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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS ESCOLA SUPERIOR DE CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO AMBIENTAL ALLAN CARLOS MOREIRA MAGALHÃES O PATRIMÔNIO CULTURAL E A CIDADE: UMA ANÁLISE DOS CONFLITOS RELACIONADOS AO TOMBAMENTO DO CENTRO ANTIGO E DO CENTRO HISTÓRICO DE MANAUS Manaus 2013

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS ESCOLA SUPERIOR DE CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO AMBIENTAL

ALLAN CARLOS MOREIRA MAGALHÃES

O PATRIMÔNIO CULTURAL E A CIDADE: UMA ANÁLISE DOS CONFLITOS RELACIONADOS AO TOMBAMENTO DO

CENTRO ANTIGO E DO CENTRO HISTÓRICO DE MANAUS

Manaus 2013

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS ESCOLA SUPERIOR DE CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO AMBIENTAL

ALLAN CARLOS MOREIRA MAGALHÃES

O PATRIMÔNIO CULTURAL E A CIDADE: UMA ANÁLISE DOS CONFLITOS RELACIONADOS AO TOMBAMENTO DO

CENTRO ANTIGO E DO CENTRO HISTÓRICO DE MANAUS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Direito Ambiental. Orientador: Profa. Dra. Andrea Borghi Moreira Jacinto

Manaus 2013

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Catalogação na fonte Elaborada pela Bibliotecária Nayla Viviane Bastos de Oliveira CRB-11/613

M189p Magalhães, Allan Carlos Moreira O patrimônio cultural e a cidade: uma análise dos conflitos relacionados ao tombamento do centro antigo e do centro histórico de Manaus / Allan Carlos Moreira Magalhães. – Manaus: Universidade do Estado Amazonas, 2013.

136 fls.: Il; 30 cm

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas – UEA.

Orientadora: Profª. Drª. Andrea Borghi Moreira Jacinto

1. Direito Ambiental. 2. Patrimônio Cultural. 3. Desenvolvimento sustentável. I. Título

CDU 351.711

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS Rua Leonardo Malcher, 1728 – Praça 14 de Janeiro - Escola Superior de Artes e Turismo.

Cep. 69020-070 – Manaus-Am.

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ALLAN CARLOS MOREIRA MAGALHÃES

O PATRIMÔNIO CULTURAL E A CIDADE: UMA ANÁLISE DOS CONFLITOS RELACIONADOS AO TOMBAMENTO DO

CENTRO ANTIGO E DO CENTRO HISTÓRICO DE MANAUS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Direito Ambiental. Banca Examinadora: Presidente: Profa. Dra. Andréa Borghi Moreira Jacinto Membro: Prof. Dr. Walmir de Albuquerque Barbosa Membro: Prof. Dr. Erivaldo Cavalcanti e Silva Filho

Manaus 2013

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Dedico este trabalho à minha mãe querida pelo seu amor e dedicação e por me guiar nos momentos difíceis, à Maria, companheira amada, que me permitiu fazer parte da sua família.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à Universidade do Estado do Amazonas – UEA e ao Programa de Pós-Graduação

em Direito Ambiental – PPGDA por terem possibilitado o aprofundamento dos estudos no

campo dos direitos da sociodiversidade.

À professora Andréa Borghi, pelos valiosos ensinamentos acadêmicos que contribuíram

sobremaneira para a concretização deste trabalho. Agradeço, também, pela amizade, atenção e

dedicação que me foram deferidas durante esta jornada árdua, mas também instigante e

prazerosa.

Ao professor Walmir Albuquerque pelas valiosas lições e contribuições para o

desenvolvimento deste trabalho.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental – PPGDA pelas lições

diárias e aos colegas mestres e mestrandos pela amizade e companheirismo.

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RESUMO

O trabalho aborda a relação entre o patrimônio cultural e a cidade. É uma relação caracterizada pelo conflito entre a cultura dominante e a cultura dominada, a diversidade cultural e a unidade cultural, a industrialização e a urbanização, o valor de uso e o valor de troca. O patrimônio cultural enquanto fenômeno social é uma categoria ambígua situada entre o passado e o presente; enquanto fenômeno jurídico é um direito fundamental. A cidade é um espaço geográfico representativo do comportamento cultural, da forma de ocupação do espaço urbano, dos sistemas de produção e palco dos conflitos sociais. Entre as questões norteadoras da pesquisa, estão: qual o paradigma adotado pelo IPHAN no tombamento do centro histórico de Manaus? Como se insere este tombamento na política urbanística no plano diretor de Manaus? Qual o papel do patrimônio cultural para o desenvolvimento sustentável e da qualidade de vida nas cidades? O plano diretor seria instrumento de tutela do patrimônio cultural? A pesquisa foi realizada nos campos documental, bibliográfico, jurisprudencial e nos meios de comunicação. Manaus também é abordada para auxiliar na compressão da relação entre o patrimônio cultural e a cidade. A cidade de Manaus é caracterizada pela industrialização e pelos problemas urbanos decorrentes da ocupação desordenada dos espaços. O centro de Manaus possui um conjunto de bens dotados de valor cultural tombado pela LOMAN e pelo IPHAN. O tombamento impõe restrições ao direito de propriedade sujeitando o proprietário e o poder público a observar um regime jurídico especial. Com isso, tensões e conflitos são potencializados entre o patrimônio cultural e os processos construtivos da cidade. O plano diretor é um importante instrumento de concretização da dimensão socioambiental da propriedade e efetiva proteção do patrimônio cultural. Todavia, a efetiva proteção do patrimônio cultural pelo plano diretor depende do reconhecimento da contradição entre a privatização dos espaços e o planejamento urbano através da gestão democrática da cidade. Palavras-chave: Direito ambiental. Patrimônio cultural. Plano diretor da cidade. Conflituosidade. Desenvolvimento sustentável.

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ABSTRACT

The essay approaches the relationship among cultural patrimony and the city. It is a relationship distinguished by the conflict between the dominant culture and the dominated culture, the cultural diversity and the cultural unity, industrialization and urbanization, use value and exchange value. Cultural patrimony as a social creation is an ambiguous category located between the past and the present, and as a juridical institute is a fundamental right. The city is a geographic space that represents the cultural behavior, the form that urban space is occupied, the production systems and the stage of social conflicts. Among the guiding issues of the research are: what is the paradigm used by IPHAN to include as “listed building” the Manaus historic center? How such listing inserts itself on Manaus key plan? What`s the cultural patrimony`s role for sustainable development and for life’s quality in the cities? Would the (Key plan) be an instrument for protection of the cultural patrimony? The research was based on documents, bibliography, judicial decisions and media. Manaus is also approached to help on the comprehension of the relationship among cultural patrimony and the city. Manaus is a city distinguished for its industrialization and its urban problems due to unplanned space occupation. Manaus center has a set of assets endowed of cultural value listed by Manaus Organic Law and by IPHAN. Considering an asset as listed building imposes restrictions to proprietorship obligating the owner and the public administration to look up to a specific juridical regimen. As a result, tensions and conflicts between cultural patrimony and the constructive process of the city. The key plan is an important instrument for achieving socioenvironmental property’s dimension and an effective protection of the cultural patrimony. However such protection from Key plan depends on admitting a contradiction between the privatization of spaces and urban planning through the city’s democratic administration. Key words: Environmental law. Cultural patrimony. City`s key plan. Conflictuousness. Sustainable development.

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LISTA DE SIGLAS

AGU – Advocacia Geral da União

CF - Constituição Federal

CIAM - Congresso Internacional de Arquitetura Moderna

CMM - Câmara Municipal de Manaus

DIEESE - Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos

FIFA - Federation Internationale de Football Associacion

FUCAPI - Fundação Centro de Análise, Pesquisa e Inovação Tecnológica

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico e Nacional

ISSQN - Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza

LOMAN - Lei Orgânica do Município de Manaus

MANAUSTUR - Fundação Municipal de Turismo

MONUMENTA - Programa de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural Urbano

MPF - Ministério Público Federal

PGM - Procuradoria Geral do Município de Manaus

PIB - Produto Interno Bruto

SPHAN - Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

SUFRAMA - Superintendência da Zona Franca de Manaus

ZFM - Zona Franca de Manaus

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LISTA DE ANEXOS ANEXO A – PLANTA DA CIDADE DE MANAÓS – TRAÇADO URBANO – MANAUS 1893 ANEXO B – PROPOSTA DE AMPLIAÇÃO DO TOMBAMENTO DO CENTRO HISTÓRICO DE MANAUS – DELIMITAÇÃO DE SETORES MORFÓLOGICOS – IPHAN 2010

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.............................................................................................................. 10 2 CULTURA, DIVERSIDADE CULTURAL E PATRIMÔNIO................................ 16 2.1 A RELAÇÃO CULTURA E NATUREZA................................................................. 20 2.2 DIVERSIDADE CULTURAL.................................................................................... 23 2.3 PATRIMÔNIO CULTURAL: REFERÊNCIA, RESSONÂNCIA E TESTEMUNHO..................................................................................................................

26

2.3.1 Patrimônio e valor de referência cultural........................................................... 34 2.3.2 Patrimônio e ressonância...................................................................................... 38 2.3.3 Patrimônio e testemunho...................................................................................... 40 2.4 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL NO BRASIL: UNIDADE, DIVERSIDADE E PARTICIPAÇÃO NOS ESPAÇOS DA NAÇÃO.....................................................................................................

41

2.5 O PATRIMÔNIO CULTURAL E O MEIO AMBIENTE..................................... 45 3 A CIDADE E O URBANO............................................................................................ 52 3.1 A INDUSTRIALIZAÇÃO E A URBANIZAÇÃO...................................................... 55 3.2 O PLANEJAMENTO URBANO E A GESTAO DEMOCRÁTICA DAS CIDADES............................................................................................................................

62

3.3 O BEM AMBIENTAL E A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA............................................................................................................................

65

3.4 O PLANEJAMENTO URBANO E O PATRIMÔNIO CULTURAL MATERIAL........................................................................................................................

69

3.5 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E A QUALIDADE DE VIDA NAS CIDADES............................................................................................................................

71

4 A CIDADE E O PATRIMÔNIO CULTURAL: O TOMBAMENTO DO CENTRO ANTIGO E DO CENTRO HISTÓRICO DE MANAUS.............................

77

4.1 A CIDADE DE MANAUS: DO EXTRATIVISMO À INDUSTRIALIZAÇÃO......................................................................................................

77

4.1.1 A cidade da borracha e das contradições............................................................... 78 4.1.2 A cidade da indústria e das questões urbanas....................................................... 84 4.2 CENTRO ANTIGO E CENTRO HISTÓRICO: ESPAÇO DE INTERESSES E CONFLITOS.......................................................................................................................

88

4.2.1 O tombamento e a proteção jurídica do patrimônio cultural.............................. 89 4.2.2 O centro antigo de Manaus: patrimônio cultural tombado pela Lei Orgânica do Município de Manaus – LOMAN...............................................................................

91

4.2.3 O centro histórico de Manaus: patrimônio cultural tombado pelo IPHAN: uma abordagem acerca do debate entre os paradigmas da excepcionalidade e da diversidade.........................................................................................................................

93

4.2.4 Conflituosidades entre os processos construtivos da cidade e o patrimônio cultural: uma leitura a partir do projeto do Monotrilho e do “camelódromo” de Manaus...............................................................................................................................

98

4.3 O PATRIMÔNIO CULTURAL E O PLANO DIRETOR URBANO E AMBIENTAL DE MANAUS.............................................................................................

108

CONCLUSÕES.................................................................................................................. 120 REFERÊNCIAS................................................................................................................ 126 ANEXO............................................................................................................................... 135

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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende compreender a relação entre o patrimônio e a cidade,

em especial, considerando a proteção do patrimônio cultural material imóvel e o

desenvolvimento sustentável das cidades.

Essa temática será explorada através da análise do tombamento do centro antigo

de Manaus promovido pela Lei Orgânica do Município de Manaus – LOMAN desde a sua

promulgação, em 5 de abril de 1990 e do tombamento do centro histórico de Manaus

promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN em 2010

através do processo administrativo nº 1.614-T-10. Também será abordado o papel do Plano

Diretor Urbano e Ambiental de Manaus, que está sendo revisado e atualizado pelos poderes

executivo e legislativo municipais, conforme prevê a Constituição Federal de 1988, na

ordenação da cidade e na proteção do patrimônio cultural material imóvel.

O patrimônio cultural é um bem jurídico a ser tutelado a partir do seu contexto de

significação, para que seja assegurada a ressonância entre ele e a coletividade. A proteção do

patrimônio cultural é permeada por disputas entre grupos sociais e é marcada por visões de

mundo e escolhas representativas de valores de uma época.

A cidade é um fenômeno complexo, mas, no presente estudo, é abordada como a

arena de disputas entre os grupos sociais e os conflitos de funcionalidade entre o valor de uso

e o valor de troca que repercutem nas escolhas em torno do patrimônio cultural.

O plano diretor é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão

urbana e tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e

garantir o bem-estar dos seus habitantes. Sua relação com a noção de desenvolvimento

sustentável é fundamental, uma vez que o desenvolvimento sustentável impõe ao poder

público e a coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente ecologicamente

equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial a sadia qualidade de vida.

O trabalho busca aprofundar o entendimento sobre a categoria de patrimônio

cultural, em sua relação com o conceito de cultura, e particularmente com o de meio

ambiente. Procura, também, considerá-lo a partir de uma reflexão sobre a cidade que leve em

conta os diferentes grupos, valores e usos que a caracterizam e explicam seus conflitos.

O desenvolvimento industrial ocorrido no Brasil a partir do século XX trouxe

grandes transformações sociais dentre as quais se insere o movimento migratório do campo

para a cidade, motivado, em sua grande maioria pela busca de melhores condições de vida e

trabalho.

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O interesse pela vida nas grandes cidades trouxe consigo vários problemas

urbanos, dentre os quais o relacionado à ocupação desordenada dos espaços com fortes

implicações ambientais que passam pela inexistência de condições dignas de moradia e lazer

para um grande contingente de pessoas, a degradação do meio ambiente natural e cultural, as

dificuldades de mobilidade urbana com a ausência de meios de transportes coletivos

eficientes, a especulação imobiliária e as várias formas de poluição que contribuem para

reduzir a qualidade de vida nas cidades. Todos esses problemas exigem medidas do poder

público e da coletividade para a sua remodelação de forma sustentável.

O desenvolvimento econômico repercute na cidade com o crescimento dos

empreendimentos imobiliários, turísticos, eventos de massa, obras de mobilidade urbana que

modificam os espaços urbanos, substituindo o velho pelo novo e fomentando os conflitos

entre os processos construtivos remodeladores da cidade e os bens culturais.

O presente trabalho concentra-se na análise da proteção do patrimônio cultural

material imóvel, ou seja, as edificações, os espaços destinados às manifestações artístico-

culturais, os conjuntos urbanos e os sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,

arqueológico, paleontológico, ecológico e científico que, segundo o texto constitucional,

sejam “portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos

formadores da sociedade brasileira” (art. 216, CF/88).

