Allan Kaprow Como Fazer Um Happening

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1 Transcrição e tradução de Lado a e Lado B de LP How to Make a Happening? Gravado por Allan Kaprow em 1966 Tradução: Carolina Nóbrega Como fazer um Happening (Acontecimento)? Lado A Essa é uma aula de como fazer um happening. O jogo tem onze regras. 1. Esqueça todas as formas de arte convencionais. Não pinte quadros, não faça poesia, não construa arquitetura, não produza danças, não escreva peças, não componha músicas, não faça filmes, e sobretudo, não pense que você conseguirá um happening ao misturar tudo isso. Essa idéia não é nada além do que a ópera sempre fez e do que você pode ver hoje em dia em toda sorte de discotecas com suas luzes que piscam e projeções de cinema. O objetivo é fazer algo novo, algo que não se assemelhe, nem remotamente, à cultura. Você tem que ser bastante radical em relação à isso, removendo de seus planos os ecos desta ou daquela história, ou peça de jazz, ou quadro, que, eu prometo a você, continuarão a aparecer para você inconscientemente. 2. Você conseguirá se manter livre da arte ao misturar seu happening com situações da vida. Torne incerto até para você se o happening é vida ou arte. A arte sempre foi diferente dos assuntos do mundo. Agora você tem que trabalhar muito para manter tudo esfumaçado. Dois carros colidem em uma estrada. Um liquido violeta escorre do radiador quebrado de um deles, e no banco preto do outro há uma quantidade enorme de frangos mortos espalhados por todo o chão. Os policiais conferem a cena, respostas plausíveis são encontradas, caminhões rebocam os destroços, gastos são pagos, e os motoristas vão para casa jantar. 3. As situações para um happening devem vir daquilo que você vê no mundo real, de lugares e pessoas reais, mais do que da sua cabeça. Se você ficar muito preso à imaginação, você vai terminar fazendo arte velha de novo, já que sempre se supôs que a arte vinha da imaginação. Tome vantagem de eventos ready-made (já prontos): um incêndio em uma fábrica, sirenes gritando por todos os lados, a água, as barricadas policiais, as luzes vermelhas – uma cena natural. Ou, depois de uma tempestade na costa, escombros encharcados tendem a ser incríveis. Ou, tire uma tarde de folga e apenas observe mulheres experimentando roupas num bazar. Muita coisa pode ser feita com imagens como essas. Se você ficar bloqueado, sem idéias, uma saída para idéias fatia-de-vida vem do melhor livro de consulta de nossos tempos, as páginas amarelas da lista telefônica. Abra o livro aleatoriamente, coloque seu dedo em qualquer ponto da página e você se verá diante de: serviços de detetive particular, limpeza de carpete a domicílio, blocos de cimento, translado de limusine ao aeroporto, aulas de judô. Você pode conseguir mais coisas a partir disso do que do Beethoven, do Michelangelo e do Racine juntos. 4. Quebre seus espaços. O teatro tradicionalmente usa apenas um único espaço de encenação. Experimente gradualmente ampliar a distancia entre seus eventos; primeiro em vários pontos de uma avenida movimentada,

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Transcrição e tradução de Lado a e Lado B de LP How to Make a Happening? Gravado por Allan Kaprow em 1966

Tradução: Carolina Nóbrega

Como fazer um Happening (Acontecimento)? Lado A Essa é uma aula de como fazer um happening. O jogo tem onze regras.

