Allan Neves Oliveira Silva* · correção e superação do pensamento de Aristóteles de um modo...

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Translatio. Caderno de resenhas do GT História da Filosofia Medieval e a Recepção da Filosofia Antiga http://gtfilosofiamedieval.wordpress.com/resenhas/ ISSN 2176-8765 Vol. 8 (2016) ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, xi + 298 p. Allan Neves Oliveira Silva* ___________________________________________ Abu ‘Ali Ibn Sina (980-1037 d.C.) está entre as figuras que mais influenciaram o pensamento medieval, estendendo-se por gerações de pensadores em diversas áreas do conhecimento e cruzando fronteiras linguísticas, étnicas e religiosas. Seu destacado alcance, de fato, reflete sua maestria em catalisar, sintetizar e inovar o conjunto de ideias que preenchiam o rico ambiente intelectual circunvizinho de Bukhara (cidade próxima de onde nasceu, hoje Uzbequistão) e de Khurasan (território onde viveu maior parte de sua vida, hoje parte do Irã), ambas situadas no que foi o antigo império persa. No limiar do século XI, o movimento de tradução do grego ao árabe já havia chegado ao seu fim com a quase totalidade do corpus aristotélico traduzido, assim como boa parte dos chamados comentadores neoplatônicos gregos de Atenas e Alexandria; a escola de Bagdá, empenhada em comentar e definir o pensamento do Estagirita, já havia tido seu apogeu com al-Farabi (m. 950); e a teologia islâmica (kalâm), que se engajava em temas caros aos filósofos como a criação, atributos divinos e o porvir da alma humana, assim como o gnosticismo ismailiano, que importou fortemente do neoplatonismo grego e de sábios persas, estavam marcantemente em voga. O contexto em que viveu, entretanto, não minimizou seu potencial, que, como ele aponta em sua autobiografia, se firmava singular e prolífico desde cedo; mas, antes, o que produziu a partir dele o fez se projetar historicamente até as fronteiras opostas do império islâmico com seu diálogo com Averróis (m. 1198), indo daí para a Europa cristã – onde seu nome latino, Avicenna, se fazia soar – e adiante, mostrando-se ilustre no mundo islâmico até tempos recentes. * Doutorando na Universidade Federal de Minas Gerais e bolsista do CNPq.

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ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, xi + 298 p.

Allan Neves Oliveira Silva* ___________________________________________

Abu ‘Ali Ibn Sina (980-1037 d.C.) está entre as figuras que mais

influenciaram o pensamento medieval, estendendo-se por gerações de

pensadores em diversas áreas do conhecimento e cruzando fronteiras

linguísticas, étnicas e religiosas. Seu destacado alcance, de fato, reflete sua

maestria em catalisar, sintetizar e inovar o conjunto de ideias que preenchiam o

rico ambiente intelectual circunvizinho de Bukhara (cidade próxima de onde

nasceu, hoje Uzbequistão) e de Khurasan (território onde viveu maior parte de

sua vida, hoje parte do Irã), ambas situadas no que foi o antigo império persa. No

limiar do século XI, o movimento de tradução do grego ao árabe já havia

chegado ao seu fim com a quase totalidade do corpus aristotélico traduzido,

assim como boa parte dos chamados comentadores neoplatônicos gregos de

Atenas e Alexandria; a escola de Bagdá, empenhada em comentar e definir o

pensamento do Estagirita, já havia tido seu apogeu com al-Farabi (m. 950); e a

teologia islâmica (kalâm), que se engajava em temas caros aos filósofos como a

criação, atributos divinos e o porvir da alma humana, assim como o gnosticismo

ismailiano, que importou fortemente do neoplatonismo grego e de sábios persas,

estavam marcantemente em voga. O contexto em que viveu, entretanto, não

minimizou seu potencial, que, como ele aponta em sua autobiografia, se firmava

singular e prolífico desde cedo; mas, antes, o que produziu a partir dele o fez se

projetar historicamente até as fronteiras opostas do império islâmico com seu

diálogo com Averróis (m. 1198), indo daí para a Europa cristã – onde seu nome

latino, Avicenna, se fazia soar – e adiante, mostrando-se ilustre no mundo

islâmico até tempos recentes.

* Doutorando na Universidade Federal de Minas Gerais e bolsista do CNPq.

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A despeito da importância de Avicena, o relativo estreito leque de

pesquisas aprofundadas sobre suas doutrinas, a carência de edições críticas

apropriadas de suas obras e a ainda tímida abordagem compreensiva da

dimensão e extensão de sua influência se fazem sentir sobremaneira. A verdade é

que, considerando a magnitude de Avicena frente ao que contamos de material

sobre ele, temos em nossa frente um autor que ainda nos é estranho, revelando,

por efeito, o quando ainda é estranha ao próprio pesquisador da tradição

medieval a filosofia árabe islâmica. Tem havido, contudo, um crescente esforço

de estudo qualificado nas últimas décadas para aplainar tais lacunas. O livro

editado por Peter Adamson contribui em grande medida para isso. Trata-se de

uma coletânea de artigos redigidos por prestigiosos pesquisadores sobre as mais

diferentes facetas do autor, cobrindo também em boa dose seu legado. É um

título que apresenta a virtude de oferecer ao leitor de filosofia um panorama da

figura, doutrina e influência do pensador árabe de forma acessível e técnica,

localizando-o ao mesmo tempo no cenário atual de pesquisas e de disputas

interpretativas. Como aponta o próprio título, os escritos são ensaios críticos

que trazem a valiosa contribuição de fazer avançar as pesquisas sobre Avicena

com a apresentação de interpretações e informações originais, fazendo

contraponto ao que temos disponível e indicando ao estudioso da filosofia árabe

o caminho ainda a se trilhar.

As duas primeiras contribuições, de David Reisman1 e Dimitri Gutas2,

oferecem um acurado retrato do personagem na ambiência social, cultural e

intelectual em que estava inserido. Reisman destaca a importância crucial do

patronado para Avicena, primeiramente para sua própria formação filosófica e,

em seguida, para conseguir os próprios meios para redigir e para congregar seus

discípulos. O interessante é que o que faz com que Avicena seja adotado por

auxílio benfeitor de governantes e nobres não são (ao menos não inicialmente)

1 REISMAN, D. “The Life and Times of Avicenna: Patronage and Learning in Medieval Islam”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 7-27. 2 GUTAS, D. “Avicenna’s Philosophical Project”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 28-47.

