolgica explicar ento, em grande parte, que uma mesma palavra teoria se aplique a entidades que, em termos lgicos, se distinguem flagrantemente.c) Paradigmas conceptuais

Os paradigmas at aqui considerados constituem sistemas de proposies: no caso dos paradigmas tericos, sistemas de proposies tericas, adoptados em domnios de aplicao diversos do original, com fundamento numa relao analgica; no caso dos paradigmas formais, sistemas de proposies formais, estabelecendo a forma sintctica das explicaes. Os paradigmas conceptuais, entretanto, constituem um quadro de referncia cuja estrutura a de um sistema de conceitos que estipula o vocabulrio da explicao. Exemplo: na primeira seco de General Theory in Sociology, Talcott Parsons apresenta dois paradigmas conceptuais. O primeiro distingue quatro nveis de organizao social: o primrio ou tcnico, o de gesto, o institucional e o societal. Os quatro conceitos que compem este sistema so suficientemente gerais para se poderem aplicar a organizaes muito diferentes, formando pois um sistema classificatrio. No entanto, em virtude de esta hierarquia de nveis organizacionais estar correlacionada com um conjunto de factos, possvel, atravs do referido

sistema conceptual, produzir explicaes, embora parciais (por exemplo,sobre a hierarquia social das profisses). O segundo paradigma conceptual24

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de Parsons estabelece uma classificao dos valores fundamentais de uma sociedade. Combinado com o primeiro, permite aperfeioar a cteoria da

estratificao social e explicar situaes diferenciais em termos de prestgio.Tendo ainda em vista a distino entre teorias propriamente ditas e paradigmas, prope R. Boudon as seguintes observaes: a) A classificao permite perceber o carcter polissmico do vocbulo teoria; b) O corpo de conhecimentos de que uma disciplina social dispe composto simultaneamente de teorias em sentido estrito e de paradigmas; c) Os diferentes tipos de paradigmas considerados contriburam em larga medida para o progresso das cincias sociais, por permitirem, como pudemos aferir atravs de alguns exemplos, a produo de explicaes; d) Alguns dos momentos decisivos no desenvolvimento das cincias sociais traduziram-se pela adopo de paradigmas novos ou ainda pela transmutao, generalizao e crtica de paradigmas existentes; e) A utilizao de um paradigma em detrimento de uma teoria em sentido estrito pode ser ditada pelas caractersticas lgicas dos fenmenos estudados. No parece, com efeito, possvel que teorias hipottico-dedutivas como as que a fsica privilegia permitam, pelo menos s por si, a anlise de fenmenos singulares, O modelo intelectual caracterstico das cincias da natureza no pode ser aplicado s cincias sociais, a no ser quando estas procurem explicar fenmenos universais (ou quase universais), como, por exemplo, a variao nas taxas de suicdio; /) Tambm nas cincias da natureza o vocbulo teoria surge associado a meios de trabalho terico com as caractersticas dos paradigmas considerados.Glossrio (i, 1.4) Teoria axiomtica Paradigmas tericos ou analgicos Paradigmas formais Paradigmas conceptuais 1.5 FORMALIZAO E AXIOMATIZAO DE TEORIAS

Ainda a propsito da distino entre teorias axiomticas e paradigmas, no deixaremos de referir que tambm no domnio das cincias sociais se tem vindo a esboar uma tendncia no sentido de se adoptarem certos procedimentos de axiomatizao de teorias. Um dos exemplos porventura mais interessantes dessa tendncia pode ir buscar-se ao conjunto de proposies tericas que P. Bourdieu e J.-C. Passeron propem para a anlise da articulao entre o sistema de ensino e a estrutura das relaes de classe de uma formao social3.374 * P. Bourdieu e J.-C. Passeron, La Reproduction, Paris, Minuit, 1970.

Para alm do inegvel valor heurstico que possuem, revestem-se as teorias axiomticas de outras potencialidades, assinalveis quer ao nvel da investigao terica propriamente dita, quer ao da investigao emprica: reduo, por virtude do esboo de formalizao que uma teoria axiomtica forosamente envolve, da ambiguidade semntica resultante de um encadeamento de proposies no controlado logicamente, anlise crtica dos pressupostos bsicos da teoria, deteco de algumas das suas inconsequncias e redundncias, identificao precisa daquelas proposies tericas que certos processos de produo de conhecimentos concretos eventualmente tenham infirmado. As teorias axiomticas permitiro ainda que sistematicamente se estabeleam ligaes lgicas e teoricamente significativas entre proposies tericas no verificveis e proposies directamente passveis do controle emprico. Apesar das virtualidades que, de um modo geral, o processo de axiomatizao de teorias parece, pois, conter, no devem ser ignoradas, pelo menos no domnio das cincias sociais, certas precaues quanto sua utilizao. Disto mesmo nos poderemos aperceber atravs da crtica, formulada, de um ponto de vista lgico, por R. Boudon ([7]) a uma proposta concreta de axiomatizao de que Hans Zetterberg responsvel ([15]). Vejamos em que consiste esta proposta. Zetterberg comea por considerar uma srie de cinco proposies tericas justapostas cuja plausibilidade ele justifica com base em certos argumentos que, juntamente com as proposies, a seguir se indicam: 1. Se a prosperidade nacional aumenta, expandem-se as classes mdias ( geralmente aceite pelos economistas, diz Zetterberg, que as actividades ligadas aos servios, o comrcio nomeadamente, se expandem em perodos de prosperidade e em pases com PNB crescente). PROPOSIO 2. Se as classes mdias se expandem, aumenta o consenso sobre valores na sociedade (sendo verdade que uma expanso desproporcionada das classes altas e baixas conduz a uma polarizao de valores, ser igualmente de admitir que a expanso das classes mdias implique uma convergncia de valores). PROPOSIO 3. Se as classes mdias se expandem, intensifica-se a mobilidade social (a expanso das classes mdias sempre acompanhada por um processo de promoo de indivduos provenientes de outras classes). PROPOSIES 4/5. Se a mobilidade social se intensifica, aumenta o consenso sobre valores na sociedade, e reciprocamente (a mobilidade social origina, ainda segundo Zetterberg, o aparecimento de famlias cujos membros pertencem a classes diferentes, havendo neste caso uma tendncia para que as ligaes familiares atenuem as divergncias ideolgicas de classe; pode com legitimidade supor-se o inverso, ou seja, que tambm um aumento do consenso promove a mobilidade).PROPOSIO

No vamos preocupar-nos aqui com o grau de adequao terica desta srie de proposies, nem sequer com o contedo dos comentrios que pretendem assegurar-lhes plausibilidade. A razo simples: a crtica de Boudon no se situa a esse nvel, incidindo sim sobre o prprio processo

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utilizado para transformar o agregado de proposies que enuncimos numa teoria axiomtica. Em que consiste esse processo?

Das cinco proposies enunciadas, Zetterberg retm quatro as queesto referenciadas com os nmeros l , 2 e 4 / 5 a ttulo de postulados ou axiomas (proposies no derivveis de quaisquer outras). Teremos, assim:

Se a prosperidade nacional aumenta, expandem-se as classes mdias, AXIOMA II. Se as classes mdias se expandem, aumenta o consenso sobre valores na sociedade. AXIOMA III/IV. Se a mobilidade social se intensifica, aumenta o consenso sobre valores na sociedade, e reciprocamente.AXIOMA I.

