Almanaque de Cultura e Saúde - FEBEC Edição 10

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Noel, Wilson Batista, Caetano, Chico, Adoniran... Por amor, desavença ou mera brincadeira, ilustres representantes da nossa música se engalfinharam. Mas o malandro bem sabe: em brigade bamba, quem se dá bem é o samba. Só mesmo no Almanaque Gentileza pregava amor e bondade no Rio. A receita secreta de Cora Coralina. Teste seu nível de brasilidade. Histórias inspiradoras de luta pela vida. Chico Mendes O homem que enfrentou latifundiários e pistoleiros pela sustentabilidade da floresta amazônica.

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Noel, Wilson Batista, Caetano, Chico, Adoniran...

Por amor, desavença ou mera brincadeira, ilustres

representantes da nossa música se engalfinharam.

Mas o malandro bem sabe: em brigade

bamba, quem se dá bem é o samba.

Só mesmo no AlmanaqueGentileza pregava amor e bondade no Rio.

A receita secreta de Cora Coralina. Teste seu nível de brasilidade. Histórias inspiradoras de luta pela vida.

Chico MendesO homem que enfrentou latifundiários e pistoleiros pela sustentabilidade da floresta amazônica.

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Todo homem, por natureza, quer saber.

Sumário

Diretor editorial Elifas AndreatoDiretor executivo Bento Huzak Andreato

Editor João Rocha RodriguesEditor de arte Dennis Vecchione

Editora de imagens Laura Huzak AndreatoEditor contribuinte Mylton Severiano

Redatores Bruno Hoffmann e Natália PesciottaAssistentes de arte Guilherme Resende e Soledad Cifuentes

Gerente administrativa Fabiana Rocha OliveiraAssistente administrativa Eliana Freitas

Assessoria jurídica Cesnik, Quintino e Salinas AdvogadosJornalista responsável João Rocha Rodrigues (MTb 45265/SP)

O Almanaque de Cultura e Saúde está sob licença Creative Commons. A cópia e reprodução de seu conteúdo são autorizadas para uso não comercial, desde que dado o devido crédito à publicação e aos autores. Não estão incluídas nessa licença obras de terceiros. Para reprodução com fins comerciais, entre em

contato com a AndreAto ComuniCAção e CulturA.

Correspondências Rua Dr. Franco da Rocha, 137 - 11º andar Perdizes. São Paulo-SP CEP 05015-040 Fone: (11) 3873-9115 [email protected]

O AlmAnAque de CulturA e SAúde é uma publicação mensal da Andreato Comunicação e Cultura em parceria com a FEBEC – Federação Brasileira

de Entidades de Combate ao Câncer. A revista é distribuída por assinatura, pelos estabelecimentos filiados à Associação Paulista de Supermercados

(APAS) e pelos voluntários das Ligas de Combate ao Câncer.

5 carta enigmática

6 você sabia?

12 gente aJUDanDo gente Mara Galvão Bueno

13 PaPo-cabeça Joaquim Melo

16 ilUstres brasileiros Chico Mendes

18 esPecial Briga de Bamba Também Dá Samba

22 Jogos e brincaDeiras

23 o teco-teco

24 viva o brasil Ribeirão Preto

28 temPeros e sabores Doce de figo

29 almacrônica por Lourenço Diaféria

30 em se PlantanDo tUDo Dá Cebola

32 rir é o melhor reméDio

33 caUsos De rolanDo bolDrin

34 mUito obrigaDo por Helena de Lourdes

Presidente Antonio Luis Cesarino de Moraes Navarro

10 edições de culturae solidariedade

Aristóteles

Rua Silva Airosa, 40. Vila LeopoldinaSão Paulo-SP Cep 05307-040

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ASSINE (11) 2166-4100www.febec.org.br

om este exemplar que você tem em mãos, o AlmAnAque de CulturA e SAúde chega a sua décima edição. Todos os meses, trazemos histórias curiosas, divertidas e emocionantes sobre a cultura brasileira. E neste

almanaque tudo cabe: de futebol a artes, de política a avanços da ciência, de bons exemplos a histórias de luta pela vida. É um tratado de exaltação do Brasil e de brasileiros que, cada qual a sua maneira, ajudam a construir uma nação única.

Nesta edição especial, relembramos brigas clássicas da nossa música. Seja por desavença ou mera brincadeira, grandes nomes do cancioneiro travaram embates musicais. A briga entre Noel Rosa e Wilson Batista tornou-se um marco, mas houve muitos outros artistas que resolveram suas picuinhas em letras de canções. A música brasileira agradece.

Já nas primeiras páginas relembramos grandes personagens do País, como o profeta Gentileza, que largou a família para espalhar ideais de bondade pelas ruas cariocas. Um inscrito em sua roupa sintetizava seu pensamento sobre a humanidade: “Não usem problemas. Não usem pobreza. Usem amor e gentileza”. Descubra também como o inimigo número um da ditadura militar teve seu passado apagado por quase 10 anos. Conheça o homem com memória impressionante, que consegue decorar quase 300 cartas numa tacada só. E ainda o poeta paulista e o músico pernambucano cegos que se mantêm ativos propagadores de cultura.

No Papo-Cabeça, trazemos uma entrevista com um ex-seminarista que criou um dos métodos mais inteligentes de geração de riqueza em regiões carentes do mundo. Num dos bairros mais pobres de Fortaleza, Joaquim Melo lançou a pergunta: “Por que somos pobres?”. E, a partir daí, as coisas começaram a mudar. Ele ensina: “Se não resolvermos as questões entre nós, não há programa nem governo no mundo que o faça”.

Como em todas as edições, o AlmAnAque reúne também casos de abnegação e luta pela vida. Um deles é o de Mara Galvão, de Itararé, no interior de São Paulo, que divide a vida entre sua loja de artigos de pesca, as netas e mais de 400 pessoas com câncer ajudadas pela instituição que comanda. Conheça também Helena de Lourdes, de Iacri, também em São Paulo, que fundou uma liga de combate ao câncer e, mais tarde, se viu obrigada a lutar para superar a própria doença. São histórias inspiradoras.

Este é o AlmAnAque de CulturA e SAúde, há 10 edições dando apoio aos pacientes e espalhando a cultura brasileira por todos os cantos. Quer assinar a revista? Basta acessar www.febec.org.br ou ligar para (11) 2166-4100. Venha com a gente nesta caminhada de cultura e solidariedade.

Apoio

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Na virada do século, fotografia era sinônimo de minutos a fio diante da câmera, até que ficasse pronta. Os recursos eram parcos, e as técni-cas de manipulação de imagens não contavam mais do que com a in-ventividade dos fotógrafos. Mas o fluminense Valério Vieira, em 1901, realizou um auto-retrato de forma inusitada. Como se vê ao lado, ele mesmo representa 30 personagens presentes na foto – dos integrantes da banda até o busto em cima da mesa. A obra leva o nome de Os Trinta Valérios, marco da fotografia brasileira.

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Solução na p. 22

le nasceu em araripe, no Ceará, em 15 de dezembro de 1916. Mas em pernambuco se tornaria um dos mais impor-

tantes políticos de esquerda do país. Começou a viver no Estado em 1933 para estudar na Faculdade de Direito do Recife, onde se formou em 1937.logo passa no concurso para o Instituto do açúcar e do Álcool. Torna-se fervoroso defensor dos trabalhadores de palha de cana do interior. É quando o governador Barbosa lima Sobrinho o con-vida para ser secretário da Fazenda de pernambuco.Com o apoio da população pobre, torna-se prefeito da capital em 1960. no cargo, cria o Movimento de Cultura popular, um programa revolucionário de cultura e educação. Dois anos de-pois, elege-se governador e segue com os projetos de cunho

social. as ações são interrompidas pelo golpe militar de 1964. os generais exigem sua renúncia. “ninguém pode retirar o mandato que o povo me deu.” preso, é obrigado a exilar-se na argélia.Voltaria ao país somente em 1979, beneficiado pela lei da anistia. Emoção nas ruas do Recife. É carregado por uma multidão, que o chama de guerreiro do povo brasileiro. o carinho se refletiria nas urnas. Elege-se deputado federal e, logo depois, governador.Em 1994, é novamente eleito governador e, em 2002, deputado federal, cargo que ocuparia até a morte, em 2005. Centenas de caravanas seguiram-no para o último adeus. pobres agricultores acenavam seus chapéus de palha. um trabalhador rural resumiu: “o governador não foi enterrado. Ele foi plantado no chão do Brasil e no coração da gente”.

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14/12/1860ESTREIA A PRIMEIRA ÓPERA

COMPOSTA, INTERPRETADA E ENCENADA NO BRASIL: A NOITE DE SÃO JOÃO,

DE JOSÉ DE ALENCAR.

2/12/1870ESTREIA, EM HOMENAGEM

AO ANIVERSÁRIO DE PEDRO II, O GUARANI,

DE CARLOS GOMES,NOSSA ÓPERA MAIS FAMOSA.

O HOmem-memória

uantos números de telefone você sabe de cor? Não muitos, talvez. Mas antes

do surgimento do celular é provável que soubesse bem mais. “O celular é mais uma das ferramentas que utilizamos como muleta tecnológica. Ele faz com que não precisemos pensar muito”, provoca o mineiro Alberto Dell’Isola. Ele é o capitão da equipe brasileira de memória e detém o recorde latino-americano de memorização. Em uma hora, decorou a ordem de 289 cartas recém-embaralhadas – o equivalente a cinco baralhos e meio, aproximadamente.

Do tempo em que obras como Ilíada e Odisseia eram transmitidas no boca-a-boca até o advento das agendas de celular houve uma queda brutal das nossas exigências mentais, lamenta Dell’Isola. Ele alerta que doenças

degenerativas como o Mal de Alzheimer agravam-se com a falta de trabalho intelectual, e que a geração que se apóia nas “muletas tecnológicas” corre ainda mais riscos.

O mineiro lidera o grupo de atletas da mente (ou mentatletas) que representa o Brasil nas competições internacionais de memória, com provas como decorar nomes de pessoas no menor tempo possível. Ele garante que sua memória impressionante não é um dom, mas sim o resultado de um intenso treinamento. Diz que tinha uma memória das piores. Deu-se conta do problema quando foi ao shopping de carro e voltou de ônibus – havia esquecido que

fora de automóvel. Só começou a praticar em 2004.No blog Diário do homem-memória: memorização concentração,

Dell’Isola dá dicas aos que desejam ter uma “supermemória”.

Alberto Dell’Isola

QAlberto decorou 289 cartas de baralho em uma hora

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Todo diatem um Santo

São Nicolau O santo que inspirou a figura do Papai Noel foi bispo de Mira, na Turquia, no século 4. Mesmo depois de deixar o bispado por ter discutido e esbofeteado um antagonista do clero, continuou atuante. Boas ações e milagres atribuídos a ele o fizeram protetor dos marinheiros e comerciantes, santo casamenteiro e amigo das crianças.

Saiba maiS Um Outro Varella, de Leonardo Fróes (Rocco, 1990).

serÁ O varella?

Poeta anônimo fez galhofacom o excelso monarca

poema ao lado, publicado na imprensa carioca no aniversário de Pedro 2º, em 2 de dezembro,

foi um dos precursores da literatura panfletária. O ano e o jornal de sua publicação são dúvidas, assim como seu autor, embora um forte candidato seja o escritor Fagundes Varella. Pode parecer exaltação, mas trata-se de um acróstico – no qual as letras iniciais dos versos compõem uma frase. Leia primeiro os versos; depois, apenas as primeiras letras, verticalmente.

Saiba maiS Diário do homem-memória, memorização concentração: http://memorizacao.blogspot.com

Oh! excelso monarca, eu vos saúdo!Bem como vos saúda o mundo inteiro,O mundo que conhece as vossas glórias.Brasileiros, erguei-vos e de um brado.O monarca saudai, saudai com hinos.Do dia de dezembro o dois faustoso,O dia que nos trouxe mil venturas!Ribomba ao nascer d’alva a artilharia.E parece dizer em tom festivo: Império do Brasil, cantai, cantai!Festival harmonia reine em todos;As glórias do monarca, as vãs virtudes.Zelemos decantando-as sem cessar.A excelsa imperatriz, a mãe dos pobres.Não olvidemos também de festejar.Neste dia imortal que é para elaO dia venturoso em que nascera Sempre grande e imortal, Pedro II.

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Alberto decorou 289 cartas de baralho em uma hora

Saiba maiS Carlos Marighella: O inimigo número um da ditadura militar, de Emiliano José (Sol e Chuva, 1997).

a lápide de Carlos Marighella, em túmulo desenhado por Oscar

Niemeyer, o epitáfio: “Não tive tempo para ter medo”. Mas o militante político não descansou sob ela desde que morreu. Ex-presidente do Partido Comunista e liderando a Aliança Nacional Libertadora (ANL), Marighella era um dos inimigos mais procurados pelo governo militar brasileiro. Foi morto em 1969, num tiroteio que não existiu – uma emboscada que envolveu 45 policiais. Trataram de enterrá-lo logo, quase como indigente, em São Paulo.