1. Esqueça todas as formas de arte convencionais. Não pinte quadros, não faça poesia, não construa arquitetura, não produza danças, não escreva peças, não componha músicas, não faça filmes, e sobretudo, não pense que você conseguirá um happening ao misturar tudo isso. Essa idéia não é nada além do que a ópera sempre fez e do que você pode ver hoje em dia em toda sorte de discotecas com suas luzes que piscam e projeções de cinema. O objetivo é fazer algo novo, algo que não se assemelhe, nem remotamente, à cultura. Você tem que ser bastante radical em relação à isso, removendo de seus planos os ecos desta ou daquela história, ou peça de jazz, ou quadro, que, eu prometo a você, continuarão a aparecer para você inconscientemente. 2. Você conseguirá se manter livre da arte ao misturar seu happening com situações da vida. Torne incerto até para você se o happening é vida ou arte. A arte sempre foi diferente dos assuntos do mundo. Agora você tem que trabalhar muito para manter tudo esfumaçado. Dois carros colidem em uma estrada. Um liquido violeta escorre do radiador quebrado de um deles, e no banco preto do outro há uma quantidade enorme de frangos mortos espalhados por todo o chão. Os policiais conferem a cena, respostas plausíveis são encontradas, caminhões rebocam os destroços, gastos são pagos, e os motoristas vão para casa jantar. 3. As situações para um happening devem vir daquilo que você vê no mundo real, de lugares e pessoas reais, mais do que da sua cabeça. Se você ficar muito preso à imaginação, você vai terminar fazendo arte velha de novo, já que sempre se supôs que a arte vinha da imaginação. Tome vantagem de eventos ready-made (já prontos): um incêndio em uma fábrica, sirenes gritando por todos os lados, a água, as barricadas policiais, as luzes vermelhas – uma cena natural. Ou, depois de uma tempestade na costa, escombros encharcados tendem a ser incríveis. Ou, tire uma tarde de folga e apenas observe mulheres experimentando roupas num bazar. Muita coisa pode ser feita com imagens como essas. Se você ficar bloqueado, sem idéias, uma saída para idéias fatia-de-vida vem do melhor livro de consulta de nossos tempos, as páginas amarelas da lista telefônica. Abra o livro aleatoriamente, coloque seu dedo em qualquer ponto da página e você se verá diante de: serviços de detetive particular, limpeza de carpete a domicílio, blocos de cimento, translado de limusine ao aeroporto, aulas de judô. Você pode conseguir mais coisas a partir disso do que do Beethoven, do Michelangelo e do Racine juntos. 4. Quebre seus espaços. O teatro tradicionalmente usa apenas um único espaço de encenação. Experimente gradualmente ampliar a distancia entre seus eventos; primeiro em vários pontos de uma avenida movimentada,

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depois em diversos quartos e andares de um prédio onde a maior parte das coisas acontecem sem contato umas com as outras, depois em ruas diferentes, depois em cidades diferentes, mas próximas, e finalmente pelo mundo todo. Alguns desses eventos podem acontecer viajando de um lugar a outro, através do transporte público ou do correio. Você não tem que estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Você não tem sequer que estar em lugar algum. Os lugares em que você está são tão bons quanto os lugares que outros estão. 5. Quebre com seu tempo e deixe ser o tempo real. O tempo real é encontrado quando coisas estão acontecendo em lugares reais. Isso não tem nada a ver com o tempo singular, o tempo unificado de peças encenadas ou da música. Tem ainda menos a ver com desacelerar ou acelerar ações porque você quer fazer algo expressivo ou quer trabalhar com composição. O que quer que aconteça deve acontecer em seu tempo natural. Suponhamos que você considere quanto tempo levaria para comprar uma vara de pescar em uma loja de departamentos em véspera de natal, ou quanto tempo levaria para criar os alicerces de uma casa. Se um grupo quisesse fazer a ambos em um happening, um deles teria que esperar até que o outro terminasse. Talvez se chovesse, isso decidiria qual terminaria primeiro. Claro, os dois grupos poderiam combinar de realizar as duas ações no mesmo tempo, se fosse o desejado. Mas não é realmente necessário, exceto quando pessoas vindas de diferentes lugares tem que pegar o mesmo trem. Afinal, porque não deixar que a quantidade de tempo que você leva para fazer algo dependa daquilo que é prático e conveniente para as ações envolvidas no happening? Você pode gastar um tempo absurdo tentando coordenar coisas. 6. Organize todos os eventos do happening com praticidade e não “artisticidade”; evite a forma do soneto, a multiplicidade cubista, a simetria dinâmica, a proporção áurea, a técnica dos doze tons, desenvolvimento por tema e variação, progressões lógicas ou matemáticas, e por aí em diante. Se uma galinha cacareja, cisca, bica e põe ovos, aproveite que aí já há forma suficiente. Por causa de como o cérebro é feito, a natureza nunca parecerá disforme, então porque se preocupar? Apenas capture as coisas como elas aparecem, e as organize da forma menos artificial e mais fácil. Uma garota estava lendo no metrô até que, como se ela estivesse esperando por isso, um cabeleireiro se levanta de outro assento, desempacota seu equipamento e passa a próxima hora embelezando-a, calmamente, como se estivessem em um salão. Um monte de pessoas todas cobertas com algo pegajoso estão deitadas perfeitamente imóveis através de um grande pátio. Um vento amarelo bate e folhas vermelhas caem sobre elas até que fiquem inteiramente cobertas. Um caminhão carregado com jornal picado vem e descarta sua carga. Quinze ou mais carros, na estrada de Long Island, seguem com suas luzes acesas como num funeral. Aqui e ali, nuvens carregadas de filme plástico fino se vêem por suas janelas. Eles escondem esse material rapidamente cada vez que ele aparece. Ora, suponhamos, essas três situações compõem o seu happening? A parte do metrô seria realizada mais facilmente, digamos, as 4 da manhã, quando o metrô está bem vazio. Você pode contar com muitas folhas caindo das árvores ao final de outubro, quando ainda está quente para deitar no chão. E a procissão de carros poderia ser feita em qualquer dia, desde que todos pudessem ter um carro a disposição no momento. A opção por alternar contrastes como noite-dia, ação-noturna ou ação-silenciosa, podem levá-lo a organizar esses três