Como facilmente se v, a proposio 3 passa entretanto a poder derivar-se logicamente de dois dos axiomas considerados (precisamente os que so designados por n e iv), assumindo, como pretende Zetterberg, o estatuto de teorema. Teremos assim:TEOREMA

1. Se as classes mdias se expandem, intensifica-se a mobilidade social.

No caso de mais nenhuma proposio se poder derivar do conjunto de axiomas proposto, ficaria por ilustrar o que se presume ser a grande virtualidade do procedimento de axiomatizao: o seu valor heurstico. Acontece, porm, que a axiomtica estabelecida permite deduzir proposies que, sm relao ao conjunto primitivamente indicado, se devem considerar originais. Assim, dos axiomas i e n deriva-se o seguinte teorema:TEOREMA

2. Se a prosperidade nacional aumenta, aumenta tambm o consenso sobre valores na sociedade.

Combinando, por outro lado, o axioma i e o teorema 1, obtm-se um novo teorema:TEOREMA

3. Se a prosperidade nacional aumenta, intensifica-se a mobilidade social.

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Sem negar que certos procedimentos de axiomatizao, como os que Zetterberg prope, se possam revestir de uma elevada eficcia na construo de proposies tericas inovadoras, Boudon restringe o seu domnio de aplicao legtima aos casos em que a expresso que articula as diversas proposies da teoria (Se..., ento...), obedecendo lgica da implicao estrita, traduza o enunciado de uma condio suficiente: Se..., ento necessariamente... Quando, como normalmente acontece no domnio das cincias sociais, a estrita concomitncia entre fenmenos no pode ser teoricamente fundamentada, a expresso Se..., ento... apenas admite uma interpretao fraca (Se..., ento geralmente, mais frequentemente...), tornando-se ilegtima em termos lgicos a derivao de proposies novas a partir de uma axiomtica. Ora justamente em termos de implicao fraca que as proposies retidas a ttulo de axiomas devero ser interpretadas (o axioma i, por exem-

pio, remeter para a seguinte interpretao: as classes mdias adquirem mais frequentemente um desenvolvimento importante se a prosperidade nacional aumenta). por isso que o processo gerador de proposies propugnado est, segundo Boudon, logicamente invalidado partida. Um exemplo apoia a sua crtica. Entre as variveis implicadas na axiomtica de Zetterberg situam-se as seguintes: importncia das classes mdias (A, importncia grande; A, importncia reduzida)): consenso sobre valores (B, elevado; B, reduzido); mobilidade (C, elevada; C, reduzida). Se nos ativermos a uma sua interpretao fraca, os axiomas n e i v podem ento traduzir-se assim:AXIOMA II B AXIOMA IV C

mais frequente, se A (do que se A). mais frequente, se B (do que se B).

Imagine-se que, atravs de observaes efectuadas durante dez anos, foi possvel classificar 100 pases em funo das trs dicotomias A/A, B/B e C/C (os dados fictcios correspondentes so os que constam do quadro n. 1):[QUADRO N. 1]

A B BTotal B

A B Totai

c c

15 15 30

10 10 20

25 25 50

20 20

10 20 30

30 20 50

A distribuio de valores que o quadro n. 1 revela compatvel quer com o axioma n (entre os 50 pases classificados A, 30 so classificados B, enquanto dos 50 classificados s 20 so classificados B), quer com o axioma iv (dos 50 pases classificados B, 30 so classificados C, enquanto apenas 20 dos 50 pases classificados B so C). Resta saber se, na linguagem da implicao fraca, o teorema 1 continua a poder ser deduzido, por aplicao da propriedade transitiva, dos axiomas n e iv (se, portanto, ser legtimo, a partir destes, afirmar: C mais frequente se A do que se .) O quadro n. 1 demonstra-nos que no: de entre os 50 pases classificados A, 25 so classificados C; quanto aos pases classificados , eles so C numa proporo que no menos elevada, como o teorema 1, na sua forma fraca, afirma, mas, pelo contrrio, mais elevada (30/50). A transitividade, propriedade caracterstica da implicao estrita, no se verifica portanto no caso da implicao fraca, podendo dizer-se, de um modo mais geral, que as estruturas de raciocnio se modificam quando se substitui a implicao lgica estrita da forma Se..., ento (necessariamente)... pela implicao fraca da forma Se, ento (geralmente, mais frequente).... Na sequncia da sua argumentao, conclui Raymond Boudon: [...] o raciocnio de Zetterberg pode ser considerado de duas maneiras: ou se interpretam as relaes de implicao num sentido estrito (o que se pode

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sempre fazer), e o raciocnio irrepreensvel, s no se vendo de que

maneira a 'teoria' representada pelos axiomas possa ser submetida provada experincia (a 'natureza social' jamais permite observar implicaes estritas); ou ento interpretam-se as relaes de implicao num sentido fraco, tornando-se falso, neste caso, o raciocnio, pois no verdade que os 'teoremas' derivem dos axiomas. As proposies em causa no devem, portanto, ser qualificadas de 'teoremas', visto que podem empiricamente ser infirmadas, sem que, por isso, os axiomas tenham de ser considerados inaceitveis [...]. A axiomatizao de que Zetterberg fala no possvel quando a sintaxe das proposies sobre as quais ela supostamente trabalharia corresponde da implicao fraca. Mais rigorosamente, a um outro tipo de axiomtica e, em ltima anlise, a um outro tipo de lgica [...] que importa recorrer. Acrescentemos, a finalizar, que justamente um outro tipo de lgica (da implicao fraca, e no j da implicao forte) o que Boudon pretende construir no texto a que nos temos vindo a reportar. Dever ter-se tornado claro que uma teoria axiomtica envolve sempre um certo grau de explicitao, no s da estrutura lgica de implicao entre as proposies que a integram, como ainda da estrutura de relaes entre conceitos constitutivas do seu corpo de axiomas. esse o motivo por que frequentemente se considera a axiomatizao um dos procedimentos de formalizao de teorias: tornar explcitas as propriedades estruturais das matrizes tericas disciplinares, com vista a promover-lhes o rigor e a coerncia interna e, indirectamente, a sua capacidade para enformar os processos de pesquisa emprica, tal , com efeito, o objectivo comum a esses procedimentos. As modalidades de formalizao indiscutivelmente mais prestigiadas nas vrias formaes cientficas so, entretanto, as que consistem na introduo de relaes e operaes matemticas num conjunto de smbolos representativos do lxico da teoria. Um problema porm tem sempre de ser resolvido quando est em causa a matematizao de teorias: o do controle do isomorfismo entre, por um lado, o conjunto de elementos e relaes conceptuais constitutivo de uma submatriz disciplinar e, por outro, o dos elementos e relaes caractersticos do tipo de linguagem matemtica adoptado. TM controle garantir, no apenas a fidelidade da traduo, mas tambm a legitimidade de certos resultados que o discurso matemtico e s ele tende a produzir, por virtude do poder heurstico associado ao tipo de operaes que privflegia. Apesar de no domnio da construo/formalizao de teorias em cincias sociais se estar ainda longe de uma situao em que os procedimentos de matematizao se tenham generalizado, nesse sentido se orienta uma corrente que, indo buscar elementos teoria dos grafos, anlise matricial, ao clculo diferencial, etc, tem desenvolvido um esforo para a modelizao dos sistemas tericos4. Mais frequentes (embora, normalmente, de menor alcance) sero aqudes procedimentos que apenas se traduzem na elaborao de um voca4 Sublinhe-se que nos referimos aqui construo de modelos da teoria, e no de modelos de anlise emprica.

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bulrio disciplinar especfico5, ou ainda na apresentao sistemtica das proposies da teoria (distinguindo, por exemplo, entre factores e consequncias; organizando sob forma sequencial um conjunto de proposies ligadas por relaes de causalidade; etc). A construo de teorias axiomticas, embora no pressuponha uma simbolizao ou matematizao, no poder deixar de estar associada, como j dissemos, a, pelo menos, algumas destas tcnicas fracas de formalizao.Glossrio (i, 1.5) Axiomatizao Implicao estrita Implicao fraca Formalizao BIBLIOGRAFIA (i, 1) [1] ALMEIDA, Joo Ferreira de, e PINTO, Jos Madureira: Significao Conotativa nos Discursos das Cincias Sociais, Lisboa, Cadernos G. I. S., n. 6, 1973. [2] ALTHUSSER, Louis: Sobre o Trabalho Terico, Lisboa, Presena, 1970. [3] ALTHUSSER, Louis: Lire Ie Capital, i, Paris, Maspero (Petite Collection), 1968. [4] BACHELARD, Gaston: La formation de Vesprit scientifique, Paris, Vrin, 1965. [5] BACHELARD, Gaston: Le nouvel esprit scientifique, Paris, P. U. F., 1963. [6] BOUDON, Raymond: La crise de Ia sociologie, Paris, Droz, 1971. [7] BOUDON, Raymond: Les mathmatiques en sociologie, Paris, P. U. F., 1971.[8] BOURDIEU, Pierre, CHAMBOREDON, Jean-Claude, e PASSERON, Jean-Claude: Le M-

tier de sociologue, Paris, Mouton/Bordas, 1968. [9] FICHANT, Michel, e PCHEUX, Michel: Sobre a Histria das Cincias, Lisboa, Estampa, 1971. [10] GALTUNG, Johan: Theory and methods of social research, Londres, George Allen & Unwin, Ltd., 1969. [11] KRISTEVA, Julia: Les pistmologies de Ia linguistique, in Langages, DidierLarousse, 1971. [12] LECOURT, Dominique: Para Uma Crtica da Epistemologia, Lisboa, Assrio & Alvim, 1973. [13] NUNES, A. Sedas: Questes Preliminares sobre as Cincias Sociais, Lisboa, Cadernos G. I. S., n. 10, 1973. [14] NUNES, A. Sedas: Sobre o Problema do Conhecimento nas Cincias Sociais, Lisboa, Cadernos G. I. S., n. 9, 1973. [15] ZETTERBERG, Hans: On theory and verification in sociology, Nova Iorque, The Bedminster Press, 1965.