A família precisou esperar a Lei de Anistia para velar o corpo e resgatar sua imagem pública. Em 10 de dezembro de 1979, Dia Universal dos Direitos Humanos, os restos mortais foram levados de São Paulo para Salvador, com atos políticos nas duas cidades. Palavras de Jorge Amado para o segundo enterro: “Retiro da maldição e do silêncio e aqui inscrevo seu nome de baiano: Carlos Marighella”. Desde então, todos os anos, a morte é lembrada com homenagens.

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Sem tempopara o medo,Marighella ficou 10 anos no silêncio

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Segundo enterro de Marighella, em Salvador.

música Gentileza, que o homenageia, só ficou no muro tristeza e tinta fresca. Dois anos depois, o projeto Rio com Gentileza, sob a coordenação do professor Leonardo Guelman, da Universidade Federal Fluminense, iniciou a restauração das pilastras, que receberam proteção especial de poliuretano para aguentarem as intempéries.

Também chamado de Jozze Agradecido, o Profeta aconselhava as pessoas a dizerem “por gentileza”, em vez de “por favor”, já que devemos nos relacionar por amor, e não por favor; e “agradecido” no lugar de “obrigado”, já que ninguém é obrigado a nada. Lógica desconcertante.

A túnica branca adotou em viagem a Ouro Preto, por sugestão de estudantes que lá o acolheram. Com o tempo, foi ganhando bordados. Eram quatro. Um deles: “Não usem problemas. Não usem pobreza. Usem amor e gentileza.”

Carregava um estandarte com flores, bandeira do Brasil, catavento e dizeres. Assim justificava: “As flores são porque eu sou o jardim ambulante”; a bandeira, porque “é a mais linda do universo”; e o catavento, “para refrescar a mente da humanidade”.

Durante a Eco-92, colocou-se estrategicamente no caminho dos participantes. Queria que sua mensagem de amor chegasse a outros cantos do planeta. Por vezes foi confundido com mendigo. Quando alguém lhe oferecia esmolas, recusava: “Não quero seu dinheiro. Quero seu espírito para Deus.”

Em 1996, doente, passou seus últimos meses de vida na cidade de Mirandópolis, em São Paulo. Morreu em 29 de maio daquele ano, próximo à família.

a tarde de 17 de dezembro de 1961, um funcionário demitido do Gran Circus Norte-

Americano, em Niterói, ateou fogo à lona durante um espetáculo. Cerca de 400 pessoas morreram, em sua maioria crianças. Seis dias depois, um empresário de nome José da Trino (ou Datrino) deixou tudo o que tinha, incluindo mulher e filhos, para consolar as vítimas. Mudou-se para o local, onde plantou um jardim com flores.

Nos 35 anos seguintes, andaria pelas ruas, ônibus e barcas do Rio pregando a bondade. Seu lema: gentileza gera gentileza. Quando criança, amansava animais em Cafelândia, interior de São Paulo. Andarilho na Cidade Maravilhosa, dizia-se “amansador dos burros-homens da cidade que não tinham esclarecimento”.

Via o circo como metáfora do mundo: redondo e pegando fogo por culpa do capitalismo, ou “capetalismo”, como costumava dizer. Não professava religião, pelo contrário. Repetia: “Não dê esmola a padre, não dê esmola a pastor. São tudo traidor. O padre tá esmolando. O pastor tá pastando. E o Papa tá papando, papão. Papão do Capeta Capital.”

Nos anos 1980 pintou mensagens em 55 pilastras do Viaduto do Caju, próximo à rodoviária da cidade. “Meus filhos, bem vindo ao Rio. Gentileza gera gentileza amor beleza perfeição bondade e riqueza.”

Em 1997 a companhia de limpeza urbana da cidade jogou uma camada de cal em cima dos escritos. Como cantou Marisa Monte na

Saiba maiS Brasil Tempo de Gentileza, de Leonardo Guelman (EdUff, 2000).

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Gentileza pregou amor e bondade contra males

do “capetalismo”

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elo menos dois salários mínimos por mês. Era essa a exigência dos jornalistas de São Paulo quando fizeram

a primeira greve da categoria, nos anos 1960. Após um dia de paralisação, o sucesso da mobilização dependia de que os jornais, improvisados pelos chefes, não chegassem às bancas. Na madrugada de 1° de dezembro de 1961, grupos fizeram piquete no portão das empresas para impedir que os carregamentos saíssem.

Jornalistas postados diante dos Diários Associados viveram o episódio mais marcante da greve. Avistaram um tanque da polícia e entoaram juntos: “Ouviram do Ipiranga...”. O brucutu molhava homens e mulheres para dispersar e desmoralizar os manifestantes. Os jatos de água ficavam cada vez mais fortes e doíam nos corpos, já colados na roupa encharcada. O Piquete da Bunda Molhada, como ficou conhecido, amanheceu vitorioso. Entre notas do hino balbuciadas, lágrimas de comoção e dor, jornal nenhum saiu. Quatro dias depois o Ministério do Trabalho sentenciava a favor dos jornalistas.

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Saiba maiS História da Imprensa no Brasil, de Nelson Werneck Sodré (Martins Fontes, 1983).

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Manifestantes diante dos Diários Associados, em São Paulo.

vá plantar batatas! Vem de Portugal, de uma

época em que a agricultura era vista com certo desdém, já que o país

estava voltado para a pesca e navegações. A batata, tão básica, não

era considerada alimento nobre, e demorou a ser adotada na culinária.

Plantar batatas, portanto, não era das atividades mais benquistas.

Origem da expressão

Fases da Lua1 . 2 . 3 . 4 . 5 . 6 . 7 . 8 . 9 . 10 . 11 . 12 . 13 . 14 . 15 . 16 . 17 . 18 . 19 . 20 . 21 . 22 . 23 . 24 . 25 . 26 . 27 . 28 . 29 . 30 . 31

cheiacrescentenova minguante

m um quarto conjugado com cozinha e banheiro, no sétimo andar, morava Caetano Veloso. No apartamento da frente, Paulinho da Viola.

Eram meados da década de 1960, e para cruzar com Gal Costa, Gilberto Gil, Odete Lara, Capinan, Jards Macalé, Torquato Neto, bastava visitar o Solar da Fossa, um casarão de estilo colonial no bairro carioca de Botafogo.

Nos 85 apartamentos viviam jornalistas, professores, artistas plásticos, poetas, escritores e, principalmente, músicos. Bem-localizado – ficava ao lado do Canecão e próximo dos bares de Copacabana –, tinha ainda como vantagem os baixos valores de aluguel, compatíveis com o orçamento modesto de artistas em início de carreira.

O Solar Santa Terezinha ficou conhecido como Solar da Fossa por causa do carnavalesco Fernando Pamplona, que, desolado, mudou-se para lá depois do fim de seu casamento.

Por lá, valia de tudo. Plantava-se até maconha no jardim, como descrevem os versos de Panis Et Circenses, música de Caetano e Gil lançada no disco Tropicália, de 1968, que reuniu alguns dos ilustres moradores do casarão: Mandei plantar / Folhas de sonho no jardim do Solar. “O Solar é uma festa móvel, onde só é proibido o que é proibido”, definiu o artista gráfico Rogério Duarte.

Antes de virar residência de artistas, palco de loucuras, o Solar teve frequentadores com perfil um tanto diferente. Havia sido um asilo de idosos administrado por freiras. Depois, um pensionato para moças. Na década de 1970 veio abaixo, demolido para dar lugar ao primeiro shopping center do Rio de Janeiro, o Rio Sul. Quem diria...

palcO de lOucuras

Saiba maiS Tropicália – A história de uma revolução musical, de Carlos Calado (Editora 34, 1997).

Disco Tropicália: folhas de sonho no Jardim do solar.

Casarão abrigou idosos, moças e a nata da MPB

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Piquete da Bunda Molhada: muita água, nenhum jornal

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ão há novidade: a diversidade da cultura brasileira muito se deve à contribuição dos

imigrantes. As colônias alemãs no sul e a influência dos italianos e dos japoneses em São Paulo são famosas. Mas em nosso vasto território cabe ainda gente de outros cantos. O que dizer da Ucrânia?

Em Prudentópolis, interior do Paraná, vive a maior colônia ucraniana do Brasil. A imigração começou em fins do século 19, quando desembarcaram por aqui cerca de oito mil ucranianos. O país é a segunda maior república da ex-União Soviética, atrás apenas da Rússia.

Atualmente, 80% dos 46 mil habitantes de Prudentópolis – que fica a 207 quilômetros de Curitiba – têm raízes no país eslavo. A influência é grande a ponto de as placas com o nome das ruas serem escritas também em ucraniano, língua que usa o alfabeto cirílico. Entre os prudentopolitanos, há quem passe a vida inteira sem sequer ter aprendido o português.

Pelas quedas d’água de mais de 100 metros de altura, a cidade é conhecida como a Terra das Cachoeiras Gigantes. Suas mais de 30 igrejas, boa parte construída pelos ucranianos, lhe conferem ainda o título de Capital da Oração. Estudiosos afirmam que a religiosidade é o que motiva a manutenção da cultura ucraniana, representada, por exemplo, pela pêssanka, arte milenar de pintar ovos, oferecidos aos deuses da natureza. Aqui e do outro lado do mundo.

A Ucrânia a 200 quilômetros de Curitiba

tãO lONge, tãO pertO

Saiba maiS Paraíso das Delícias: Um estudo da emigração ucraniana (1895-1995), de Maria Luiza

Andreazza (Aos Quatro Ventos, 1999).

Igreja ucraniana de São Josafá, em Prudentópolis, Paraná.

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Nascido em São Paulo em 30 de dezembro de 1972, é irmão de outro ator. Apareceu pela primeira vez na telinha tocando violão em show de calouros. Sua primeira novela foi Dona Santa, em 1981. Desde então,

atuou em inúmeras, mas prefere trabalhar com cinema. Inesquecível interpretando personagem de Ariano Suassuna, também representou um traficante e uma vítima da polícia britânica.

Confira a resposta na página 22

de quem são estes olhos?

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O que se colhe no mêsAbacaxi, lichia, nectarina, pêssego, manga,

melancia, melão, laranja, uva.

estação colheita

Guimarães Rosa aprendeulíngua universal em 27 dias

O esperaNtista dO serviçO

Saiba maiS Joãozito: Infância de João Guimarães Rosa, de Vicente Guimarães (José Olympio, 1972).

m 1929, o escritor Guimarães Rosa, já um jovem poliglota, é convocado para resolver um problema linguístico. Com apenas 21 anos, trabalhava na Secção de

Estatística do Estado, em Belo Horizonte. O chefe, Teixeira de Freitas, andava às voltas com a tradução das correspondências do exterior que chegavam diariamente, escritas nos mais diversos idiomas.

Estudante de Medicina, o jovem cordisburguense resolve padronizar a emissão das cartas. Seria feita somente em esperanto, idioma universal. Só o que precisava para isso era aprender a língua de Zamenhof, o que fez em apenas 27 dias. Virou “o

esperantista do serviço”, segundo seu tio Vicente Guimarães.

Para o caso de o destinatário desconhecer a língua, as cartas recomendavam procurar o delegado local da Universala Esperanto-Asocio, instituição que difunde o idioma pelo mundo. Ele se encarregaria da tradução.

Guimarães Rosa considerava o esperanto a solução para a comunicação internacional. No Estado de Minas, escreve artigos sobre a língua. Em 1950, participa do 35º Congresso Mundial de Esperanto. Seu tio conta que uma prima, certa vez, perguntou ao escritor se ela poderia aprender esperanto tão facilmente quanto ele. A resposta, proferida com naturalidade, deve tê-la deixado desconcertada: “Você, minha linda priminha, sabendo um pouco de alemão, francês, russo, espanhol, italiano, grego e latim, e a gramática de algumas outras línguas, o esperanto se torna facílimo”.

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que é atendido: “Agora vou mudar minha conduta...”

Dornellas percebe que a melodia era quase idêntica à do Hino Nacional. “Podem até te prender. Não é permitido fazer brincadeiras com o Hino Nacional”, alertou. Noel ficou assustado, mas a solução era simples: Dornellas apenas trocou algumas notas, evitando a semelhança. Com a partitura pronta, era só partir para a gravação.

Mas no meio do caminho tinha uma pedra: no mesmo dia, Dornellas mostrou aos tangarás uma composição sua incompleta: Na Pavuna. Líder do grupo, Almirante se empolgou com a música. Aceitou formar parceria com Dornellas e decretou: “Este vai ser o Carnaval do Na Pavuna”.

Os tangarás nunca gravaram Com que Roupa?. Foi Noel quem o fez mais tarde, acompanhado do Bando Regional. Sucesso estrondoso,

inspirou paródias, propagandas, esportes, moda. Nascia uma das maiores estrelas da música brasileira.