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seus dotes filosóficos, mas o seu talento para curar. É este que lhe garante –

como narra em sua autobiografia – ocupar com a idade de 18 anos o posto de

médico na corte do governante samânida Nuh b. Mansûr, o qual lhe abre uma

biblioteca de rico e variado acervo. Reisman argumenta que essa adoção marca a

primeira de uma série de fases da produção filosófica do nosso autor, a saber, a

confecção sobretudo de compêndios em favor de seus protetores, tendo,

portanto, um modo de exposição próprio, mas que vem assinalar sua maturação

enquanto pensador autônomo (pp. 10-1). Esse foi um meio conveniente para

conseguir a estabilidade necessária para seu exercício intelectual, já que Avicena,

graças a sua autoproclamada e reconhecida capacidade autodidata, nunca esteve

filiado a um estabelecimento de ensino institucionalizado. Com isso, tem início a

sua fase de composição de obras pedagógicas para alunos que começaram a

agregar seus ensinos, as quais comportam um teor mais sistemático e

aprofundado. De fato, o progressivo conhecimento das obras do Estagirita –

mais primordialmente, do Organon – o faz se confrontar, em um primeiro

momento, com seus conterrâneos bagdadis, a quem acusa de não raciocinar com

exatidão segundo os princípios lógicos por eles próprios defendidos, e, em

seguida, com o próprio Aristóteles. Como aponta Reisman: “A interpretação

deles de Aristóteles e outros filósofos gregos conduziria em parte Avicena a

propor sua ‘filosofia dos Orientais’, que romperia com a prática servil de mero

comentário a Aristóteles” (p. 15). É nessa efervescência que tem início sua fase

de rivalidade e disputa, mesmo pública, com os sábios da época e sua firmação

enquanto autoridade. Um episódio marcante é a discussão de problemas lógicos

que Avicena protagoniza com o pensador bagdadi Abu l-Qasim al-Kirmani (pp.

14-9), que é intrigantemente apresentado pelo pesquisador em seu contexto de

turbulência política.

A fase de maturidade de Avicena é marcada pela composição de suas

duas maiores obras: Livro da Cura (Kitâb al-Shifâ’) e Indicações e notas (Al-Ishârât

wa-l-tanbîhât). Reisman ressalta que Avicena assume uma postura que se

caracteriza em três frentes (pp. 19-20): 1) seu embate com al-Kirmani e outros

adeptos da mesma Escola realça sua posição polemista contra os

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autodenominados “aristotélicos”; 2) o confronto é intelectualmente fundado,

visto que Avicena, reconhecendo a competência de Aristóteles, se presta a

mostrar a falência dos métodos e práticas de seus seguidores na própria

linguagem lógica – silogístico-demonstrativa – do mestre grego; 3) superando o

Estagirita e seus seguidores no próprio território deles, Avicena procede a firmar

sua filosofia de modo próprio não apenas em conteúdo, mas também em meio

de veiculação e divulgação para a comunidade intelectual. As duas primeiras

frentes são materializadas no Livro da Cura, onde Avicena, no Prólogo, menciona

explicitamente os bagdadis e adverte o leitor sobre seu projeto de remodelagem,

correção e superação do pensamento de Aristóteles de um modo sistemático e

coeso. Nesse ínterim, Avicena nomeia sua própria investidura de “oriental”

(mashriq), que, como esclarece Reisman, seguindo a aclamada tese de Gutas,

trata-se de um qualificativo geográfico que remonta à parte oriental (Khurasan)

do império islâmico, em contrapartida aos “ocidentais” de Bagdá. Avicena não

apenas inova em conteúdo, mas no gênero literário sem precedentes com o qual

apresenta seu sistema nas Indicações. Aí, o filósofo adota largamente o recurso

do entimema (argumento que elide uma das premissas) e omite as conclusões,

permitindo que o leitor a elas chegue através de uma das premissas e de

pequenas descrições ou apontamentos que lhes “indicam”. Com essa forma de

exposição, tinha-se em vista seu discipulado e iniciados, que deviam chegar à

verdade por um esforço próprio de inferência e raciocínio (p. 22). Reisman

aponta ainda que a produção não fez Avicena dispensar o patronado, e que, de

fato, mesmo nos anos finais de sua vida outros nobres o comissionaram, o que

redundou em escritos com diferentes modos de exposição (pp. 22-6). Fica claro

como a filosofia de Avicena foi construída em um cenário altamente dinâmico e

como isso afetou a estrutura formal de sua escrita, sem, contudo, interferir no

projeto autônomo de filosofia que ele desde muito cedo concebeu.

Gutas vem destacar com sua contribuição os constituintes desse projeto

e os elementos importados para sua realização. Informa-nos que,

fundamentalmente, Avicena contava com uma formação alinhada à tradição

aristotélica. Primeiro, porque tinha à sua disposição a maioria dos textos do

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Estagirita e boa parte de seus comentadores (esp. Nicolau de Damasco,

Alexandre de Afrodísia, Temístio, João Filopono), conhecendo apenas pouco e

indiretamente Platão. E, sobretudo, porque importou o currículo de ensino

filosófico da escola de Alexandria, principal e direta fonte grega dos árabes (pp.

29-30). De acordo com esse currículo, a lógica fomentaria a parte primeira e

propedêutica do conjunto restante das disciplinas filosóficas teóricas: física

(entende-se a física de Aristóteles e zoologia), matemática (i.e., quadrivium:

aritmética, geometria, astronomia e música) e metafísica. A partir daí se

seguiriam as disciplinas práticas como a ética e a política (p. 31). De fato, foi

exatamente nesta ordem que seu opus magnum, o Livro da Cura, foi redigido. Isso

porém, como enfatiza Gutas, não era um mero modo de divulgação organizada

do saber, mas, antes, era para Avicena o reflexo exato da estrutura da realidade.

Tal concepção lhe permitiu ir além da tradição que o influenciou. Como coloca

Gutas de modo significativo: “Ele foi o primeiro filósofo a escrever sobre todo

conhecimento filosófico (o que ele chamou simplesmente de al-‘ilm, conhecimento)

dentro de uma composição única como um todo unificado: ele desenvolveu a

summa philosophiae” (p. 32, suas ênfases).

Gutas nos apresenta ainda duas importantes teses. A primeira, já clássica

e aderida largamente pela comunidade acadêmica, é que a concepção aviceniana

da justaposição entre verdade científica e a estrutura ontológica é racionalmente

justificada através de um conceito nuclear e orgânico em seu sistema: hads (pp.

36-7). Abdicando da escolha em tempos anteriores de traduzi-lo como

“intuição” (intuition), Gutas opta por uma expressão mais neutra, “adivinhar

corretamente” (guess correctly), para descrever o vocábulo que Avicena usa

quando se refere ao ato intelectual de alcançar o termo médio no argumento

silogístico redundando na conclusão. Trata-se de um importe direto de

Aristóteles (Segundos Analíticos I.34), mas que Avicena usa de uma maneira

integrada em seu sistema de conhecimento, fazendo uso dele não apenas em

seus tratados, mas, de modo mais pessoal, em cartas a discípulos e na

autobiografia para descrever a aquisição do saber inteligível pela alma (inclusive a

dele próprio!) e o progresso científico do homem na história. É pela noção de

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hads, em outras palavras, que Avicena fornece de maneira racional, pois

silogisticamente fundada, o link entre o mundo, seus efeitos e causas, e o que

conhece o homem dele. A outra tese de Gutas, mais recente, vem chamar

atenção ao “empirismo racional” (pp. 39-40) do filósofo árabe. Tal expressão não

vem apenas a qualificar as marcantes e numerosas colocações sobre os sentidos

externos e internos, assim como sobre as premissas de experiência (tajriba;

mushâhâdât), mas também a noção de autorreflexão ou consciência (qadâyâ

i‘tibâriyya) que é famosamente exposta pelo argumento do homem suspenso no

ar, uma experiência de si. Para Gutas, esses elementos sustentam o eixo empirista

da filosofia aviceniana, que, de certo modo antecipa o que veremos em John

Locke, e que varre qualquer carga exegética forte da terminologia emanacionista

– ou, antes, neoplatônica – ou quiçá inatista que emprega. Uma leitura similar é

oferecida por Deborah Black nesta coletânea.