O centro da cidade de Manaus é o espaço escolhido pelo presente estudo para a

análise da relação entre o patrimônio, a cidade e o plano diretor, pois concentra um conjunto

urbanístico e arquitetônico que integra o patrimônio cultural brasileiro tombado pela LOMAN

e pelo IPHAN, sendo, também, um espaço marcado por conflitos e interesses relacionados aos

processos construtivos da cidade como os projetos de mobilidade urbana desenvolvidos pelo

Estado do Amazonas e a reordenação do centro da cidade de Manaus planejado pelo

município de Manaus e a proteção do patrimônio cultural.

A análise da cidade de Manaus é realizada tomando como referência dois

momentos históricos: o passado da borracha e o presente da industrialização.

O passado da borracha (1890/1910) para auxiliar na compreensão dos valores

culturais que permearam a atuação protetiva do IPHAN que resultou no tombamento do

centro histórico de Manaus em 2010. Esta ação protetiva do IPHAN também é criticada

porque ignora no processo de resgate da memoria e de construção da história da cidade de

Manaus a presença e a influência da cultura indígena, cuja existência é evidenciada pelos

achados arqueológicos da Praça D. Pedro II e do Paço Municipal.

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O presente da industrialização com a implantação da Zona Franca de Manaus –

ZFM nos anos setenta do século XX é estudado para situar Manaus no contexto atual dos

conflitos e contradições entre o valor de uso e o valor de troca, a industrialização e a

urbanização que desencadeiam a ocupação desordenada dos espaços urbanos e estão presentes

nos conflitos ambientais relacionados aos projetos de mobilidade urbana e de reordenação do

centro da cidade de Manaus.

O meio ambiente ecologicamente equilibrado é alçado pelo texto constitucional ao

status de direito fundamental apresentando-se como corolário do direito a vida (COSTA

NETO, 2003), já que dificilmente há como assegurar o direito a vida sem que antes se

assegure aquele direito fundamental.

O conceito de meio ambiente é amplo e inclui além dos bens naturais aqueles que

são constituídos a partir da intervenção humana dentre os quais se inserem os bens culturais.

José Silva (2010, p.18) adotando a concepção unitária de meio ambiente o compreende como

“a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais, e culturais que propiciem o

desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”.

O patrimônio cultural como uma das vertentes do meio ambiente (cultural) possui

relevante papel na promoção da qualidade de vida nas cidades a merecer o desenvolvimento

de estudos para o desvelamento do seu valor de referência à identidade, à ação, à memória dos

diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.

Entre as perguntas norteadoras da pesquisa, estão: qual o paradigma que foi

adotado pelo IPHAN no tombamento do centro histórico de Manaus? Como se insere o

tombamento do centro histórico de Manaus na política urbanística do município de Manaus e

sua relação com o plano diretor municipal? Qual seria o papel do patrimônio cultural para a

formação de uma sociedade urbana ambientalmente equilibrada calcada nas premissas do

desenvolvimento sustentável e da qualidade de vida nas cidades? O plano diretor seria

instrumento apto a efetivação da tutela do patrimônio cultural? Quais seriam as balizas legais

e constitucionais e o alcance desta tutela?

Para o enfrentamento destes questionamentos foi realizada uma pesquisa

documental, bibliográfica, jurisprudencial e nos meios de comunicação para compreender a

relação entre o patrimônio, a cidade e o plano diretor, bem como para analisar os efeitos

jurídicos e as consequências sociais e econômicas decorrentes do tombamento do centro

antigo e do centro histórico de Manaus e como esses atos dos poderes públicos municipal e

federal repercutem na política urbana municipal especialmente no plano diretor e na

efetividade da proteção do patrimônio cultural.

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Desta feita, foi realizada uma pesquisa documental junto ao Instituto do

Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN e a Câmara Municipal de Manaus - CMM

com o escopo de acessar principalmente o processo administrativo de tombamento do centro

histórico de Manaus e o projeto de lei de revisão do Plano Diretor Urbano e Ambiental de

Manaus com a finalidade de compreender a atuação do poder publico federal e municipal na

proteção do patrimônio cultural.

Foi também realizada uma pesquisa bibliográfica voltada para auxiliar na

compreensão da relação entre o patrimônio, a cidade e o plano diretor com o escopo de

promover um estudo atual baseado num referencial teórico que esteja em sintonia com os

novos paradigmas fixados pela Constituição Federal de 1988, notadamente, a diversidade

cultural.

A pesquisa jurisprudencial foi realizada através das decisões judiciais proferidos

pelo poder judiciário nas ações judiciais propostas relativamente aos conflitos gerados sobre o

tombamento do centro histórico de Manaus, o Porto Flutuante de Manaus e o projeto de

revisão do Plano Diretor Urbano e Ambiental de Manaus a fim de aferir a conflituosidade

gerada em torno destes temas e as suas implicações para a proteção do patrimônio cultural.

A discussão judicial do tombamento do centro histórico de Manaus deu-se através

da propositura pelo Estado do Amazonas em 2012 da ação judicial nº 1648-

33.2012.4.01.3200, perante a Seção Judiciária do Amazonas, em face da União e do IPHAN

em que discute aspectos do processo de tombamento como a ausência de audiências públicas

para discutir com a sociedade esta ação protetiva do patrimônio cultural, especialmente, com

os grupos afetados diretamente pelo tombamento. Esta discussão foi caracterizada como

conflito federativo, sendo deslocada a competência para o seu processamento e julgamento

para o Supremo Tribunal Federal através da Ação Cível Originária nº 1966.

A tentativa de edificação de um shopping popular no Porto Flutuante de Manaus

também desencadeou um debate judicial perante a Seção Judiciária do Amazonas, através da

ação nº 8599-14.2010.4.01.3200 que num primeiro momento ficou afeto à questão portuária,

mas que logo desencadeou uma atuação concernente a proteção do patrimônio cultural, pois o

Porto Flutuante de Manaus encontra-se tombado, tanto pela LOMAN quanto pelo IPHAN.

O projeto de lei de revisão do Plano Diretor Urbano e Ambiental de Manaus

também foi objeto de discussão judicial perante a Comarca de Manaus através do processo nº

0714183-27.2012.8.04.0001 cuja discussão versa sobre a ausência de ampla participação da

sociedade nas audiências públicas voltadas para debater o plano diretor da cidade.

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Os processos judiciais mencionados acima também foram utilizados como fonte

documental para acessar dados e informações importantes para o presente estudo sobre a

cidade de Manaus como os relatórios dos estudos realizados pela FUCAPI para embasar a

revisão do Plano Diretor Urbano e Ambiental.

Os debates judiciais analisados neste estudo iniciam-se em 2010 quando o IPHAN

promoveu o tombamento provisório do centro histórico de Manaus e perduram até o presente,

ou seja, janeiro de 2013, sem uma solução judicial definitiva pelo Poder Judiciário, a exceção

do debate acerca do tombamento promovido pelo IPHAN em que foi celebrado acordo

perante a Suprema Corte pelos entes federativos envolvidos na lide.

Realizou-se, também, uma pesquisa através dos meios de informação tais como

jornais e revistas locais, regionais e nacionais tomando-se como referência as notícias

veiculadas a partir de 2010 que estejam relacionadas ao tombamento do centro histórico de

Manaus e ao projeto de lei de revisão do Plano Diretor Urbano e Ambiental de Manaus a fim

de compreender a repercussão destes eventos para a cidade de Manaus sob a ótica da opinião

pública.

Para atingir os objetivos delineados o trabalho foi dividido em quatro seções de

forma que a segunda aborda a relação entre cultura e natureza, a diversidade cultural e o

patrimônio cultural com o escopo de compreender o conceito de patrimônio cultural a partir

das ideias de referência, ressonância e testemunho, assim como analisa como se deu a

institucionalização da proteção do patrimônio cultural no Brasil em contraponto à proteção

atualmente conferida pela Constituição Federal de 1988 sob o paradigma da diversidade

cultural e o seu tratamento como um bem ambiental.

A terceira seção aborda a cidade e o urbano com o intuito de contextualizar a

problemática desencadeada pela industrialização e de analisar o papel do planejamento urbano

para o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida nas cidades a partir de uma gestão

democrática da cidade e da função social da propriedade urbana.

A quarta seção analisa a cidade e o patrimônio cultura com foco no tombamento

do centro antigo e do centro histórico de Manaus realizados, respectivamente, pela LOMAN e

pelo IPHAN, bem como as conflituosidades geradas entre os entes da federação relacionadas

ao patrimônio cultural material imóvel abrangidos pelos referidos tombamentos.

A história da cidade de Manaus do período da borracha é apresentada para auxiliar

na compreensão das razões que conduziram o IPHAN a promover o tombamento do centro

histórico. Também é apresentada a Manaus da indústria e dos problemas urbanos para auxiliar

na compreensão dos problemas atuais relacionados à proteção do patrimônio cultural.

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A proteção do patrimônio cultural é analisada também sob a perspectiva da Lei

Orgânica do Município de Manaus – LOMAN que consolidou um conjunto de ações voltadas

para a proteção do espaço urbano correspondente ao tombamento promovido pelo IPHAN e

que teve início em 1985, antes mesmo da vigência da atual Constituição Federal.

Com efeito, a diversidade cultural apresenta-se como o paradigma adotado pelo

IPHAN no tombamento do centro histórico de Manaus, mas ainda é muito presente as ideias

de monumentalidade e excepcionalidade do paradigma da unidade cultural, assim como, a não

abordagem no tombamento da influência cultural dos povos indígenas na formação da cidade

de Manaus é criticada.

O patrimônio cultural enquanto bem ambiental é indispensável para a qualidade

de vida nas cidades, assim como para a construção da identidade e da memoria de um povo.

A gestão do espaço urbano correspondente ao tombamento do centro antigo e do

centro histórico de Manaus deve ser realizada pelos órgãos municipais, mas também com a

participação do IPHAN, pois o tombamento confere a este instituto competência para atuar na

defesa do patrimônio cultural, condicionando as ações dos poderes públicos municipal e

estadual desencadeando os conflitos relacionados aos projetos de mobilidade urbana e as

medidas de reordenação do centro da cidade de Manaus.

Assim, percorrida estas etapas espera-se ao final firmar uma compreensão acerca

da relação entre a cidade, o patrimônio cultural e o plano diretor para a proteção dos bens de

valor cultural através do planejamento urbano para a promoção da qualidade de vida nas

cidades.

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2 CULTURA, DIVERSIDADE CULTURAL E PATRIMÔNIO

A cultura é o sistema que diferencia o Homem, enquanto espécie, dos demais

animais e permite a superação das limitações orgânicas por meio da adoção de instrumentos

que ampliam, exemplificativamente, a sua força, a sua visão e a sua audição (LARAIA,

2009). É ela responsável pelo fato do homem não poder ser compreendido unicamente por

razões da natureza, como os demais animais.

A forma como o homem se relaciona com a natureza é influenciada pela cultura.

Segundo Geertz (2008, p. 36), são “programas” culturais que ordenam o comportamento do

homem e influenciam na constituição desses mesmos “programas”, de tal forma que “sem os

homens certamente não haveria cultura, mas de forma semelhante e muito significativamente,

sem cultura não haveria homens [...] nós somos animais incompletos e inacabados que nos

completamos e acabamos através da cultura”.

O estudo da cultura é indissociável do estudo do homem. Estudar o homem sob a

ótica das ciências humanas e sociais é de certa forma estudar a cultura. Trata-se de elementos

distintos, mas que se apresentam indissociáveis cuja análise acerca da relação natureza-cultura

e natureza-homem são tratadas nesta abordagem inicial como similares.

A presente seção pretende abordar a relação dialética entre o que é dado

(natureza) e o que é transformado pelo homem (cultura), buscando compreender a diversidade

cultural que se dá em termos de tempo, lugar e povo, bem como as controvérsias acerca da

relevância da análise do organismo humano para a compreensão da origem, função e variação

da cultura.

O patrimônio cultural será analisado com enfoque nas ideias de referência,

ressonância e testemunho que dotam o bem cultural de características capazes de conferir-lhe

uma posição de destaque relativamente à cultura na qual se encontra inserido.

A tutela do patrimônio cultural é abordada sob a perspectiva da diversidade

cultural e da identidade nacional à luz da Constituição Federal de 1988.

A compreensão da dinâmica da diversidade cultural e da relação dialética entre

cultura e natureza é relevante para o presente estudo inicialmente para assentarmos a ideia de

que o postulado da unidade do homem advindo das ideias iluministas não é incompatível com

a diversidade cultural.

É igualmente relevante a percepção de que as diversas culturas existentes

interagem entre si, mas de uma forma hierarquizada como decorrência da hierarquia social

perceptível no debate em torno da cultura dominante e da cultura dominada ou popular.

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17

Todavia, essa relação não pode ser compreendida como superioridade ou inferioridade de uma

cultura em relação à outra, mas como a impossibilidade de uma cultura desconsiderar a outra

em seu processo interativo.

A relação hierarquizada entre as culturas focada na ideia de superioridade, no

entanto, influencia o processo de formação do conceito de patrimônio e a própria proteção

jurídica conferida aos bens de valor cultural.

A construção da identidade nacional pelo estado-nação evidencia a ideia de que

existe uma cultura superior que deve servir de alicerce para a unidade nacional. Neste sentido,

os bens de valor cultural que integram o patrimônio cultural são concebidos como

representativos da identidade da nação e, portanto, devem ser protegidos por meio de

instrumentos jurídicos como o tombamento.

Os mecanismos de seleção dos bens culturais que adquirirão o status de

patrimônio cultural consistem num processo de valoração que envolve conflitos de interesse e

instrumentos de poder que permeiam a relação existente entre a cultura dominante e a cultura

dominada.

A concepção de superioridade da cultura dominante no momento da formação dos

estados nacionais, e no caso do Brasil durante o governo de Getúlio Vargas que marca o inicio

da institucionalização da proteção do patrimônio cultural, guiou o processo conflituoso de

escolha dos bens de valor cultural que passaram a integrar o patrimônio cultural.

A ideia de superioridade da cultura dominante representada pelos grandes heróis

da nação e os seus feitos históricos, ou mesmo as ideias de excepcionalidade e

monumentalidade dos bens culturais edificados não podem mais ser os únicos valores

norteadores das escolhas acerca dos bens culturais que integrarão o patrimônio cultural.

Neste sentido, as ideias de referência, ressonância e testemunho que integram a

concepção de patrimônio cultural possuem um papel importante no presente estudo. Estas

categorias são analisadas a partir do campo jurídico que com base nos aspectos sociais,

culturais, políticos e econômicos fixou os parâmetros incorporados ao ordenamento jurídico e

norteia a atuação do poder público e da coletividade na proteção do patrimônio cultural.

Assim, o patrimônio cultural é abordado num primeiro momento como fenômeno

social e categoria do pensamento marcada pela ambiguidade que a faz transitar entre os

aspectos materiais e imateriais, e num segundo momento como objeto do direito sobre o qual

incide a proteção jurídica em que são delineados os contornos desta proteção através da

análise das ideias de referência, ressonância e testemunho com foco nas normas

constitucionais.

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18

Essa mudança de centralidade no estudo do patrimônio cultural que num primeiro

momento é centrada no campo sociológico e antropológico para num segundo momento

centrar-se no campo do direito justifica-se pelo escopo do trabalho que visa o estudo dos

instrumentos para a proteção do patrimônio cultural fornecidos pelas normas jurídicas, bem

como para que a análise do patrimônio cultural como fenômeno social permeie a interpretação

e a aplicação da norma jurídica para que ela não seja realizada de forma desconexa com a

realidade social.