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eventos na ordem, carros/metrô/folhas. Mas isso pode ser inconveniente, então organize essas ações da maneira que for melhor para seus participantes, com intervalos de uma semana entre uma e outra, se for necessário. Algumas surpresas devem ocorrer se você esquecer todas as aulas de composição que teve. Eu me lembrei que uma vez eu fui recompensado por ser flexível. Um grupo de pessoas deveria ir a um restaurante por quilo lotado almoçar. Ao sinal, eles deveriam puxar o prato para fora da mesa, deixá-lo quebrar e ir embora rapidamente. A ordem dos eventos teve que ser trocada por outra. Quando ele ocorreu, no mesmo momento, um garçom derrubou um monte de pratos no chão. A ação não poderia ter sido mais planejada do que isso, entretanto não foi planejada de maneira alguma. 7. Como agora você está no mundo e não na arte, jogue o jogo através de regras reais. Decida quando e onde um happening é apropriado. Se sua imagem pede pelo vice-presidente e presidente da Chase-Manhattan sentados em seu maior cofre, jogando moedas ao chão como bebês, e você não consegue convencê-los a fazer isso, então esquece isso e vai fazer outra coisa. Se você precisa cortar umas ripas, por causa do choro de motosserras e de árvores quebrando, encontre um cara que precise de fato de umas madeiras finas. Se você quer uma escavadeira para mastigar o chão, descubra onde algum empreendimento está acontecendo e tente incluir o happening como parte do trabalho regular do motorista. Você economizará centenas de dólares e pode aprender algo sobre terraplanagem. Se você quer trabalhar com crianças, descubra o que elas realmente podem e gostam de fazer ao invés de oferecer para elas algo chique que você gostaria de fazer mas não faria. Deixe que elas construam algo a partir de pilhas de lixo, pintem carros abandonados num ferro velho, cavem um buraco enorme na praia. Se você quer que todos os seus participantes comecem pelados, nadando, fazendo amor ou sabe-se lá o que, há horários e muitos lugares onde isso não levantaria nenhuma poeira. Por outro lado, se você gosta de ser pego por policiais, você deveria pensar em incluir a prisão no happening. 8. Trabalhe junto ao poder ao seu redor, não contra ele. Isso facilita muito as coisas, se você está interessado em fazê-las de fato acontecer. Quando você precisa de autorização oficial, consiga-a. Você pode usar ajuda policial, do prefeito, do reitor universitário, da câmera de comércio, de uma empresa, dos ricos e de todos os seus vizinhos. Seja seu próprio relações-públicas; convença-os de que o que você está fazendo é válido por que é um jogo prazeroso, assim como pra eles é prazeroso pescar. Isso não acontecerá num piscar de olhos, é claro, mas é possível de convencê-los, e uma vez ao seu lado, você pode ir quase à lua. 9. Quando você já tem o aval, não ensaie o happening. Isso o desnaturalizará, pois gerará a idéia de uma boa performance, ou seja, “arte”. Não há nada a ser aprimorado em um happening, você não precisa ser um performer profissional. É melhor quando não há nenhum vestígio de arte. Se o happening não funcionar, faça outro. Nunca é necessário ensaiar situações como criar seu caminho comendo num cômodo cheio de comida, derrubar uma casa velha, jogar cartas de amor em um campo e assistir a chuva desfazer sua tinta, dirigir um monte de carros em direções diferentes até que fiquem sem combustível. Não são ações a se tornarem perfeitas.