Pela noção de hads estar essencialmente integrada com a concepção

silogística do mundo, o artigo de Tony Street3 na coleção, intitulado Avicenna on

the Syllogism, vem agregar a nosso entendimento esse tema fundamental na obra

lógica do autor. Street nos mostra como Avicena sofistica aspectos da teoria da

proposição e demonstração aristotélicas dialogando fortemente com a tradição e

se desvinculando dela. No que tange à proposição, uma questão bastante

disputada era sobre como compreendê-la na ausência de um operador modal,

isto é, de um termo que define a necessidade, possibilidade ou impossibilidade da

afirmação ou negação expressa no enunciado (pp. 54-5). Tal condição “absoluta”

(mutlaqa), que caracteriza a ausência do operador, foi diferenciada por Avicena

em proposição “absoluta geral” (mutlaqa ‘amma) e “absoluta especial” (mutlaqa

khassa). Tomemos o exemplo de um enunciado universal afirmativo como “Todo

A é B”. Como o componente modal não é expresso, ela pode ser lida de modo

geral, como “Todo A é ao menos uma vez B”, ou de modo especial, como

“Todo A é ao menos uma vez B e ao menos uma vez não-B”. Ao inserir

operadores temporais para discriminar proposições desprovidas de modalidade,

3 STREET, T. “Avicenna on the Syllogism”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 48-70.

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Avicena, segundo a interpretação proposta por Street, estabelece novas

condições de verdade para elas. Assim, as contrárias “Todo A é B” e “Nenhum

A é B”, embora tenham qualificadores opostos, podem ser verdadeiras, já que,

sendo uma delas tomada em sentido especial, A está ao menos uma vez incluso

no domínio de B e ao menos uma vez no de não-B. Neste “ao menos uma vez”,

Avicena implica, de modo amplo, não apenas a possibilidade, mas a

potencialidade, do que é A realizar-se ou de existir como tal (wujûd), como B (tal

como na proposição absoluta “Todo homem morre”). A divisão proposta está

emoldurada em uma ontologia e, portanto, tem uma aplicação que extrapola sua

lógica alcançando a metafísica (p. 58). No que concerne à demonstração, Avicena

confronta a chamada “regra da mais fraca” defendida por Teofrasto, segundo a

qual a força de uma conclusão em um dado silogismo é definida pela quantidade,

qualidade e modalidade do que é expresso na mais fraca das premissas. Avicena

contesta isso argumentando que a força da conclusão é definida pelo que

expressa a premissa maior com algumas exceções reconhecidas. Essa teoria será

criticada por lógicos posteriores, em especial pela adesão da ontologia à lógica

modal. Como pontua Street: “Avicena está construindo sua lógica modal em

torno de insights quanto a naturezas e as diferenças essenciais entre naturezas

que são reveladas pelas potencialidades diferentes e constituintes” (p. 62).

Adotados ou criticados, seus desenvolvimentos no campo da lógica têm um

tremendo impacto entre os filósofos árabes posteriores (pp. 63-5). Street ainda

fornece ao leitor, como apêndice, um guia bibliográfico bastante útil das obras

lógicas de Avicena incluindo estudos especializados sobre a temática (pp. 67-70).

Seguindo a ordenação do saber concebida por Avicena, depois da lógica, a

filosofia da natureza é colocada em escrutínio, a começar por Jon McGinnis4, que

analisa conceitos fundamentais da Física (al-Tabî‘iyyât) da Cura, em contraste com

a tradição peripatética. O primeiro deles é o de movimento (haraka), sobre o

qual Avicena estabelece dois sentidos por meio de uma distinção que é estranha

a Aristóteles. Um deles é o sentido que se tem na imaginação (khayâl), pelo qual

4 MCGINNIS, J. “Avicenna’s Natural Philosophy”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 71-90.

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é apreendido que um determinado corpo se deslocou de um ponto a a um

ponto b em determinado tempo t. Nessa perspectiva psicológica, o movimento é

um processo visto como acabado, já que visualiza o corpo movido sob uma

contagem temporal com início e fim. Quando trazido ao mundo concreto (fî al-

a‘yân), entretanto, onde o tempo cede estritamente lugar ao instante (sua fração

indivisível), o movimento é dimensionado em sua dinâmica de processo que se

realiza. Avicena conecta a noção de instante à de movimento, afirmando que há

movimento em um instante. Enquanto que tal afirmação parece contraintuitiva

por sugerir a violação da lei de contradição, Avicena responde a isso

reendossando ao seu leitor a distinção feita entre os sentidos de movimento: a

contradição existiria, de fato, se compreendêssemos t¹ e t² em um instante, uma

compreensão fundada no nível psicológico, mas entender o movimento

radicalmente na perspectiva extramental significa que, se um corpo se move, ele

se encontra em um estado x em um instante, e, necessariamente, em um estado

y em um instante seguinte (pp. 72-5). A distinção de perspectivas entre a

psicológica ou conceitual e a concreta ou física também desempenha um papel

crucial na reflexão de Avicena sobre o contínuo e o átomo, pois ele admite que

o contínuo – um composto material uniforme – pode ser potencialmente

dividido ao infinito, mas isso só enquanto experiência de pensamento. No que

tange à divisibilidade do corpo físico do domínio concreto, contra o que pensa

Aristóteles, isso seria impossível (pp. 75-8). Ao contrário do que as expectativas

poderiam indicar, porém, dessa mesma arquitetura teórica também uma vigorosa

refutação do atomismo é ensaiada, atomismo este reinante e racionalmente

sustentado pelos teólogos islâmicos (mutakallimûn) asharitas. Isso porque estes

não endossam apenas a existência de uma parte indivisível da matéria (com o que

concordaria o filósofo persa), mas, no que sustentam, a noção de átomo

compreende também a indivisibilidade conceitual. McGinnis nos apresenta a

refutação aviceniana a essa possibilidade pelo argumento de agregação (ta’lîf):

para um corpo se constituir enquanto uma magnitude espacial única é necessário

que suas partes se agrupem, se conglomerem quantitativamente de modo a

formar um corpo qualquer. Mas isso não seria possível se eles fossem

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conceitualmente indivisíveis, pois, teoricamente, eles não teriam limites (então,

partes), o que é indispensável para que a sobreposição de um componente a

outro dê origem a um todo físico (pp. 78-81).

Na categoria da qualidade e da substância com relação aos compostos

físicos, Avicena exibe o impulso criativo que o deixou conhecido enquanto

filósofo da natureza. A relação entre os elementos naturais (terra, água, ar, fogo)

com as qualidades sensíveis primárias (frio-quente, seco-úmido) é bem delimitada

por nosso autor, que argumenta contra a natureza substancial dessa relação,

defendida por alguns comentadores aristotélicos gregos, e contra a ideia de que

a origem dos elementos naturais ocorre em virtude do grau extremo que suas

respectivas qualidades sensíveis atingem – a água sendo resultado dos extremos

do úmido e do frio, etc. A respeito deste último, Avicena contra-argumenta que,

fosse esse o caso, não seria possível nomear água este elemento que pode tanto

congelar quanto entrar em ebulição. De fato, também a transição da água para o

ar, ou qualquer outra mudança substancial, isto é, a mudança que envolve a

passagem de uma forma substancial a outra, marca o contexto em que Avicena

recorre ao que ficou conhecido no mundo latino por dator formarum, uma feliz

tradução de wâhib al-suwar, “doador de formas”. Trata-se de uma inteligência

celeste separada (o intelecto agente de suas obras psicológicas) que fica

responsável por emanar a nova forma substancial sempre que o composto

estiver preparado ou predisposto para tal. É a causação metafísica fortemente

presente para explicar fenômenos físicos (pp. 86-8).