2. EPISTEMOLOGIA, METODOLOGIA E TCNICAS DE INVESTIGAO2.1 DESCRIO FORMALIZADA DE UM PROCESSO DE INVESTIGAO: NOO GENRICA DE TCNICAS E MTODOS

Pareceu til localizar o conceito de teoria, ainda que de forma elementar, antes de abordar mais detidamente os outros dois meios de trabalho terico, a que j por vrias vezes fizemos referncia:, os mtodos e as tcnicas. A forma por que vamos proceder a essa abordagem consiste em tentar mostrar como o conjunto dos meios de trabalho funcionam num processo5 Caberia aqui uma referncia importncia de certas tcnicas de formalizao na construo de tipologias. Deix-la-emos para a parte li, quando nos ocuparmos de espaos de atributos.

379

de investigao, atravs, em primeiro lugar, da descrio em abstracto desse processo, para recorrer, posteriormente, a ilustraes que permitam compreender melhor o esquema apresentado. As tcnicas de investigao so conjuntos de procedimentos bem definidos e transmissveis, destinados a produzir certos resultados na recolha e tratamento da informao requerida pela actividade de pesquisa. O inqurito por questionrio, a entrevista, o teste, as escalas de atitudes, a regresso simples, constituem exemplos das vrias tcnicas utilizadas em cincias sociais. Todas elas so susceptveis de uma descrio que, omitindo quaisquer referncias a objectos de anlise ou hipteses de investigao se cantone a um conjunto de aspectos puramente operatrios e auto-subsistentes. Por outro lado, a maior parte das tcnicas disponveis podem funcionar em distintas cincias sociais, e mesmo, como se sabe, no trabalho das cincias da natureza. Basta pensar nas tcnicas estatsticas, que at integram cadeiras autnomas em diversos curricula acadmicos, para se ver que obedecem aos dois caracteres enunciados. Consideremos agora que uma formao cientfica pode dispor de n tcnicas tl9... t9... tn, cada uma delas integrada de elementos notados k (por exemplo: k12 elemento de ordem 2, pertencente ao conjunto definidor da tcnica x). Pensando em termos de uma investigao concreta (um ciclo terico dado), evidente que, relativamente ao leque de tcnicas disponveis, apenas algumas delas sero efectivamente accionadas (por exemplo: ty e t \ estando a respectiva seleco condicionada pelo objecto a construir e pelas hipteses tericas que comandam a pesquisa. A utilizao de tais tcnicas impe-se pela necessidade de produzir, ao longo de todo o ciclo terico, certos resultados que teremos de considerar parciais por referncia ao resultado final integrado da pesquisa. Vejamos como se obtm tais resultados parciais. A matria-prima de um processo de investigao (em certo sentido, o seu ponto de partida) constituda por um conjunto de informaes sobre o real, relacionvel com uma problemtica terico-ideolgica: informaes no elaboradas (noes) de natureza ideolgica, portanto , ou s parcialmente elaboradas, indicativas de um problema sobre o qual poder trabalhar a matriz disciplinar considerada. Referenciando o problema em causa zona de problema x (xe {/,...,/,... m }; cf. definio de matriz terica), poderemos representar o conjunto de noes e/ou intuies sobre o objecto real (as tais informaes disponveis) por /x, no se prevendo qualquer ndice representativo das linhas da matriz, j que, normalmente, tais noes e/ou intuies se no encontram referenciadas s dimenses da problemtica. Ser ento sobre 7X que o trabalho terico de transformao se vai efectuar, com recurso insista-se a elementos conceptuais substantivos (c ,J c m r\ ccX /3x*

380

c \ integrantes da matriz terica de referncia e a elementos conceptuais processuais respeitantes s tcnicas seleccionadas. o processo decorrente deste trabalho de transformao organizado atravs de mltiplas operaes lgicas, como, por exemplo, a conjuno, a implicao, etc, notadas ,_[_, 0, % , # que vai gerando os resultados parciais a que nos referamos. Considerando que o processo de produo de um conhecimento cientfico novo d origem, por hiptese,

a dois resultados parciais (rx e r' x ), podemos formalizar a obteno destes, tendo em conta as notaes anteriormente explicitadas, do seguinte modo: rx x r r = / . c,

=1

Ia

~/?x ~" i+l)b a, elemento genrico de qualquer subconjunto do conjunto { 1, 2, ..., i } dos ndices de ordem dos elementos da tcnica 1. b, elemento genrico de qualquer subconjunto do conjunto j 1, 2, ..., n \ dos ndices de ordem dos elementos da tcnica + 1.

A integrao dos resultados parciais, que envolve igualmente recurso a operaes lgicas diversas ( % , # ) constituir o ltimo passo necessrio obteno de um conhecimento cientfico novo, ou seja, construo de objecto(s) (cyx) apto(s) a dar conta da zona de problemas que temos vindo a representar por x e eventualmente integrvel na matriz.c -u-T/* yj r' j = c

Aps esta descrio possvel assinalar os momentos fundamentais de um processo de pesquisa: a seleco das tcnicas operada por referncia ao objecto e teoria que o constri; o controle das condies teis de exerccio das mesmas tcnicas para a produo de diversos resultados parciais; a relacionao e integrao desses resultados em ordem obteno do produto jinaL Ora a seleco de tcnicas, o controle da sua utilizao, a integrao dos resultados parciais obtidos, constituem justamente a funo dos mtodos de pesquisa, elemento dos meios de trabalho terico que nos faltava definir. Compete, assim, aos mtodos organizar criticamente as prticas de investigao, sendo o seu campo de incidncia constitudo pelas operaes propriamente tcnicas, das quais portanto se distinguem. O quadro n. 2 esquematiza a articulao dos diversos meios de trabalho num ciclo terico dado, de acordo com a descrio que propusemos.[QUADRO N. 2] Teoria

Mtodo Obteno de resultados parciais 3 / . C lX

Tcnicas 1

tl

= { ka, ka, ..., fa,M

h = { ** * > ' ""

Objecto a construir (refe} rencivel a } uma zona de problemas x)

Seleco de tcnicas 2

Integrao dos resultados parciais obtidos 4

Produto-objecto construdo 5

^gX

t1

_1_ kx*=rx 1 . c 0 cflx = ^ J r 4b**' 1 = x Ok

i+l

/ ktn

kn2, . . . ,

knn.