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10. Faça o happening apenas uma vez. Repeti-lo o envelhece, lembra o teatro, e provoca o mesmo efeito de um ensaio: te força a pensar que há algo a ser melhorado. A maior parte das vezes será impossível repeti-lo de qualquer forma – imagine a tentativa de copiar antigas cartas de amor, de forma a ver a chuva lavar os pensamentos ternos. Por que se preocupar? 11. Desista de toda a idéia de armar um show para o público. Um happening não é um show. Deixe os shows para as pessoas teatro e discotecas. Um happening é um jogo elevado, um ritual que nenhuma igreja aceitaria, por não promover nenhuma religião. Um happening é para aqueles que happen (acontecem) nesse mundo e não para quem quer se apartar e apenas olhar. Se você happen (acontece), você não pode estar de fora espiando. Você tem que estar fisicamente envolvido. Sem público você ganha mobilidade, usando qualquer tipo de ambiente, misturando-se ao mundo dos supermercados, nunca se preocupando no que aquelas pessoas sentadas estão pensando, e você pode semear suas ações por todo o mundo, quando quiser. A arte tradicional é como a educação universitária e as drogas: alimentam pessoas que precisam sentar suas bundas por cada vez mais tempo, para conseguir concluir que há muita coisa acontecendo fora dali, conclusão essa que as pessoas inteligentes conseguem ter apenas ao pensar. Mas os happeners tem um plano e o levam a cabo. Para usar uma expressão antiga, eles não apenas cavam espaço para que algo aconteça, eles acontecem.

Lado B Agora, que tal alguns exemplos de happenings? A impressão que a maioria das pessoas tem é de que eles são eventos que se derramam num dilúvio insano e selvagem, algo como:

Todo mundo está numa estação de trem. Está quente. Há uma série de caixas grandes dispostas por todo o salão. Uma a uma elas começam a se mover, deslizando e cambaleando bêbadas em todas as direções, investindo contra os trabalhadores e umas contra as outras, acompanhadas por um alto som de respiração que vem do sistema de som da estação. Agora é inverno e está frio e escuro, e em todo o lugar luzes azuis acendem e apagam em velocidades próprias enquanto três grandes construções feitas de saco de juta carregam uma enorme pilha de gelo e pedras, gerando solavancos nos quais perdem a maior parte de sua carga, enquanto isso, cobertores caem continuamente do teto por cima de tudo. Uma centena de barris de ferro e galões de vinho de vidro pendurados em cordas balançam para frente e para trás, colidem como sinos de igreja e espalham vidro por todo o lado. De repente, coisas molengas saltam do chão, pintores as arremessam em cortinas, onde elas escorrem criando desenhos. Uma parede de árvores amarradas por trapos coloridos avança contra uma multidão, dispersando a todos, forçando-os a ir embora. Continua-se incessantemente a comer, comer e vomitar e comer e vomitar, num amarelo impecável. Existem cabines telefônicas muçulmanas com gravadores ou microfones que conectam quem entra nas cabines uns com os outros. Tossindo, você respira gases nocivos com cheiro de hospital e suco de limão. Uma garota pelada corre até uma piscina olímpica de um farol e joga água dentro dela. Slides e filmes em movimento são projetados em paredes e pessoas apressadas, eles ilustram hambúrgueres, hambúrgueres grandes, gigantescos, vermelhos, magros, achatados e por aí em diante. Você empurra coisas por todo o lado,

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como caixas transportadoras, sussurrando palavras rudimentares, “Gu-gu-da-da, Ba-nhe-ro, amável, amável, me ame”. Telas refletem sombras vibrantes, serras elétricas e cortadores de grama rangem como o metro na Union Square. Chocalhos de lata de tinta, trapos encharcados de suco e você se erguem para gritar perguntas para garotos de sapatos brilhantes e velhinhas. Longos silêncios em que nada acontece quando – bang – lá esta você frente a frente consigo mesmo num espelho no qual está preso. Ouça, uma tosse no beco. Você ri, fala despreocupadamente com alguém enquanto come sanduíches de geléia de morango. Ventiladores elétricos ligados sopram brisas com cheiro de carro novo que passam por seu nariz enquanto folhas enterram pilhas de uma bagunça, chorosa que arrota e é completamente cor-de-rosa.