O artigo de Peter Pormann5 traz luz a um campo basilar do pensamento

aviceniano ainda por muito a ser explorado e que lhe rendeu um epíteto de

peso, o de médico. Avicena não apenas teorizou, enquanto filósofo e médico,

sobre a medicina (tibb), mas também a levou ao domínio prático, cujo exercício

desde cedo, como dito, lhe garantiu acesso à elite política e intelectual. Sua

reflexão sobre ela no campo filosófico consiste, do ponto de vista mais amplo,

5 PORMANN, P. “Avicenna on Medical Practice, Epistemology, and the Physiology of the Inner Senses”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 91-108.

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em classificá-la no quadro de disciplinas do saber. Neste quesito, Pormann

esclarece, o espaço que a medicina ocupa oscila desde ser uma ciência natural

derivativa (al-hikma al-tabî‘iyya al-far‘iyya) na Epístola sobre a Divisão das Ciências

(Risâla fî Aqsâm al-‘ulûm) até, na tardia Os Orientais (al-Mashriqiyyûn), a de possuir a

condição mais periférica de ciência corolária ao lado de astrologia e agricultura

(p. 93). Enquanto médico, Avicena escreve sobre essa ciência na introdução do

massivo Cânon de Medicina (Al-Qânûn fî al-tibb), classificando-a nas dimensões

teórica (nazarî) e prática (‘amalî). O médico compreende e lida com os

elementos, misturas e humores que constituem os organismos físicos, suas

faculdades e partes anatômicas, os compostos que reagem e interagem com eles

(comida, bebida etc.), e os que trazem ao equilíbrio e à cura, preservando sua

saúde. Esse é o limite de sua atuação; ir além, isto é, buscar pela causa daquilo

que constitui seu campo de atuação é trabalho do filósofo, do filósofo da

natureza. (p. 94). Na terminologia utilizada podemos notar a ressonância de

Galeno, que foi bem conhecido nas terras islâmicas. De fato, declara Pormann,

Avicena desenvolve a dimensão empírica da ciência médica, tão marcada pela

tradição grega, e enfatiza a noção de experiência (tajriba), meio pelo qual ele, de

modo qualificado e organizado, orienta o teste de drogas ou medicamentos em

faculdades orgânicas diversas e registra seus efeitos (pp. 98-99).

É interessante observar como Avicena combina, de modo apurado, suas

visões de médico e filósofo em temas que se tocam, e nenhum outro se faz mais

influente que o dos sentidos internos (al-hawâss al-bâtina) da alma. Trata-se das

faculdades anímicas que lidam com os dados sensíveis uma vez que eles são

percebidos e veiculados pelos órgãos externos. Nelas repousa o limiar da

questão entre corpo e alma e sua interação. Como nos informa Pormann,

Galeno foi peça de leitura importante, mas também o foram Posidônio e o

cristão Nemésio de Emesa (ambos do século IV d.C.), que propagavam suas

reflexões quanto à centralidade do cérebro na relação corpo-alma a partir da

notória descoberta dos nervos feita pelos gregos (pp. 102-3). Avicena aprofunda

essa gama de conhecimentos e define cinco sentidos internos para a alma, que

estão sediados em três ventrículos cerebrais – frontal, médio, dorsal – e que

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sofrem quando suas específicas sedes corpóreas são danificadas, como consta no

De anima (Kitâb al-Nafs) da Cura. Com efeito, a razão de 5:3, em vez de 3:3, é

apenas detectada pelo filósofo e passa despercebida ao médico. A função de

perceber noções derivadas dos dados sensíveis difere da função de armazená-las,

o que exige a duplicação das faculdades perceptivas: o sentido comum (al-hiss al-

mushtarak) e a estimação (wahm), a última das quais se fez bem conhecida na

tradição latina (pp. 105-7). Pormann nos mostra ainda como passagens textuais

sobre sentidos internos na obra médica e na filosófica de Avicena se sobrepõem

mostrando seu nível de sistematicidade e a base empírica de que fazia uso para

fundamentar suas proposições teóricas.

Ascendendo das faculdades internas corpóreas ao nível intelectual, Dag

Hasse6 nos apresenta seu escrito em contornos polêmicos, tratando do mais

debatido tema da epistemologia aviceniana. O problema é fundamentalmente

exegético, pois Avicena em diversas obras explica sua teoria da intelecção, ou

aquisição das noções (s. ma‘nâ) ou formas inteligíveis (s. al-sûra al-ma‘qûla),

empregando dois arcabouços terminológicos que advêm de tradições diferentes

e que são aparentemente contraditórios. Ele, em certos momentos, explicita que

o intelecto (‘aql) humano alcança as formas inteligíveis por um procedimento de

abstração (tajrîd) sobre as formas sensíveis (s. al-sûra al-mahsûsa) que estão

armazenadas na imaginação, despindo-as completamente da materialidade que as

torna particulares. Entretanto, em outras ocasiões de uma mesma obra, a

aquisição intelectual humana é descrita como o resultado da emanação (fayd) dos

conceitos universais a partir do intelecto agente (al-‘aql al-fa‘‘âl), que é uma

inteligência celeste separada do mundo natural, quando quer que o intelecto

humano esteja pronto ou disposto para tal. Emerge, pois, a questão: de onde

vêm os universais inteligíveis, e como precisamente o ser humano os adquire?

Hasse, na primeira metade de seu artigo, realça as tradições – respectivamente,

aristotélica e neoplatônica – sobre as quais são baseadas as diferentes descrições

oferecidas por Avicena mostrando a correspondente segmentação em duas

6 HASSE, D. “Avicenna’s Epistemological Optimism”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 109-119.

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correntes de leituras pela bibliografia especializada, correntes que, de modo

geral, ao aderir a uma das descrições, classifica a outra como apenas metafórica.

Essa foi a postura do próprio Hasse anos atrás em favor da leitura abstracionista,

e que ele, na segunda metade, tenta ajustar para comportar o vocabulário

emanacionista.

Hasse explora a distinção feita por Avicena (cuja origem remonta a

Alexandre de Afrodísia) entre as formas que se encontram na matéria e as

abstratas, estas sendo os existentes separados, inteligências celestes e Deus (pp.

114-5). Ademais, as mesmas essências ou quididades que se encontram unidas à

matéria enquanto formas do composto natural existem em um estado abstrato

(mujarrad) no intelecto agente separado. Se as formas são naturais, o vocabulário

da abstração para as adquirir de modo imaterial, universal, está justificado e

endossa ainda uma vez mais o empirismo com o qual se compromete Avicena.