Os valores de referência dos bens culturais são associados pela Constituição à

identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Com

efeito, a norma constitucional assegura o direito a diversidade cultural e a proteção jurídica

aos bens de valor cultural que adquirem o status de patrimônio cultural pela valoração do que

é relevante para os grupos formadores da sociedade brasileira, afastando-se, portanto, das

ideias de excepcionalidade e monumentalidade.

O valor de ressonância que consiste no poder que os bens de valor cultural

possuem de evocar na coletividade uma sensação de contemplação e de receptividade e o

valor de testemunho que estabelece a ligação entre o passado e o presente complementam a

análise dos atributos do patrimônio cultural.

A institucionalização da proteção do patrimônio cultural no Brasil iniciada no

governo Getúlio Vargas é norteada num primeiro momento pela ideia de unidade nacional e

por uma práxis preservacionista que sustentada no discurso da perda, ou seja, na existência de

um processo de destruição contínuo dos objetos e instituições representativos de uma cultura,

é utilizado para justificar a ação do poder público para a proteção do patrimônio cultural

através do resgate, da restauração e da preservação dos bens de valor cultural.

Os bens culturais objeto desta prática de preservação histórica funcionam como

representação de categorias sociais e culturais como o primitivo e o civilizado, o passado e o

presente, a cultura popular e a cultura erudita. Segundo Gonçalves (2002, p. 22), essa prática

de preservação histórica (colecionamento e exposição) refere-se a formas de resposta “ao

desafio de salvar esses objetos do desaparecimento, transformando-os em coleções

representativas do sistema de oposições e correlações em que se inserem essas categorias”.

Essa práxis preservacionista do patrimônio cultural norteia-se segundo Gonçalves

(2002, p. 23), por uma concepção moderna de história que se apresenta como “um processo

inexorável de destruição, em que valores, instituições e objetos associados a uma “cultura”,

“tradição”, “identidade” ou “memória” nacional tendem a se perder”.

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Ainda segundo Gonçalves (2002, p. 23), essa concepção produz um

enquadramento mítico do processo histórico ao equacioná-lo em termos absolutos à

destruição e homogeneização do passado e da cultura. Assim, o presente visto como um

processo contínuo de perda legitima as práticas de apropriação e preservação histórica do

patrimônio cultural.

Nos discursos sobre patrimônio cultural a noção de perda se apresenta, segundo

Gonçalves (2002, p. 24) como:

[...] uma imagem por meio da qual as diferenças e a fragmentação são colocadas para fora das práticas de apropriação, como algo que lhes é totalmente externo. Operando desse modo, esses discursos asseguram que o objeto principal dessas práticas, a cultura nacional ou o “patrimônio cultural”, permaneçam ilusoriamente como algo coerente, íntegro e idêntico a si mesmo.

A noção de apropriação relacionada ao patrimônio cultural consiste numa atitude

de poder e controle sobre o objeto da apropriação e implica, também, num processo de

transformação de um conjunto de diferenças em identidade.

Apropriar-se é sinônimo de preservação e definição de uma identidade, o que significa dizer, no plano das narrativas nacionais, que uma nação torna-se o que ela é na medida em que se apropria do seu patrimônio. Em outras palavras, as práticas de apropriação e colecionamento são entendidas como um esforço no sentido de restabelecer ou defender a continuidade e a integridade do que define a identidade e a memória nacional (GONÇALVES, 2002, p. 24).

O discurso preservacionista de apropriação que se opõe ao discurso da perda é

segundo Gonçalves (2002, p. 23-24), paradoxalmente, o mesmo que o produz, sendo os

efeitos em termos de práxis uma atividade infindável de resgate, restauração e preservação

para a manutenção da continuidade da situação originária.

Com isso, a nação é concebida como algo ahistórico. Como uma entidade não

contraditória dotada de estabilidade e perenidade que encontra nas normas do direito um

instrumentário para a efetivação da práxis preservacionista do patrimônio cultural e

construção da nação.

O período do governo Vargas também é relevante pela intensa atuação no

tombamento de bens de valor cultural, pela edição do Decreto-Lei nº 25/1937 e pela criação

do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – SPHAN em 1937, pela Lei nº 378,

de 13 de janeiro de 1937. Em 1946, o SPHAN passa a denominar-se Departamento do

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Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – DPHAN. Em 1970, é transformado em Instituto

do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN.

A atuação do IPHAN enquanto órgão oficial do Estado voltado para a proteção do

patrimônio cultural é marcada por dois momentos históricos: um focado na ideia de unidade

cultural e outro centrado na ideia de diversidade cultural constante na Constituição Federal de

1988.

A compreensão destes dois momentos históricos da atuação do IPHAN na

proteção do patrimônio cultural é relevante para a análise do tombamento do centro histórico

de Manaus que será abordado na quarta seção quando será necessário enfrentar a questão

afeta ao paradigma adotado para a proteção dos bens de valor cultural abrangidos pela

poligonal do tombamento do centro histórico de Manaus, ou seja, se a diversidade cultural ou

a unidade cultural.

Este debate é importante porque grupos sociais relevantes para a formação da

cidade de Manaus como os povos indígenas não tiveram a identidade, à ação, à memória

contempladas pela ação protetiva do IPHAN que tombou o centro histórico de Manaus que

possui espaços como a Praça D. Pedro II e o Paço Municipal repletos de achados

arqueológicos que remontam ao período pré-colonial e evidenciam a presença dos povos

indígenas no processo de formação da cidade de Manaus.

O patrimônio cultural numa análise jurídica corresponde a um direito fundamental

cuja proteção comporta as regras e princípios inerentes ao direito ambiental em razão da

concepção unitária que apregoa uma visão sistêmica dos aspectos naturais, artificiais e

culturais do meio ambiente.

Essa visão sistêmica do meio ambiente também será retomada na terceira seção

em que será abordada a cidade e o urbano em que a cidade será tratada dentre outros aspectos

como bem ambiental síntese, ou seja, que congrega em si todos estes aspectos do meio

ambiente, qual seja, o natural, o artificial e o cultural. Este último com importância singular

para o presente estudo, pois aonde se insere o patrimônio cultural e a sua proteção jurídica.

2.1 A RELAÇÃO CULTURA E NATUREZA

A palavra “cultura” é considerada como uma daquelas dotadas de maior

complexidade ao lado da palavra “natureza”, tratada em certos contextos como o seu oposto,

mas que etimologicamente dela deriva já que um de seus significados originais é lavoura ou

cultivo daquilo que naturalmente cresce (EAGLETON, 2005, p. 9).

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Este significado da palavra cultura indica a presença de uma relação dialética

entre o que é dado (natureza) e o que é transformado pelo homem (cultura). É o que Ost

(1995, p. 17) considera como a ideia dos vínculos e dos limites, ou seja, a identificação do que

liga e do que distingue o homem da natureza.

A dialéctica é esta filosofia, simultaneamente muito antiga e muito moderna, para a qual os elementos apresentados como antagônicos (o masculino e o feminino, a vida e a morte, mas também o homem e a sociedade, a sociedade e a natureza...) têm, na realidade, um “vinculo”, não passando um sem o outro. Sem dúvida, porque cada um destes elementos contém, pelo menos virtualmente, uma parte do outro (o homem é também um pedaço da natureza e, em contrapartida, a natureza produz a hominização). Daqui resulta um jogo permanente de interacções, que contribuem para redefinir os termos existentes, surgindo em última análise como determinante da sua própria identidade, a relação transformativa que se estabelece entre eles (OST, 1995, p. 17-18).

A relação dialética entre natureza e cultura implica dizer que a cultura é produzida

pela natureza ao mesmo tempo em que a modifica. O desafio proposto pelo jurista belga é de

que seja restabelecido o sentido do vinculo e do limite da relação do homem com a natureza

para que seja superado o que denominou de crise ecológica (OST,1995, p. 10).

Segundo Ost (1995, p. 7-24), o homem não pode ser mais concebido como dono e

senhor da natureza que é reduzida a mero objeto de apropriação para funcionar como

reservatório de recursos e depósito de resíduos (natureza-objeto). Nem pode ser tratado como

pertencente à natureza sem qualquer diferencial em relação aos demais seres vivos, pois isso

implicaria na supressão do aspecto cultural que é indissociável do homem (natureza-sujeito).

A perspectiva da natureza-objeto e a perspectiva da natureza-sujeito negligenciam

o vinculo e o limite existente na relação do homem com a natureza ao pensar a

preponderância de um sobre o outro, sobre esta ou aquela perspectiva. Para Ost (1995, p 16) é

necessário afirmar simultaneamente as semelhanças e as diferenças existentes entre o homem

e a natureza, bem como a existência de um vinculo entre eles, mas que não conduza a redução

de um ao outro.

Segundo Eagleton (2005, p. 15), o que assemelha o homem à natureza é que

ambos têm que ser moldados à força, sendo a diferença o fato de que o homem pode fazer isso

a si mesmo de forma auto-reflexiva diferentemente do resto da natureza. O atributo da auto-

reflexividade indica que o homem não é mero produto do seu ambiente, mas não conduz a

conclusão de que o ambiente pode ser modelado de forma arbitrária pelo homem.

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A cultura permite ao homem não somente adaptar-se a seu meio, mas também adaptar este meio ao próprio homem, a suas necessidades e seus projetos. Em suma, a cultura torna possível a transformação da natureza (CUCHE, 2002, p. 10).

A aceitação desta ideia de cultura implica na negação das explicações oriundas do

determinismo orgânico e da autonomia da vontade. Segundo Eagleton (2005, p. 14):

É uma rejeição tanto do naturalismo como do idealismo, insistindo contra o primeiro, que existe algo na natureza que a excede e a anula, e, contra o idealismo, que mesmo o mais nobre agir humano tem suas raízes humildes em nossa biologia e no ambiente natural.

Segundo White (2009, p. 33), são três as perguntas importantes que a ciência pode

fazer sobre a cultura: a sua origem, a sua função e a sua variação que se dá em termos de

tempo, lugar e povo.

A discussão gerada em torno destas três perguntas conduz a controvérsias acerca

da relevância da análise do organismo humano para a compreensão da origem, função e

variação da cultura.

A análise do organismo humano, segundo White (2009, p. 33-35) deve ser levada

apenas em consideração quando da discussão em relação à origem e a função da cultura, mas

não em relação às variações da cultura. A compreensão da origem e da função da cultura

exige uma compreensão do homem, mas para a compreensão da variação da cultura entende

referido autor que o organismo humano é desnecessário e até mesmo um obstáculo.

A noção de raça que consiste na distinção entre grupos com base em

características biológicas e físicas não possui qualquer correlação com a cultura e a sua

variação. Segundo White (2009, p.40), inexiste qualquer evidência direta capaz de conferir

sustentação a teoria da diferença biológica em termos de superioridade ou inferioridade na

capacidade cultural, não havendo qualquer correlação entre algum tipo físico e algum tipo de

cultura.

A variação da cultura em termos de lugar possui uma correlação entre a cultura e

o ambiente, mas segundo White (2009, p.43) não lhe é determinante de tal forma que se os

aspectos climáticos, de topografia, de fauna e flora fossem uniformes ainda assim haveria

diferenças em termos de desenvolvimento cultural decorrentes da localização das culturas.

As culturas variam também em termos de tempo que resultam do

desenvolvimento pelo controle da natureza por meios culturais, assim como da disseminação

de uma cultura de um lugar para outro.

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Boas (2010, p. 35) em trabalho apresentado no encontro da American Association

for the advancement of Science em 1896, acerca das limitações do método comparativo, nega

a similaridade entre ambientes geográficos como causa suficiente para a similaridade cultural,

pois isso implicaria na conclusão de que sob determinada condição geográfica

inevitavelmente seria desenvolvida uma cultura especifica. Argumenta o referido autor: “o

meio ambiente exerce um efeito limitado sobre a cultura humana, mas não vejo fatos que

possam sustentar a visão de que ele é o modelador primário da cultura” (BOAS, 2010, p.35).

Em outro texto datado de 1930 e titulado “Alguns problemas de metodologia nas

ciências sociais”, Boas (2010, p.61) afirma que: “as condições ambientais podem estimular as

atividades culturais existentes, mas elas não têm força criativa”. Ele prossegue

exemplificando que “o mais fértil solo não cria a agricultura; as águas navegáveis não criam a

navegação; um abundante suprimento de madeira não produz edificações de madeira”.

Mesmo que esses autores tragam olhares de diferentes contextos históricos e

debates, a partir deles, pode-se reforçar a ideia de que o homem é um ser cultural que faz

parte da natureza, ao mesmo tempo que a reinventa.

O homem esta inserido num processo continuo de interação em que a natureza

não é somente a matéria que compõe o mundo. A natureza é a matéria que também constitui o

homem, estando tanto ao seu redor como na composição do seu ser; sendo também

transformada e reinventada pelos seres humanos.

2.2 A DIVERSIDADE CULTURAL

A diversidade dos povos e dos costumes apresenta-se também como uma

problemática em torno da ideia de cultura. O postulado da unidade do homem cuja origem

advém das ideias iluministas apresenta-se como outro ponto desta questão, cuja dificuldade

apresenta-se em como “pensar a diversidade na unidade” (CUCHE, 2002, p. 33).

Segundo Cuche (2002, p. 33-34) esta questão foi abordada sob duas perspectivas:

uma que privilegia a unidade em detrimento da diversidade, concebida como temporária

segundo a lógica evolucionista; a outra que privilegia a diversidade através do esforço de

demonstrar que ela não é contrária à unidade do homem.

O pensamento evolucionista defende a ideia da existência de uma evolução geral e

uniforme da cultura abrangente de todo o gênero humano. Ele considera as diferenças

culturais como estágios desse processo evolutivo que segue uma linha única de

desenvolvimento, cujo ápice seria a cultura europeia.

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24

O ponto de vista evolucionista pressupõe que o curso das mudanças históricas na vida cultural da humanidade segue leis definidas, aplicáveis em toda parte, o que faria com que os desenvolvimentos culturais, em suas linhas básicas, fossem os mesmos entre todas as raças e povos (BOAS, 2010, p. 42).

Contrariamente à concepção evolucionista, em um debate do início do século XX,

Boas (2010, p. 47) sustenta que “cada grupo cultural tem sua história própria e única,

parcialmente dependente do desenvolvimento interno peculiar ao grupo social e parcialmente

de influência de grupos exteriores”. Logo, um único esquema evolucionário não seria capaz

de explicar os fenômenos etnológicos que permeiam uma cultura em particular.

Segundo Cuche (2002, p. 239-241), atualmente, há três concepções diferentes de

relativismo cultural: uma que toma as diferentes culturas como entidades separadas e com

limites claramente perceptíveis cuja distinção é facilmente identificável uma em relação à

outra, não podendo ser comparadas ou mensuradas entre si. Outra concepção compreende o

relativismo cultural como principio ético em que todas as culturas são tomadas como

possuidoras do mesmo valor, cuja tônica é a igualdade de valor entre a cultura dominante e as

culturas minoritárias.

A terceira concepção a que Cuche (2002, p. 241) se reporta consiste na

relativização do conceito de relativismo cultural, com o retorno ao seu uso original em que o

relativismo cultural é tomado como um princípio metodológico que consiste em afastar-se dos

julgamentos de valor sobre as diferentes culturas para compreendê-las a partir de suas

relações hierarquizadas.