Saiba maiS Noel Rosa – Uma biografia, de João Máximo e Carlos Didier (Linha Gráfica/UnB, 1990).

a vida NãO estava sOpa

Noel cantou com graça o Brasil de tangaezembro de 1930. Alto-falantes espalhados pelo Rio reproduzem

os sambas e as marchas que animarão o Carnaval do ano seguinte. Com que Roupa?, do novato Noel Rosa, era de longe a mais popular. A letra impecável, as rimas raras e o refrão memorável formavam uma composição original em todos os sentidos – síntese do talento de Noel para tratar com graça e inteligência os assuntos sérios. “É sobre o Brasil de tanga”, explicou. O País sofria as consequências da quebra da Bolsa de Nova Iorque, em 1929.

O compositor fazia parte do Bando de Tangarás, conjunto que reunia outras figuras extraordinárias da nossa música: Almirante, João de Barro, Henrique Brito e Alvinho. Entusiasmados com o samba, os tangarás planejavam que ele fosse o carro-chefe do grupo. Mas antes era preciso passar a música para a pauta. O grupo foi até Homero Dornellas, compositor e regente que auxiliava músicos que não escreviam partitura. Ele pede que Noel cante a música, no

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Capa da partitura de Com que Roupa?.

Ticumbi, ou baile de Congo de São Benedito, é uma manifestação religiosa e cultural que acontece todos os anos em Conceição da Barra, Espírito

Santo, a partir de 31 de dezembro. O auto narra a disputa entre os reis de Congo e de Bamba pela primazia de fazer a festa de são Benedito. A disputa se dá por coreografias, músicas e diálogos rimados, nos quais notícias da política local e nacional às vezes se misturam a fatos históricos e à devoção. Todos os integrantes são descendentes diretos dos quilombolas que se instalaram na região.

De manhã, insones pelos ensaios e pelo forró do dia anterior, os velhos senhores descem a ribanceira do rio Cricaré para um banho coletivo e a troca de roupa. Os fogos avisam à comunidade de Barreiras, localizada rio acima, que logo o Ticumbi estará lá para pegar são Benedito e levá-lo de volta à sua igreja, em Conceição da Barra.

No dia seguinte, 1° de janeiro, a maratona recomeça. Logo cedinho os congueiros estão na igrejinha de são Sebastião, paramentados com as roupas típicas do Ticumbi – brancas e muito ricas em rendas, fitas e flores coloridas. A missa tem a participação efetiva dos congueiros. O povo em volta faz roda para

Reis de Congo e de Bamba rompem o ano na congada

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quem estiver de pÉ, daNçarÁ

Congueiros do Ticumbi: festa acontece toda virada de ano.

o início da apresentação, que dura mais de uma hora.A festa segue tarde adentro, com o Ticumbi indo de casa de festeiro em casa

de festeiro. Culmina num animado forró na casa de dona Rosa Dealdina, a última a receber o Ticumbi. Isso para quem ainda estiver de pé depois de três dias de tanta festa...

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o baú do BarãoCachorrovelho nãolate à toa.Nossa homenagem a Aparício Torelly, o Barão de Itararé.

capricórnioCapricornianos costumam ser sóbrios e discretos, mas quem não encara isso como barreira descobre que são também extremamente gentis, confiáveis e fiéis. Responsabilidade é palavra de ordem. Determinado, o nativo em capricórnio atinge objetivos sem fazer alarde. Os amigos e companheiros podem contar sempre com sua calma e controle da situação.

(22-12 a 20-1)

ãe grega, pai turco. Nasceu em 12 de dezembro de 1930 no

Rio de Janeiro. Quando trabalhava vendendo produtos na rua,

um guarda apreendeu suas mercadorias, mas o indicou para uma

rádio. Na empresa, acharam que o nome Senor não tinha apelo

popular. Inventaram outro, pelo qual é conhecido em todo o Brasil.

Na tevê, Vamos Brincar de Forca deu origem a seu programa, um

dos mais antigos do País.

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Confira a resposta na página 22

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O trunfo de Glauco é não ter os olhos sãos

Saiba maiS www.glaucomattoso.sites.uol.com.br

o ano 2000, o poeta Glauco Mattoso, ou Pedro José Ferreira da Silva, se perguntava na Ad-

vertência do livro Panacéia se faria tantos sonetos quanto as 555 sonatas de Scarlatti. E deduzia já ter composto mais que Camões. Os anos passaram e a conta aumentou para 2 mil sonetos publicados.

Paulistano de 1951, nasce com glaucoma, doença degenerativa congênita. Nos anos 1970 forma-se bibliotecônomo e cria o Jornal Dobrabil, que o concretista Augusto de Campos classificou como “uma das poucas coisas VIVAS q me caíram nas mãos & olhos nestes tempos chochos.“ A exemplo de Gregório de Mattos, seus temas são os fesceninos (obscenos) e transgressivos.

Em 1995 cega de vez, mas sua trajetória ganha novo fôlego com o Prêmio Jabuti por uma tradução de Jorge Luis Borges. Com isso, adquire um computador falante e passa a registrar o que escrevia de cabeça. Glauco não usa o Braille: “Só mesmo este sistema falado (DosVox) resolve minhas necessidades. É um programa totalmente desenvolvido no Brasil e em português”.

Na virada do milênio, publica a trilogia de sonetos Centopéia, Geléia de Rococó e Paulisséia Ilhada. Mais Panacéia e um disco com sonetos musicados, que se juntam aos quase 30 títulos publicados e 30 inéditos. Escreve também cordéis, ensaios e romances. No Soneto Prodigioso, conclui sobre sua trajetória: Zarolho ou cego, não quero ser mero / passivo espectador da ocasião. (...) Beethoven era surdo, e foi maior. / O grande escultor nosso era sem mãos. (...) Meu trunfo é só não ter dois olhos sãos.

bairro de Dois Unidos, no Recife, se transforma aos

domingos. Há mais de 10 anos o sanfoneiro cego Arlindo dos Oito Baixos promove um forró arretado no que era o quintal de sua casa. Quem pensa tratar-se de coisa pequena, se engana. O Espaço Cultural Arlindo dos Oito Baixos – reformado pela Prefeitura – comporta 800 pessoas. Gente de toda a cidade, além de turistas, frequenta o autêntico arrasta-pé nordestino. Além do anfitrião, não raro o público depara-se com Dominguinhos, Camarão e outros ícones da música pernambucana.

Nascido em Sirinhaém, Arlindo é autodidata na arte de tocar sanfona. Aos 10 anos já dava seus primeiros shows. Costumava variar entre a sanfona de 80 e 120 baixos. Já adulto, aproximou-se de Luiz Gonzaga. Tocou com o rei do baião por mais de 20 anos. Dele recebeu um conselho: “Vá tocar sanfona de oito baixos. Já tem muito sanfoneiro por aí que toca as outras, você vai ser diferente”.

Hoje, aos 68 anos, além de promover o concorrido forró, Arlindo dá aulas de sanfona. E comemora o interesse dos mais jovens pelo instrumento. “Enquanto esse pessoal existir, a sanfona não vai morrer.” Já gravou 12 discos, e entrou há pouco tempo em estúdio para mais um lançamento – todas as canções foram apresentadas em primeira mão no forró.

Em 2008, o público diminuiu devido à lei seca. Um jornal da cidade chegou a noticiar que o local poderia fechar as portas. Os admiradores se uniram em movimentos e o lugar foi resgatado com força total. Só um aviso: nada de ir ao forró de chinelo ou bermuda. “Tem de vir arrumado. Sem sapato não entra”, avisa o sanfoneiro.

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Mara desdobra-se para semear alegria.

E recebe em dobro

T odos os dias, cerca de 16 pessoas que sofrem de diferentes tipos de

câncer deixam Itararé, no sul de São Pau-lo, em direção a Jaú. Lá está localizado um dos maiores hospitais brasileiros espe-cializados na doença, o Amaral Carvalho. Ligas de voluntárias em todo o estado dão assistência para quem mora longe chegar até lá – além de prestarem suporte aos pa-cientes em muitos outros aspectos.Em Itararé, para auxiliar os 16 pacientes que partem diariamente e também outros 400 atendidos – sem falar na organização de medicamentos, cestas básicas e tantas outras coisas –, Mara Galvão Bueno comanda 30 voluntárias da VICC (Voluntá-rias Itarereenses Contra o Câncer). Logo se pensa que ela se dedi-ca à entidade em tempo integral. “Bem que eu queria”, esclarece, com um sorriso no rosto. E logo explica a longa rotina. Todas as manhãs, ela vai ao ambulatório municipal – a liga de Itararé é a única das 98 que possui um ambulatório na própria cidade, além de uma casa de apoio em Jaú. Depois de passar a manhã por lá, é hora de cuidar do próprio negócio, uma loja de artigos para pesca. Como o comércio fica no mesmo endereço da residência, enquanto trabalha, Mara também toma conta das duas netas. Luiza tem 8 e Helena, 2 anos.Quem passa pela rua vê que a mulher de 51 anos, muito prática, recebe gente o dia todo. Toca dar autorização, assinar papel. A se-cretária e a tesoureira das VICC auxiliam no trabalho, mas é inevi-tável que muita coisa passe pela diretora. Tudo começou em 1998, quando Mara e outras mulheres da sociedade fizeram uma reunião que daria o ponto de partida à liga em Itararé. Iam sendo definidos

os cargos de secretária, tesoureira, até que Eduardo Nadalet, o coordenador das Ligas de Voluntárias, olhou para o canto onde ela estava sentada: “A Mara vai ser a diretora”, decretou, com sabedoria.Um caso particular fez a comerciante ver a missão com muito interesse: foi ela quem cuidou da mãe, com câncer de mama, e a viu partir cedo, quando tinha 16 anos. Hoje, anima-se ao notar os avanços da medicina desde então. Câncer de mama tem tratamento. Dependendo do estágio da doença, com ínfima probabilidade de

morte. E, mesmo em casos em que o paciente está desenganado, a liga trabalha pela dignidade da vida.Apesar dessa rotina fazer parte da história de Mara há 12 anos, ela diz que não há como não se envolver com alguns casos. Já chegou a batizar um paciente. Outra vez, a liga realizou o dese-jo de um jovem: fez a noiva entrar no altar, de véu e grinalda, em um casamento com tudo a que tinha direito. Mara assistiu do altar, como madrinha. A união durou dois anos, até o rapaz falecer, aos 22.Mara conhece aflições de todos os tipos, já que a entidade atende a qualquer pessoa: empresários, sem-teto, conhecidos, anôni-mos. Certa vez, ela conversava com um padre, lamentando-se por situações tristes que via: “Se é ruim para um rico ficar doen-te, imagine para quem não tem como pagar o tratamento e nem onde morar...” Padre Tadeu então lhe deu uma orientação que não esquece: façamos a nossa parte, que Deus fará a dele. A frase do padre virou seu lema: “A alegria que a gente semeia na vida dos outros, um dia Deus faz retornar na vida da gente”.

Mara Galvão Bueno, diretora da liga de combate ao câncer de Itararé.

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Por que somos pobres?

JOAQUIM MELO

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A pergunta acima foi o gatilho de uma mudança significativa na vida de milhares de moradores

do Conjunto Palmeiras, na periferia de Fortaleza. A partir da articulação da comunidade,

Joaquim Melo, um ex-seminarista que se meteu num dos lugares mais problemáticos do Ceará,

comandou a criação do Instituto Palmas, uma referência mundial em economia solidária,

criado a partir de uma tecnologia social inovadora. Hoje em 49 localidades brasileiras, a

metodologia aposta na implantação de bancos comunitários com moedas próprias e, sobretudo,

no protagonismo dos moradores. “Não há governante, por mais esforçado que seja, capaz de

resolver todos os problemas do Brasil”, defende. “Se não resolvermos as questões entre nós, não

há programa nem governo no mundo que o faça.”

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Como foi a sua chegada na cidade, o seu envolvimento com este lugar? Eu era seminarista em Belém do Pará. Em 1984, vim pra Fortale-za e para o Conjunto Palmeiras a fim de participar de uma experi-ência que se chamava Padres da Favela, enquanto estudava na Uni-versidade Teológica. Era um projeto muito interessante, que visa-va aproximar de maneira bastante orgânica os padres e seminaristas da realidade das periferias. A história do Conjunto Palmeiras da-ta do início dos anos 1970, quando teve início a expansão da cida-de e o governo começou a expulsar os pescadores que viviam à bei-ra do mar. Colocaram os moradores numa caçamba e os jogaram aqui, a 20 quilômetros da praia. Chamavam de conjunto o que ha-via, mas não tinha nada. Apenas um loteamento com umas barra-cas de plástico, sem água, nem luz, transporte, sem nada. Era tudo um grande brejo. Você cavava a terra com uma colher e saía água – toda contaminada, porque não havia esgoto. Era difícil encontrar no Brasil um lugar tão miserável. Em 1981, os moradores criaram uma associação para começar a lutar por si. Foi o início da mobilização pela construção do bairro.