\j

-

|

nl,

381

Glossrio (i, 2.1) Tcnicas de investigao Matria-prima (de um processo de investigao) Resultados parciais Integrao dos resultados parciais Mtodos de pesquisa 2.2 A FUNO DE COMANDO DA TEORIA: ILUSTRAO

382

J anteriormente nos demarcmos em relao a uma perspectiva empirista em cincias sociais. Contra o empirismo possvel mostrar, por exemplo, que no h observao sem categorizao do observado e, portanto, sem referncia a elementos (prvios, embora reformulveis) de natureza ideolgica ou terica; que os dados so captados, ou seja, que no so a realidade ela prpria nem o seu registo passivo, antes transportam e impem significaes e constituem resultados/pontos de partida da prtica cientfica. Mesmo nas formas mais subtis que o empirismo assume, a verificao ou validao concebida como uma fase em que as hipteses se confrontam com a realidade: persiste a confuso entre os dados recolhidos efeito da teoria e os factos reais. Em termos de consequncias da adopo de tal perspectiva, vale a pena salientar a tendncia para a multiplicao de pesquisas enfaticamente perfeccionistas, do ponto de vista das tcnicas de investigao, sobre objectos no significativos cientificamente. O resultado a reproduo sistemtica de objectos designados pela prtica administrativo-ideolgica, confundindo problemas sociais com problemas cientficos. Mas a consequncia que agora mais nos interessa acentuar, e que decorre directamente da representao empirista da prtica cientfica como sucesso atomstica e desarticulada de fases (observao, induo de hipteses, experimentao, teoria), a reduo da teoria a uma simples resultante por inferncia da depurao-ordenao dos dados previamente coleccionados de forma neutra pelo investigador. A teoria seria assim, em certo sentido, posterior e exterior aos dados e a eles subordinada. Ora temos j elementos que nos permitem afirmar caber teoria (em sentido restrito) o accionamento dos mtodos e das tcnicas disponveis, com vista obteno de produtos-conhecimentos. A descrio esquemtica de um processo de investigao, no nmero anterior, ilustra justamente essa funo de comando da teoria, j afirmada a propsito da anlise das condies tericas da produo cientfica. O processo de pesquisa unitrio e integrado e a teoria domina e determina o significado e a articulao dos seus diversos momentos. Todas as fases e operaes desse processo se referenciam necessariamente a contedos tericos que lhes conferem sentido, as articulam e lhes delimitam as potencialidades explicativas. Problemas importantes, como o j referido problema do hiato entre a linguagem da teoria e a da investigao emprica, s a partir de uma perspectiva racionalista deste tipo podero ser correctamente situados e receber comeos de soluo. Tentaremos agora ilustrar a funo de comando da teoria atravs de um estudo sobre a classe operria americana durante a Grande Depresso. Nele se visava conhecer certas caractersticas da populao operria colocada em situao de desemprego nos anos 30. Verificou-se existir, na

amostra observada, uma correlao acentuadamente negativa entre a durao do perodo de aprendizagem escolar dos indivduos que a integravam e a respectiva durao do perodo de desemprego. No que se refere ao conjunto dos operrios negros do sexo masculino, no qualificados, os dados empricos obtidos organizavam-se da seguinte forma (a situao relativa aos outros grupos considerados no diferia significativamente desta):[QUADRO N.o 3] Aprendizagem escolar Durao do perodo de desemprego At 5 anos (percentagem) 5 ou mais anos (percentagem)

At 2 anos 2 ou mais anos

47 53 100

52 48 100 (6039)

(Nmero de casos)

(6054)

A leitura do quadro n. 3 sugeria que os operrios com um nvel de instruo (medido pelo nmero de anos de aprendizagem escolar) elevado tinham uma probabilidade maior de permanecer na situao de desemprego durante um perodo de tempo relativamente curto do que os que possuam nvel de instruo baixo. Tal constatao poderia ento apontar a existncia de uma relao de causalidade entre o nvel de instruo dos operrios e a durao do perodo de desemprego se a hiptese terica que informava a pesquisa integrasse a informao obtida num modelo causal em que a primeira dessas variveis assumisse o estatuto de varivel explicativa nica. Um conhecimento relativamente aprofundado das caractersticas do sistema educativo americano, codificado j na matriz terica da sociologia, permitiu, no entanto, complexificar as hipteses tericas envolvidas neste processo de investigao e, consequentemente, complexificar tambm o modelo causal, dando conta das alteraes de valor da varivel a explicar (durao do perodo de tempo em situao de desemprego). Em virtude da progressiva extenso do ensino na sociedade americana, podia, com efeito, presumir-se que a varivel idade igualmente se comportasse como explicativa em relao ao fenmeno analisado, desde logo porque a probabilidade de se ter um nvel de instruo elevado seria maior no caso dos jovens do que no dos no jovens. A informao quantitativa que pde obter-se, tendo em conta estoutra formulao do problema, consta do quadro n. 4. Em face dessa estrutura de dados, a correlao anteriormente assinalada entre nvel de instruo e durao do perodo de desemprego pde aparecer como o produto esprio do facto de os operrios com nvel de instruo superior pertencerem a grupos etrios mais baixos por virtude da referida extenso progressiva do ensino. O modelo causal decorrente do novo conjunto de proposies tericas implicadas no processo de pesquisa e compatvel com os dados obtidos passou a integrar a idade como varivel explicativa privilegiada, embora no exclusiva. (O quadro n. 4 assinala, com efeito, uma influncia espec-

383

[QUADRO N.o 4]

IdadeDurao do perodo de desemprego At 35 anos Aprendizagem escolar at 5 anos (percentagem) 35 ou mais anos 5 ou mais anos de aprendizagem escolar (percentagem) 5 ou mais anos Aprendizagem de aprendizagem escolar at 5 escolar anos (percentagem) (percentagem)

At 2 anos 2 ou mais anos

58 42 100

60 40 100 (4231)

42 58 100 (3241)

44 56 100 (2798)

(Nmero de casos)

(1823)

fica, mas de valor notoriamente reduzido, do factor instruo sobre o comportamento da varivel dependente.) Este exemplo ter ilustrado com suficiente clareza o carcter dominante da teoria (entendida aqui como conjunto de conceitos e relaes entre conceitos substantivos), em relao aos outros meios de trabalho terico, no processo de produo de conhecimentos sobre o real. Rememoremos alguns momentos fundamentais do processo descrito: a) A designao do objecto de anlise procedeu necessariamente de um conjunto de informaes/conhecimentos anteriores (referenciao do problema); b) A recolha da informao quantitativa e o seu tratamento no puderam deixar de assumir a forma tcnica compatvel com o objecto teoricamente designado e de recorrer ao conjunto de categorias observacionais (variveis) que a teoria construiu em funo da sua relevncia para a promoo do nvel da explicao pretendido; c) A formulao do modelo causal alternativo apto a interpretar de forma mais correcta a informao previamente obtida (denncia do carcter parcialmente esprio da relao instruo-desemprego e proposta de nova explicao) s foi possvel na sequncia de novo processo de recolha de informao, ele prprio decorrente do recurso a um conjunto de conceitos substantivos, referenciados, na matriz terica da sociologia, ao problema da educao.Glossrio (i, 22) Empirismo Racionalismo 2.3 METODOLOGIA

384

Tnhamos dito atrs (2.1) que o campo de incidncia dos mtodos era constitudo pelas operaes tcnicas de investigao. Para cada pesquisa concreta caberia ao mtodo seleccionar as tcnicas adequadas, controlar a sua utilizao, integrar os resultados parciais obtidos. A metodologia ser, assim, a organizao crtica das prticas de investigao. Os procedimentos a que chammos tcnicas so, sem dvida, como vimos, susceptveis de estudo, independentemente do seu funcionamento