Na verdade, os happenings são muito menos complicados, neles, há uma intensa troca entre o ambiente e os participantes. Um programa típico se leria assim:

Mulher pelada come enormes tigelas de sucrilhos com leite em cima de uma montanha de pneus usados. Crianças descarregam barris de cal sobre a montanha. A cem metros de distância, em piscinas de plástico coloridas e brilhantes, nadadores homens e mulheres saltam continuamente para fora da água para pegar com a boca discos emborrachados decorados por life-saver candies1, que estão pendurados em correntes de cintos masculinos. A montanha é demolida pneu por pneu, os pneus são jogados nas piscinas, derramando água para fora. Com os cintos, as crianças amarram todos adultos juntos, elas derramam o cal sobre essa pilha de corpos imobilizados. Então elas afivelam dúzias de novos cintos sobre seus pescoços, cinturas e pernas. Elas levam as life-saver candies que restaram a uma fábrica de pneus novos e as oferecem em promoção em alto e bom tom.

Um programa não é nada alem de uma pequena lista de situações ou imagens anotadas em algumas folhas de papel. Algumas vezes elas tem algumas anotações anexadas ao final. Esses programas são enviados para um grupo de pessoas que podem estar interessados em participar. Com aqueles que comparecem a uma reunião de discussão dos detalhes práticos para a realização do happening, decide-se o que cada um irá fazer e quando. Depois, o quanto antes, a proposta é posta em ato. Eu gostaria de ler três programas agora, mas antes de fazê-lo, é importante lembrar que o que eu leio é apenas literatura e não os happenings em si mesmos. Sabão 1a manhã: roupas urinadas 1a noite: roupas lavadas (no mar) (na lavanderia) 2a manhã: carros sujados com geléia numa rua movimentada carros lavados (num estacionamento)

1 Bala norte-americana colorida em forma de uma bóia de salva-vidas.

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(num lava-rápido) 2a noite: corpos sujos com geléia corpos enterrados na areia a beira-mar corpos limpados pela maré As notas para “Sabão” se lêem como se segue: 1a manhã e 1a noite:

Cada pessoa deve manchar uma peça de roupa pessoal privativamente. Isso é essencial, pois refere-se a experiência real que se têm na infância. Nesse ato a pessoa integra sua própria água com a água do mar ou da lavanderia, fazendo com que o ato de limpeza seja inevitavelmente pessoal.

2a manhã:

Os carros devem ser completa e metodologicamente cobertos de geléia à vista dos passantes. A lavagem deve ser feita com o mesmo esmero. Se um lava-carros comercial é usado, deve-se fazer a ação como se nada estivesse fora do comum. Qualquer questão perguntada deve ser respondida da forma mais indiferente possível.

2a noite:

É melhor que seja um trecho vazio da praia. Tanto casais quanto pessoas sozinhas podem performar esse ato. Não deve haver longas distancias entre cada indivíduo ou casal. No caso dos casais, uma pessoa cobre o parceiro (que está preferencialmente nu) com geléia, cava um buraco para ele (ou ela), a cobre de areia até o pescoço, senta e assiste silenciosamente a maré limpar completamente seu parceiro. Depois vão embora.

O próximo happening é: Ligando

Na cidade, pessoas permanecem em pé em esquinas de ruas e esperam. Para cada uma delas um carro freia, de dentro alguém chama seu nome, a pessoa entra, o carro vai embora. Durante a viagem, a pessoa é embrulhada em papel alumínio. O carro é estacionado num canto qualquer, e lá é deixado, trancado, com a pessoa prateada e imóvel sentada no banco de trás. Alguém destranca o carro e o leva embora. O papel é removido da pessoa, que é embrulhada em algodão cru ou amarrada dentro de um saco de roupa suja. O carro para. A pessoa é jogada numa garagem pública e o carro vai embora. Na garagem, um carro a espera dá a partida. A pessoa é pega do pavimento, transportada ao carro e levada a cabine de informações da estação central de trem. A pessoa joga a outra na cabine e vai embora. A pessoa deixada chama por nomes e houve o chamado de outras pessoas que também chamam. Elas chamam por um bom tempo. Elas se livram de sua embalagem e deixam a estação. Elas telefonam para certos números. O telefone toca e

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toca, finalmente é atendido, então a pessoa chama por um nome, e imediatamente quem havia atendido desliga. Na mata, pessoas chamam por nomes e escutam palavras escondidas. Aqui e ali surgem pessoas penduradas em cordas de ponta-cabeça. Elas rasgam e arrancam as roupas dessas pessoas e vão embora. As figuras peladas chamam umas pelas outras na floresta por um longo período até se cansarem. Silêncio.