Uma importante conquista foi a chegada da água. Mas o acontecimen-to também causou polêmica, não? Até o fim dos anos 1980, o conjunto não tinha água encanada. Havia uma pandemia de verminoses e outras doenças. A contradição é que a tubulação da água que abastecia toda a cidade passava por baixo de nós. Um absurdo. Então decidimos lançar uma ameaça: se até junho de 1988 o governo não colocasse água no bairro, fu-raríamos a adutora. Secaríamos toda Fortaleza. Ló-gico que era um blefe. Como iríamos furar uma adu-tora? Não sabíamos nem por onde ela passava... Mas o fato é que começaram a sair inúmeras notícias na imprensa. Umas diziam: “Olha que povo sofrido”. E outras: “São bandidos! Vão secar os hospitais, as cre-ches”. No dia fatídico, a polícia cercou o trajeto da adutora. Falamos um pro outro: “Olha só... Então é ali que fica a adutora...”. Vieram também deputados, vereadores, gente ligada aos direitos humanos. En-fim, conseguimos o que queríamos: chamar aten-ção para o absurdo da situação. Logo chegou a água encanada; depois veio a energia elétrica. Deixamos de ser uma favela para nos tornar-mos um bairro popular.

Com o progresso vieram novos problemas? Com a urbanização, come-çaram a chegar as taxas: água, luz, lixo, iptu. O povo que havia passa-do duas décadas lutando por melhorias tinha que deixar o bairro por não ter condições de se manter lá. Numa pesquisa que fizemos em 1997, constatamos que 30% dos moradores eram de fora. Numa se-gunda edição de um grande seminário que fizemos, Habitando o Ina-bitável, decidimos que a nossa luta não seria mais por urbanização, mas para erguer um projeto de geração de trabalho e renda que ga-rantisse a melhora efetiva na vida da população. Promovemos 96 reu-niões para descobrir o que faríamos.

Como eram esses encontros? A pergunta que fazíamos era: “Afinal, por que somos pobres?”. Se achássemos a resposta, descobriríamos como combater a pobreza. Fomos de casa em casa, fazendo um mapeamen-to do consumo. Perguntávamos a marca do feijão, quanto pagou, on-

de comprou... Fizemos isso durante dois meses e descobrimos algo impressionante. O Conjunto Palmeiras consumia 1 milhão e 300 mil reais por mês. Tínhamos aquele dinheiro todo, mas o comércio lo-cal era extremamente fraco, não produzia riqueza. O segredo era fa-zer com que o dinheiro ficasse aqui. Então criamos as “dinâmicas do balde furado”. A gente juntava os moradores e mostrava um grande balde furado na parte debaixo, com os furos tapados por um monte de rolhas. Aí perguntávamos para o povo: “A gente é rico?”. E vinha aquela zoada: “Não!”, “É lascado!”, “É tudo pobre!”. E nós, de novo: “Mas com que dinheiro vocês compram o de comer?”. Um dizia: “Es-mola!”. O outro: “Aposentadoria”. E assim por diante. Então pedía-mos que eles escrevessem em bolinhas de isopor o dinheiro que ga-nhavam em cada coisa, depois as colocassem no balde. O balde foi en-chendo e o povo foi vendo que não era tão pobre assim.

Mas o dinheiro acabava indo embora... Aí que começava a segunda parte da dinâmica: “Mas onde é que vocês compram arroz?”. “Na venda do bairro vizinho!” “E roupa?” “No centro da cidade!” E, a ca-da resposta que apontava um lugar de fora, tirávamos uma rolha. O balde logo ficou vazio de novo. E o povo foi percebendo que a gente

não era pobre, mas se tornava pobre porque o balde era furado. Precisávamos de uma rolha para evitar o desperdício: um sistema integrado para estimu-lar a produção e o consumo locais, baseado numa cadeia de “prosumidores”. Todos nós somos produ-tores e consumidores. Se produzirmos e consumir-mos um para o outro, conseguiremos localmente dar respostas aos nossos problemas.

Como surgiu a ideia de um banco comunitário? Um dia, numa dessas conversas, uma senhora deu uma ideia: “Se a gente quer que o povo gaste o dinhei-ro aqui, por que não fazemos o mesmo que essas lojas, um cartão de fidelidade?”. Foi o xeque-ma-te. Então começamos a dar nome aos bois: o car-tão se chamaria Palma Card e a instituição, Banco Palmas. Em janeiro de 1998, inauguramos o banco. Nosso patrimônio era de dois mil reais. O cartãozi-

nho era feito no Word, impresso em papel. Vinte famílias receberam o cartão de crédito. Concedemos empréstimo a umas cinco pessoas – empréstimos de 200, 300 reais... Resultado: na primeira noite, o di-nheiro foi todo embora. Brincávamos que o banco quebrou no pri-meiro dia. Mas a repercussão na imprensa foi grande, saímos até no Jornal Nacional...

Existia um modelo a seguir? Ainda não havia no Brasil essa onda de microcrédito. Tinha algumas experiências, como os clubes de troca argentinos, mas nada igual ao que fizemos. Sabíamos que a mudan-ça deveria ser local. De modo geral, o grande problema dos progra-mas governamentais é tirar da comunidade o poder de pensar. Não há governante, por mais esforçado que seja, capaz de resolver todos os problemas do Brasil. Pode haver políticas públicas, mas, se não resolvermos as questões entre nós, não há programa nem governo no mundo que o faça.

Qual garantia vocês tinham do pagamento das dívidas? Nenhuma. Os devedores eram pessoas pobres, com nome no spc, sem crédito no

“Nosso método não nasceu nos centros acadêmicos. Ele reflete a

capacidade do povo brasileiro.”

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mercado, fiador, conta em banco. Eram pescadores, artesãos, peque-nas costureiras... O Banco Palmas e os bancos comunitários são exa-tamente o banco dos que não têm garantias – se você tem garantia, possui crédito, vai para um banco oficial. Pois bem, cinco meses de-pois começamos a pegar um dinheirinho com instituições de fora do País – sempre os de fora vêm antes. Conseguimos uns 60 mil reais. Além disso, o povo que estava devendo começou a saldar os emprés-timos. Mas percebíamos que o cartão de crédito tinha uma desvanta-gem: a pessoa comprava na loja e só um mês depois o dono do estabe-lecimento recuperava o dinheiro. O desafio era fazer a moeda circular com mais rapidez. Então veio a ideia de criar uma espécie de “moeda social”, uma moeda própria da comunidade, a palma. Se eu compras-se no açougueiro com palmas, ele não precisaria ficar com o dinheiro parado, esperando para receber. Poderia atravessar a rua e usá-lo na farmácia, que usaria no cabeleireiro, que podia usar na venda.

Como a ideia foi recebida? No começo, 20 comerciantes aceitavam a moeda. Hoje são 240. Uma palma sempre valeu um real. É uma moe-da indexada, lastreada, permite o câmbio. E a vantagem é que, se vo-cê comprar em palmas, tem 5% de desconto. O comerciante fideli-za o cliente. Alguns começaram a pagar os funcionários em palmas. Não fazem isso apenas por ques-tões ideológicas, mas porque tam-bém é vantajoso. Se te dou 10 re-ais, você pode comprar em qual-quer lugar. Se te dou 10 palmas, você vai ter que gastar no bairro.

Houve aumento da renda da comu-nidade? Uma pesquisa da Univer-sidade Federal do Ceará mostrou que o pib do bairro cresceu 30%. Sempre uso uma ilustração: uma senhora quer se hospedar numa pousada daqui a uma semana e deixa uma caução de 10 reais para garantir a vaga. A dona da pousa-da recebe e se sente aliviada, pois pode pagar o que devia ao pintor de paredes. Ele, ao receber, chega na farmácia e paga o que devia. O ra-paz da farmácia devia o mesmo valor ao mecânico, e também o paga. O mecânico, por sua vez, agradece: “Ainda bem que você me pagou. Estava devendo pra dona da pousada”. Com a mesma nota de 10 reais, todo mundo pagou sua dívida. Nesse momento, chega na pousada a mulher que havia feito a reserva, dizendo que não queria mais se hos-pedar. E os 10 reais são devolvidos. O mesmo dinheiro, num só dia, resolveu o problema de todo mundo. O dinheiro é algo simbólico. Só serve quando circula. Se fica parado, gera menos desenvolvimento. Em média, a palma faz cinco giros antes de alguém fazer o câmbio para o real. E cada compra resolve o problema de alguém.

Não há nada de ilegal na moeda? Se a palma é ilegal, o vale-transpor-te e o tíquete-restaurante também são. É a mesma lógica: um papel que se usa em substituição ao real. Não há crime nisso. Já recebemos despachos de juízes nesse sentido. Em 2005, o Ministério do Trabalho nos convidou para levar a metodologia para outros lugares do Bra-

sil. Hoje somos 49 bancos comunitários. Temos também a parceria do Banco do Brasil, que nos concedeu uma carteira de crédito e im-plantou o sistema de pagamento de contas nas agências. Na maioria das comunidades não havia a possibilidade de se pagarem as contas de água, de luz. Pra pagar uma simples conta, o sujeito tinha que se deslocar, pegar trem, ônibus. Isso nos fortaleceu.

E a inadimplência? Com o microcrédito tradicional, sozinho, a pes-soa tem que fazer milagre pra pagar a dívida. O microcrédito sozinho é muito perigoso. O que fizemos foi um sistema integrado de forma-ção, capacitação, produção, consumo. Há mais chance de manter o pagamento num sistema como este. O pobre cultua a honra de pagar o compromisso. Mas a massificação de programas isolados de micro-créditos, pautados unicamente em emprestar o dinheiro, acaba sendo pior. Tem de haver microcrédito, mas também uma série de outros fa-tores de proteção e complementação do sistema. Além do banco, por exemplo, o Instituto Palmas tem cursinho pré-vestibular, confecção, incubadora de empresas, fábrica de material de limpeza, fábrica de calçados... São empresas independentes, com autogestão, mas coliga-

das pelo sistema Palmas.

Como se deu a implantação do mo-delo na Venezuela? Há cerca de dois anos assinamos um termo de cooperação com o governo ve-nezuelano. Nos tornamos parcei-ros diretos. A cada seis meses eles vêm aqui ou nós vamos lá. O go-verno criou uma lei para os ban-cos comunitários. Há um marco legal. A lei incentivou de tal for-ma que hoje há 3.600 bancos co-munitários no país.

Quais são os próximos passos? Não temos uma lei que regule e incen-tive os bancos comunitários. Es-tá tramitando no Congresso uma lei de autoria da deputada Luiza

Erundina sobre o assunto. Mas as coisas não caminham na velocidade que desejamos. Estamos num processo de convencimento da socieda-de sobre a importância do sistema. Nossa meta é ter mil bancos comu-nitários até 2012, aprovando o marco legal dos bancos comunitários. Os grandes bancos não conseguem chegar às pequenas comunidades porque não foram feitos pra isso. Não haverá uma agência do Banco do Brasil, do Bradesco, do Itaú numa comunidade quilombola, dentro de um assentamento. Quem chega lá são os bancos comunitários.

O que a criação do Banco Palmas diz sobre nós, brasileiros? Nosso gran-de orgulho é que uma experiência como essa, reconhecida e pre-miada no mundo todo, foi criada num bairro popular da periferia de Fortaleza, no Nordeste brasileiro. Nosso método não nasceu nos grandes centros acadêmicos. Ele reflete a capacidade de o povo bra-sileiro resolver seus problemas. Ele é fruto da vivência e da expe-riência do cotidiano do povo, que discute, que debate. Isso é moti-vo de muito orgulho. E tudo começou com uma pergunta simples: “Por que somos pobres?”.

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Ele defendia a sustentabilidade quando a

palavra nada significava para a maioria.

Tachado de inimigo do Brasil por maldizer o

“progresso” da Amazônia, fez ecoar seu grito

em defesa dos povos da floresta. Enfrentou

multinacionais, latifundiários, pistoleiros.

Antes de ser assassinado, declarou: “Se

descesse um enviado dos céus e garantisse

que minha morte iria fortalecer nossa luta,

até que valeria a pena”.