numa pesquisa determinada: passvel estudar em abstracto as principais fases do inqurito por questionrio ou as regras de amostragem. A reinveno cientfica das tcnicas, ou seja, a aplicao-adaptao de conjuntos estandardizados de procedimentos a uma pesquisa concreta, , ento, uma tarefa que o mtodo desempenha por referncia teoria informadora do processo considerado. Se no se pode falar de uma cincia unitria e universal, no far sentido a busca de uma metodologia apriorstica que constituiria o fundamento intemporal e uniforme de qualquer pesquisa. O que existe realmente so formaes cientficas historicamente situadas, relativamente autnomas, com desiguais ritmos de desenvolvimento e diversa insero em estruturas sociais determinadas. Bastaria esta constatao para perceber a impossibilidade de pensar a metodologia como um conjunto de receitas universalmente geradoras de cientificidade: tais receitas no poderiam levar seno a aplicaes automatizadas, rituais e abstractas, cujo rigor no deixaria de ser ilusrio. Se cada formao cientfica no a emanao de uma razo universal, mas sim a actualizao de uma racionalidade relativamente diferenciada, o seu mtodo h-de conter elementos que o distinguem dos mtodos de outras cincias. Levar a srio o comando da teoria perceber que o mtodo, a prtica crtica da investigao, no pode deixar de sofrer as mudanas determinadas pelas transformaes tericas no decorrer da histria duma dada formao cientfica. Os mtodos tm assim, ao incidir sobre operaes de pesquisa, uma relao de interioridade com as prticas de investigao: eles so as prprias prticas crticas de investigao. Representam um certo nvel de controle interno e formal sobre as pesquisas medida que estas se desenrolam. Denunciar o carcter idealista de um discurso apriorstico e geral do mtodo, por um lado, e salientar a inseparabilidade dos mtodos em relao s diversas prticas de investigao, pelo outro, significa negar qualquer possibilidade de enunciados genricos de metodologia, considerada como codificao regional e provisria de uma pluralidade de mtodos? Sem dvida que no. Os mtodos, como vimos, so caminhos crticos percorridos por uma formao cientfica atravs das mltiplas investigaes que foram desembocando em conhecimentos estruturadores da sua matriz terica. Cada um desses percursos, cada ciclo terico, no pode ser nem meramente repetitivo nem inteiramente novo. A metodologia alimentar-se- assim dos mtodos, dos percursos j feitos, retirando deles a novidade produtiva. uma aprendizagem e uma sistematizao posteriorstica dos conceitos processuais e das suas relaes. Bm qualquer caso, indispensvel ter bem presente que, como afirma Kaplan, a lgica reconstruda e normativa a que se chama metodologia se no confunde com os reais caminhos da pesquisa, com a lgica em acto da investigao a fazer-se: a metodologia, crtica das prticas de investigao, no se confunde com as prticas crticas da investigao que constituem os mtodos.2.3.1 O PROBLEMA DA CLASSIFICAO DOS MTODOS

Tentar uma classificao dos mtodos uma das principais tarefasda metodologia, que lhe permite cumprir a sua funo de clarificar os seus 385

386

campos de incidncia, detectar os principais problemas que neles se levantam, codificar as solues provisrias exploradas nas investigaes atravs da articulao dos respectivos percursos. Mas o prprio carcter da metodologia dificulta em extremo essa tarefa. As tentativas de classificao tendem a desembocar nas tais receitas apriorsticas e desenraizadas que atrs denuncimos: quando se fala de mtodo indutivo e dedutivo, por exemplo, e para cada um deles se enuncia um certo nmero de fases, de momentos obrigatrios e hierarquizados que qualquer investigao ter cumprir, nada se avana na clarificao das questes e tende-se mesmo a dissimul-las. Em alternativa a este apriorismo, um outro obstculo pode surgir nas tentativas de classificao: o de que aquilo que se chama classificao de mtodos seja afinal uma classificao de tcnicas ou, pelo menos, dos seus campos privilegiados de incidncia (tipo de objectos de conhecimento que esto particularmente aptas a construir). Este gnero de dificuldades reconhecido por Lazarsfeld ([10], pp. 258 e segs.) quando afirma ser impossvel descrever com preciso os objectos da metodologia, visto eles dependerem do desenvolvimento das prprias cincias sociais. So seis, para Lazarsfeld, os temas principais da metodologia sociolgica, entendida como estudo do trabalho sociolgico: delimitao dos objectos; clarificao dos termos; explicao das tcnicas de investigao; relacionao dessas tcnicas; sistematizao dos resultados empricos; formalizao do raciocnio. No deixa de ser significativa esta renncia a uma tentativa de classificao, para mais modestamente se cantonar a uma sedao de problemas fundamentais da metodologia. Mas, mesmo relativamente a este enunciado de problemas, Lazarsfeld salienta o carcter arbitrrio da respectiva seleco. De entre as mltiplas classificaes propostas pelos autores, vale talvez a pena fazer referncia de Greenwood ([8]), no porque escape aos obstculos que enuncimos, mas porque, apesar de tudo, clarifica em certa medida o campo de incidncia da metodologia. Distingue ele trs procedimentos lgicos da investigao emprica, trs mtodos fundamentais: experimental, de medida e de casos. O mtodo experimental foi importado da fsica e da biologia, onde constituiu o procedimento mais importante da ruptura com as fases pr-tericas dessas disciplinas. A sua aplicabilidade directa nas cincias sociais relativamente restrita, embora ele tenha vindo a desempenhar a funo de paradigma do rigor cientfico de que se deveriam aproximar o mais possvel todas as situaes de pesquisa nas cincias sociais (situaes quase experimentais). Esboaremos mais adiante, quando tratarmos da tcnica da experimentao, uma descrio esquemtica do plano experimental. O mtodo de medida ou anlise extensiva implica para Greenwood a observao, por meio de perguntas directas ou indirectas, de populaes relativamente vastas de unidades colocadas em situaes reais, a fim de obter respostas susceptveis de serem manejadas mediante uma anlise quantitativa. A anlise extensiva tem por objecto populaes amplas, o que impe geralmente o recurso a tcnicas de amostragem. A obteno dos dados primrios com que trabalha feita directamente (entrevista) ou indirectamente (questionrio). Por ltimo, esses dados so quantitativamente anaUsados (classificao, contagem e apresentao).

Tais so as caractersticas fundamentais que Greenwood aponta para o mtodo da medida, que , sem dvida, o mais utilizado nas investigaes sociolgicas. O ltimo mtodo estudo de casos ou anlise intensiva consiste no exame intensivo, tanto em amplitude como em profundidade, e utilizando todas as tcnicas disponveis, de uma amostra particular, seleccionada de acordo com determinado objectivo (ou, no mximo, de um certo nmero de unidades de amostragem), de um fenmeno social, ordenando os dados resultantes por forma a preservar o carcter unitrio da amostra, tudo isto com a finalidade ltima de obter uma ampla compreenso do fenmeno na sua totalidade. Trs aspectos caracterizam este mtodo, segundo Greenwood. Em primeiro lugar, aquilo que ele chama a intensidade e que tem que ver com a multiplicidade das facetas a explorar na anlise da unidade de investigao e com a profundidade do estudo que implica as dimenses histricas dessa unidade. Outra caracterstica a flexibilidade do mtodo, que se traduz numa seleco e utilizao normalmente mais livres e amplas do que nos outros dois das tcnicas disponveis. A terceira caracterstica provm da grande quantidade de material informativo recolhido sobre a unidade de anlise, material que ainda por cima heterogneo por resultar de diversos nveis de anlise e da utilizao de diferentes tcnicas. Em consequncia, so geralmente inutilizveis os procedimentos clssicos e normalizados de tratamento de informao (classificao e ordenao). A anlise e relacionao dos dados tornam-se assim particularmente difceis e exigentes para se no transformarem num impressionismo com larga margem de arbitrrio.Glossrio (i, 2.3) Metodologia Mtodo experimental Mtodo de medida Mtodo de casos 2.4 EPISTEMOLOGIA

Ao falarmos em condies tericas e em condies sociais da produo cientfica, ao propormos um certo conceito de prtica cientfica, ao analisarmos o papel de comando da teoria, tentvamos situar, tomando posio, um certo nmero de problemas relacionados com os produtos-conhecimentos constitutivos das diversas formaes cientficas disciplinares do campo das cincias sociais. Tentvamos portanto reflectir, no sobre os objectos analticos das cincias sociais, sobre as formaes sociais na pluralidade das suas dimenses, mas sobre as prprias condies dessa anlise, sobre as suas formas e momentos, sobre as determinaes e articulaes dos processos de produo de conhecimentos. Por outras palavras, estvamos a situar-nos, no no terreno da teoria, mas no da epistemologia. A filosofia era o lugar clssico desta reflexo. A teoria do conhecimento organizava, sistematizava, as noes espontneas que os investigadores tinham do seu prprio trabalho e da natureza dos respectivos produ-

tos. A epistemologia moderaa no pde libertar-se totalmente dessa pesadaherana idealista, que faz que se auto-atribua ainda a funo de fundadora 387