As interações culturais dão-se de forma hierarquizada como consequência da

hierarquia social presente nas relações sociais e do fato de que as culturas não possuem uma

existência independente umas das outras.

Pensar que não há hierarquia entre as culturas seria supor que as culturas existem independentemente umas das outras, sem relação umas com as outras, o que não corresponde à realidade. Se todas as culturas merecem a mesma atenção e o mesmo interesse por parte do pesquisador, isto não leva a conclusão de que todas elas são socialmente reconhecidas como de mesmo valor. Não se pode passar de um principio metodológico a um julgamento de valor (CUCHE, 2002, p. 143-144).

As interações culturais decorrentes das relações sociais podem produzir, também,

conflituosidades oriundas de uma situação de tensão e violência entre os grupos sociais que

dominam e os que são dominados com reflexos nas culturas em interação.

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Segundo Cuche (2002, p. 145), trata-se de uma metáfora a referência à cultura

dominante e à cultura dominada, pois o que existe são grupos sociais que se encontram em

situação de domínio e de subordinação uns em relação aos outros. Prossegue referido autor,

afirmando que uma cultura dominada não consiste necessariamente numa cultura alienada ou

dependente, mas numa cultura que em seu processo interativo não consegue desconsiderar a

cultura dominante.

A ideia de “cultura popular” insere-se neste debate em torno da relação entre

cultura dominante e cultura dominada. Segundo Cuche (2002, p. 147) existem duas teses

diametralmente opostas acerca da cultura popular e que não podem ser admitidas: uma

miserabilista que concebe as culturas populares como culturas marginais oriundas de um

processo de empobrecimento da cultura dominante, sendo desta um mero subproduto; e uma

maximalista que concebe a cultura popular como autêntica e plenamente autônoma

justificando estes atributos numa suposta superioridade criativa do povo.

Segundo Cuche (2002, p. 147), ambas as teses não podem ser aceitas, pois

destoantes da realidade observável, além de irem de encontro à ideia de relativismo cultural

como método, já que esta não comporta este tipo de valoração.

O debate ideológico existente por traz destas duas teses é importante para a

compreensão da trajetória da formação do conceito de patrimônio, pois apresenta em termos

teóricos os discursos oriundos da cultura dominante ou da classe dominante no campo

conflituoso da seleção dos bens de valor cultural calcado numa ideia de superioridade.

É interessante notar, também, que o discurso acerca da existência de uma cultura

superior é igualmente apropriado pela cultura popular através dos discursos de superioridade

criativa e inventiva numa tentativa de buscar espaço na nação em meio às relações de conflito

entre a cultura dominante e a cultura dominada que envolve interesses e instrumentos de

poder.

A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade,

individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia. Mas a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder. São as sociedades cuja memória social é sobretudo oral ou que estão em vias de constituir uma memória coletiva escrita que melhor permitem compreender esta luta pela dominação da recordação e da tradição, esta manifestação da memória (LE GOFF, 1990, p. 476).

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A atribuição de valor a um bem cultural conferindo-lhe status de patrimônio

cultural consiste na própria construção de uma determinada história, identidade e memória. E

esta construção implica no apagamento de outras histórias, identidades e memórias conforme

ocorreu com os povos indígenas relativamente ao tombamento do centro histórico de Manaus

e os achados arqueológicos na Praça D. Pedro II e no Paço Municipal que serão abordados no

tópico seguinte.

O discurso acerca da existência de uma cultura superior e o debate em torno da

relação entre cultura dominante e cultura dominada são igualmente importantes para o

entendimento acerca de como se dá no Brasil num primeiro momento a proteção dos bens

integrantes do patrimônio cultural pelo IPHAN e porque estes bens eram em sua quase

totalidade aqueles que se referiam as representações da cultura dominante.

No caso, a arquitetura do período colonial foi escolhida para representar as

origens da nação, a Inconfidência Mineira considerada como marco na origem da

nacionalidade e as obras de Aleijadinho consideradas expressão da arte barroca brasileira

(CHUVA, 2011, p. 45).

Analisando a atuação do IPHAN na proteção do patrimônio cultural na cidade de

Manaus observa-se um grande vazio, havendo o registro apenas de ações isoladas pelo

tombamento de monumentos como o Teatro Amazonas, o Mercado Adolpho Lisboa, o Porto

de Manaus e o Reservatório do Mocó ocorrido, somente, a partir da segunda metade do século

XX (IPHAN, 2010, p. 12).

O tombamento destes bens de valor cultural foi guiado pelas ideias de

monumentalidade e excepcionalidade e que norteou o inicio da atuação do IPHAN na

proteção dos bens culturais durante o Governo Vargas.

Após estas ações protetivas promovidas pelo IPHAN, este órgão de proteção da

memoria efetivou o tombamento de dois bens culturais que marcam uma clara mudança de

paradigma na sua atuação protetiva: o tombamento do monumento natural denominado de

Encontro das Águas e o tombamento do centro histórico de Manaus, sendo este um dos

objetos principais do presente estudo.

2.3 PATRIMÔNIO CULTURAL: REFERÊNCIA, RESSONÂNCIA E TESTEMUNHO.

A palavra patrimônio pode ser empregada nos mais diversos contextos possuindo

uma ampla utilização cotidiana. Segundo Gonçalves (2003, p. 22), o processo de qualificação

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da palavra patrimônio acompanha as segmentações de outras categorias do pensamento

construídas historicamente como direito, economia, cultura e natureza1.

A acepção moderna de patrimônio contemporiza-se com a formatação dos Estados

Nacionais e a necessidade de construção de uma identidade nacional.

O estado-nação emerge como instituição política garantidora da unidade do povo-

cidadão num determinado território através de um processo de transformação de conceitos

abstratos, situados fora do tempo e do espaço, em algo concreto que é transplantado para

entidades como nação e cultura (SILVA, Lúcia, 2010, p. 38-39).

Trata-se do processo de objetificação cultural que consiste, segundo Gonçalves

(2002, p. 14) [na] “materialização imaginativa de realidades humanas em termos de discurso

teórico baseado no conceito de cultura”. A objetificação segundo Whorf (1978) citado por

Gonçalves (2002, p. 14) “refere-se à tendência da lógica cultural ocidental a imaginar

fenômenos não materiais (como o tempo) como se fossem algo concreto, objetos físicos

existentes”.

Assim, promove-se a naturalização dos conceitos de nação, cultura e identidade

com o escopo de construir uma identidade nacional que encontra no patrimônio o documento

identitário da nação.

O patrimônio instituído era ao mesmo tempo produto e produção desta objetivação cultural. A nação enquanto entidade naturalizada, única, servia de referência aos repositórios de significados que seriam utilizados na constituição do patrimônio (SILVA, Lúcia, 2010, p. 39).

A identidade nacional construída pelo estado-nação através das instituições de

memórias foi emoldurada na categoria patrimônio estrategicamente a partir de um passado

seletivo que tinha a função de promover a coesão dos grupos sociais. Com isso, foi possível

ao estado-nação destruir o passado e manter no presente através da categoria patrimônio

apenas um passado, aquele representativo da ideia de coesão social, necessária para a

formação de uma unidade nacional viabilizadora do próprio estado-nação.

As instituições de memórias buscaram criar vínculos com passado e não ligar-se a eles, exatamente porque nestas instituições o processo de atribuição de valor é sempre circunstancial. Instituição ligada ao poder e com poder de selecionar e decidir o que preservar, ela produz “lugares de memória” Nora (1993), e estes em última instância, estão mais ligados a uma

1 São inúmeras as possibilidades de qualificação do patrimônio. Cotidianamente fala-se em patrimônio jurídico, patrimônio econômico e financeiro, patrimônio cultural, histórico, artístico, patrimônio genético, dentre vários outros (GONÇALVES, 2005, p. 17).

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história que a memória. Não a uma história qualquer, mas a deturpada e petrificada, aquela sem mudança que fixa uma memória, daí efetivamente escapar da história. Os objetos (virtuais ou não) são organizados e hierarquizados pelas instituições de memória em torno desta fuga da história (SILVA, Lúcia, 2010, p. 39).

O patrimônio é uma categoria ambígua que se situa entre o passado e o presente,

podendo, segundo Gonçalves (2005, p. 20), ser utilizado como forma de comunicação criativa

entre essas dimensões. Todavia, ressalta referido autor que “se por um lado construímos

intencionalmente o passado, este, por sua vez, incontrolavelmente se insinua, à nossa inteira

revelia, em nossas práticas e representações”.

A identificação do sítio arqueológico denominado “Manaus”, sob a Praça D.

Pedro II e o edifício do Paço Municipal, chegando a Rua Tamandaré no centro da cidade de

Manaus é um exemplo da impossibilidade de se controlar o passado.

A Praça D. Pedro II e o edifício do Paço Municipal estão situados um ao lado do

outro, inclusive quando o Paço Municipal abrigava a sede do governo provincial a Praça D.

Pedro II tornou-se conhecida como o “jardim do palácio”, tendo inclusive sido erguidos

muros em torno da praça conforme consta, segundo Mesquita (2006, p. 276), em relatório do

presidente Alarico José Furtado datado de 7 de março de 1882.

A área aonde se situa a Praça D. Pedro II e o Paço Municipal corresponde a uma

das mais antigas da cidade, estando inclusive nas proximidades do local aonde se cogita que

foi erguida em 1669 a fortaleza de São José do Rio Negro que deu origem ao povoado

denominado Lugar da Barra que se tornou a cidade de Manaus (MESQUITA, 2006, p. 275).

A Praça D. Pedro II passou por reformas durante a administração do Governador

Eduardo Gonçalves Ribeiro (1892-1896), período áureo da borracha marcado pelas obras de

embelezamento da cidade de Manaus. Em 1894 era anunciada a conclusão dos trabalhos de

reforma da Praça D. Pedro II, que passou a denominar-se Praça da República em homenagem

a Proclamação da República Brasileira ocorrida em 15 de novembro 1889.

O jardim da praça da República havia sido aberto ao publico em janeiro daquele mesmo ano e, além de achar-se fartamente provido de grande numero de plantas e flores raras, dispostas com gosto e arte, tinha em sua parte central uma sumptuosa fonte de bronze e dispersos pelo jardim outros adornos destinados a proporcionar aos visitantes as preciosas comodidades (MESQUITA, 2006, p. 276).

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Segundo Mesquita (2006, p. 276), a Praça D. Pedro II até os primeiros anos do

século XX era uma das mais importantes da cidade de Manaus com uma programação

musical que atraia a atenção da elite da época.

A crise da borracha, no entanto, mudou esse cenário de forma que o centro antigo

da cidade de Manaus perdeu importância. A Praça D. Pedro II deixou de ser ponto de

referência e tornou-se um espaço marcado pela prostituição e pela presença de moradores de

rua. O Hotel Cassina, situado no entorno da Praça D. Pedro II, transforma-se no “Cabaré

Chinelo” cujo prédio atualmente encontra-se abandonado e deteriorado (FREIRE, 2005, p. 4).

O município de Manaus visando à revitalização do centro antigo da cidade adere

ao Programa de Preservação do Patrimônio Histórico e Cultural Urbano – Programa

Monumenta2 e passa a receber recursos financeiros do governo federal para a transformação

do Paço Municipal num museu e para a restauração da Praça D. Pedro II.

A realização de obras de restauro na Praça D. Pedro II e no Edifício do Paço

Municipal que foram iniciadas no ano de 2003 pelo município de Manaus com o apoio do

Programa Monumenta ocasionou nova descoberta de achados arqueológicos neste sítio. Os

achados arqueológicos remontam ao período pré-colonial e entre os mesmos existem três

urnas funerárias que se encontram sob a guarda do Museu Amazônico da Universidade

Federal do Amazonas através da assinatura do Termo de Guarda n° 01/2003 celebrado entre

este museu e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN em que o

Museu Amazônico obrigou-se a guardar o material recebido em boas condições de segurança,

iluminação e ventilação, bem como manter tais bens acessíveis a visitação pública.

Os achados arqueológicos no sítio “Manaus”, especialmente as urnas funerárias,

desencadearam uma série de debates envolvendo vários órgãos públicos como Ministério da

Cultura, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, Advocacia-Geral da

União – AGU, Ministério Público Federal – MPF, Município de Manaus, Fundação

Municipal de Turismo – MANAUSTUR e Comunidades Indígenas com relação à destinação

e proteção destes achados arqueológicos, gerando uma ação judicial que tramita perante a 7ª

Vara Federal da Seção Judiciária do Amazonas registrada sob o número 2004.32.00.001949-2

e um inquérito policial perante a Polícia Federal registrado sob o numero IPL 218/2004.

2 Informações sobre o Programa Monumenta como histórico, objetivos, ações e projetos podem ser obtidos no sitio do referido programa no endereço eletrônico: www.monumenta.gov.br.

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A relevância destes achados arqueológicos para a cidade de Manaus e para as

comunidades indígenas foi ressaltada pelo instituto do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional - IPHAN em comunicação oficial dirigida a Advocacia-Geral da União - AGU3:

Finalmente, queremos ressaltar a importância que esta Superintendência percebe na musealização in situ do material encontrado lado a lado com os achados de 2003, todos pertencentes ao mesmo sitio arqueológico. Uma exposição nestes termos, guardando a memória viva dos sepultamentos encontrados no próprio lugar dos achados, associada aos vestígios encontrados durante as escavações ocorridas na Praça Dom Pedro II em 2003, será um fato de extrema relevância, não só para a cidade de Manaus, que se reencontrará ali com seu passado pré-colonial, mas para as próprias comunidades indígenas, valorizando seu patrimônio cultural e sua presença na história do povoamento do sitio onde hoje existe a cidade de Manaus, contribuindo de forma decisiva para o resgate da presença indígena na história do Amazonas.

Os achados arqueológicos demonstram que a história da cidade de Manaus

remonta a período bem anterior aquele que se pretende preservar com o tombamento do

centro histórico de Manaus, bem como que existiram outros sujeitos, os povos indígenas, que

participaram da formação da cidade de Manaus e foram também enterrados por ela.

A Praça D. Pedro II e o edifício do Paço Municipal encontram-se abrangidos pelo

tombamento do centro antigo de Manaus promovido pelo artigo 342 da Lei Orgânica do

Município de Manaus – LOMAN desde a sua promulgação em 5 de abril de 1990, que,

igualmente, insere-se na definição e delimitação que a LOMAN estabeleceu no artigo 235

para o Sitio Histórico de Manaus.

O tombamento do conjunto arquitetônico denominado de centro histórico de

Manaus realizado pelo IPHAN através do processo de tombamento nº 1.614-T-104 instaurado

em 2010 e que conferiu proteção aos bens de valor cultural referente ao período histórico

denominado de “ciclo da borracha” em razão do seu elevado valor histórico, arquitetônico,

urbanístico e paisagístico também engloba a Praça D. Pedro II e o edifício do Paço Municipal.

O ciclo da borracha, considerado por Souza (2009, p. 236) como um dos ciclos

econômicos do Brasil mais efêmeros, teve o seu auge entre 1890 e 1910 (MESQUITA, 2006,

p. 145). Trata-se de uma atividade econômica de base extrativista cuja matéria prima é o látex

3 Oficio n° 166/2008/Iphan/AM/RR, datado de 29 de julho de 2008, subscrito pelo Superintendente Regional Substituto do IPHAN/AM/RR. Este documento pode ser consultado nos autos do processo judicial n° 2004.32.00.001949-2 que tramita perante a 7ª Vara Federal da Seção Judiciária do Amazonas. 4 Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 22 nov. 2010, n. 222, Seção 3, p. 18.