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as antes mesmo de expor suas ideias. Gostava de jogar domi-nó, comer paca e macaco. Tirou leite de seringueira desde os 9 anos, seguindo a profissão do pai e do avô nordestino. Aos 17 anos, perdeu a mãe e o irmão mais velho. Não frequentou escola – os seringalistas não as permitiam em suas terras –, mas lia jornais desde menino. Um fugitivo da Co-luna Prestes, escondido na mata, foi seu mestre em lições sobre Lenin e Marx. A exploração sofrida por seu povo ganhava novos contornos. Com eles, tinha início sua militância política.Mais tarde, Chico alfabetizou outros jovens, sempre antes de o sol raiar. Se casaria com uma das alunas, 20 anos mais no-va. Ilzimar, morena de cabelos negros, foi sua segunda esposa, mãe de dois de seus três filhos. Palavra maldita“O progresso está virando uma palavra maldita”, dizia Chico. “Ele trouxe os conflitos de terra, trabalho escravo, poluição do

m 22 de dezembro de 1988, o Brasil se preparou pa-ra ver o assassinato de Odete Roitman na novela das oito. A vilã de Vale Tudo, exibida na Rede Globo, ain-

da sobreviveria dois capítulos, mas outra morte anunciada real- mente aconteceu naquela noite. Às 21 horas – ou 19 horas, no Acre –, um tiro de pistola acertou Francisco Alves Mendes Filho. “Nunca um tiro dado no Brasil ecoou tão longe”, escreveu o jor-nalista Zuenir Ventura, que investigou o crime.Chico já era líder entre os seringueiros e tinha o respeito de li-deranças internacionais. Ao perder a vida, tornou-se definiti-vamente símbolo mundial. Representa a luta – pacífica, mas ativa – dos povos da floresta pelo seu sustento. Ao defender a Amazônia, foi pioneiro em levantar a bandeira do meio am-biente, numa época em que dizer que a vida humana dependia da preservação ambiental soava uma abstração. O herói da floresta nasceu e morreu na mesma Xapuri. Nun-ca teve casa própria. Alegre e afetuoso, conquistava as pesso-

CHICO MENDES

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Herói da floresta

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O melhor produto do Brasil é o brasileiroCÂMARA CASCUDO

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SAIBA MAISChico Mendes: Crime e castigo, de Zuenir Ventura

(Companhia das Letras, 2003).

Sem nenhum dólar no bolso, Chico foi aos Estados Unidos.

Apenas discursando num comitê e nos corredores, conseguiu

revogar uma decisãodo Banco Interamericano

de Desenvolvimento.meio ambiente, destruição dos recursos naturais e a ideia de que a Amazônia era uma imensa área de terras devo-lutas que qualquer pessoa podia meter a mão.” Nos anos 1970, “progresso” era a palavra de ordem do governo mili-tar. Fazendeiros, grandes grupos econômicos e multinacio-nais foram impulsionados a ocupar o Norte do País. Abriam clareiras na selva para criar gado e simplesmente expul-savam as famílias que ali viviam, usando jagunços ou fo-go. Com outros colegas que tiravam seu sustento das ma-tas e conheciam sua riqueza, Chico fundou o movimento sindical no Acre. Defendiam o meio ambiente e a máxima: “A terra é de quem nela trabalha”.

Empates: v itórias e derrotasComo lutar contra tratores e pistolas? O Sindicato dos Traba-lhadores Rurais de Basileia criou o “empate”, espécie tupini-quim de Satyagraha – resistência pacífica liderada por Gan-dhi. Eram cordões humanos de 100, 200, 300 pessoas. Can-tando, homens, mulheres e crianças paravam motosserras e tratores. E convenciam os funcionários a aderir à causa. Não demorou até que o diretor do sindicato fosse “elimina-do” pelos fazendeiros. Chico Mendes, primeiro-secretário, corria riscos por “incitar contra a paz”. Depois de discursos e protestos pelo assassinato, alguns seringueiros se exalta-ram e mataram o fazendeiro mandante do crime. Chico foi torturado pela polícia e enquadrado na Lei de Segurança Na-cional. Só em 2008 seria anistiado.Em vez de se inibir, Chico Mendes ia cada vez mais longe. Logo o movimento foi novamente articulado. O Primeiro Encontro Nacional dos Seringueiros aconteceu em Brasília,

depois de mobilização intensa. O principal objetivo: mostrar na capital do País que a Amazônia não era uma terradesabitada. Ali Chico Mendes articulou o Conselho Nacional dos Seringueiros e falou da “união dos povos da floresta”. Era o ponto de partida para a criação de reservas extrativistas em prol de índios, seringueiros, quebradeiras de coco, castanhei-ros, quilombolas e, claro, do meio ambiente. O ambientalis-ta ajudou na implementação das reservas, mas a oficialização da maior delas com seu nome foi homenagem póstuma.

Uma voz que ecoaSem nenhum dólar no bolso, Chico viajou até os Estados Unidos, apoiado por órgãos internacionais. Revogou uma decisão do Banco Internacional de Desenvolvimento apenas discursando no comitê e nos corredores. O banco deixou de financiar uma rodovia na Amazônia e outros projetos que incentivavam o desmatamento, para desespero do governo brasileiro e, principalmente, dos ruralistas acreanos.Chico sabia que estava jurado de morte. Declarou isso algu-mas vezes e até divulgou os nomes dos possíveis mandantes no 3° Congresso da CUT, em que foi ovacionado. “Se desces-se um enviado dos céus e garantisse que minha morte iria fortalecer nossa luta, até que valeria a pena. Mas a experiên-cia nos ensina o contrário. Então eu quero viver”, declarou, sem saber como suas ideias continuariam a ecoar até hoje na Amazônia, no Brasil e no mundo.

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No início dos anos 1930, Noel Rosa ouviu um samba chamado Lenço no Pescoço, gravado por Silvio Caldas. A canção era uma lavada exaltação à malandragem, com versos co-

mo Eu passo gingando / Provoco e desafio / Eu tenho orgulho de ser tão vadio. Apesar de várias de suas composições se mostrarem simpáti-

cas aos malandros, resolveu responder ao compositor, o jovem e então desconheci-

do Wilson Batista. Mas musicalmente. Nas-cia Rapaz Folgado, em que clama ao autor que compre sapato e gravata e deixe de lado a vida boa. O que poderia parecer apenas um “chega pra lá” a um iniciante tinha, na ver-

dade, outra motivação: o aspirante havia se envolvido com uma moça que Noel era muito interessado.

Wilson, que de besta não tinha nada, viu na polêmica um ata-lho para o sucesso. Compôs então Mocinho da Vila: Injusto é seu comentário / Fala de malandro quem é otário. E Noel decidiu dar um basta. Escreveu a definitiva Feitiço da Vila:

Lá, em Vila Isabel / Quem é bacharel / Não tem medo de bamba / São Paulo dá café / Minas dá leite / E a Vila Isabel dá samba. Acreditava que assim calaria de vez o adversário. Estava enganado. O incansável Wilson compôs Conversa Fia-da, obrigando Noel a replicar com a desmo-ralizante Palpite Infeliz: Pra que ligar a quem não sabe / Aonde tem o seu nariz? / Quem é você que não sabe o que diz? E Wilson perdeu as estribeiras. Emendou a nada sutil Frankenstein da Vila, em alusão ao defeito que Noel tinha no queixo: Entre os feios és o primeiro da fila / Todos reconhecem lá na Vila. Aí Noel se magoou. Há quem diga que, furioso, foi de banca em banca comprar todos os exemplares do Jornal da Modinha, que havia publicado a letra. Indagado se não teria passado dos limi-tes, Wilson desconversou: “Noel era homem. Não há mal algum em chamar homem de feio”. Os dois ainda trocaram farpas com João Ninguém, de Noel, e Terra de Cego, de Wilson. Mas a briga que rendeu algumas das mais saborosas músicas da nossa his-tória tinha chegado ao fim.

NOELWILSON

A música brasileira reservou momentos para históricas discussões musicais. Seja por brigas verdadeiras, desavenças de pontos de vista ou por mera brincadeira, compositores criaram sambas que caíram no gosto popular. Neste Especial,

reunimos alguns deles. Não sentenciaremos o resultado, papel que fica a cargo do leitor. A nossa conclusão é que, em todas as batalhas, quem saiu ganhando foi a música brasileira.

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No auge da polêmica entre Wilson e Noel, os compositores se encontraram em um bar ao lado dos Arcos da Lapa. O clima foi amisto-so. Wilson abriu um sorriso e disse: “Noel, tenho mais uma aqui pra você”, e cantou Ter-ra de Cego. O músico ficou intrigado com a melodia, que considerou muito boa. Propôs, então, uma parceria. Sentou-se em uma me-sa e, pouco tempo depois, estava pronta Dei-xa de Ser Convencida: Deixa de ser conven-cida / Todos sabem qual é seu velho modo de vida. A única parceria entre ambos foi destinada a quem? Sim, a ela, Ceci.

OS ADVERSÁRIOSSE UNEM

Juraci, que atendia pelo nome artístico de Ceci, era dançarina da boate Apolo, um lugar pouco familiar da Lapa, região cen-tral do Rio. Noel, assíduo frequentador, a conheceu em 1934 e nunca mais pensou seriamente em outra mulher – nem mes-mo em sua própria esposa. Viveram um amor complicado, mas que gerou grandes sambas (a música novamente agrade-ce). Dama do Cabaré, Eu Sei Sofrer e Pra que Mentir são ape-nas algumas delas. Em O Maior Castigo que Eu Te Dou, Noel sintetizou a relação de amor e ódio: O maior castigo que eu te dou / É não te bater / Pois sei que gostas de apanhar / Não há ninguém mais calmo do que eu sou / Nem há maior prazer / Do que te ver me provocar.

A derradeira canção destinada a Ceci foi Último Desejo, escrita quando o poeta da Vila já estava debilitado pe-la tuberculose, doença que o mataria antes de completar 27 anos. No leito de morte, cantarolou a canção, nota por no-ta, para Vadico, um de seus mais frequentes parceiros. E pediu que entregasse uma có-pia a Ceci. O amigo levou a letra da música à amada de Noel e, ao se despedir, achou por bem esclarecer: “Acho que ele te castiga um pouco nesse samba, Ceci”.

NOELCECI A dama do cabaré

Quase meio século após o desfecho da longa e

frutífera novela com Ceci, Caetano Veloso resol-

veu tomar as dores da Dama do Cabaré – e, por

extensão, de todas as mulheres. Compôs Dom de

Iludir, uma clara resposta a Pra que Mentir: Pra

que mentir / Se tu ainda não tens esse dom de

saber iludir / Pra quê?! Pra que mentir / Se não

há necessidade de me trair?. Na música, o baia-

no exorta o poeta da Vila a não falar da malícia

de toda mulher. E, em seguida, canta o verso que

se tornou clássico: Cada um sabe a dor e a delí-

cia de ser o que é.

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Um amor conturbado e sambas inesquecíveis. Dalva de Oliveira e Herivelto Martins eram casados, mas viviam em pé-de-guerra. As discussões não se restringiam ao lar: eram

ecoadas pelas ondas do rádio. A briga pú-blica começou quando Dalva cantou Er-rei, Sim, encomendada a Ataulfo Alves:

Manchei teu nome/ Mas foste tu o culpa-do / Deixava-me em casa / Me trocando pela orgia. Em resposta, Herivelto compôs Cabelos

Brancos: Não falem desta mulher perto de mim (...) Por ela vivo aos trancos e

barrancos / Respeitem ao menos os meus cabelos brancos. E os sambas brotavam, para delei-te dos ouvintes-fãs-fofoqueiros. Ainda foram criadas, para Dalva cantar, Fim de Comédia, de Ataulfo Alves, e Que Será, de Rossini Pinto. Heri-velto respondeu com mais dois sambas: Caminhemos e Segredo. Ironicamente, neste último, exige mais discrição por parte da cônjuge: Teu mal é comentar o passado / Ninguém precisa saber o que houve entre nós dois...

HERIVELTODALVA “Teu mal é comentaro passado”

TROPICALISTASCHICONem toda loucura é genial

Em 1967, um artista começava a se tornar a única unanimidade nacio-

nal, como definiu à época Millôr Fer-nandes. O jeito tímido, o ar de genro ideal e os caprichados sambas tradi-cionais diferenciavam Chico Buarque da turma que pretendia revolucionar a música brasileira: a Tropicália. Por isso, passou a ser tachado de anti-

quado pelo movimento. Em resposta aos tropicalistas, Chico escreveu um artigo no jornal Última Hora sob o título “Nem toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha”. E muitos viram em Essa Moça Tá Diferente o contra-golpe mortal. Na canção, a personagem anseia se modernizar a qualquer custo, desdenha de tudo que pareça velho, mas samba escondida, que é pra ninguém reparar.

Receita pra virar casaca de nenémOUTRA DO CHICO

O sambista Cyro Monteiro tinha um hábito: enviar uma camisa do Fla-mengo para os filhos recém-nascidos dos amigos. Quando nasceu Silvia, primogênita de Chico Buarque, rei-terou a “ameaça” (Chico é torcedor fanático do Fluminense). Como res-posta, o pó-de-arroz compôs Ilmo. Sr. Ciro Monteiro ou Receita pra Virar Casaca de Neném: Minha petiz / Agradece a camisa /

Que lhe deste à guisa / De gentil presente / Mas caro nêgo / Um pano rubro-negro / É presente de grego / Não de um bom irmão. E segue explicando que a tentativa de con-verter a pequena ao Flamengo fora em vão: Amei o teu con-selho / Amei o teu vermelho / Que é de tanto ardor / Mas quis o verde / Que te quero verde / É bom pra quem vai ter / De ser bom sofredor / Pintei de branco o teu preto / Ficando completo / O jogo de cor / Virei-lhe o listrado do peito / E nasceu deste jeito / Uma outra tricolor. Chico bem que se esforçou, mas o trabalho foi à toa. Silvia acabou se tornando flamenguista.