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exterior de todo o saber cientfico, ignorando, por um lado, a relativa autonomia das construes cientficas que lhes permite definirem-se e validarem-se a si prprias e, por outro, as determinaes sociais da prtica cientfica. Noutro lugar ([1], pp. 19 e segs.) examinmos um exemplo particularmente ntido da contradio que consiste em ceder s posies idealistas da tradicional filosofia das cincias, partindo embora da correcta negao de uma realidade trans-histrica estrutura do campo epistemolgico. As diversas disciplinas cientficas so coexistentes e esto articuladas por formas diversas com o sistema das ideologias existentes numa formao social dada, ele prprio composto por uma pluralidade contraditria de nveis objectivos de significao presentes/ausentes nos discursos concretos. Ou seja, as ideologias, entendidas como representaes das relaes imaginrias dos indivduos com as suas condies reais de existncia, assumem formas contraditrias no reconhecimento-desconhecimento-designao dos objectos reais que referenciam, correspondendo a diferentes cdigos de leitura do texto social, a formas de inteligibilidade cujas diferenas remetem em ltima anlise para a diversidade de lugares na formao social (relaes de produo) geradora das classes sociais e da luta de classes. Mas a articulao atrs referida entre as formaes cientficas e o sistema plural das ideologias faz que os produtos cientficos no sejam puramente tericos: eles so sempre terico-ideolgicos, de dominante terica ou de dominante ideolgica. Assim, os conhecimentos (conceitos) produzidos no mbito de uma prtica cientfica determinada so sempre, simultaneamente, conhecimentos e desconhecimentos, esto sempre articulados com elementos ideolgicos (noes). A progresso do conhecimento cientfico implica, portanto, genericamente, uma demarcao relativa ao campo ideolgico de partida, assim como a sua reduo localizada, a negao e a superao das problemticas que o instituem. Trata-se de desmontar as pressuposies espontneas que se impem como evidncias, de destruir as falsas transparncias do senso comum mais ou menos elaborado que se autodesignam como conhecimentos, de anular a eficcia dos obstculos ideolgicos que ao longo da histria das cincias vo sucessivamente surgindo como bloqueamentos apropriao cognitiva do real. Dizemos reduo localizada dos campos ideolgicos para marcar bem que no se trata de aceitar que as ideologias so o puro reverso das cincias. As ideologias desempenham em todas as formaes sociais uma funo global de representao-reconhecimento-comunicao-legitimao, uma funo prtico-social, e no podem assim ser dissolvidas, enquanto globalidade, pelos processos de produo de conhecimentos. As ideologias prticas so noes-representaes-imagens inscritas em comportamentos-condutas-atitudes-gestos; elas designam os diversos papis na sociedade, ao mesmo tempo que pautam os procedimentos-padro dos respectivos agentes-portadores (normatividade), desempenhando assim uma importante funo na reproduo das relaes sociais. Importa de resto sublinhar que so as ideologias dominantes, ligadas ao bloco no poder, que constituem os obstculos fundamentais produo de conhecimentos cientficos nas chamadas cincias sociais, uma vez que regulam as condutas individuais e colectivas de acordo com os interesses objectivos da classe dominante, no sentido portanto da coeso global da formao social que assegura essa

mesma dominao de classe. Mas interessa tambm frisar que no so, em geral, as ideologias prticas que constituem directamente obstculos ao conhecimento cientfico. So as ideologias tericas, ou seja, os sistemas ideolgicos social e institucionalmente reconhecidos como cincias, que desempenham essa funo. O campo das cincias sociais justamente um campo em que predominam os elementos ideolgicos, um campo de formaes terico-ideolgicas de dominante ideolgica. um campo que, pelo tipo de articulao que mantm com as estruturas sociais, defronta resistncias particulares na produo e reproduo do seu objecto. Pr em causa as ideologias tericas que se autodesignam cincias sociais pr em causa a sua funo de coeso global das estruturas e prticas sociais. Na verdade, as cincias sociais transcodificam as ideologias prticas, dotando-se dos protocolos de cientificidade, formalizando-se e sistematizando-se de acordo com esses protocolos, ganhando coerncia e autor; passam ento a exercer uma resistncia pluriforme e rgida ao conhecimento cientfico que tende a neg-las, ligada necessidade de reproduo da formao social na pluralidade dos seus nveis. E exercem, por sua vez, uma aco em retorno de racionalizao sobre as ideologias prticas, s quais fornecem alguns dos elementos que produziram no seu trabalho de elaborao, bem como lhes conferem nova consistncia e legitimidade. So justamente as representaes que produzem, institucionalizadas como conhecimentos, que contribuem para a adaptao e readaptao das estruturas s relaes sociais c destas s primeiras; numa funo geral de organizao, racionalizao e coeso das formaes sociais ao servio e no interesse das respectivas classes dominantes. Por isso se lhes pode chamar, na sequncia de Gramsci, ideologias cimento; elas fornecem os elementos indispensveis para as tecnologias sociais, cuja contribuio para a reproduo das relaes sociais sem dvida importante. Ora a epistemologia tem por objecto as condies e os critrios de cientificidade dos discursos cientficos concretos numa conjuntura terica determinada. Teoria da histria dos processos especficos de produo de conhecimentos, ela enuncia e denuncia os obstculos que tendem constantemente a reintroduzir o ideolgico no cientfico. E, para o conseguir, localiza-se simultaneajmente no interior e no exterior desses processos. Reflexo-interveno sobre as prticas cientficas, em todas as suas operaes e fases, a epistemologia funciona como um sistema vigilante de controles que se exerce portanto tambm sobre a metodologia. Tanto a epistemologia como a metodologia abordam criticamente as prticas concretas de investigao medida que estas se desenrolam, mas fazem-no a nveis diversos. A metodologia no pode, por um lado, ceder tentao de iludir a relao de interioridade que mantm com essas prticas, nem furtar-se, por outro lado, aos controles que sobre ela prpria exerce a epistemologia. O que nem uma nem outra podem ser um conjunto de receitas normativas e a-histricas destinado a promover garantias de cientificidade.2.4.1 DIMENSES DE INTERVENO EPISTEMOLGICA

Se a sua razo de ser reside na permanente articulao das ideologias aos processos de produo de conhecimentos, como poder a reflexo epistemolgica desempenhar o seu papel de interveno eficaz na conjuntura25

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cientfica, por forma a promover a distanciao entre conhecimentos e ideologias?

A maioria dos autores sublinham a necessidade de conservar epistemologia o campo restrito de estudo das condies e critrios formais de cientificidade. A crtica epistemolgica cantonar-se-ia essencialmente dimenso sintctica ou metodolgica (estudo das relaes dos signos do discurso cientfico entre si, e portanto das normas lgicas de organizao desse discurso) e dimenso semntica ou terica (relao dos signos com aquilo que representam, com os seus referentes). Sem dvida, importante este nvel de interveno, que se verifica aps recurso aos prprios elementos conceptuais da formao disciplinar sobre que se exerce o controle. Mas insuficiente para dar resposta s suas prprias questes esta dimenso a que chamaremos epistemologia interna. indispensvel ir mais alm. Trata-se de ter em conta a ligao de cada formao cientfica ao conjunto do espao ideolgico no qual se definem as dialcticas ideologias tericas/cincias, umas e outras determinadas pelas ideologias prticas. Trata-se de pensar a insero das cincias nas formaes sociais, o que remete para a dupla articulao prticas cientficas/prticas ideolgicas com as outras prticas constitutivas das relaes sociais, com as outras estruturas e sistemas que determinam os limites dessas prticas num espao e num momento histrico dados. Trata-se de definir a rede causal das modalidades mltiplas de interaco, j que multvoca a dialctica teorias/ideologias e ela passa sem dvida pela globalidade da estrutura social. Esta epistemologia externa depende da interseco da anlise propriamente epistemolgica com o conhecimento a construir das formaes sociais como totalidades articuladas de estruturas e prticas. Ora justamente esse ponto nodal de ligao que nos parece poder definir, simultaneamente, o espao da epistemologia e o da sua articulao exterior indispensvel, os seus limites e os recursos que noutro lugar buscar para possibilitar o cumprimento da sua prpria funo. As anlises concretas ho-de resultar em variaes significativas, no apenas por causa da diversidade dos campos sociais de insero das formaes ideolgico-cientficas, no apenas devidas diferenciao de ritmos e determinaes das produes cientficas numa formao social dada, mas ainda derivadas dos prprios nveis ou fases dum mesmo processo terico. Procurmos, em trabalho anterior ([1], pp. 18 e segs.), mostrar a convergncia de vrios autores, partindo embora de instrumentos conceptuais diversos, no reconhecimento de que uma epistemologia desenraizada, ignorante quer dos materiais a recolher nas disciplinas cientficas sobre que se debrua, quer dos que resultam da anlise dos campos interdisciplinares, quer ainda dos provenientes de uma sociologia do conhecimento e das ideologias, se negaria a si prpria. Na melhor das hipteses, ela constituiria uma redundncia vazia, em relao ao labor metdico da prtica cientfica; mas mais provavelmente recuperaria a tradicional filosofia das cincias, cpula idealista de um edifcio cientfico sobre o qual exerceria uma funo negativa, em vez da funo crtica que pode ser a sua. A interveno epistemolgica no , portanto, possvel sem o estudo, em relao a cincias e ideologias, da respectiva e diversa funo social e nveis de efeitos, sem ter em conta os smbolos, as mensagens e os seus media articulados a prticas sociais contraditrias, sem pensar a insero