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extraído da seringueira e que logo despertou o interesse das indústrias da Europa e da

América do Norte pelas várias possibilidades de aproveitamento industrial.

O interesse da indústria europeia e norte americana pela borracha fez aumentar

vertiginosamente as exportações deste produto, possibilitando o surgimento de uma elite com

anseios de transformar Manaus numa cidade moderna e cosmopolita. Com isso, foram

realizadas obras de embelezamento da cidade segundo os padrões europeus.

Assim, as obras de embelezamento e modernização da cidade de Manaus que

remontam ao período da borracha são objeto de proteção pela LOMAN e pelo IPHAN através

do tombamento que consiste num instituto jurídico previsto no Decreto-Lei nº 25/1937 que

submete os bens tombados a um regime jurídico especial, conferindo ao poder público meio

de protegê-los de ações danosas.

Os achados arqueológicos, no entanto, não correspondem ao período da borracha,

mas se referem ao período pré-colonial e não se enquadram neste passado selecionado pelo

tombamento do centro histórico e do centro antigo de Manaus que abrange a Praça D. Pedro II

e o edifício do Paço Municipal.

As intervenções urbanas de embelezamento realizadas na cidade de Manaus no

período da borracha inspiradas em padrões e valores da cultura europeia como demonstra o

trabalho de Mesquita (2006, p. 142) eram incompatíveis com as tradições de origem indígena.

Segundo Neves e Costa (2008), a existência de um sítio arqueológico no espaço

correspondente atualmente a Praça D. Pedro II e ao Paço Municipal já era conhecida desde o

século XIX. A existência de registros em gravuras representando várias urnas funerárias

aflorando em um sítio arqueológico nos limites da cidade de Manaus a época seriam

evidências desde conhecimento (MARCOY, 2001).

As obras de embelezamento da Praça D. Pedro II realizadas durante o governo de

Eduardo Gonçalves Ribeiro (1892-1896), segundo o historiador Agnello Bittencourt citado

por Mesquita (2006, p. 276), também já tinha descoberto uma grande quantidade de urnas

funerárias indígenas quando do nivelamento das ruas em torno da praça.

A pesquisa arqueológica realizada entre 1955 e 1961 por Peter Paul Hilbert5,

segundo Neves e Costa (2008), cominou com achados arqueológicos desde este período na

Praça D. Pedro II que consistiam, também, em urnas funerárias e cerâmicas.

A cultura dos povos indígenas sofreu transformações e mutilações no processo

histórico de formação da cidade de Manaus, mas seus vestígios permaneceram sob a cidade da

5 Peter Paul Hilbert (1914-1989) foi arqueólogo do Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, e entre 1948 e 1961 pesquisou no médio rio Amazonas (HILBERT, 2009). .

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borracha que optou por esquecer suas origens indígenas. A Manaus atual construída com os

estímulos proporcionados pela Zona Franca, ao resgatar a história da Manaus construída

durante o ciclo da borracha através do restauro do patrimônio cultural representativo deste

período, contraditoriamente, se reencontra com o seu passado indígena que tanto se esforçou

para esconder.

O modelo Zona Franca de Manaus foi criado pela Lei n° 3.173, de 06 de junho de

1957, posteriormente, reformulado e ampliado pelo Decreto-Lei nº 288, de 28 de fevereiro de

1967 tem como objetivo o desenvolvimento do interior da Amazônia através da criação de

uma área de livre comércio de importação e exportação com incentivos fiscais para estimular

a instalação de centros industriais, comercial e agropecuário para viabilizar o

desenvolvimento da região que se encontrava economicamente debilitada em virtude da crise

da borracha.

A cidade de Manaus construída no período da borracha em meio às contradições

de uma cidade que se propunha a ser moderna conforme valores europeus, mas que se

sustentava pelo trabalho torturante do seringueiro e a Manaus atual construída a partir do

modelo econômico Zona Franca que com uma rápida industrialização trouxe vários problemas

como a ocupação desordenada dos espaços urbanos serão abordadas na quarta seção deste

trabalho.

Com efeito, a partir destes achados arqueológicos é necessário reescrever a

história restabelecendo uma nova comunicação criativa entre esse passado esquecido que se

insinua através das urnas funerárias e o presente para que haja o resgate da história da cidade

de Manaus.

Trata-se de uma medida de interesse coletivo, pois contribuirá para a

reformulação da identidade manauara através do resgate da memoria e da história dos povos

que no passado, antes mesmo da chegada do europeu já habitava esta região.

Este resgate histórico interessa principalmente aos povos indígenas que poderão

desvelar seu papel na formação da cidade de Manaus, mas, também, conhecer a própria

história do seu povo que foi transformada e apagada durante o processo de interação cultural

estabelecido no curso da história da formação da cidade de Manaus.

Todavia, este processo de resgate da história da cidade de Manaus precisa afastar-

se das ideias de superioridade e inferioridade que permearam no passado os juízos de valor

formulados em relação à cultura dominante e a cultura dominada, e admitir a existência de

uma relação hierarquizada no processo de interação entre culturas presente no processo

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histórico de formação da cidade de Manaus representada pela cultura dos povos indígenas e

pela cultura europeia.

O processo histórico de qualificação do patrimônio possibilita transitar com essa

categoria entre as diversas culturas desde que sejam apreendidas as suas dimensões

semânticas e não ocorra a naturalização das suas representações (GONÇALVES, 2003, p. 23).

A noção de patrimônio, segundo Gonçalves (2005, p. 17) se confunde atualmente

com a noção de propriedade: a propriedade herdada em oposição àquela adquirida. O

patrimônio e o passado são indissociáveis. O termo patrimônio contém em si a ideia de

herança - do acumulado e do herdado dos antecessores.

Trata-se de um distanciamento temporal que também estabelece uma linha que

divide a cultura do patrimônio cultural (MARCHESAN, 2007, p. 49).

A literatura etnográfica, segundo Gonçalves (2005, p. 17) fornece exemplos de

culturas nas quais os bens materiais não são concebidos como objetos apartados dos seus

proprietários. Com efeito, os bens materiais que compõem o patrimônio possuem propósitos

práticos, mas também significados sociais.

Esses bens, por sua vez, nem sempre possuem atributos estritamente utilitaristas. Em muitos casos, servem evidentemente a propósitos práticos, mas possuem, ao mesmo tempo, significados mágico-religiosos e sociais, constituindo-se em verdadeiras entidades, dotadas de espirito, personalidade, vontade, etc. Não são desse modo meros objetos. Se por um lado são classificados como partes inseparáveis de totalidades cósmicas e sociais, por outro lado afirmam-se como extensões morais e simbólicas de seus proprietários, são extensões destes, sejam indivíduos ou coletividades, estabelecendo mediações cruciais entre eles e o universo cósmico, natural e social (GONÇALVES, 2005, p.18).

A ambiguidade da categoria patrimônio a faz transitar, também, entre o material e

o imaterial, reunindo em si essas duas dimensões (GONÇALVES, 2005, p.21). Com isso, a

proteção do patrimônio cultural material imóvel não pode se limitar unicamente ao seu

aspecto tangível, mas deve abranger o seu contexto de significação social.

A Constituição ao se referir à proteção conferida às edificações e aos espaços

destinados às manifestações artístico-culturais compreende a base material que suporta o bem

cultural como “essencial para que a manifestação cultural seja fruída pela geração presente e

preservada e transmitida às gerações futuras” (SOARES, 2009, p. 223).

Trata-se, portanto, de proteger o aspecto tangível do bem cultural para assegurar a

fruição dos valores culturais que impregnam o patrimônio cultural. Todavia, a utilização de

instrumentos legais para a proteção do aspecto material do bem cultural como o tombamento

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segundo Fonseca (2003, p. 67), não é suficiente para assegurar que o bem protegido cumpra

de modo efetivo sua função de patrimônio cultural perante a sociedade, sendo, portanto,

necessário pensar a proteção do patrimônio cultural centrada numa relação da sociedade com

a cultural.

A centralidade na relação sociedade e cultura para a proteção do patrimônio

cultural, segundo Gonçalves (2003, p. 27) é expressão da moderna concepção antropológica

que confere maior ênfase às relações sociais e simbólicas do que aos objetos e técnicas.

Neste sentido, o valor de referência cultural, ressonância e testemunho que

impregnam o patrimônio cultural possuem um papel relevante na centralização da relação da

sociedade com a cultura.

Os tópicos seguintes abordarão o patrimônio cultural e o valor de referência

cultural enquanto mecanismo de interação entre o passado, o presente e o futuro; a ideia de

ressonância como receptividade pela coletividade das ações de proteção do patrimônio

cultural desencadeadas pelos órgãos oficiais de proteção da memória e a ideia de testemunho

como elo que possibilita através do patrimônio cultural conhecer o passado e construir a

história.

2.3.1 Patrimônio e valor de referência cultural

A escolha seletiva dos bens de valor cultural que integram a categoria patrimônio

é dependente do estabelecimento de parâmetros sociais, culturais, políticos e econômicos.

Segundo Soares (2009, p. 40), cada bem cultural possui valores de referência que originam

esses parâmetros que são incorporados ao ordenamento jurídico.

Trata-se de uma escolha seletiva que permeia os conflitos anteriormente

mencionados envolvendo a Praça D. Pedro II e o Paço Municipal, mas também o próprio

tombamento do centro da cidade de Manaus e a opção pela proteção dos bens de valor

cultural que fazem referência ao período áureo da borracha.

A proteção do patrimônio cultural passa por uma compreensão sociológica e

antropológica desta categoria do pensamento enquanto fenômeno social, mas, também, requer

uma análise sob o ponto de vista jurídico diante da apropriação pelo direito de institutos como

identidade e memória que compõem a definição constitucional do patrimônio cultural,

trançando os contornos normativos para a sua proteção enquanto um bem jurídico ambiental

portador de interesse público para a sua preservação.

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A Constituição Federal (art. 216, CF/88) associa os valores de referência dos bens

culturais à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade

brasileira para que eles possam integrar o patrimônio cultural brasileiro.

Os bens portadores de referencia são, segundo Silva (2001, p. 114):

[...] bens dotados de um valor de destaque que serve para definir a essência do objeto de relação ao qual se prende o principio de referibilidade considerado. É que, no caso, referência é, também, um signo de relação entre os bens culturais, como antecedentes ou referentes, e a identidade, a ação e a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, como consequentes ou referidos. Identidade, ação e memória são os consequentes ou referidos que portam a ideia de manter com o passado uma relação enriquecedora do presente.

As referências culturais são representações identitárias dotadas de elementos

significativos para os grupos sociais que se reportam, exemplificativamente, aos seus fazeres

e saberes; às suas crenças e hábitos; às suas edificações e objetos. Com efeito, as referências

culturais, segundo Fonseca (2001, p. 113), não possuem um valor intrínseco e o simples

armazenamento de bens e informações não é suficiente para apreendê-las, sendo necessário

um processo de ressemantização em que esses elementos são relacionados a uma

representação coletiva na qual os membros do grupo se identificam.

O ato de apreender referências culturais pressupõe não apenas captação de determinadas representações simbólicas, como também a elaboração de relações entre elas e a construção de sistemas que “falem” daquele contexto cultural, no sentido de representá-lo. Nessa perspectiva, os sujeitos dos diferentes contextos culturais têm um papel não apenas de informantes como também de interpretes de seu patrimônio cultural (FONSECA, 2001, p. 113-114).

Segundo Soares (2009, p. 42), o critério norteador da escolha seletiva dos bens

culturais é o valor de referência que independe do contexto em que os mesmos estão

inseridos. Por isso, ressalta referida autora que “nos vários contextos de seleção, mais

importante do que a admiração que os bens possam despertar é a reflexão que suscitam”.

Os valores de referência cultural são divididos por Soares (2009, p. 42) em três

categorias: valor de uso, valor de forma e valor simbólico que podem estar presentes

simultaneamente em cada bem cultural, interagindo uns com os outros.

O valor de uso relaciona-se ao grau de satisfação que o bem cultural pode

propiciar relativamente a uma necessidade concreta e contemporânea e que pode ser

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individual ou coletiva. O uso do bem cultural pode ser ainda tangível ou intangível. O bem

cultural com valor de uso tangível pode ser ainda subdividido em material e imaterial

(SOARES, 2009, p. 42).

Os bens de valor de uso tangível material são exemplificados por Soares (2009, p.

42) com os prédios públicos ou privados detentores de valor arquitetônico que são utilizados

nas mesmas atividades para as quais foram originalmente construídos ou em outras atividades

em que o uso se apresenta mais apropriado para atender as necessidades contemporâneas.

A primeira situação pode ser ilustrada com a Biblioteca Pública do Amazonas

criada pela Assembleia Legislativa Provincial através da Lei nº 205 de 17 de maio de 1870

com o objetivo de auxiliar na alfabetização e educação da classe estudantil e culta da cidade

de Manaus. A criação desta Sala de Leitura insere-se, também, segundo Barbalho (2000, p.

20) no próprio projeto de transformação de Manaus numa cidade moderna de feições

europeias presente na segunda metade do século XIX e viabilizada com o ciclo econômico da

borracha.

A Biblioteca Pública do Amazonas é tombada pelo poder público estadual através

do Decreto nº 11.033 de 12 de abril de 1988, contando com um acervo de cerca de 100 mil

volumes. A biblioteca, no entanto, encontra-se atualmente fechada para reforma6.

Além do tombamento realizado pelo poder público estadual, a Biblioteca Pública

do Amazonas encontra-se, também, localizada no centro da cidade de Manaus e abrangida

pelos tombamentos realizados pela LOMAN e pelo IPHAN e a sua própria criação remonta

ao período da borracha.

A segunda situação pode ser ilustrada com o museu do Seringal Vila Paraíso,

situado na zona rural de Manaus, igarapé São João, é formado por ambientes e bens que são

representativos da época áurea da borracha7.

Com relação aos bens culturais de valor de uso tangível imaterial, Soares (2009, p.

43) exemplifica com o uso do conhecimento tradicional8 pela indústria cosmética e

farmacêutica.

6 As informações acerca do acervo pertencente à Biblioteca Pública do Amazonas, bem como do seu não funcionamento atualmente foram extraídas do sitio do Governo do Estado do Amazonas na internet. Disponível em: < http://www.culturamazonas.am.gov.br/programas_02.php?cod=0101 > Acesso em: 21 dez. 2012. 7 As informações acerca do museu Seringal Vila Paraíso foram extraídas do sitio do Governo do Estado do Amazonas na internet. Disponível em: < http://www.culturamazonas.am.gov.br/programas_02.php?cod=0118> Acesso em: 21 dez. 2012. 8 Acerca dos conhecimentos tradicionais Rodrigues Junior (2010, p. 47) elenca as seguintes características centrais: “i. desenvolvimento sequencialmente ao longo do tempo, por meio do método de tentativa e erro e da observância das características dos recursos da biodiversidade. ii. Não se vinculam a qualquer campo específico da tecnologia. iii. Resultam da atividade criativa de um grupo de indivíduos ou de vários grupos. iv. São construídos colaborativamente. v. São associados às raízes sociais, históricas, religiosas e espirituais de grupos

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Os bens de valor de uso intangível são exemplificados com os sítios e bens de

valor arqueológico. A atribuição de valor ao patrimônio arqueológico decorre da possibilidade

de se extrair informações uteis para a compreensão do mundo e da trajetória do homem no

decorrer da história (SOARES, 2009, p. 44).