Mas, e quanto à emanação e às formas abstratas no intelecto agente? Hasse

argumenta que, ao sustentá-las, um outro problema é visado, qual seja, não a da

fonte primeira dos inteligíveis alcançados pelo indivíduo cognoscente, mas a da

origem última deles e, portanto, sua proveniência de ser. Desse modo,

“[e]pistemologicamente, o modo normal de adquirir as formas universais é a

abstração dos particulares, mas ontologicamente as formas vêm do intelecto

agente” (p. 115). O emanacionismo, Hasse destaca, desempenha ainda um papel

específico na teoria do conhecimento de Avicena, que é o de responder às suas

interrogações sem precedentes sobre a existência de uma memória intelectual

na alma. Um tal repositório para os inteligíveis é rejeitado longamente no De

anima em razão 1) da materialidade do corpo que não pode comportar a

imaterialidade de noções abstratas e 2) de o intelecto humano, imaterial, não

poder conservar aquilo que pensa, pois, ao se encontrarem em um substrato

(mawdu‘) intelectual, elas devem ser pensadas em ato. Aqui notamos a distinção

cara ao nosso autor entre percepção e preservação, o intelecto agente

aparecendo como o substrato no qual os inteligíveis abstraídos pelo homem são

“armazenados” e eternamente inteligidos em ato. Para Hasse, a teoria da

emanação vem exatamente resolver o problema da memória intelectual e

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preservar o homem de, para reaver noções já adquiridas, ter de se engajar em

uma nova e laboriosa busca empírica com seus correlatos processos cognitivos

(pp. 116-7). Nessa tentativa de interpretação conciliatória, então, o intelecto

agente é inexistente na aquisição primeira pelo homem dos inteligíveis e vem, de

modo auxiliar, resolver um problema que o próprio Avicena detectou. Estando

exclusivamente a encargo e em poder do homem adquirir as noções universais

por si próprio, estamos, finaliza Hasse, frente a uma complexa teoria que, porém,

resguarda um “otimismo epistemológico” (p. 119), expressão que dá título ao

artigo.

A investigação sobre a epistemologia continua com Deborah Black7, que

explora as diferentes proposições de conhecimento classificadas por Avicena

segundo a noção de assentimento (tasdîq), que está ultimamente ancorada no ato

elementar da alma de reconhecimento de sua própria existência, exemplificado

pela famosa experiência de pensamento do homem suspenso no ar. O filósofo

nos oferece uma extensa lista (Black enumera 11, p. 124) de tipos de

proposições que variam em grau de certeza (yaqin), desde as autoevidentes,

como proposições matemáticas simples (“O todo é maior que a parte”), até as

baseadas em testemunhas (“A torre Eiffel está na cidade de Paris”), ou que nos

são ditadas por opiniões geralmente aceitas e autoridades (“Mentir é mau”). A

força epistêmica de tais proposições, em seus distintos graus, nos declara

Avicena, se afastando da tradição aristotélica, não está na necessidade (ou

contingência) lógica que elas transmitem enquanto objetos cognitivos, mas é

diretamente proporcional ao ato do indivíduo cognoscente de assentir à

informação que se lhe apresenta. O assentimento, conceito central aqui, se

refere ao ato mental de conferir valor de verdade ao objeto conceitualizado de

conhecimento (tasawwur). A certeza stricto sensu é retratada como o grau

máximo de assentimento a uma dada proposição. Avicena parece flertar com o

inatismo quando admite que as proposições de primeiro tipo, as matemáticas,

7 BLACK, D. “Certitude, Justification, and the Principles of Knowledge in Avicenna’s Epistemology”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 120-142.

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são acessadas pela “inteligência natural” (fitra) de modo “inato” (gharîza) e

“imediato” (fi l-hâl). A despeito desses designativos sobre aquelas proposições,

Black esclarece que ele os emprega apenas para designar que “a aquisição delas

requer nada mais do que a concepção de seus termos” (p. 126). Sua atitude de

conectar a força epistêmica com a realidade intrínseca do indivíduo cognoscente,

que detém sua certeza primeira e imediata na autoconsciência (um campo

promissor de estudos), permite render-lhe, segundo Black, o título de

fundacionalista moderado (p. 123), possuindo sugestivas aproximações com Kant

(p. 127).

Vale ressaltar que também os princípios éticos são compreendidos no

enquadrinhamento epistemológico oferecido por nosso autor, e que, portanto,

se o rigor lógico e a investigação empírica a eles não chegam no mesmo teor que

a outras premissas do saber, seu estatuto de verdade não chega senão até onde

o indivíduo consegue assentir. Em outras palavras, proposições como “Mentir é

mau”, ou as ditadas por autoridades religiosas e círculos sociais, por não

poderem ser verificadas seja racionalmente, seja empiricamente, têm a força

dada apenas pelo consenso comunitário ou veiculado pelos instrumentos sociais

de poder. Analisa Black: “O bem e mal dos atos humanos não podem ser

intuídos intelectualmente, mas, antes, o reconhecimento deles é condicionado

pela educação, pelo temperamento individual do agente moral e experiência, e

por várias outras influências sociais. Avicena não vê isso como problemático ou

relativista” (p. 136). Temos aqui uma das poucas reflexões ainda existentes sobre

a ética em Avicena, que neste quesito estava em conflito com os teólogos

mutazilitas, para os quais as noções de bem e mal têm uma realidade em si que

pode ser apreendida intelectualmente pelo homem.

A metafísica (mâ ba‘da al-tabîa) é o tema tratado por Stephen Menn8, que

explora pontos doutrinais face às influências que Avicena recebeu para elaborá-la

enquanto a ciência magna que coroa seu sistema de filosofia. E nenhuma figura se

fez mais importante em seu empreendimento do que al-Farabi, que escreveu

8 MENN, S. “Avicenna’s Metaphysics”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 143-169.

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sobre a finalidade da Metafísica de Aristóteles, sua composição e importância

para as outras ciências em Sobre os Objetivos da Metafísica de Aristóteles. A

tradição peripatética via dificuldade (e se vê ainda hoje) de conciliar os dizeres de

seu mestre segundo os quais a ciência da metafísica estuda o ser enquanto ser e

seus atributos per se (livro gama) com os de que seu tratamento concerne a

Deus, primeiro motor, e às substâncias imateriais separadas (livro lambda). Al-

Farabi engenhosamente concilia ambas as colocações fazendo uma distinção

fundamental na universalidade e imaterialidade dos objetos de que trata essa

disciplina: ela não estuda apenas o conceito mais universal, isto é, existente

enquanto existente, e seus correlatos, mas também investiga o ente mais

universal, causa de todas as coisas, Deus (p. 145). Avicena adota tal reflexão que

concilia nesta ciência universal, respectivamente, o título de “filosofia primeira”

(al-falsafa al-ûla), ignorado pelos primórdios da falsafa com al-Kindi, com o de

“teologia” (al-ilahîyyât). Esse projeto é arquitetado por Avicena com um ponto de

partida, o sujeito (mawdû‘) – o existente enquanto tal –, cuja existência não

precisa ser provada por se tratar de uma verdade elementar alcançada de modo

necessário e imediato pela alma, e um ponto de chegada, o objeto (matlûb) –

Deus –, cuja existência deve ser provada. Diversas noções como as de quididade,

unidade (que recebe importante parcela de atenção por Menn), causalidade,

universais, atributos divinos, profecia e vida futura, delineiam o campo de atuação

dessa ciência.