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social dos produtores, consumidores e aplicadores do saber, designadamente as respectivas situaes e posies de classe, sem ser remetido para os aparelhos (unidades de produo, circulao e consumo) em que cincias e ideologias se instituem, para a sua natureza, para o seu funcionamento de suportes materiais e de veculos definidores de modos especficos de comunicao, lugar da luta ideolgica de classe, ou seja, numa palavra, sem percorrer o conjunto das prticas e estruturas das formaes sociais, que funcionam como condies sociais (materiais) da produo de conhecimentos. O campo ideolgico (ou instncia ideolgica) um domnio em que a luta de classes se manifesta por forma especfica: h portanto em cada formao social uma pluralidade de ideologias contraditrias ou, pelo menos, com elementos diversificados ligadas s classes suas portadoras. Significa isto que a interveno epistemolgica h-de constatar efeitos diversos das vrias ideologias, em relao a cada conjuntura terica e a cada formao cientfica concreta. Tal como antes dizamos serem as ideologias dominantes, ligadas ao bloco no poder, as geradoras dos obstculos fundamentais produo de conhecimentos cientficos nas cincias sociais, podemos afirmar, em termos gerais e esquemticos, tenderem as ideologias dominadas a constituir condies de produo de objectos cientficos, de conhecimentos, atravs da sua capacidade de designao desses objectos. Nas cincias sociais, a interveno pistemolgica particularmente importante, dada a dominncia ideolgica nesse campo. Mas preciso no esquecer que as condies sociais determinam os limites de eficcia do terico, e portanto os prprios limites de eficcia da interveno epistemolgica, que no pode, evidentemente, furtar-se s determinaes sociais. As prticas e os obstculos ideolgicos no so mais do que o ponto de condensao, ao nvel dos discursos, dos elementos de outras prticas sociais, e designadamente das prticas polticas. Dizer que a prtica poltica, as relaes sociais, as estruturas de poder, determinam a possibilidade de progresso terica concreta significa reencontrar, verificando-a, uma afirmao geral da filosofia materialista: no a conscincia que determina o ser, mas o ser que determina a conscincia. A este nvel significa reconhecer, muito simplesmente, que a possibilidade de progresso terica, a possibilidade de superao da dominao ideolgica no campo das cincias sociais tem, era ltima anlise, que ver com o seu exterior: a prtica poltica.Glossrio (i, 2.4) Ideologias prticas Ideologias tericas Epistemologia interna Epistemologia externa BIBLIOGRAFIA (i, 2.1, 2.2, 2.3, 2.4) [1] ALMEIDA, Joo Ferreira, e PINTO, Jos Madureira: Significao Conotativa nos Discursos das Cincias Sociais, Lisboa, Cadernos G. I. S., n. 6, 1973. [2] ALTHUSSER, Louis: Ideologia e Aparelhos Ideolgicos de Estado, Lisboa, Presena, 1974.[3] BOURDIEU, Pierre, CHAMBOREDON, J.-C, e PASSERON, J.-C: Le mtier de socio-

logue, Paris, Mouton/Bordas, 1968. [4] CASTELLS, Manuel: As novas fronteiras da metodologia sociolgica, in Anlise Social, n.OB 35-36, Lisboa, G. L S., 1972.

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[5] CASTELLS, Manuel, e IPOLA, Emilio de: Pratique pistmologique et sciences sociales, in Thorie et Politique, n. 1. [6] DUVERGER, Maurice: Mthodes des sciences sociales, Paris, P. U. F., 1964. [7] FOUCAULT, Michel: Uarchologie du Savoir, Paris, Gallimard, 1969. [8] GREENWOOD, Ernest: Mtodos de investigao emprica em sociologia, in Anlise Social, n. 11, Lisboa, G. I. S., 1965. [9] KAPLAN, Abraham: A Conduta na Pesquisa, So Paulo, Herder, 1969. [10] LAZARSFELD, Paul: Philosophie des sciences sociales, Paris Gallimard, 1970. [11] LIMA, Marins Pires de: O Inqurito Sociolgico: Problemas de Metodologia, Lisboa, Cadernos G. I. S., n. 4, 1973. [12] NUNES, A. Sedas: Sobre o Problema do Conhecimento nas Cincias Sociais, Lisboa, Cadernos G. I. S., n. 9, 1973. [13] PINTO, Roger, e GRAWITZ, Madeleine: Mthodes des sciences sociales, Paris, Dalloz, 1967. [14] VERON, Eliso: Ideologia, Estrutura, Comunicao, So Paulo, Cultrix, 1970. [15] ZEISEL, Hans: Fale com Nmeros, Lisboa, Assrio & Alvim, 1974. 2.5 TCNICAS DE INVESTIGAO 2.5.1 INTRODUO

Tendo fornecido anteriormente (2.1) a noo genrica de tcnicas de pesquisa em cincias sociais, dispensamo-nos de voltar ao assunto. O que nos vai agora interessar a questo da possibilidade de classificao dessas tcnicas e da descrio sucinta de algumas caractersticas das tcnicas mais comummente utilizadas na pesquisa emprica.2.5.2 O PROBLEMA DA CLASSIFICAO

O que se disse em relao classificao dos mtodos vale para as tcnicas de pesquisa. Por um lado, e, quanto mais no seja, de um ponto de vista pedaggico, a tentativa de classificao uma exigncia que resulta da necessidade de clarificar um conjunto desordenado de instrumentos tcnicos disponveis nas cincias sociais. Por outro lado, a multiplicidade de classificaes propostas nos manuais faz sobressair o carcter arbitrrio dos critrios utilizados, que, ao referirem-se ora ao objecto de anlise, ora ao tipo de procedimento em causa, ora fase lgico-oronolgica da pesquisa, desembocam em parties no exaustivas, por vezes contraditrias, ou, pelo menos, parcialmente sobreponveis. Excluda a pretenso de superar estas e outras dificuldades, propomos no quadro n. 5 a classificao que nos servir de referncia para a descrio a que procederemos no nmero 2.5.3.Classificao das tcnicas de pesquisa em cincias sociais[QUADRO N. 5]

Documentais

. {Clssicas 1 Modernas

\ Observao par- ticipante. ... \ Experimentao

Semntica quantitativa Anlise de contedo Observao-participao Participao-observao Clnica Em profundidade Centrada

No documentais

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Entrevistas Observao no L j_ did d participante... t u d e s e opinies Inqurito por questionrio