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ADONIRANERNESTO“Se não tem mancada, não tem samba, Arnesto”

Ele ficou com a fama de quem convida para o samba em sua própria casa e, apesar disso, não comparece. Não há quem desconheça a história, embora sua identidade tenha sido preservada pelo inconfundível sotaque ita-lianado de Adoniran Barbosa. Em sua defe-sa, Ernesto Paulelli – ou Arnesto – garante que nunca convidou ninguém para samba algum. Tornou-se amigo de Adoniran em 1939. O sambista prometeu que lhe faria

um samba, pois havia gostado da sonorida-de do nome. Anos depois, a novidade corria as emissoras de rádio: O Arnesto nos con-vidou / prum samba ele mora no Brás / nóis fumo e não encontrêmo ninguém. “Olha lá, mulher, esta música é pra mim!” Ao encontrar o compositor, agradeceu a homenagem, mas co-mentou que já estava meio cansado de tanto ou-vir piadinhas. Adoniran justificou: “Se não tem mancada, não tem samba, Arnesto”.

LÚCIODICK Quem vai ficar com Teresa?

Os cantores Dick Farney e Lúcio Alves ti-nham estilos parecidos. Transpiravam

influências jazzísticas e cantavam de maneira elegante, um contraste com

os bolerões que brotavam no Brasil no início dos anos 1950.

Apesar da semelhança (ou talvez justamente por causa dela), pairava no ar um certo estranhamen-

to entre os dois. Na dúvida, os fãs logo tomaram lugar nas trincheiras. Quem gostava de Dick não gostava de Lúcio. E vice-versa. Apesar de não se-

rem inimigos de fato, os dois passaram muito tempo sem fazer questão de desmanchar o mito. Para desgosto dos mais radicais, em 1954 os dois ídolos “fizeram as pazes”. Juntos, gra-varam Teresa da Praia, música de Tom Jobim e Billy Blanco considerada o embrião da Bossa Nova. Na canção, declaram amor a uma tal Teresa, de olhos verdinhos bastante puxados, cabelo castanho e uma pinta do lado. Quando perce-bem que se tratava da mesma pequena, concluem: Teresa é da praia, não é de ninguém...

PAULINHO E PORTELAQuando compôs Sei Lá, Mangueira, Paulinho da Viola foi duramente criti-cado por parte de sua es-cola do coração, a Portela. Para selar as pazes, es-creveu o clássico Foi um Rio que Passou em Minha Vida. Não tinha como não ser perdoado, né?

TOM, NEWTON E “DESAFINADO”Um dos principais sucessos da dupla Tom Jobim e Newton Mendon-ça foi uma alfinetada num cantor dos anos 1950. Lélo Gonçalves não acertava uma nota sequer. A música? Desafinado, claro.

SAIBA MAIS

Noel Rosa – Língua e estilo, de Castelar de Carvalho e Antonio Martins

de Araujo (Thex, 1999).

Noel Rosa – Uma biografia, de João Máximo e Carlos Didier (UNB, 1990).

Chega de Saudade – A história e as histórias da Bossa Nova, de Ruy Castro

(Companhia das Letras, 1990).

Nem toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha, artigo de Chico Buarque

disponível no site do artista: www.chicobuarque.com.br

Assista pelo Youtube (www.youtube.com) a Dick Farney cantando Teresa da

Praia na TVE, em 1971. Procure por “Dick Farney” e “TVE”.

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Nossa homenagem a Júlio César de Mello e Souza, o Malba Tahan

Um dia, enquanto caminhava em Bagdá pelo suque, a jovem Telassim percebeu uma agitação. Antes de partir em sua caravana, compradores de Damasco discutiam. Um deles dizia que entrara apenas em três tendas ao longo do dia. Não lembrava dos valores gastos, mas sabia que em cada tenda gastara um dinar a mais do que a metade do que tinha ao entrar. Ao se ver sem nenhuma moeda, acreditava ter sido roubado na caravana. Observando a situação, Telassim interveio dizendo

o número de dinares gastos pelo comprador. O damasceno reconheceu que o valor correspondia à quantia levada por ele a Bagdá. Desculpou-se com os companheiros e pôs fim ao conflito. Você também é capaz de dizer quanto dinheiro gastou o confuso comprador?

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Em 20/12/1983 a taça Jules Rimet, conquista daseleção canarinho, é:(a) Penhorada (b) Doada (c) Perdida (d) Roubada

Local do massacre de garimpeiros em 29/12/1987:(a) Carajás (b) Eldorado(c) Serra Pelada (d) Morro Careca

Foi presidente do Brasil com a renúncia de Collor,em 29/12/1992:(a) Itamar (b) Lula (c) FHC (d) Sarney

Peça que estreou em 28/12/1943, consagrandoNelson Rodrigues:(a) Macunaíma (b) Vestido de Noiva(c) Mulher do Próximo (d) Roda Viva

Desde 1925, ocorre todo 31/12:(a) Show da Virada (b) Fogos no Rio(c) Posse de prefeitos (d) São Silvestre

A Guerra do Paraguai, iniciada em 26/12/1864, durou:(a) 6 meses (b) 6 anos (c) 16 anos (d) 60 anos

Onde fica o Elevador Lacerda, inaugurado em 8/12/1873:(a) Guanabara, RJ (b)Urca, RJ(c) Salvador, BA (d) Playcenter, SP

Não assinou o tratado que criou o Mercosul,em 17/12/1994:(a) Venezuela (b) Argentina (c) Paraguai(d) Uruguai

a Tesoura, malandro, trocadilho... Nessa dança são conhecidos mais de 150 passos – movimentos de força e habilidade, feitos individualmente.

b Pode-se dançar sozinho, em dupla ou, na Bahia, em roda. Quem não gosta só pode ser ruim da cabeça ou doente do pé, segundo Caymmi.

c Marca-se o compasso com três pisadas fortes. Pode ter coreografia elaborada. A umbigada anuncia a entrada de outro dançarino na roda.

d Luiz Gonzaga, o rei do gênero, dizia ter dançado balancê, xamego, samba e xerém. E garantia: essa dança tem um quê que as outras não têm.

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ligue os pontos

Respostas

CARTA ENIGMÁTICA “Ninguém pode retirar o mandato que o povo me deu” (Miguel Arraes).

ENIGMA FIGURADO Silvio Santos. O QUE É O QUE É? Pipoca.

SE LIGA NA HISTÓRIA 1c (Coco); 2a (Frevo); 3d (Baião); 4b (Samba).

BRASILIÔMETRO 1d; 2c; 3a; 4b; 5d; 6b; 7c; 8a.

O CALCULISTA DAS ARÁBIAS O damasceno gastou 14 dinares. A seguir, um raciocínio que resolve a questão, usando X, Y e Z para o dinheiro com que entrou no primeiro, no segundo e no terceiro estabelecimento, respectivamente. Para a quantia que o damasceno sai da primeira e entra na segunda tenda pode-se aferir a expressão X/2 – 1 = Y. Assim como ao sair da segunda e entrar na terceira, Y/2 – 1 = Z. E, após a terceira compra, Z/2 – 1 = 0. Aí descobre-se o valor de Z: 2. E é possível saber os de Y e X, substituindo as incógnitas nas duas primeiras expressões.

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DE QUEM SÃOESTES OLHOS? 3 4

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8Conte um ponto por resposta certa

teste o nível de sua brasilidade

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ilustracões: luciano tasso

www.lucianotasso.blogspot.com

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www.lucianotasso.blogspot.com

As aventuras do quarteto não se resumiam à televisão. Os Trapalhões se tornaram um dos mais importantes produtores cinematográficos do País.

Foram mais de 40 filmes. O primeiro foi Na Onda do Iê Iê Iê, no qual atacavam de cantores de rock.

Os números impressionam. Mais de 120 milhões de pessoas pagaram

ingressos para vê-los na telona. Na lista dos 10 filmes nacionais de maior bilheteria,

seis os têm como protagonistas. O mais visto foi O Trapalhão nas Minas do Rei Salomão, de 1977, com 5,7 milhões de

espectadores. Depois dele, apenas dois filmes nacionais conseguiram superar essa

marca. E já faz mais de 30 anos.

O quarteto trapalhão

Na telinha, na telona

Cada número no diagrama abaixo corresponde a uma página do AlmAnAque. Descubra a letrinha colorida na página indicada e vá preenchendo os quadrinhos até completar a mensagem cifrada que escrevemos para você.

Os filmes dos Trapalhões foram responsáveis pelo consumo de 3.600 toneladas de pipoca. Bem, ao menos se cada um que foi se divertir nas

salas de cinema do País tiver comprado um saquinho daqueles

pequenos, de 30 gramas. A conta é simples: 30

gramas vezes 120 milhões de pessoas dá 3.600

toneladas. É o mesmo que 22 baleias azuis juntas!

Ô psit, os vendedores de pipoca agradecem.

JÁ PENSOU NISSO?

Os fãssãos dos

Trapalhõesvão de

vans sem corrimões

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ra ler e repetir em v

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da poltrona! Sabia que durante 30 anos Os Trapalhões foi o progra-ma de humor mais assistido da tevê brasileira? A fórmula de suces-

so era unir quatro pessoas diferentes, mas com estilos que se complemen-tavam. Didi tinha um jeitão de ingênuo, mas sempre se dava bem; Dedé tentava a todo custo passar a perna no companheiro; Mussum era o ma-landro do morro, louco por uma caninha; Zacarias, cheio de caras e tre-jeitos, achava graça em tudo.Tudo começou em 1966, quando Didi e Dedé estrearam o programa na TV Tupi. Depois convidaram Zacarias e Mussum, que era do gru-po Originais do Samba. O quarte-to foi para a Record e, depois, para a Globo, onde se consa-grou. A mistura de paródias,

SoluçÕES na p. 228 7 12 12 14 69 14 10

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Quando pula,

se veste de noiva?

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improvisos e, principalmente, elementos circenses era atraente para pessoas de todas as idades. A avó, os pais e a criançada se apertavam no sofá

para ver as trapalhadas que a trupe tinha bolado para a semana.Os Trapalhões criaram momentos inesquecíveis nas teli-nhas – pode perguntar pra qualquer pessoa com mais de 30 anos. Um dos clássicos é uma cantoria promovida por Didi e Zacarias. Nem Dedé se conteve e começou a gargalhar. Ou-

tro: quando Mussum tenta “armar uma pindure-ta” num boteco. Na opinião desta revista, po-rém, o melhor momento é a sensacional imi-tação que Didi fez da cantora Maria Bethânia. Pra você que não viu ou para quem quiser re-

ver, todas essas maravilhas podem ser vis-tas no Youtube. Cacildis!

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Tudo o que a vida tem de bom tem em Ribeirão. Mas não pense que é milagre do padroeiro são Sebastião.

É tudo fruto do trabalho, e trabalho dos bons.

uer chegar logo em Ribeirão Preto? Um tapete mati-zado de verde, castanho e até roxo intenso forra toda a superfície que se vê da janela do avião. Pensou em ir de carro? Bom, também. É pôr o pé na estrada de

318 quilômetros que liga São Paulo a Ribeirão que a paisagem muda. Pequenas chácaras familiares com plantações de alface, cenoura e couve riscam os terrenos ondulados com diferentes texturas. Daí a pouco já se nota a roxidão da terra, um dos prin-cipais motivos para o plantio do café, substituído hoje pelas plantações de cana de açúcar. Nelas o vento parece brincar de

Q

RIBEIRÃO PRETO

ola, como fazem os torcedores nos estádios de futebol. Mas a brincadeira hoje é outra: conhecer a Terra do Café. Basta pronunciar o nome que já vai batendo aquela vontade de tomar um bem cheiroso. Que tal parar em uma dessas casolas de beira de es-trada, com fumacinha escapando pela chaminé? No século 21, esses locais atendem pelo nome de “centro de conveniência”, verdadeiros templos de quitutes da roça: bombocado, doce de batata roxa, co-cada de fita – da preta ou da branca –, goiabada cascão, sequilhos, biscoitos de polvilho, queijadinha, suco cremoso de milho. De volta à estrada, já, já chegamos em Ribeirão.

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Fazenda Monte Alegre, xodó do maior plantador de café do mundo.

Imponência cafeeiraEm chegando, vale começar com a visita a uma fazenda de café. Assim, meio sem querer, passeando e recuando no tempo, vamos conhecendo a história. Nos idos de 1850 brotavam nos arredores da Vila de São Sebastião do Ribeirão Preto as maiores plantações de café do Brasil. As famílias de imigrantes italianos eram em maior número, mas uma delas era de alemães. O menino Francisco Schmidt, então com 8 anos, empregou-se com os pais em uma dessas fazendas. Doze anos de muito trabalho depois, comprou sua primeira pro-priedade, tornou-se o maior plantador individual de pés de café do mundo (15 milhões) e o segundo rei do café do Brasil. Teve mais de 60 fazendas, mas seu xodó era a imponente Monte Ale-gre, com 19 amplos cômodos e rodeada de árvores exóticas. Hoje a sede da fazenda é o Museu Histórico. Um prédio anexo abriga o Museu do Café. O viajante que reservar a manhã de do-mingo para conhecer os museus será recebido com aromático cafezinho, saborosos biscoitos e baile ao lado do coreto, onde mú-sicos interpretam modinhas da terra. O cafezal da Monte Alegre cedeu espaço para o campus da USP. Ali, futuros profissionais estudam em meio a um bosque com passarinhos de montão e centenárias jabuticabeiras, sibipirunas e mangueiras.