A principal característica do patrimônio arqueológico, segundo Soares (2009, p.

44) é ser portador da cultura material dos antepassados, servindo para a produção do

conhecimento sobre o passado, ao mesmo tempo em que participa do presente, funcionando

como nexo entre eles (passado e presente).

O valor de forma ou valor estético relaciona-se a capacidade que o bem cultural

possui de despertar a emoção e produzir prazer na sua contemplação, relacionando-se a

atributos como raridade, preciosidade e aparência exótica e genial (SOARES, 2009, p. 44).

A concepção estética que permeou o início da proteção oficial do patrimônio

cultural no Brasil restringiu-se a ideia dominante de excepcionalidade e monumentalidade

ligados a uma história oficial.

A Constituição Federal de 1988 desvincula-se desta estética oficial baseada na

ideia de excepcionalidade e monumentalidade para ligar-se a ideia de democratização cultural

em que “os valores de referência não estão ligados ao belo ou ao excepcional, mas ao que é

relevante para os grupos formadores da sociedade brasileira” (SOARES, 2009, p. 45).

A democratização por meio da estética, segundo Soares (2009, p. 44) consiste

num movimento relacionado à valorização do cotidiano e a ampliação da participação da

comunidade na escolha dos bens culturais integrantes do patrimônio cultural brasileiro.

Assim como existe um Bem comum há um sentido estético comum que será colocado a serviço do Bem comum e, é dever do político e do jurista, não a busca da definição do Belo ou dar-lhe critérios de reconhecimento – incorrendo-se no risco de acabar em uma desastrosa estética política oficial –, mas de fazer emanar esse senso comum estético universalmente partilhado (MORAND-DEVILLER, 2005, p. 154).

Com efeito, o valor de referência cultural relacionado ao valor de forma ou valor

estético torna dispensável a necessidade de identificar os bens culturais a partir dos atributos

da excepcionalidade e da monumentalidade.

culturalmente diferenciados. vi. São transmitidos oralmente. vii. Seu uso e transmissão intra e intercomunitária são regidos por protocolos culturais. viii. Alimentam uma relação de dependência e respeito com a natureza. ix. São factuais e pessoais, ou seja, são colhidos junto às experiências diárias de seus detentores. x. São essenciais para a subsistência dos grupos tradicionais. xi. Estão em constante mudança”.

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A perspectiva do valor formal de referência é da escolha de dentro para fora, do mais próximo para o mais distante, do cotidiano para o excepcional. Por isso, os bens valorados podem ser portadores de atributos absolutamente inesperados, desde que destacados pela comunidade (SOARES, 2009, p. 45).

A seleção dos bens culturais integrantes do patrimônio cultural brasileiro deixa de

ter os atributos da excepcionalidade e da monumentalidade como os únicos capazes de portar

a ideia de referência cultural. Abre-se, portanto, no campo jurídico através da Constituição

Federal de 1988 um espaço para a seleção de bens culturais relacionados ao cotidiano através

de um processo de democratização da estética consubstanciado na norma constitucional que

confere proteção a diversidade cultural.

Por fim, temos o valor simbólico que, segundo Soares (2009, p. 44) funciona

como “presença substitutiva de alguém ou algo do passado” recaindo sobre bens históricos

que participam simultaneamente do passado e do presente e estabelecem um nexo de ligação

entre eles.

A ideia de referência funciona como mecanismo de interação entre o passado, o

presente e o futuro. O patrimônio cultural nesta perspectiva atua como a base sobre a qual a

civilização se constituiu (passado), se mantém (presente) e se projeta (futuro).

2.3.2 Patrimônio e ressonância

A leitura feita anteriormente a partir de Gonçalves (2002; 2003; 2005), Soares

(2009) e da própria Constituição Federal de 1988 defende a ideia de que a promoção e a

proteção do patrimônio cultural a ser feita pelo poder público com a colaboração da

comunidade9 deve ser realizada de forma que haja ressonância entre estes bens culturais e a

comunidade.

Segundo Stephen Greenblatt, citado por Gonçalves (2005, p. 19), ressonância é:

[...] o poder de um objeto exposto atingir um universo mais amplo, para além de suas fronteiras formais, o poder de evocar no expectador as forças culturais complexas e dinâmicas das quais ele emergiu e das quais ele é, para o expectador, o representante.

9 Art.216 da CF/88 §1º – O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação e de outras formas de acautelamento e preservação.

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A ressonância entre o patrimônio cultural e a comunidade, conforme afirma

Gonçalves (2005, p. 19), é necessária para evitar que a classificação de um bem como

integrante do patrimônio cultural, feita por um órgão público, não encontre receptividade

junto à comunidade.

Segundo Sena (2008, s/n), o então presidente do IPHAN, Luís Fernando de

Almeida, em pronunciamento durante o Seminário de Pesquisa Histórica realizado em

novembro de 2007, afirmou que o trabalho do IPHAN nem sempre recebia um

reconhecimento social nem pelos próprios quadros da instituição. E prossegue informando:

O IPHAN deve manter permanente dialogo com a sociedade. Precisamos socializar o significado de nossas ações, pois o que assistimos é uma inflexão na maneira como o órgão trabalha. A população deve se apropriar e compreender as ações dos patrimônios, antes mesmo de tentarmos ensinar algo a elas. Elas produzem conhecimento quando se relacionam com o bem e devemos levar isso em conta (SENA, 2008, s/n).

A fala do presidente do IPHAN retrata o problema da ausência de ressonância

entre os bens culturais, objeto de proteção, e a coletividade que precisa ser objeto de reflexão

para a efetividade da proteção do patrimônio cultural.

O patrimônio é uma categoria ambígua situada entre a memória e a história que

em seu processo de construção realiza a eliminação dessas ambiguidades e pode colocar em

risco o seu poder de ressonância. Segundo Gonçalves (2005, p. 19):

Substituem-se categorias sensíveis, ambíguas e precárias (por exemplo, cheiro, paladar, tato, audição) por categorias abstratas e com fronteiras nitidamente delimitadas com a função de representar memórias e identidades. Essa eliminação da ambiguidade e da precariedade dos patrimônios culturais pode colocar em risco o seu poder de ressonância, seu poder de “evocar no expectador as forças culturais complexas e dinâmicas de onde eles emergiram”.

Dessa ausência de receptividade é possível concluir, segundo Gonçalves (2005, p.

19), que a instituição do patrimônio cultural não depende apenas da mera vontade ou decisão

política de um órgão público, nem unicamente da atividade de grupos ou indivíduos.

Assim, a proteção do patrimônio cultural para ser efetiva necessita que haja

ressonância entre os bens culturais e a comunidade.

Além disso, outros debates sobre o tema apontam a importância de que a cidade e

o urbano sejam pensados e construídos a partir do seu valor de uso (LEFEBVRE, 2011, p.14),

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que pode ser compreendido como a sua utilidade para a promoção da qualidade de vida e o

desenvolvimento sustentável da cidade.

2.3.3 Patrimônio e testemunho

A ideia de testemunho é subjacente a de patrimônio cultural e funciona como “o

valor de elo de ligação entre a prática, o objeto, o espaço dotado de especificidade, o imóvel

de valor cultural e o espaço-tempo no qual ele se produziu” (MARCHESAN, 2007, p. 46).

A noção de testemunho é ampla e abarca as mais diversas manifestações culturais

(materiais ou imateriais) representativas de um valor civilizatório, superando a conceituação

legal de patrimônio cultural constante no Decreto-Lei nº 25/3710 vinculada à ideia de “fatos

memoráveis da história do Brasil”, assim como a noção de excepcionalidade.

Segundo Marchesan (2007, p. 48):

[o patrimônio cultural] não se restringe a uma limitada categoria de bens culturais dotados de características de obras-primas ou de singularidade, mas alude a um vasto complexo de bens que, sem possuir características excepcionais, representam em seus contextos um testemunho do valor civilizatório para a Nação.

A vinculação do patrimônio cultural à ideia de nação deve ser compreendida a luz

da diversidade cultural contemplada na Constituição Federal de 1988 especialmente no artigo

216 que considera como pertencente ao patrimônio cultural brasileiro os bens “portadores de

referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade

brasileira”.

Assim, a vinculação do patrimônio cultural à nação a partir da superação da ideia

de “fatos memoráveis da história do Brasil” constante no Decreto-Lei nº 25/37 não conduz,

por si só, à exclusão de qualquer cultura da proteção conferida pela Constituição.

Segundo Fonseca (1997, p. 30), é o valor nacional quem permeia o conjunto de

bens culturais com um sentimento de pertencimento a uma comunidade que pode ser

representada pela nação.

A praça D. Pedro II e o Paço Municipal, abrangidos pelos tombamentos do centro

antigo e do centro histórico de Manaus, encontram-se permeados pela ideia de testemunho,

10 Art. 1º Constitue o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interêsse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico.

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41

pois estes bens de valor cultural estabelecem o elo no espaço e no tempo entre a Manaus da

borracha do século XIX e a Manaus da zona franca do século XXI.

A ideia de testemunho possui um aspecto operacional na proteção do patrimônio

cultural ao estabelecer um elo entre o passado e o presente, pois ao possibilitar no presente o

conhecimento acerca do passado e da história está conferindo acesso ao patrimônio e

possibilitando que o mesmo seja herdado pelas gerações presentes e futuras, segundo a noção

de patrimônio defendida por Gonçalves (2005, p. 17).

O conhecimento acerca do passado e da história é seletivo, envolvendo conflitos

entre culturas dominante e dominada que lutam pela construção da sua história, da sua

identidade e da sua memória, ou mesmo que esta construção não implique no apagamento de

outras histórias, identidades e memórias.

Com efeito, o valor de testemunho presente na praça D. Pedro II e no Paço

Municipal refere-se apenas a uma parte da história da cidade de Manaus correspondente ao

período da borracha e que ignora o passado pré-colonial que por essas edificações foram

enterradas.

Assim, a ideia de testemunho que permeia os bens de valor cultural também é

seletiva, pois incidente sobre uma história, uma identidade e uma memória construídas.

Com relação à noção de excepcionalidade constante no Decreto-Lei nº 25/37,

afirma Marchesan (2007, p. 48-49) que ela tem sido constantemente reelaborada em função da

ideia transcendental de testemunho. Assim, “a excepcionalidade estaria mais relacionada à

eloquência do testemunho, à força de sua expressão, do que à sua raridade”.

Estabelecidas às ideias principais em torno do patrimônio cultural que lhe

particularizam relativamente à noção de cultura, o que é necessário para que a proteção

jurídica conferida pela Constituição Federal de 1988 possa incidir sobre um objeto definido,

passamos a abordar, no tópico seguinte, a forma como se deu no Brasil a institucionalização

da proteção do patrimônio cultural para a compreensão da mudança de paradigma realizado

pela Constituição Federal de 1988 que supera as ideias de unidade cultural e excepcionalidade

dos bens culturais para adotar as ideias de diversidade cultural e democratização da cultura.

2.4 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL NO BRASIL: UNIDADE, DIVERSIDADE E PARTICIPAÇÃO NOS ESPAÇOS DA NAÇÃO.

A elaboração de normas para a proteção e preservação de monumentos e sítios

históricos relacionados à nação tem inicio, segundo Chuva (2011, p. 39) no processo de

formação dos Estados nacionais. Trata-se, segundo referida autora, de uma “convergência

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entre uma genealogia da nação e o estabelecimento de uma proteção legal do patrimônio

nacional”.

A relação entre a formação dos Estados Nacionais e a proteção do patrimônio

cultural é indicada por Fernandes (2010, p. 4) como uma maneira de garantir a unidade

territorial após o processo de independência do Brasil.

Buscava-se, segundo referido autor, construir a história da nação e dos seus

heróis. E para esse fim foi criado em 1838 duas instituições culturais: o Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro – IHGB e o Arquivo Nacional que, segundo Fernandes (2010, p. 4) são

as precursoras da institucionalização da proteção do patrimônio cultural no Brasil.

A criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN

ocorrido em 1937 é apontada por Chuva (2011, p. 40) como o marco da institucionalização da

proteção do patrimônio cultural, quando o Estado brasileiro toma para si essa

responsabilidade.

A relação entre a formação dos Estados Nacionais e a institucionalização da

proteção do patrimônio cultural consiste numa necessidade de firmar uma identidade nacional

voltada para sabermos “o que somos e o que singulariza o Brasil em meio a outras nações do

mundo” (FERNANDES, 2010, p. 3).

O período histórico denominado de Estado Novo (1937 a 1945) tem acentuada

importância para a compreensão da proteção do patrimônio cultural, pois neste período foi

editado o Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937 e criado o Serviço do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional – SPHAN, atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional – IPHAN.

Durante este período houve, também, uma forte atuação do SPHAN no

tombamento de bens. O SPHAN tombou neste período de 08 (oito) anos, 40% (quarenta por

cento) de todos os bens que foram tombados a nível federal até o inicio do século XXI

(CHUVA, 2011, p. 44).

As quase duas décadas que antecederam o inicio do período histórico

denominado de Estado Novo foi marcada por mudança na concepção da nação e do ser

brasileiro, havendo uma valorização do caráter popular da cultura brasileira que foi destacado

durante a Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922. É nesse período, também, que

surge a ideia de incumbir o poder público da missão de preservar o patrimônio cultural da

nação (CHUVA, 2011, p. 41).

Segundo Chuva (2011, p. 41), essa valorização da cultura popular sofria criticas e

resistência das elites e de intelectuais, pois compreendiam os hábitos e costumes de tradição

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popular como um sinal de atraso a ser superado pelo povo brasileiro que, para ser civilizado,

deveria espelhar-se na cultura europeia.

A Era Vargas é marcada pelo nacionalismo como política de Estado. Esse período

se destaca também pela criação de normas e instituições voltadas para o controle social

(D’ARAUJO, 1997, p.59).

Segundo Chuva (2011) a criação do SPHAN integra esse contexto de controle

social:

A institucionalização das ações de proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, portanto, deve ser compreendida não isoladamente, como obra de ilustres intelectuais, mas em relação a outras instituições igualmente criadas para exercer o controle centralizado sobre espaços e pessoas – um território e seus habitantes integrantes de um Estado que se pretendia nacional, sob a ideologia do Estado tutor e protetor (CHUVA, 2011, p. 42).

O Estado brasileiro, numa contingência de afirmação de uma identidade nacional,

institucionaliza a proteção do patrimônio cultural e elege a produção artística e arquitetônica

do período colonial como aquela representativa das origens da nação brasileira (CHUVA,

2011, p. 44-45).

O espaço geográfico escolhido foi a região de Minas Gerais com destaque ao

movimento denominado “Inconfidência Mineira” e Tiradentes declarado herói nacional pelo

governo Vargas11, que também criou o museu da inconfidência12. Nesse período também

foram tombadas as cidades mineiras de Ouro Preto, Diamantina, São João del-Rei, Tiradentes,

Serro e Congonhas13.