Resta fazer algumas observaes complementares: a) No se teve em conta a distino clssica e lgica entre tcnicas de recolha de dados e tcnicas de tratamento da informao. Por um lado, tanto os procedimentos da observao como os da anlise esto estreitamente ligados em tcnicas complexas que aparecem no esquema, como a tcnica do inqurito por questionrio. Tentar separar os dois nveis na classificao seria provavelmente complicar a compreenso global das distines. Por outro lado, pode afirmar-se que, cronologicamente, a observao (em sentido lato) precede o tratamento dos dados, o que no deixa de ter repercusses a nvel lgico. A classificao apresentada deve pois ser lida como predominantemente centrada no problema da recolha de informao. b) A prtica da pesquisa foi, ao longo do tempo, consagrando a unidade de procedimentos tcnicos por vezes muito distanciados uns dos outros, ou seja, reuniu, sob a mesma designao, instrumentos que os critrios utilizveis teriam fatalmente pulverizado. Basta pensar no inqurito por questionrio ou na anlise de contedo para se verificar que estamos perante tcnicas complexas, inclusivas de procedimentos diversificados e funcionando a diferentes nveis. Trata-se, assim, de casos em que o eventual rigor dos critrios de classificao tem de ser abandonado em favor dos resultados que a prtica de investigao foi impondo. c) No se autonomizaram no esquema as tcnicas estatstico-matemticas. Blas so, com efeito, instrumentos utilizados em praticamente todos os processos de pesquisa e integram certos momentos de boa parte das tcnicas disponveis. E isto quer ao nvel da recolha, quer ao do tratamento da informao, embora com particular nitidez neste segundo nvel. No quisemos, porm, deixar de expor, embora margem do conjunto de procedimentos que integram o esquema proposto no quadro, as caractersticas principais das tcnicas de amostragem, vulgarmente includas entre as tcnicas estatsticas disponveis em cincias sociais. O facto de repetidas vezes se lhes fazer referncia ao descrever quer as tcnicas documentais quer as no documentais justificar por certo a nossa opo.2.5.3 DESCRIO SUMRIA DE ALGUMAS TCNICAS DE UTILIZAO FREQUENTE

2.5.3.1 TCNICAS DOCUMENTAIS

A observao de documentos envolve procedimentos muito diversificados, desde logo porque so muito diversos tambm os documentos reveladores de fenmenos sociais. impossvel recensear exaustivamente aquilo que pode constituir documento no sentido de objecto de observao capaz de fornecer elementos informativos indirectos pesquisa em cincias sociais. Basta pensar na multiplicidade de documentos escritos: arquivos pblicos e documentos oficiais (sob a forma de estatsticas ou no), centrais ou locais, de origem governamental ou administrativa; imprensa, publicidade, obras literrias; arquivos privados (de organizaes ou individuais), mas

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sobretudo de documentos no escritos: cinema, rdio, televiso, gravaes,

fotografia; iconografia (pintura, desenhos, esculturas, etc).J se v que todas as cincias sociais tero de utilizar tcnicas de observao de documentos, embora algumas, como o caso da histria, e justamente porque aqui se trata de uma observao indirecta dos fenmenos sociais, estejam praticamente circunscritas a elas, tradicional distinguir dois grupos de tcnicas documentais: tcnicas clssicas, que propiciam uma anlise qualitativa em profundidade (intensiva), e tcnicas modernas, de base quantitativa e, em geral, extensivas, ou seja, cobrindo um amplo campo de estudo. As primeiras tm por paradigmas as anlises histricas e literrias, mas revestem caracteres especficos conforme a perspectiva disciplinar em que so utilizadas (sociolgica, jurdica, psicolgica, lingustica, etc). Geralmente criticadas pela sua subjectividade, as tcnicas clssicas tendem a ser complementadas por tcnicas de tipo quantitativo: a semntica quantitativa, que estuda o vocabulrio dos textos por processos estatsticos de forma a analisar os estilos, a detectar lacunas, e a anlise de contedo, que procura agrupar significaes, e no vocbulos, e , em princpio, aplicvel a todos os materiais significantes, a todas as comunicaes, no se cantonando aos textos escritos. Uma vez determinados os objectivos da pesquisa e seleccionado muitas vezes com recurso amostragem o objecto directo de investigao, a anlise de contedo percorrer vrias fases, que podem esquematicamente enunciar-se assim: a) Determinao de categorias pertinentes que permitam a classificao e quantificao dos elementos observveis na comunicao; b) Determinao das unidades de anlise (elementos) a observar na comunicao; c) Deteco das unidades no texto e sua distribuio pelas categorias pr-definidas; d) Tratamento dos resultados das parties operadas no texto, com recurso a procedimentos estatstico-matemticos. Tanto a seleco de categorias (quadros da anlise) como a das unidades de anlise so organizadas por uma sistematizao terica prvia 'ainda que geralmente provisria, que tem, evidentemente, em conta tanto o objecto como os objectivos do estudo. A anlise de contedo, tcnica em contnuo aperfeioamento, assim susceptvel de ser accionada por forma a restituir o sentido dos textos, das mensagens, das comunicaes. Ela pode, eventualmente, permitir captar, no apenas a informao explcita das mensagens, mas ainda as condies teorico-ideolgicas de produo dessas mensagens (os seus geradores semiticos), bem como fornecer indicaes sohre a articulao dos geradores com os lugares sociais da sua produo.2.5.3.2 TCNICAS NO DOCUMENTAIS

A) Observao participante394 A caracterstica diferencial da observao participante, em relao s outras tcnicas, consiste na insero do observador no grupo observado,

o que permite uma anlise global e intensiva do objecto de estudo. Se se trata de um investigador ou de uma equipa de investigadores que se integra no grupo apenas a partir do momento em que define um projecto de pesquisa em relao a esse grupo, pode falar-se de observao-participao. Se um ou vrios elementos de um grupo decidem aproveitar a sua insero para observar o grupo de que participam, pode falar-se de participao-observao. a) A observao-participao pode ser mais ou menos aprofundada, exigir maior ou menor continuidade e integrao na vida do grupo em estudo. A tcnica da reportagem, incidindo sobre reunies, conferncias, manifestaes polticas ou outras quaisquer prticas sociais, no solicitar geralmente, dado o carcter conjuntural do objecto de estudo, se no uma participao relativamente distanciada e de curta durao. Mas nem por isso essa tcnica, desde que utilizada sistematicamente, deixar de ter grande utilidade, fornecendo elementos importantes a integrar em anlises mais vastas e que se socorrem de outras tcnicas disponveis. Como exemplo do extremo oposto de exigncia em relao durao e aprofundamento da observao, encontramos as tcnicas etnogrlicas. Nasceram elas da necessidade de estudar aquilo a que se chamava as sociedades primitivas e implicavam invariavelmente uma participao longa e global na vida do grupo social em estudo. Tais tcnicas so, no entanto, utilizveis igualmente no que respeita ao estudo de grupos e formaes sociais contemporneas e permitem a restituio das mltiplas dimenses implicadas num fenmeno social. Tambm neste caso da observao antropolgica frequente a sua associao com outras tcnicas (testes, observao documental, inquritos, etc). b) A participao-observao comporta, por sua vez, dois subtipos de tcnicas: observao introspectiva e observao directa do objecto de estudo. No primeiro caso trata-se de tentar compreender a realidade social pela mediao de uma auto-anlise do observador. Os perigos e os limites da introspeco, forma outrora privilegiada de anlise, so, no entanto, bem claros. As conscincias individuais reflectiro de maneira tanto mais deformada os fenmenos sociais quanto estes apaream transparentes a essas conscincias; o senso comum, as ideologias, tendero a fazer-se passar por conhecimento cientfico da realidade. Os resultados da introspeco devem assim ser tomados como testemunhas, que, por muito interesse informativo que contenham, no so geralmente susceptveis de constituir mais do que matrias-primas para o estudo da realidade social a que se referem. A observao directa do objecto de estudo no est contudo, tambm ela, isenta de subjectividade. Basta pensar que a pertena ntima a grupos sociais implica dimenses afectivas que podem enviesar gravemente as anlises produzidas pelos participantes-observadores. Mais uma vez se verifica a necessidade de utilizao controlada dos resultados (parciais) obtidos. Comum a todas as formas de observao participante, como de resto a todas as tcnicas de observao em cincias sociais, a exigncia de sistematizao. Ela prpria, por sua vez, s pode resultar do comando explcito da teoria na organizao das pesquisas concretas. 395

B) ExperimentaoO processo experimental nasceu e desenvolveu-se nas cincias da natureza como forma de superao decisiva das ideologias tericas anteriores; pode mesmo dizer-se que o surgimento efectivo de muitas dessas cincias est ligado sua adopo generalizada e sistemtica. As cincias da natureza, nomeadamente a fsi