O ponto em que a metafísica aviceniana mais radicalmente difere da

aristotélica é que para o filósofo árabe (esse é, de fato, um consenso que resulta

da veia neoplatônica da escola de Bagdá) Deus, a causa primeira, não é o

primeiro motor, nem mesmo é motor ou causa de movimento, mas trata-se,

antes, da causa de existência (p. 146). Quanto à noção de existente enquanto

existente, Avicena a esquadrinha com um sofisticado arcabouço metafísico que

importa e dialoga com o que é propriamente encontrado já em terras islâmicas.

A noção de existente é tratada e relacionada com outras noções primeiras como

“coisa” (shây’) e “um” (wâhid). Mais notadamente, é analisando a própria

constituição metafísica do existente que a aclamada distinção entre quididade ou

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essência (mahîyya) e existência (wujûd) tem seu lugar na metafísica aviceniana.

Neste quesito, Menn aponta de modo bem argumentado o débito existente para

com o Livro das Letras (Kitâb al-Hurûf), de al-Farabi, (uma obra crucial que poucos

estudam), e as obras do cristão jacobita Yahya ibn ‘Adi (m. 974). Menn sugere

que há uma correlação entre os conceitos de “existência afirmativa” (al-wujûd al-

ithbâtî) – que é usado por Avicena para expressar a realização ou instanciação da

quididade na alma, enquanto conceito, ou no mundo enquanto ente natural – e

“existência própria” (al-wujûd al-khâss) – que descreve a condição da quididade

por si mesma, desconsiderando qualquer instanciação sua – os quais remontam a

uma distinção feita por al-Farabi na referida obra (pp. 151-3). A existência

“afirmativa” se diferencia, como dito, entre o ser da quididade no mundo

exterior e na alma. Mas Avicena admite na Metafísica V.1 da Cura uma outra

existência da quididade – enquanto tomada em si mesma (e que está relacionada

com a existência própria) – que é a chamada “existência divina” (al-wujûd al-ilâhî).

Esta é uma noção já presente em Yahya ibn ‘Adi, mas que recebe outras

conotações em Avicena, que rejeita a independência ontológica separada das

quididades proposta por Ibn ‘Adi, pressuposto das formas platônicas (pp. 154-5).

Cumpre ainda notar que, contra as formas platônicas, Avicena incrementa sua

“maquinaria metafísica” com raciocínios que serão empregados em sua doutrina

dos universais e em sua argumentação de Deus enquanto existente necessário

(wâjib al-wujûd), a qual Menn sugestivamente aponta como sendo inspirada nas

Quaestiones II.28 de Alexandre de Afrodísia (pp. 158-9, n. 30).

Peter Adamson9 dá sequência à investigação metafísica explorando um de

seus pontos mais elevados, a prova da existência de Deus. De fato, a motivação

de sua contribuição se baseia em uma constatação aguçada: a famosa prova que

conduz à afirmação de um existente necessário, isto é, cuja existência deve

somente a si mesmo sem qualquer apelo exterior, não se constitui na prova de

Deus, pois este inclui atributos que não são imediatamente evidentes na noção

de wâjib al-wujûd, lit. “necessário de existência”. Em outras palavras, como

9 ADAMSON, P. “From the Necessary Existent to God”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 170-189.

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Avicena passa da noção de ser necessário por si para a de um ser que é

incausado, uno, causa primeira, intelecto, bom, generoso? Ele mesmo se mostra

consciente da necessidade de explicar essa investida, pois desenvolve uma

estratégia argumentativa (por ex. na Metafísica da Cura VIII.7) para chegar aos

atributos divinos, reconhecendo que, além da própria necessidade de existência,

e partindo dela, ele pode ser descrito (wasf) por meio de negações e de relações.

Adamson salienta essa estratégia e sugere um modo mais esquemático de

compreendê-la que faz referência a um traço interno e a um traço externo da

divindade (pp. 174-5).

Segundo Adamson, a extração de atributos por meio de negações e

relações é uma estratégia prefigurada na própria noção de existência necessária.

Quando Avicena trata do ser necessário, ele trata de um ente que tem e deve a

si mesmo sua existência ou, em outras palavras, não tem uma causa que o faça

existir (o traço interno). Por sua existência, chegamos então imediatamente a

seu caráter de ser incausado, um atributo negativo que serve de base para outras

negações. Por outro lado, as relações que o necessário de existência possui

remonta a algo outro que si mesmo (o traço externo), e que acaba por ser –

dado que, como Avicena argumenta, não há senão um ser necessário por si

mesmo – seu efeito: o caráter de ser causa se revela, pois, um atributo que serve

de base para outras relações. Adamson, então, expõe como esse esquema opera

na enumeração dos atributos de unicidade (pp. 177-9), simplicidade (179-81),

inefabilidade (pp. 181-2), intelecção (pp. 183-5) e bondade (pp. 185-8), este

último aparentemente o mais distante de ser extraído, mas que está firmemente

ancorado no estatuto de Deus enquanto causa e, portanto, na relação que possui

com seus efeitos. Deus, por portar e ser a própria existência, é a perfeição que,

em vez de contentar-se em retê-la apenas para si, distribui-a, ao criar, a todas a

suas criaturas. Isso situa Deus, para Avicena, “acima da perfeição” (fawqa al-

tamâm). Adamson observa que essa mesma expressão é empregada na pseudo-

Teologia de Aristóteles, mas no filósofo árabe vem acomodar um significado

diferente: o que assinala Deus como causa por excelência, como doador de

existência (p. 187).

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Os três artigos que finalizam a coletânea traçam um painel geral da

fortuna de Avicena nas tradições árabe-islâmica, judia e latina. Robert

Wisnovsky10 assume a tarefa de delinear o campo mais obscuro e complexo de

estudos do nosso autor, trilhando pelo oriente (fora, portanto, do ofuscamento

causado pela ascensão e legado de Averróis na Andaluzia) o caminho desde a

morte de Avicena, atravessando os séculos até a era contemporânea.

Primeiramente, o que fica manifesto é que, no oriente, Avicena foi tomado como

paradigma filosófico reinante, e Aristóteles foi quase que totalmente deixado de

lado, pois o primeiro, além de desenvolver todos os pontos do pensamento

deste, ainda agregava e discutia temas caros à agenda islâmica, como Deus, suas

provas e seus atributos, criação do mundo e profecia. Baseado nisso, a postura

dos filósofos e intelectuais em relação a sua filosofia foi tripla: a de adesão total, a

de aceitação com ajustes e transformações e a de completa rejeição (pp. 193-7).

Wisnovsky pioneiramente explora o primeiro grupo que mostra a ascensão de

um verdadeiro “avicenismo”, que explicava e defendia as ideias de seu mestre.

Acontece que Avicena, por brilhante que tenha sido, não era infalível, de modo

que em certos temas de extrema importância seu pensamento não se mostrava

claro o suficiente ou antes era assomado de inconsistência, já que eram tratados

aparentemente de maneira diferente em obras distintas. Isso fez com que seus

seguidores empreendessem um esforço de conciliar Avicena com ele mesmo –

um esforço similar, alude Wisnovsky, ao que filósofos gregos do período

helenístico fizeram com Aristóteles (pp. 199-202). Com isso visava-se blindar a

filosofia de Avicena contra seus críticos, que não eram poucos. Ainda assim,

entretanto, mesmo o mais destacado dentre eles, al-Ghazali (m. 1111), que

escreveu a Incoerência dos filósofos (Tahâfut al-falâsifa) para mostrar as doutrinas

dos “filósofos” (lê-se, “Avicena”) como racionalmente equivocadas e contrárias à

fé islâmica, absorveu fortemente dos escritos do nosso autor (sua lógica,

psicologia, bem como distinções e conceitos de sua metafísica) e incorporou seu

pensamento na escola sunita, no kalâm e na espiritualidade sufista. Essa

10 WISNOVSKY, R. “Avicenna’s Islamic Reception”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 190-213.

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“influência indireta”, que encontramos também em filosofias tão distintas como

as elaboradas por Suhrawardi (m. 1191) e Ibn ‘Arabi (m. 1240), de orientação

mística-iluminacionista, mostra o duradouro e onipresente impacto de Avicena

(pp. 205-7).