No campo das artes, a obra de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, foi

considerada a maior expressão da arte barroca brasileira e declarado através da Lei n. 5.984,

de 12 de dezembro de 1973 o patrono da arte no Brasil.

A atuação do órgão federal, atualmente denominado de Instituto do Patrimônio

Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, investido na competência de conferir proteção ao

patrimônio cultural pautou-se num primeiro momento pela proteção a bens culturais isolados

através do tombamento. 11

O Decreto-Lei n. 486, de10 de junho de 1938 declara os feriados nacionais e considera o dia 21 de abril como dedicado à memória dos precursores da Independência do Brasil, simbolizados no Tiradentes; 12 O museu da inconfidência foi criado pelo Decreto Lei n. 965 de 20 de dezembro de 1938 na cidade de Ouro Preto com a “finalidade de colecionar as coisas de vária natureza relacionadas com os fatos históricos da Inconfidência Mineira e com seus protagonistas e bem assim as obras de arte ou de valor histórico que constituam documentos expressivos da formação de Minas Gerais” (Art. 1º). 13 Os dados relacionados ao tombamento dessas cidades mineiras podem ser localizados no sitio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Disponível em: <www.portal.iphan.gov.br> acesso em: 10 dez. 2012

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44

Os valores de arte e de historia, previstos no Decreto-Lei nº 25/1937, compunham

a diretriz predominante na eleição dos bens integrantes do patrimônio cultural nestes

primeiros 30 anos, que vão de 1937 a 1967. Num segundo momento, o campo de proteção é

ampliado para atingir não apenas um bem isolado, mas todo um conjunto arquitetônico.

O período da história brasileira denominado de Estado Novo (1937 a 1945), além

de ser o marco na institucionalização da proteção do patrimônio cultural pelo poder público, é

tributário de uma visão de mundo que propõe formar a identidade cultural brasileira calcada

na ideia de uma unidade nacional.

O momento histórico que permeou o início da atuação do poder público na

proteção do patrimônio cultural brasileiro é baseado na ideia de unidade cultural para a

formação da identidade nacional.

A Constituição Federal de 1988 adota a diversidade cultural como paradigma para

a proteção do patrimônio cultural ao reconhecer que a sociedade brasileira é formada por

vários grupos e confere proteção aos bens materiais e imateriais que possuam referência a

identidade, a ação e a memória destes grupos.

Um novo paradigma centrado na diversidade cultural é inaugurado com a

Constituição Federal de 1988 e deve nortear a política de proteção do patrimônio cultural que

passa a ter a noção de diferença, segundo Chuva (2011, p. 47) como referência fundamental à

identidade cultural brasileira.

A proteção do patrimônio cultural centrada na diversidade cultural ao lado da

democratização da cultura através da valorização do cotidiano é analisada na quarta seção

quando é abordada a atuação do IPHAN no tombamento do centro histórico de Manaus a fim

de aferir o paradigma adotado por esta instituição na proteção dos bens de valor cultural

abrangidos pelo referido ato administrativo.

O tombamento promovido pela LOMAN quando da sua promulgação em 5 de

abril de 1990, bem como o tombamento provisório realizado pelo IPHAN em 2010 já se

encontravam sujeitos ao paradigma da diversidade cultural e a democratização da cultura

previstos na Constituição Federal de 1988.

Assim, a Constituição Federal de 1988 ao contemplar a noção de diferença que

impregna o paradigma da diversidade cultural e norteia a construção da identidade nacional

funciona como o marco divisor entre dois momentos da atuação protetiva do IPHAN sobre o

patrimônio cultural. A ideia de unidade cultural perde centralidade para dar lugar à ideia de

diversidade cultural.

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45

Todavia, o paradigma da diversidade cultural voltado para nortear a atuação

protetiva dos órgãos oficiais de proteção do patrimônio cultural ainda se encontra mais

desenvolvido no plano teórico do que no plano concreto da ação protetiva, especialmente,

quando se confrontam num mesmo espaço bens de valor cultural pertencente a épocas

distintas e a culturas distintas como ocorre com os achados arqueológicos pertencente ao

período pré-colonial que foram encontrados sob a Praça D. Pedro II e o Paço Municipal que

não se enquadram ao período da borracha testemunhado por estas edificações.

A solução conferida pelo IPHAN no processo de tombamento do centro histórico

de Manaus foi ignorar solenemente estes acontecimentos históricos, relegando-os a um plano

secundário sob o argumento de que preservar o patrimônio cultural referente ao período da

borracha, também, implicam na preservação dos achados arqueológicos presentes sob a Praça

D. Pedro II e o Paço Municipal (IPHAN, 2010, p. 10).

Com isso, a história, a identidade e a memoria da cidade de Manaus, mas

especialmente dos povos indígenas é novamente soterrada, não mais por areia e cal, mas por

procedimentos administrativos conduzidos por órgãos oficiais de memória que ignoram a

presença dos povos indígenas na construção da cidade de Manaus.

Assim, o debate acerca do paradigma da diversidade consolidado pela

Constituição Federal de 1988 possui relevância para a compreensão da ação protetiva

incidente sobre o centro antigo e o centro histórico de Manaus, bem como possibilita a

discussão acerca da participação dos povos indígenas na formação da cidade de Manaus

através dos achados arqueológicos do período pré-colonial.

Estabelecidas às ideias principais em torno do patrimônio cultural que lhe

particularizam relativamente à noção de cultura e a forma como se deu no Brasil a

institucionalização da proteção do patrimônio cultural passamos a abordar no tópico seguinte

a forma como se deu a ambientação constitucional e legal do patrimônio cultural no intuito de

extrair o regime jurídico de proteção legal e constitucional do patrimônio cultural.

Assim, o tópico seguinte abordará a proteção do patrimônio cultural sob a

perspectiva do direito ambiental, como um bem de interesse coletivo e inserido no rol dos

direitos e garantias fundamentais.

2.5 O PATRIMÔNIO CULTURAL E O MEIO AMBIENTE

O presente tópico tem como escopo complementar, com base nas normas

constitucionais e legais, as ideias desenvolvidas anteriormente em que se busca aclarar a

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noção de cultura e de patrimônio cultural, expondo as bases normativas em que se assentam

nossos estudos. Nessa linha, será apresentada de forma sucinta a evolução no campo

constitucional e legal das normas disciplinadoras e protetoras do patrimônio cultural.

O patrimônio cultural integra o conceito de meio ambiente caracterizando-se

como um direito fundamental tutelado pelas normas afetas ao direito ambiental e ao

desenvolvimento sustentável para a construção de uma sociedade ambientalmente equilibrada.

A delimitação da noção de cultura e a identificação dos bens culturais tutelados

pelo direito têm suas bases exegéticas fincadas na Constituição Federal de 1988 que ao

estabelecer a ordenação constitucional da cultura criou um sistema jurídico com duas ordens

de valores culturais ou dois sistemas de significação: a) as normas jurídico-constitucionais

que são repositórios de valores e b) a própria matéria objeto de normatização como a cultura e

o patrimônio cultural brasileiro (SILVA, 2001, p. 34-35).

A ciência do direito circunscreve para si um campo próprio de atuação para a

tutela dos bens culturais, que integra a ordenação constitucional da cultura composta por um

sistema de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da

sociedade brasileira identificados no artigo 216 da Constituição Federal de 1988 como

patrimônio cultural brasileiro.

O conjunto de bens, praticas sociais, criações materiais ou imateriais de determinada nação e que, por sua peculiar condição de estabelecer diálogos temporais e espaciais relacionados àquela cultura, servindo de testemunho e de referência `as gerações presentes e futuras, constitui valor de pertença publica, merecedor de proteção jurídica e fática por parte do Estado (MARCHESAN, 2007, p. 49-50).

O patrimônio cultural para fins de proteção jurídica conferida pelo Direito pode

ser pensado como uma parcela de um todo identificado como cultura, cuja tutela necessita da

mudança de paradigma para que além das visões de proteção conferidas pelo direito aos bens

de domínio público e privado, sejam objeto de proteção numa perspectiva coletiva.

O bem cultural é algo apto a satisfazer uma necessidade de cunho cultural e que se caracteriza por seu valor próprio, independentemente de qualquer valor pecuniário, de ser testemunho da criação humana, da civilização, da evolução da natureza ou da técnica, não se esgotando em seus componentes matérias, mas abarcando sobretudo o “valor” emanado de sua composição, de suas características, utilidade, significado, etc. (MARCHESAN, 2007, p. 39).

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O patrimônio cultural pode ser estudado sob o enfoque do direito ambiental e na

perspectiva do que se denomina meio ambiente cultural diante da concepção unitária do meio

ambiente que se traduz numa visão sistêmica dos aspectos naturais, artificiais e culturais,

como partes de um todo.

O conceito de meio ambiente inclui os bens naturais e aqueles que são

constituídos a partir da intervenção humana, dentre os quais se inserem os bens culturais. José

Silva (2010, p.18) compreende o meio ambiente como “a interação do conjunto de elementos

naturais, artificiais, e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas

as suas formas”.

O meio ambiente não é composto apenas pela natureza bruta, mas também pelos

resultados das intervenções humanas nesta natureza. Derani (2008, p. 68) afirma que “toda a

formação cultural é inseparável da natureza, com base na qual se desenvolve”. Natureza e

cultura, portanto, apresentam-se como bens interdependentes e indissociáveis.

A proteção do patrimônio cultural comporta o conjunto normativo do direito

ambiental, inclusive o status de direito fundamental indispensável para a própria construção

de um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

No tocante à preservação da dimensão cultural do meio ambiente, a partir do momento em que se visualiza ela como inserida no núcleo do bem jurídico ambiente e, como tal, essencial a uma vida provida de qualidade e que propicie aos cidadãos o bem-estar a que faz referência o Preâmbulo de nosso Texto Excelso, não se apresenta desarrazoado afirmar haver um direito fundamental à preservação do patrimônio cultural, direito esse que envolve inclusive o direito a prestações em sentido estrito (MARCHESAN, 2007, p. 111).

O tratamento do patrimônio cultural como direito fundamental faz incidir sobre

ele um “conjunto de normas, princípios prerrogativas, deveres e institutos inerentes à

soberania popular, que garantem a convivência pacífica, digna, livre e igualitária,

independentemente de credo, raça, origem, cor, condição econômica ou status social”

(BULOS, 2007, p. 401).

É um princípio de primariedade que permeia o patrimônio cultural, decorrente da

fundamentalidade deste direito, e que afasta qualquer possibilidade lícita de tratá-lo como um

valor subsidiário, secundário ou mesmo acessório (BENJAMIN, 2010, p. 118).

A percepção acerca da necessidade de proteção do patrimônio cultural com a

construção de instrumentos jurídicos para tanto, ainda que de forma tímida, remonta ao

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período do governo Getúlio Vargas através da edição do Decreto-Lei nº 25, de 30 de

novembro de 1937:

Constitue o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interêsse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (art. 1º do Decreto-Lei nº 25).

Na sequência deste diploma legal, foi editada uma série de outros diplomas

versando sobre a matéria como, exemplificativamente, a Lei nº 3.924/61 que dispõe sobre os

monumentos arqueológicos e pré-históricos conferindo ao poder público a guarda e a proteção

destes bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro; a lei nº 4.717/65 que instituiu a ação

popular que funciona como mecanismo disponível ao cidadão para a proteção do patrimônio

cultural brasileiro; a lei nº 4.845/65 que visando à manutenção no país de obras de arte e

ofícios que testemunham a formação da nossa cultura, proíbe a saída das mesmas; a lei nº

7.505/86 que concede benefícios fiscais para incentivar operações de caráter cultural ou

artístico; a lei nº 8.313/91 que institui o Programa Nacional de Apoio a Cultura.

As Constituições pretéritas possuíam dispositivos que tutelavam o patrimônio

cultural brasileiro e serviram como norma fundamentadora para a edição das leis acima

citadas, todavia, com a promulgação da Constituição Federal de 1988 floresceu uma

concepção de patrimônio cultural mais avançada e condizente com a tutela deste patrimônio.

A Constituição Federal de 1988 dedicou uma seção própria para o

disciplinamento da cultura, inserindo-a no título da Ordem Social, o que nos induz a uma

interpretação voltada à proteção da cultura como fenômeno social e vetor de emancipação

humana (MARCHESAN, 2007).

O artigo 215 da Constituição Federal de 1988 assegura a todos o pleno exercício

dos direitos culturais e o acesso às fontes de cultura nacional e o incentivo, valorização e

difusão das manifestações culturais. Todavia, é o artigo 216 do texto constitucional que indica

os elementos caracterizadores do patrimônio cultural brasileiro:

Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: as formas de expressão; os modos de criar, fazer e viver; as criações científicas, artísticas e tecnológicas; as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

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os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (art. 216 da CF/88).

O texto constitucional dá um grande passo para a efetivação da tutela do

patrimônio cultural quando reconhece que o bem cultural possui um valor próprio, sendo

desnecessário, como dispunha o Decreto-Lei nº 25/1937, qualquer reconhecimento jurídico-

institucional para que seja reconhecido como tal e merecedor de uma política preservacionista

(MARCHESAN, 2007, p. 54).

A Constituição Federal de 1988 apregoa uma tutela dos bens culturais numa

perspectiva ambiental quando utiliza a expressão: “[...] tomados individualmente ou em

conjunto [...]” (art. 216, caput, CF/88) que traduz a própria ideia de meio ambiente.

A Constituição também convoca a comunidade para a promoção e proteção do

patrimônio cultural brasileiro (art. 216, §1º, da CF/88), mencionando exemplificativamente

como instrumentos desta tutela o inventário, o registro, a vigilância, o tombamento, a

desapropriação. Dentre outras formas não previstas neste artigo da Constituição encontra-se o

plano diretor - instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana - objeto

também de estudo neste trabalho.

O disciplinamento constitucional do patrimônio cultural cria-lhe um estatuto

próprio que o difere do disciplinamento conferido pela legislação patrimonial na seara do

direito civil e do direito administrativo, sendo necessário buscar em outros ramos do

conhecimento jurídico a consolidação de uma tutela adequada para o patrimônio cultural

brasileiro.

A lei que institui a Política Nacional de Educação Ambiental (lei nº 9.795, de 27

de abril de 1999) nos fornece parâmetros legais para a persecução da tutela do patrimônio

cultural sob o enfoque da sustentabilidade, com a construção de uma sociedade

ambientalmente equilibrada, indicando entre os princípios básicos da educação ambiental:

O enfoque humanista, holístico, democrático e participativo (inciso I do art. 4 da lei 9.795/99); A concepção do meio ambiente em sua totalidade, considerando a interdependência entre o meio natural, o sócio-econômico e o cultural, sob o enfoque da sustentabilidade (inciso II do art. 4 da lei 9.795/99);

E como objetivos fundamentais, dentre outros:

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O desenvolvimento de uma compreensão integrada do meio ambiente em suas múltiplas e complexas relações, envolvendo aspectos ecológicos, psicológicos, legais, políticos, sociais, econômicos, científicos, culturais e éticos (inciso I, do art. 5. da lei 9.795/99); O estímulo à cooperação entre as diversas regiões do País, em níveis micro e macrorregionais, com vistas à construção de uma sociedade ambientalmente equilibrada, fundada nos princípios da liberdade, igualdade, solidariedade, democracia, justiça social, responsabilidade e sustentabilidade (inciso V, do art. 5. da lei 9.795/99);

Segundo Yoshida (2009, p. 83), a referida lei ao empregar a expressão sociedade

ambientalmente equilibrada (inciso V, do art. 5. da lei 9.795/99) utiliza-se de uma concepção

ampla e abrangente de todos os aspectos do meio ambiente, inclusive para conceber as

cidades como sociedade urbana ambientalmente equilibrada, no sentido de sociedade urbana

sustentável.