Febre do SolDesde 1878, funcionava na vila uma pequena fábrica artesanal de cerveja. Mas a bebida, ruim de doer, era mais utilizada co-mo remédio contra febre. Então os imigrantes italianos, que sen-tiam falta del vino, mas não pen-savam em plantar uvas naquele febrão do Sol, ousaram fabricar uma cerveja de qualidade. Quarto Bertoldi batizou as me-lhores com nomes da terra: Gua-rani, Indiana, Mulata. E a cerve-ja revelou-se mais um bom em-preendimento. Anos mais tarde, duas grandes fábricas se insta-laram por lá. Corria na boca do povo que um “chopeduto” unia a Antártica à Choperia Pingüim, a umas cinco quadras de lá. No lugar onde outrora se reuniam os endinheirados barões do café, hoje se consomem três milhões de tulipas por ano.Museu do café, na Monte Alegre: domingo com cafezinho, biscoitos e baile no coreto.

Pode um marimbondo secar um pé de café? Um não, mas um ninho com milhares deles e

140 rainhas pode sim. É o que se vê no museu da fazenda Monte Alegre. O imenso ninho de

caçununga – do tupi caba (vespa), cininga (que zumbe) – envolveu e sufocou um pé de café.

Preste atenção

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Pra esfriar a moleiraEm outubro de 1929, o crash da Bolsa de Nova Iorque afetou violentamente as exportações de café. Os fazendeiros, quebrados, queimaram seus estoques. Tempos depois, passaram a plantar cana de açúcar.Nova onda de fartura espocou pela região. Ribeirão virou a Califór-nia Brasileira. Mas o maior sucesso dali, pelo menos para o paladar, é outro: a Sorveteria do Geraldo. Num tiquinho de espaço de 70 m² – cozinha incluída – se produz o melhor sorvete da região. De lá saem mais de 20 mil sorvetes por dia. O segredo? Geraldo Camaromi, neto de imigrantes italianos, revela: trabalhar muito, escolher in-gredientes fresquíssimos e, principalmente, só vender os produtos feitos no mesmo dia. Como se diz por lá: bom demais da conta!

Pertinho de Ribeirão, na vizinha cidade de Brodowski,

o pintor Cândido Portinari passou sua infância e

juventude. No Museu Casa Portinari podem ser

vistos objetos de trabalho como pincéis, cavaletes,

telas, além de quadros, afrescos, desenhos e objetos

pessoais. Nos jardins da casa encontra-se a Capela da

Nonna, construída para que a avó, doente, pudesse

fazer suas orações. O renomado neto tratou de pintar

santos e santas com a fisionomia de seus irmãos,

irmãs, pai, filho e amigos.

Não deixe de conhecer

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Morro Alto de São BentoDentro de agradável área verde, em um dos locais mais altos de Ribeirão, ficam a Casa da Cultura, o Teatro Municipal, o Cristo Redentor e o Teatro de Arena, construído nos moldes dos gregos. Descendo o morro, em uma pedreira abandonada fica o Santuário das Sete Capelas (foto), seis delas dedicadas a um padroeiro diferente: são Jorge, santa Terezinha, são Judas, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, Nossa Senhora das Graças, além da Capela da Penitência.

Ribeirao Preto tem mais

Onde comerCafé Mousse Cake Cafezinho, almoços leves e quiches deliciosos.Rua João Penteado, 1.481. Fone: (16) 3931-4598.

Pastelaria Rios Experimente o de bacalhau especial. São vendidos cem por dia. Boxe 24 do Mercado Municipal. Fone: (16) 3632-3030.

Onde ficar Stream Palace Próximo ao histórico Palácio Rio Branco, sede da Prefeitura. Rua General Osório, 850. Fone: (16) 3977-3939.

Hotel Oásis Tower Além de hospedagem, o hotel oferece espaço para eventos. Avenida Maurílio Biagi, 2.955. Fone: (16) 3878-3000.

Se rviço

Jardim JaponêsEm meio às árvores nativas do Bosque Municipal,

descendentes de imigrantes japoneses criaram um jardim zen com réplicas de templos orientais, pontes e

lago com carpas coloridas e plantas aquáticas.

edifícios históricosNo centro histórico de Ribeirão podem ser vistos o Theatro Pedro II, conhecido como modelo da belle époque caipira,

o edifício Diederichsen, o Palácio Rio Branco – hoje sede da Prefeitura – e a catedral, com seus belos vitrais e quadros

pintados por Benedito Calixto.

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Como fazer

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Doce De FiGo

IngredientesFigo verdeBicarbonato ou cinza de fogão a lenhaAçúcar

Modo de preparoPara que os figos se mantenham verdes e fi-que fácil retirar a pele, afervente o figo verde (que deverá estar durinho) em água com bica-bornato ou cinza de fogão a lenha. Para cada 100 figos, coloque uma colher de sopa de bica-bornato ou uma xícara de cinza. Deixe esfriar e coloque no congelador com a água que ferveu. No dia seguinte, com os figos ainda meio con-gelados, retire a pele, que sairá com a maior facilidade, e corte a parte inferior em forma de cruz. Lave-os. Prepare, à parte, calda em ponto de espelho (para 2 quilos de figo, 1 quilo de açúcar), quantidade que deverá cobrir os figos.

Fonte da receita: Cora Coralina – Doceira e poeta (Global, 2009)

ralina – Doceira e poeta (Global, 2009). E fazia uma reclamação: a dificuldade de encontrar quem quisesse repartir com ela este trabalho demorado. A poeta considerava mais im-portante seu talento culinário do que os versos que escrevia, co-mo confessa neste poema: Sou mais doceira e cozinheira / Do que escritora, sendo a culinária / A mais nobre de todas as Artes: / Objetiva, concreta, jamais abs-

trata / A que está ligada à vida e à saúde humana. Conheça a receita de seus disputado doce de figo verde. Mas reserve alguns dias para a delícia ficar pronta. A iguaria deve ser preparada no ritmo de Cora Coralina.

C ora Coralina passou a ven-der doces em sua terra natal, a cidade de Goiás,

quando voltou a viver naquelas ban-das, em 1956. Ainda sem condi-ções de viver somente da literatura, seu doces caseiros se tornaram famosos na região. Bem famosos. Alguns sortudos podiam ainda se deliciar com o quitute e ouvi-la de-clamar poemas.Um dos mais disputados era o do-ce de figo, especialidade de Cora. Mas todos eram muito bons e produzidos com um esmero danado. Ela explicava que seus disputados doces eram ótimos por serem “glaceiri-zados, escorridos em peneiro, mergulhados um a um na calda reduzida, escorrido em peneira e secos ao sol”, como conta o livro Cora Co-

A doce Cora e sua receita especialA poetisa Cora Coralina dizia ser mais importante sua atividade como doceira do que como escritora.

Fez fama em Goiás por seus doces feitos sem afobação alguma. Um deles se destacou, e ainda está na

memória afetiva de muitos cidadãos da região: o doce de figo verde.

Quando estiver pronta, coloque os figos e, em fogo lento, espere até que fiquem macios – de 2 a 3 horas. Deixe na calda de um dia para o outro e só depois apure. No dia seguinte, torne ao fogo para apurar a calda (na parede do tacho começa a açucarar). Tire o tacho do fogo e, em movimentos de meio círculo de seus braços so-bre o tacho, vá misturando os figos e revirando-os na calda. Note que a calda vai engrossando, açucarando. Depois, com garfo, retire um a um os figos e coloque-os sobre tabuleiros. Estarão glaceirizados. Nunca se deve passá-los em açú-car cristal, o glacê é a própria calda. Acabam de secar ao sol.

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por Lourenço Diaféria

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LibéLuLas, ou a cLarineta

izem que todo o mundo tem na vida, ou teve, uma paixão. Não vou discutir isso agora. O que sei, ou penso que

saiba, é que toda paixão é fugaz como libé-lula à beira de um lago. Pescador entende a imagem. O sujeito vai pescar por pescar, para gastar o tempo, nem gosta de bagre frito, de lambari com uísque, fica lá um tempão na beira do lago pensando em tudo quanto é coisa menos em peixe. De repente, zip, uma libélula zune. A libélula é um risco no ar. Que interessa? Entretanto, libé-lula tem olho, boca, nariz, perninhas, aparelho digestivo. Acontece que a li-bélula é um vôo solitário, arisco. Acho que a libélula voa para acordar a paisagem às terças-feiras. E todo pescador pesca nas terças-feiras à tarde para atrair libélulas.Daí que paixão é como libélula. Aparece, é uma mancha com asas invisíveis, atravessa os olhos, sem cor, sem massa, sem músculos, sem ossos, no entanto, parece que tem tudo isso e mais um pouco. A libélula é um ser vivo. Ponto final. Paixão é a mesma coisa. Vem, vai embora, some, entra nas retinas, mas ninguém diz – Ó, hoje vi uma libélula. – A libélula é uma sensação. Como paixão. Não deixa pegadas. Claro, há criaturas frágeis capazes de se suicidar de corpo inteiro por causa de uma libélula, digo, paixão. Os repórteres da Central de Polícia da velha guarda tinham por hábito fuçar a vida de um defunto, reviravam os bolsos das calças, até que, pimba, achavam uma carta, um bilhete, uma frase:“Amália, morri por tu.”Além do erro de português era pura besteira. Amália ficava aí uns oito anos, pouco mais, velando o falecido, solteiro-na; um belo dia, não tinha erro. Arrumava um guarda-livros com glostora no cabelo, jaquetão de lapela larga, e esquecia tudo. Mobiliava o quarto, casava direitinho. Suicida por pai-xão morre em vão.Quem conheceu o Pascoal sabe que há paixões que merecem atestado de fidelidade. São raras, raríssimas, mas existem.

O Pascoal morava, morou, numa cidade mineira pequena e lúdica. O clima era de fogão de lenha e tutu de feijão com torresmo. No que estava sa-boreando suã de porco com mandioca, entra o Pascoal segurando uma caixa preta. Todo de fa-

tiota. Muito estranho. Logo fico sabendo, por fonte fidedigna, que o Pascoal era o maior

clarinetista da cidade.Até aqui não contei nada. O negócio vem a seguir. O Pascoal era básico nas sere-natas que adejavam nas madrugadas na cidade. Dava às vezes de o grupo de mú-

sicos se reunir na praça, mas enquanto o Pascoal não chegava com a clarineta ninguém saía. Só depois lá se ia a turma

estacionar sob as janelas das casas térreas e dos sobradões que não existem mais.Não era apenas a clarineta que tornava o Pascoal imprescin-dível. O Pascoal fazia questão de apresentar, em solo, uma composição feita especialmente para sua amada. Qual delas? Todas. O Pascoal tinha compatibilidade de gênio com todas as mulheres da cidade. No bom sentido. Podia ser dama, se-nhora, com rugas, sem rugas, moçoila, meninota, donzela, garota vivida, dona passada em anos, tanto fazia como tanto fez. A todas o Pascoal fazia questão de dedicar uma compo-sição nova, inédita, que ele improvisava na hora. Quer dizer, improvisação premeditada. Horas e horas o Pascoal criava e ensaiava antes a composição, até chegar à execução. Então vinha ele, solene, com a clarineta, homenagear sua amada, que nunca era a mesma da serenata anterior.Com pureza de sentimentos foi assim que o Pascoal se tor-nou lendário e colecionou no coração as libélulas da vida. Tão meigo era com a própria mulher que esta lhe relevou as fragilidades da alma; a princípio padecia de ciúmes, com o tempo cauterizou no peito a chaga do orgulho. Um dia, como em geral acontece, o Pascoal morreu. Foi sepultado com suas paixões todas: um concunhado – que tocava pan-deiro – deu um jeito de acomodar no caixão a clarineta entre flores amarelas. Foi um velório de truz.

LibéLuLas, ou a cLarineta

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CEBOLA

PoderosaDifícil mesa em que ela não compareça todo dia. Gostosa e medicinal. Purifica o sangue.