Wisnovsky chama a atenção para a peculiar recepção de Avicena de

acordo com suas obras. Duas se destacam: a Cura e as Indicações, esta, como

dito, a última grande e sistematizadora obra redigida de maneira hermética para

fins didáticos avançados. A despeito da gigantesca diferença entre as duas obras

no que tange a inteligibilidade de leitura e clareza de exposição de doutrina, as

Indicações ocuparam acentuadamente o cenário nos comentários sobre a filosofia

aviceniana por mais de cinco séculos após a sua morte, enquanto a Cura passou a

preponderar do século XVI ao XIX (uma lista dos comentadores é oferecida na

página 191). A opção dos pensadores posteriores se torna ainda mais curiosa

pelo fato de a maioria das obras sistematizadores de Avicena serem escritas de

modo claro, antecipando ou sumarizando a Cura (Kitâb al-Shifâ’), como o Livro da

Salvação (Kitâb al-Najât) e os Elementos de filosofia (‘Uyûn al-hikma), entre outras.

A razão disso, analisa Wisnovsky, é que, no que se refere às Indicações, “seu

estilo compresso e opaco de composição permitiu aos comentadores provocar

implicações filosóficas do modo que eles queriam, ao contrário das mais

explícitas articulações na Najât e na ‘Uyûn al-hikma, que resistiam à interpretação

criativa. Isso deu a eles uma liberdade interpretativa que não teriam tido com a

Najât e a ‘Uyûn al-hikma, e, a fortiori, com a Shifâ” (p. 198). De fato, o grupo dos

avicenianos e o dos que extraíram seus pensamentos a partir de embates

teóricos com o filósofo persa mantinham em contínua atividade o ambiente

intelectual islâmico após o século XII segundo uma agenda exegética que acabou

perdendo força apenas a partir do século XVI, embora tenha seguido atuante. O

esfacelamento do império – sobretudo com a onda xiita no Irã relacionada à

dinastia safávida, e a consequente expulsão dos pensadores sunitas que tanto

beberam do saber aviceniano – enfraqueceu esse movimento, o que foi

alimentado por uma revisão do currículo de ensino nas madrasas (escolas

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sunitas) em todo o mundo islâmico segundo uma orientação mais religiosa (pp.

209-11).

Gad Freudenthal e Mauro Zonta11 qualificam a recepção de Avicena entre

os filósofos e cientistas judeus de um under-appreciated enigma (p. 214) e

procuram minimizar isso com sua contribuição. Cumpre dizer, antes de tudo,

que entre os judeus há uma peculiaridade extra ao fato de que, como no caso

dos muçulmanos, haver uma extensão geográfica do oriente (Oriente Médio) ao

ocidente (Andaluzia): eles redigiram filosofia tanto no idioma árabe quanto no

hebraico. Portanto, a pergunta sobre quais ideias e doutrinas foram conhecidas

diretamente de Avicena pelos judeus é diferente da questão sobre quais de suas

obras foram traduzidas do árabe para o hebraico.

Do lado árabe, Moisés Maimônides foi a figura principal do pensamento

medieval judeu, além de ter sido médico. Ele declara conhecer Avicena em sua

mais importante obra, o Guia dos Perplexos, e mesmo estimá-lo (p. 216). Esse

apreço é justificado por seu débito em temas como teologia negativa, distinção

entre essência e existência e profetologia, uma constatação feita pelo estudioso

Sholomo Pines e aderida pela comunidade (p. 217). Entretanto, o “enigma”

começa a se mostrar quando se tenta rastrear que escritos exatos o filósofo

judeu conhecia e que tipo de contato foi esse. Além de não informar isso com

clareza, Maimônides não raro conflui os nomes de Aristóteles e Avicena,

atribuindo teses caras deste – como a noção de “existente necessário” – ao

Estagirita. Entretanto, como é bem documentado, um texto basilar que tinha

nesta época uma forte circulação no meio andaluz parece oferecer as pistas: são

as Intenções dos filósofos (Maqâsid al-falâsifa), de al-Ghazali, que não deve ser

confundido com sua Incoerência dos filósofos. Nas Intenções, al-Ghazali sumariza as

principais doutrinas dos “filósofos” (lê-se, “Avicena”), para, em seguida, refutá-las

em sua Incoerência. Esse prelúdio teve sua fortuna como um excelente manual de

exposição do pensamento filosófico em vigor. E Maimônides, testemunho desse

11 FREUDENTHAL, G., ZONTA, M. “The Reception of Avicenna in Jewish Cultures, East and West”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 214-241.

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livro, sem reputar sua verdadeira procedência, atribuiu as ideias filosóficas aí

contidas diretamente a Avicena. Essa é uma leitura bem acolhida pelos

pesquisadores acadêmicos, mas Freudenthal e Zonta avançam uma sugestão do

porquê de o nome de Aristóteles ser pronunciado pelo pensador judeu neste

contexto: “na Andaluzia, Aristóteles continuou a ser visto como o líder e a fonte

principal do modo filosófico de pensamento. Maimônides (e seu meio) pode ter

associado as doutrinas encontradas na Maqâsid com o nome emblemático de

Aristóteles. Similarmente, quando Maimônides passa a julgar a filosofia de

Avicena, sem dizer qual, se qualquer, obra ele tinha em mente, ele pode

simplesmente estar expressando uma das mashhurât – ideias geralmente aceitas –

correntes e aceitas em seu meio cultural geral andaluz” (pp. 218-9). Al-Ghazali,

assim, desempenha um papel crucial na difusão do pensamento de Avicena, um

papel (até onde se consegue visualizar no estado corrente de pesquisas) mais

importante que o do próprio Avicena, de cujas obras filosóficas não se sabe se, e

ao certo quais, estiveram no painel intelectual judeu (p. 223).

Isso não impediu o nosso autor de ter tido declarados aderentes que dão

pistas de um contato direto: cumpre citar em especial Abraham Ibn Da’ud (este,

com toda probabilidade, o tradutor de Toledo de nome Avendauth, m. 1180) e

Moses ha-Levi (m. séc. XIII), que mostram ter uma familiaridade com a Salvação

(pp. 221-2). Do lado oriental, a evidência é patente: Ibn Kammuna (m. 1284),

nascido no Iraque, poderia ser chamado de aviceniano e, de fato, como era

costume intelectual corrente nessas terras, também escreveu um comentário às

Indicações (pp. 219-20). Ao todo, porém, o acesso a Avicena é difuso e tem um

quadro difícil de determinar pelo fragmentado e pouco confiável conjunto de

menções não-contextualizadas, o mesmo ocorrendo, no meio judeu arabófono,

com o Cânon de Medicina.