As notas para “Calling” (Ligando) se lêem como se segue:

1. Os lugares para além da estação de trem devem ser decididos pouco antes da performance. 2. A performance deve ocorrer preferencialmente em dois dias, o primeiro na cidade e o segundo no campo. 3. Ao menos vinte-e-uma pessoas são necessárias para performar esse happening propriamente. Para esse número, requerem-se seis carros. Assim, haverão três pessoas esperando nas esquinas das ruas, um carro protagonista contendo três pessoas, incluindo o motorista para pegar a cada um, e um numero equivalente de carros coadjuvantes, também ocupados por três pessoas, que carregarão as pessoas embrulhadas para a estação ferroviária. Mas o numero básico de participantes pode ser multiplicado proporcionalmente, de acordo com o tamanho de grupo desejado. 4. Os nomes usados ao longo da ação devem ser os nomes dos envolvidos. 5. Os embrulhos de papel e algodão cru devem ser aplicados da maneira mais cuidadosa possível, cobrindo todo o rosto, deixando apenas um buraco para a respiração. 6. Os carros coadjuvantes devem estar estacionados numa garagem previamente escolhida, estacionados em vagas bem distantes umas das outras. Os motoristas então seguem para partes da cidade onde os carros protagonistas estarão estacionados a poucos metros de distância. Lá, os dois motoristas trocam as chaves dos carros, o trio coadjuvante corre para as vagas nas garagens onde estavam anteriormente e esperam pela chegada dos pacotes humanos. Os últimos, é claro, serão trazidos pelo trio coadjuvante. O tempo desta e de todas as outras cenas do evento deve ocorrer com exatidão. 7. Depois de depositarem os pacotes nas garagens, os carros devem seguir para as casas de seus motoristas, onde as ligações telefônicas serão recebidas. 8. Depois dos pacotes humanos se desembrulharem na cabine de informações, as ligações devem ser feitas para os motoristas dos carros anteriormente mencionados, a partir de cabines públicas. O telefone pode tocar cinquenta vezes antes de ser atendido. O que atende diz apenas, “Sim?”, o que liga pergunta se ele é X, que é o nome correto de quem atendeu, X silenciosamente desliga. 9. As pessoas penduradas por cordas na mata são aquelas que dirigiram e acompanharam os carros no dia anterior. Aqui, ocorre uma inversão de papéis, que é sublinhada pela posição invertida daqueles que foram

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pendurados, uma vez que as pessoas que antes foram os pacotes, assumem aqui o papel ativo. As pessoas dos carros podem decidir se querem ou não ser amarradas, mas não deve haver menos de cinco corpos suspensos. Havendo um total de, digamos, dezoito pendurados, os outros devem sentar-se imóveis entre cada corda e responder aos chamados por nomes. Quando as pessoas pacote chamam a distância, a resposta é simplesmente, “Aqui. Aqui”, até cada corpo ser encontrado e violado. 10. As pessoas pacote chegando na mata chamam os nomes das pessoas carro escondidas numa região ampla, por entre as árvores. Movendo-se como um grupo, as pessoas pacote seguem o som das vozes para alcançar cada pessoa pendurada. Suas roupas são rapidamente cortadas e antes que todos tenham sido encontrados, o grupo vai embora. Cada pessoa suspensa e aqueles sentados abaixo deles devem deixar de responder aos chamados de seus nomes assim que forem encontrados. Gradativamente, as respostas irão diminuir até o silêncio, e nesse momento eles devem começar a chamar pelos nomes uns dos outros como crianças perdidas.

O último happening se chama: Chovendo Rodovia preta pintada de preto Chuva lava e leva embora Homem de papel num jardim de galhos secos Chuva lava e leva embora Folhas de papel espalhadas num gramado Chuva lava e leva embora Corpos nus pintados de cinza Chuva lava e leva embora Arvores nuas pintadas de vermelho Chuva lava e leva embora As notas simplesmente são:

Horários e lugares não precisam ser coordenados, ficando a cargo dos participantes. A ação da chuva é assistida se desejado.