Amiga do coração. Anticancerígena. Tanta virtude tem, que um sábio indiano encontrou

em sua forma a revelação da nossa essência e a manifestação do divino.

naturopata francês Raymond Dextreit, um dos mais impor-tantes especialistas do século

20 em manutenção da saúde por meios naturais, louva a cebola em A Argila que Cura – mais de um milhão de exemplares vendidos só em língua francesa. Raymond dedica um capítulo a “produtos comple-mentares da argila”, no qual anota que a cebola, ao longo dos tempos, tem sido tão apreciada, que atravessou todas as frontei-ras; mas que, quando nos detemos sobre suas virtudes, constatamos quão pouca atenção lhe dedicamos.De fato. Algum dia, algum médico lherecomendou cebola para algum mal? Provavelmente não. No entanto, ela pre-vine e cura inúmeras moléstias. E se nos de-tivermos em sua natureza, enxergaremos a beleza que ela encerra. Mas algum poeta, que você saiba, escreveu alguma ode à cebola? Encontramos, num texto de Ramakrishna (1836-1886), a re-ferência que melhor transmite sua transcendência. O líder espiritual hindu compara a estrutura desse bulbo, disposto em camadas que acabam num vazio, à própria estrutura do ego: “Quando desfolhamos uma cebola, encontramos diver-sas cascas e não chegamos nunca a um núcleo. Da mesma forma, quando analisamos o ego, este desaparece completa-

mente. O que sobra por último é at-man, a consciência absoluta. Deus só aparece quando o eu morre”.Não há planta com mais regis-tros históricos. Indianos e chine-ses cultivavam o tempero dos tem-peros desde tempos imemoriais. Do centro da Ásia rumo ao ocidente, ela chegou à Pérsia – atual Irã; ali, há quase 5 mil anos, os imperado-res da Babilônia alimentavam seus guerreiros à base de cebola, como mais tarde fariam gregos, romanos, macedônios – Alexandre Magno, rei da Macedônia (século 4 a. C.), em-panturrava suas tropas com cebo-la, por ser reconhecida como fon-

te de vigor. Assírios não a dispensa-vam no pão. Egípcios a veneravam tanto, que a pintavam nas tumbas. E com ela os faraós, há quase 5 mil anos, ali-mentaram os escravos que ergueram as pirâmides.Quando a humanidade descobriu o molho, informa Câmara Cas-cudo, foi ela a primeira a ir para a caçarola. E as caravelas que aqui chegaram no século 16, claro que traziam réstias e mais réstias nas despensas: sem cebola o europeu já não passava. Da família do alho, da cebolinha e do alho-poró, esta aliá-cea de sabor picante e adocicado tem mesmo muita histó-ria pra contar.

Allium cepa

O

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China é a maior produtora. E o Brasil, um dos 10 maiores, não dá conta de seu consu-

mo: 4 quilos por brasileiro por ano (e o ideal para a saúde ainda seriam 20 quilos). Temos de comprar cebola da Argentina. Boa parte chega através da fronteira catarinense. Centenas de caminhonei-ros sofrem na fila da balsa. Com uma ponte sobre o rio Uruguai, em vez de duas vezes por semana, cruzariam a fronteira seis vezes. Falta uma ponte para a cebola amiga entre a argentina San Javier e a brasileira Porto Xavier.

Ponte daCebola Amiga

Truques da vovó

Cortada, a cebola libera um gás lacrimogêneo. Não chore. Deixe na geladeira meia hora, molhe, aí sim corte, e com faca afiada.Cheiro nas mãos? Esfregue com pó de café, suco de limão ou creme dental.Salada que não arde nem deixa bafo? Tempere com sal, vinagre e azeite meia hora antes de comer.Bafo de onça? Mastigue salsa ou beba suco de um limão diluído em água meia hora depois decomer a cebola.Sequinha e crocante quando frita? Corte em ro-delas, enxugue num pano, passe em farinha de trigo, aí frite.

A

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Nua e cruaor sua constituição (fósforo, ferro, cálcio, potássio, selênio, enxofre, flúor, magnésio, vitaminas B e C), a cebola é: antioxidante, antiviral, antibacteriana; desintoxicante. Limpa as vias respiratórias. Fortalece o sistema

imunológico. Previne câncer de colo retal e diminui a duração da crise de herpes.Ótima contra: gripe; dor de cabeça e nas articulações; problemas de pele; cárie, gengivite; arteriosclerose, trombose, enfarte; pedra nos rins;inflamações, infecções; úlceras; diabete, asma; estomatite, prisão-de-ventre, vermes.Aplicar uma rodela em cortes, feridas, furúnculos, picadas de aranha e insetos, evita infecção.Mas atenção: passou pelo fogão, adeus virtudes terapêuticas. E isto se sabe desde a antiguidade. Celsus, médico romano do século 1 a. C., receitava cebola crua contra febres; Plínio, naturalista do século 1 d. C., recomendava o uso tópico em caso de mordida de cão raivoso; e seu contemporâneo Nero, imperador que se achava artista, comia uma an-tes de cantar, para temperar a voz.

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Desvantagem no céuEis que a porta entre o céu e o inferno se quebra. São Pedro chama o diabo e avisa:– É sua vez de consertar a porta.– Sinto muito, todos os meus homens estão ocupados.– Tínhamos um acordo! Se você romper o trato, entro com um processo.– Ah, é? E onde você vai conseguir um advogado?

Para bom entendedorO homem chega em casa desolado, depois de visitar a sogra no hospital. A esposa, ansiosa, pergunta pelas novidades.– Sua mãe vai morar com a gente.– Por que você diz isso?– O médico disse que nos preparássemos para o pior.

Papagaio no congeladorUm sujeito compra um papagaio, mas quando chega em casa é uma decepção. O papagaio não para de resmungar, reclamar e xingar. O rapaz perde a paciência e coloca o bicho dentro do congelador. Ele já entra esbanjando palavrões, mas emudece poucos segundos depois. Quando o sujeito abre a porta, ouve um discurso:– Desculpe, senhor, por falar palavras de tão baixo calão. Prometo me comportar e até recitar poemas.Pasmo, o homem termina de abrir o congelador e o papagaio completa:– Mas, só por curiosidade: o que foi que o frango fez?

Chamada de pouca distânciaToca o telefone na recepção do hospital.– Bom dia, eu gostaria de saber como vai a paciente do quarto 221, Tânia Carvalho.– Ah, sim. Tânia... está se recuperando bem, a pressão está normal. Hoje mesmo vai sair da UTI e, se continuar assim, na terça tem alta.– Que bom! Muito obrigada.– A senhora é parente dela?- Não, eu sou a Tânia. Mas os médicos não me falam nada...

DeduçãoOs alunos presenteiam a professora.O filho do confeiteiro dá-lhe uma caixa. Ela sacode:– São bombons?– Acertou, professora!Vem a filha do livreiro.– Está pesado. É um livro?– Acertou, professora!E vem o filho do dono do bar. Há um vazamento na embalagem, ela passa o dedo, experimenta:– É um vinho branco?– Não, professora.– Humm… Desisto! O que você me deu?– Um cachorrinho.

Sensibilidade masculinaDe cama, o marido sussurra à mulher:

– Você esteve sempre ao meu lado. Quando perdi o emprego, quando

minha empresa faliu, quando perdemos a casa. E, desde que fiquei doente, você nunca me abandonou.

Sabe de uma coisa?– Diz, amor – fala ela, emocionada.

– Que azar você me dá!

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Cotuba e suas tiradas

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Funcionário ligeiro O funcionário chega animado:– Bom dia, seu Palmares!O chefe confere o relógio e fecha a cara:– Sousa, é a quarta vez que você chega atrasado essa semana. O que acha que devo concluir?– Que hoje é quinta-feira, seu Palmares.

Cotuba era um desses tipos da minha terra que não dá pra esquecer. Era uma figurinha. Boêmio, gozador, tinha uma

paixão danada pela famosa branquinha, a nossa bebida mais pura, a cachaça.Dizem os historiadores que ele não comia comi-da, dessas à base de arroz e feijão, pois sua ali-mentação era mesmo a pinga. E dizem que em doses homeopáticas, desde manhãzinha.Agora, o que ele tinha mesmo de engraçado eram as respostas na ponta da língua, pra qualquer as-sunto. Isso era digno de estudo, pois bastava o cidadão aca-bar de fazer a pergunta, pra imediatamente ouvir a respos-ta numa sacada inteligente.Caboclo – Ô Cotuba, por que é que você, em vez de tomar tanta pinga, não toma água?Cotuba – Porque não sou camelo.

Caboclo – Então beba leite.Cotuba – Não sou bezerro.

Caboclo – Coma arroz!Cotuba – Não sou japonês.Caboclo – Coma açúcar!Cotuba – Não sou formiga.E assim seguiam as brincadeiras do pessoal, só pra ver o Cotuba responder na lata a qual-quer pergunta.Um belo dia, o pinguço vai ao médico. O doutor co-

meça a apalpar o tórax do dito cujo e, quando apalpa no lugar que a gente costuma ter o “figueredo”, ao constatar que o bendito órgão se apresentava meio inchado, pergunta:Doutor – O senhor bebe?Cotuba (no ato) – Aceito, sim, sinhô!E lá se foi pelas ruas de São Joaquim da Barra a contar a história...

Pai desajeitado– Papai, de onde eu vim?– Bem… sabe… o papai tem uma sementinha… (leva meia hora a explicar da maneira mais didática possível como funciona o “processo de acasalamento”).– Ah, tá!…– Mas por que me perguntou isso, filho?– É que o Luisinho me disse que veio de Uberaba.

Boca-livreDesconfiado de que sua festa estava cheia de penetras, o anfitrião grita:– Convidados da noiva, para o lado direito!Parte das pessoas se aloja do lado direito dele.– Agora, convidados do noivo, do meu lado esquerdo!Um monte de gente se junta do lado esquerdo.– E, agora, caiam fora vocês! Isto aqui é uma festa de aniversário!

Conflito de geraçõesO jovem faz 18 anos, tira carta de motorista e já pede o carro do pai emprestado. O pai impõe as condições: passar no vestibular e cortar o cabelo, que está pelo meio das costas. Lá vem o jovem dois meses depois, todo feliz, aprovado, mas nada de cortar o cabelo. Inventou uma desculpa:– Estive pensando, pai. Sansão tinha cabelos compridos. Abraão também.E o próprio Jesus…E o pai: – É, tem razão. Mas eles andavam a pé.

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Hoje vejo o mundo mais colorido

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Por Helena de Lourdes Bassan Peixoto

esde que me aposentei como pro-

fessora buscava algo para conti-

nuar sendo útil à sociedade. Meus filhos já

estavam grandes, e não admitia ficar para-

da em casa o dia todo. Em 2004 estava ao

lado de um grupo de amigas que se reuni-

ram e fundaram a associação Ativistas Ia-

crienses de Combate ao Câncer (AICC) na

cidade que moro, Iacri, no interior de São

Paulo. Mal sabia que pouco tempo depois

eu enfrentaria a doença que ajudava a amenizar nas pessoas.

Era abril de 2006 quando meu marido descobriu um tipo de cân-

cer. Fez o tratamento, as sessões de quimioterapia, e quando estava

melhorando, em outubro, o destino quis que eu começasse a ter os

primeiros sintomas de câncer durante uma viagem. Tudo que co-

mia me fazia mal. Tomei alguns remédios e, ao retornar da viagem,

meu filho farmacêutico me intimou a fazer uma endoscopia.

Eu e uma amiga fomos buscar o diagnóstico. Estava confirmado:

tratava-se de um câncer no início do estômago. Eu ouvi tudo com

muita calma, fiz perguntas sobre as possibilidades de tratamento.

Fiquei mais tranquila até que a minha amiga. Encarei como algo

natural, pois todo mundo está sujeito a isso. De noite, estava mar-

cado um jantar com as amigas da associação. Participei normal-

mente e encarei de frente a situação.

A cirurgia foi marcada para novembro, e optei por me tratar no

Hospital Amaral Carvalho, em Jaú, mesmo com condições de

buscar tratamentos em outros lugares.

Como voluntária, sentia que muitos ti-

nham pavor de ir ao Amaral Carvalho,

por achar que, indo para lá, significava

que já estavam num estágio avançado da

doença, já condenados. Então fiz a es-

colha para mostrar a essas pessoas que

aquilo não tinha nada a ver com a reali-

dade. A cirurgia foi muito bem-sucedida,

e anunciei para todos da cidade. Creio

que fui instrumento, abrindo caminho para muitas curas.

Depois de quatro anos da cirurgia, graças a Deus nunca mais senti

uma dor ou tomei qualquer remédio. Sequer fiz quimioterapia. Só

preciso ter bastante atenção com a alimentação e, fora isso, levo

uma vida normal. Aliás, costumo dizer que estou melhor agora do

que antes da cirurgia. Perdi 26 quilos. Antes eu sentia muitas dores

nos joelhos, tinha dificuldade para andar, subir escadas, me can-

sava muito. De 86 passei para 60 quilos. Faço hidroginástica duas

vezes por semana e academia três vezes por semana.

Além de estar mais magra e com mais disposição, a doença - e sua

cura - me deixou mais tranquila com os acontecimentos do coti-

diano, já que sempre fui muito crítica e exigente comigo e com as

pessoas ao redor. Cheguei a conclusão de que não adianta correr, se

apressar, cobrar muito. Cada um tem seu ritmo e é preciso respei-

tar a individualidade de cada um. Certamente, hoje vejo o mundo

mais colorido.

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