Do lado hebraico da filosofia judaica temos inicialmente um acesso ainda

mais mediatizado a Avicena. Não apenas al-Ghazali, com suas Intenções,

extensamente difundidas em hebraico, mas outra personagem ocupava o centro

da filosofia entre os judeus: Averróis. Seus escritos tiveram um profundo

impacto entre os intelectuais da Andaluzia e, como consequência, suas epítomes

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e grandes comentários foram traduzidos para servir de ponte ao pensamento de

Aristóteles. De fato, nas epítomes, o jovem Averróis tinha sua ótica exegética

em muito inspirada por Avicena. Ademais, e em contrapartida, não apenas suas

ideias revistas em seus grandes comentários tardios, mas também seu

“aristotelismo” antiaviceniano concentrado na Incoerência da Incoerência (Tahâfut

al-tahâfut) (resposta à Incoerência dos filósofos, de al-Ghazali) foi conhecido em

hebraico (pp. 226-7). Assim, embora Avicena tenha sido ofuscado pela tradução

de obras mais condizentes com o ambiente geográfico e intelectual, seu nome foi

bastante pronunciado em hebraico, ainda que de maneira indireta. Uma dose de

contrabalanço a essa onda de Avicena malgré lui, destacam Freudenthal e Zonta,

foi dada por Shem Tov Ibn Falaqera (m. 1195), que, em sua erudição, tinha certa

preocupação de retornar a fontes e assim o faz quando realça o débito de

Maimônides ao filósofo de Bukhara (pp. 232-4). A medicina, porém, não teve o

mesmo destino, pois seu Cânon de Medicina, embora traduzido tardiamente (séc.

XIII), foi lido em hebraico em mais de 150 manuscritos parciais e completos, o

que ocorreu devido ao florescimento das universidades europeias e

intelectualidade latina. Nesta época, ironicamente, ficava claro que o Avicena

árabe para os judeus já estava distante, pois o Cânon de Medicina, “a obra

hebraica de ciência mais bem disseminada”, foi traduzido do latim (pp. 236-7).

Ao contrário do que acontece com os meios islâmico e judaico, a

recepção de Avicena na tradição filosófica latina com o movimento de tradução

iniciado em meados do século XII em Todelo tem sido um campo mais

privilegiado de atenção. Porém, visto que a quantidade de publicações sobre a

influência aviceniana nos latinos é desproporcional com o que de fato se sabe e

se tem de fonte primária crítica publicada, Amos Bertolacci12 nos traz uma

pertinente avaliação na primeira parte de seu artigo. É bem reconhecido que a

Cura de Avicena foi traduzida na Espanha em sua maior parte (lógica, física,

metafísica; com exceção, portanto, da parte matemática) assim como o Cânon de

12 BERTOLACCI, A. “The Reception of Avicenna in Latin Medieval Culture”. In: ADAMSON, P. (ed.) Interpreting Avicenna: Critical Essays. New York: Cambridge University Press, 2013, pp. 242-269.

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Medicina. O fato de a comunidade acadêmica começar a ter acesso a edições

críticas dessas traduções apenas a partir da década de 1960 (com o projeto

Avicenna Latinus, coordenado por Simone Van Riet) não impediu que rótulos

generalizantes pouco fundados para classificar tendências ou pontos doutrinais –

como o de “agostinismo avicenizante”, para citar apenas a renomada expressão

de Étienne Gilson – viessem à tona (pp. 243-4). Do que está disponível do

Avicena latino, muito há ainda por ser publicado – a lógica ainda é matéria

totalmente ignorada – para que seja possível uma compreensão abrangente e

completa do tema da influência, e a fim de que evitemos a abordagem até aqui

desnivelada e, por extensão, potencialmente enviesada de estudos (a área da

psicologia recebe a maior fatia) (p. 248). Efeito grave disso é a lacuna

historiográfica existente entre o final do século XII e início do século XIII com os

primeiros contatos com a obra aviceniana – antes de figuras como Guilherme de

Auvergne (m. 1249) e Alberto Magno (m 1280) –, a começar por escritos

filosóficos de um de seus eminentes tradutores, Domingo Gundisalvo (m. 1190),

período que só agora começa timidamente a ser investigado (pp. 249-50).

Dado o status quaestionis da pesquisa sobre a influência de Avicena,

Bertolacci, na segunda parte, nos oferece a agenda para a qual a comunidade

deve atentar na busca de um diagnóstico e narração acurados. A orientação

ideológica por trás do Avicena latino deve ser precisamente considerada para

uma justa avaliação da questão. Bertolacci nos oferece exemplos preciosos

focando na metafísica. Quanto à tradução, ocorre que na Prima Philosophia (título

vertido da Metafísica da Cura) o rico extrato de vocábulos que Avicena emprega

para designar a existência como concomitante necessário (lazim) da essência é

quase que sumariamente expresso pelo único verbo accidere. Acontece que essa

escolha (proposital ou não), que dá seguimento às críticas difundidas de al-

Ghazali e Averróis contra a teoria da distinção entre a essência e a existência,

ajudou a difundir que, para o filósofo persa, a relação da existência para com a

essência é de natureza acidental (pp. 256-8). Ademais, há um claro propósito

“desislamizador” na concepção da Prima Philosophia, visto que parte do livro X,

onde um vasto uso de vocabulário islâmico é feito para descrever a filosofia

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prática, é suprimido pelo tradutor (p. 259). De modo abrangente, a orientação

ideológica afeta a visão sobre o papel de Avicena no painel filosófico corrente.

Ao contrário do que ocorre na fortuna pós-aviceniana no oriente islâmico, no

mundo latino, Aristóteles era o expoente maior, mas se fazia necessário

encontrar outros materiais que esclarecessem seu pensamento. Segundo

Bertolacci, a escolha da Cura para ser traduzida, pela sua estrutura esquemática e

fama de síntese peripatética, ocorreu porque ela atendia a esse propósito. Essa

missão, entretanto, será transferida aos longos comentários de Averróis, que se

tornaram bastante influentes. Essa transmissão da autoridade exegética fez a

recepção de Avicena nos primórdios da filosofia na Europa pós-Averróis ser

realizada em fases (pp. 260-1). Ademais, a figura de al-Ghazali, que foi tomado

como “discípulo” de Avicena por ter sido conhecido somente por suas Intenções,

desempenhou um papel considerável na difusão do nosso autor (pp. 264-6). O

interessantíssimo embate entre Avicena e Averróis no mundo latino é ainda

explorado por Bertolacci como tendo despertado diferentes reações com

respeito ao pensamento do filósofo persa nos séculos XIII e XIV, isso depois de

já ter havido, quando as obras do árabe andaluz ainda estavam se tornando

familiares, uma audaciosa tentativa de harmonização dos dois empreendida por

Alberto Magno (pp. 266-8).

A imponente grandeza e o valor de Avicena na história das ideias são

muito bem representados no conjunto editado por Peter Adamson. Cumpre

frisar que tão importante quanto a exposição clara e rigorosa do que se sabe

dele, a apresentação daquilo que não se sabe – sobretudo no que tange à

recepção posterior de seu pensamento e à parcimônia por parte dos intérpretes

em suas conclusões – é uma marca que transforma o título editado por Peter

Adamson em um confiável guia de estudo e pesquisa.