A Constituição Federal de 1988 também prevê o plano diretor como instrumento

básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana, e que a execução desta política

incumbe ao poder público municipal, cujo objetivo é ordenar o pleno desenvolvimento das

funções sociais da cidade e garantir o bem estar dos seus habitantes (artigo 182, §1º da

CF/88).

A política urbanística deve pensar a planificação da cidade e as intervenções nos

espaços urbanos, tendo o patrimônio cultural como elemento primário e norteador desta

ordenação, e na perspectiva do reencontro da cidade com o seu valor de uso para a promoção

da qualidade de vida, sob pena de termos uma cidade moderna, mas sem identidade e sem

história na qual o seu povo não se reconhece como pertencente, como parte desta cidade.

A presente seção analisou a cultura, o patrimônio e a diversidade cultural visando

compreender a relação entre cultura e natureza, a diversidade cultural e a formação do

patrimônio cultural.

Analisou, também, o papel do patrimônio cultural para a formação de uma

identidade nacional no inicio da institucionalização das ações protetivas pelo poder público

que corresponde no Brasil ao período do Estado Novo, bem como a mudança de paradigma

para a proteção do patrimônio cultural baseada na diversidade cultural com amparo na

Constituição Federal de 1988.

Assim, estabelecido nesta seção o que se compreende por patrimônio cultural,

bem como delineado o conjunto de regras e princípios que norteiam no ordenamento jurídico

a sua proteção, passamos a analisar na seção seguinte a inserção do patrimônio cultural

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material na cidade em meio as relações conflituosas decorrentes dos processos de

industrialização e urbanização, dos valores de uso e de troca, o papel do planejamento urbano

para a proteção do patrimônio cultural e gestão democrática da cidade e a promoção da

qualidade de vida.

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3 A CIDADE E O URBANO

A cidade é segundo Kotkin (2012, p. 18) a maior criação da humanidade e a

demonstração da capacidade do homem de modificar o ambiente natural de forma profunda e

duradoura.

A historia das cidades é orientada por dois temas centrais: a universalidade da

experiência urbana e a realização de três funções – criar um espaço sagrado, fornecer

segurança e abrigar o comércio (KOTKIN, 2012, p. 13-21).

O espaço sagrado da cidade segundo Kotkin (2012, p. 208) relaciona-se mais com

o valor atribuído pelas pessoas à experiência urbana do que com as edificações e os

monumentos.

No fim, uma grande cidade depende das coisas que suscitam em seus cidadãos um apego peculiar e forte, sentimentos que distinguem um lugar específico de outros. A coesão das áreas urbanas, afinal, precisa ser mantida por uma consciência que une seus povos numa identidade compartilhada (KOTKIN, 2012, p. 208).

A coesão das cidades, segundo Kotkin (2012, p. 209-210) depende de uma

poderosa visão moral e de um sistema de crenças compartilhadas ligadas a uma concepção de

virtude pública.

As cidades devem ser capazes de fornecer segurança aos cidadãos (KOTKIN,

2012, p. 205). Tanto é assim que muitas cidades surgiram como locais de refugio, ou mesmo a

partir de fortificações como o caso da cidade de Manaus cuja origem remonta a construção da

fortaleza da Barra de São José do Rio Negro (1669), quando se iniciou o povoamento do lugar

(MESQUITA, 2006, p. 23-24).

Segundo Kotkin (2012, p. 21), as cidades também devem ser capazes de gerar

riquezas para conseguir sustentar a sua população através de uma economia ativa que inclui

artesãos, mercadores e trabalhadores.

As cidades não são meros amontoados de pessoas e construções (edificações) num

determinado espaço geográfico, mas são representativas do comportamento cultural, da forma

de ocupação do espaço, dos sistemas de produção e palco dos conflitos sociais. Elas (as

cidades) são o reflexo da cultura do seu povo (MARQUES, 2005, p. 88-89).

As cidades são espaços produzidos socialmente, são produtos datados e por isso refletem as condições específicas do lugar e dos conflitos a ele inerente que não podem ser considerados exclusivamente econômicos, pois têm

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dimensões culturais, políticas e ideológicas e retratam o vivido de quem constrói (OLIVEIRA, 2006, p. s/n).

A apreensão do conceito de cidade implica na compreensão de porque nem todo

núcleo habitacional caracteriza-se como núcleo urbano, bem como porque nem todo núcleo

urbano constitui cidade.

Segundo José Silva (2010, p. 24), para um núcleo habitacional caracterizar-se

como urbano é necessário preencher os seguintes requisitos:

(1) densidade demográfica específica; (2) profissões urbanas como comércio e manufaturas, com suficiente diversificação; (3) economia urbana permanente, com relações especiais com o meio rural; (4) existência de camada urbana com produção, consumo e direitos próprios (SILVA, José, 2010, p. 24).

Ainda segundo José Silva (2010, p. 24), são três as concepções que norteiam a

compreensão do núcleo urbano como cidade, a saber: a concepção demográfica, a concepção

econômica e a concepção de subsistemas.

A concepção demográfica considera o núcleo urbano como cidade quando este

possua um determinado quantitativo de habitantes. A concepção econômica baseia-se na

capacidade do próprio núcleo urbano em conseguir suprir parte de suas necessidades, bem

como fomentar o comércio. A concepção de subsistemas concebe a cidade como um conjunto

de subsistemas compostos por questões socioculturais, administrativas, comerciais, industriais

que integram um sistema mais amplo de cunho nacional ou geral (SILVA, José, 2010, p. 24).

A cidade no Brasil, segundo José Silva (2010b, p. 25) em sua visão a partir do

direito urbanístico é constituída pela transformação do território do núcleo urbano em

município. Logo, as concepções demográfica e econômica não são uteis para a definição de

cidade no Brasil.

Com efeito, a cidade é o núcleo urbano “qualificado por um conjunto de sistemas

politico-administrativo, econômico não-agrícola, familiar e simbólico como sede do governo

municipal” (SILVA, José, 2010, p. 24).

Assim, a cidade no Brasil é definida nessa visão por aquilo que seria sua

característica principal: o núcleo urbano como sede do governo municipal.

A cidade, também, pode ser compreendida sob a perspectiva do direito ambiental

em que é tratada como bem ambiental síntese que congrega em si todos os aspectos do meio

ambiente: natural, artificial e cultural.

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A industrialização e a lógica da produção e comercialização de mercadorias

caracterizam a sociedade moderna e produzem reflexos no espaço urbano. O sistema

capitalista baseia-se na propriedade privada e transforma a terra em mercadoria.

O direito à propriedade privada é um direito fundamental consagrado pela

Constituição Federal de 1988. Assim, a ordenação do espaço urbano pela ótica jurídica deve

necessariamente observar a apropriação privada do solo urbano, mas também a função social

da propriedade.

Todavia, essa relação entre apropriação privada do solo urbano e ordenação do

espaço urbano, segundo Lahorgue (2002, p. 53) é contraditória, sendo o cerne de problemas

urbanos como a ausência de moradias dignas.

A superação desta contradição e dos conflitos sociais pela apropriação dos

espaços urbanos passa por uma gestão democrática das cidades que encontra na Constituição

Federal de 1988 e no Estatuto da Cidade um instrumentário jurídico que possibilita a

participação dos cidadãos no processo decisório da politica urbanística.

A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade também contemplam a

função social da propriedade que integra o conceito do direito à propriedade privada. Assim, a

propriedade possui uma dimensão econômica e uma dimensão socioambiental: aquela

dimensão para atender aos interesses individuais do seu proprietário e esta para atender aos

interesses da coletividade.

O patrimônio cultural consiste num bem ambiental e, portanto, de interesse

público permeado por valores culturais como referência, ressonância e testemunho que

impregnam a base material que dá suporte a estes bens de valor cultural que devem compor as

preocupações centrais relacionadas ao planejamento urbano e a gestão democrática da cidade.

O desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida nas cidades são objetivos

presentes no planejamento urbano e que encontra na proteção do patrimônio cultural uma das

suas várias facetas de concretização.

Com efeito, a compreensão da cidade enquanto núcleo urbano, bem ambiental e

espaço de conflitos e de interesses relacionados à industrialização e a urbanização, bem como

a propriedade privada e as discussões em torno da função socioambiental da propriedade é

relevante para a efetivação da proteção do patrimônio cultural, pois os bens de valor cultural

objeto do presente estudo que consistem nas edificações e no traçado urbano que são

abrangidos pelo tombamento do centro antigo e do centro histórico de Manaus encontram-se

localizados na cidade e muitos deles pertencem ao domínio privado.

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Estes aspectos potencializam os conflitos e colocam em risco os bens de valor

cultural por meio de ações ou omissões dos particulares em desconformidade com as ações

protetivas do poder público que cominam restrições e limitações aos poderes do proprietário

do bem ambiental detentor de valor cultural.

Todavia, necessário destacar que não apenas os particulares podem atentar contra

os bens de valor cultural, mas o próprio poder público como é o caso do projeto do

Monotrilho que o governo do Estado do Amazonas pretende executar como uma das obras de

mobilidade urbana para a copa do mundo de 2014, em que um dos trechos acarreta

intervenções na área tombada no centro da cidade de Manaus pelo IPHAN e pela LOMAN, o

que será analisado na quarta seção.

Trata-se de uma análise cuja finalidade consiste em fornecer algumas bases

teóricas para o enfrentamento de questões que serão tratadas na seção seguinte que estão

relacionadas à cidade de Manaus como as transformações econômicas e sociais ocorridas com

a extração da borracha no século XIX e a industrialização ocorrida na segunda metade do

século XX com a instalação da Zona Franca de Manaus, após o declínio da atividade

extrativista relacionada à borracha em 1920 e algumas décadas de estagnação econômica.

A análise das questões teóricas acerca da cultura e do patrimônio cultural bem

como sobre a cidade também é relevante para o estudo acerca dos bens culturais tombados

pela LOMAN e pelo IPHAN que correspondem respectivamente ao centro antigo e ao centro

histórico de Manaus e que consistem em espaços de interesses e de conflitos entre os

processos construtivos da cidade e o patrimônio cultural, que também serão abordados no

seção seguinte.

Assim, a presente seção analisa a relação conflituosa entre a industrialização e a

urbanização, o papel do planejamento urbano, a gestão democrática das cidades e a função

socioambiental da propriedade que concebe a proteção do patrimônio cultural como

necessária para o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida na cidade.

3.1 A INDUSTRIALIZAÇÃO E A URBANIZAÇÃO

O processo de industrialização move as transformações na sociedade. Segundo

Lefebvre (2011, p. 11), a industrialização caracteriza a sociedade moderna, sendo o ponto de

partida para a compreensão da problemática urbana.

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Se distinguirmos o indutor e o induzido, pode-se dizer que o processo de industrialização é indutor e que se pode contar entre os induzidos os problemas relativos ao crescimento e à planificação, as questões referentes à cidade e ao desenvolvimento da realidade urbana, sem omitir a crescente importância dos lazeres e das questões relativas à “cultura” (LEFEBVRE, 2011, p. 11).

As cidades possuem uma existência anterior ao desenvolvimento industrial.

Existiu a cidade oriental com o modo de produção asiático; a cidade arcaica na Grécia e em

Roma baseada no trabalho escravo; a cidade medieval de cunho comercial.

A cidade medieval com o incremento da atividade comercial gerou trabalho e

riquezas, atraindo as pessoas. O desenvolvimento do comércio fez acender os mercadores

como classe social dominante que se organizou em associações, que ambicionavam “libertar”

a cidade do controle dos senhores feudais para manter o controle do mercado. O comércio

passa a ser fonte de riqueza medida pelo dinheiro, rompendo com o feudalismo que tinha na

terra a medida da riqueza do homem (HUBERMAN, 2010, p.21-28).

A possibilidade de avaliar monetariamente qualquer mercadoria permite a troca.

Assim, coisas passam a ser criadas não mais para atender as necessidades de quem as

produziu, mas para serem vendidas.

A sociedade atual fundamenta-se na lógica da produção de mercadorias que

precisam ser vendidas para a reprodução e valorização do capital (LAHORGUE, 2002, p. 46).

A cidade industrial14 é desenhada com a instalação das indústrias em seu espaço

que passa não só a controlar e comercializar a produção, mas também a transformar e agregar

valor a essa produção.

Assim, a lógica da cidade industrial focada na produção desloca a funcionalidade

da cidade antes centrada no seu valor de uso para subordiná-la ao seu valor de troca

(MONTE-MÓR, 2006a, p. 13).

A cidade, segundo Lefebvre (2011, p. 12) até o advento do processo de

industrialização era mais obra do que produto, pois ainda não havia se transformado em

mercadoria.

A própria cidade é uma obra, e esta característica contrasta com a orientação irreversível na direção do dinheiro, na direção do comércio, na direção das trocas, na direção dos produtos. Com efeito, a obra é valor de uso e o produto é valor de troca. O uso principal da cidade, isto é, das ruas e das

14 Lahorgue (2002, p. 46) utiliza a expressão “cidade moderna” para se referir as formas urbanas desenvolvidas com o advento da industrialização. Possuindo este mesmo conteúdo, o presente trabalho utiliza a expressão “cidade industrial”.

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praças, dos edifícios e dos monumentos, é a Festa (que consome improdutivamente, sem nenhuma outra vantagem além do prazer e do prestígio, enormes riquezas em objetos e em dinheiro) (LEFEBVRE, 2011, p. 12).

A cidade de Manaus, durante o período áureo da borracha cuja atividade

extrativista gerava grandes riquezas possibilitando o surgimento de uma elite local ligada aos

valores europeus, vivenciou a predominância do valor de uso sobre o valor de troca e o uso da

cidade para a Festa durante a belle époque Manauara.

A belle époque Manauara foi vivenciada, segundo Mesquita (2006, p. 141) na

primeira década do século XX quando foi possível usufruir dos melhoramentos realizados na

cidade com os recursos obtidos pela extração da borracha. Segundo Souza (2009, p. 262),

Manaus mergulhou de “corpo e alma na franca camaradagem dispendiosa da belle époque”

experimentando o internacionalismo e a irresponsabilidade burguesa deste período.

Com efeito, este período é caracterizado pela realização de transformações

urbanas na cidade de Manaus voltadas para o seu embelezamento segundo os padrões

europeus cujo principal marco desta época é a construção do Teatro Amazonas que segundo

Mesquita (2006, p. 205-206) é a obra arquitetônica mais significativa do período áureo da

borracha e dos ideais da belle époque possuindo uma importância simbólica por representar a

“vitória do homem sobre a selva, a prosperidade financeira e a pretensa efervescência

artístico-cultural” da época.

Neste período, Manaus foi submetida a um processo de embelezamento com a

realização de obras suntuosas como o Teatro Amazonas, a abertura de grandes avenidas como

a Eduardo Ribeiro, a reforma da praça D. Pedro II que se tornou espaço de encontro da elite

da época.

Com efeito, Manaus durante a belle époque foi mais obra do que produto tendo

certamente mais valor de uso do que de troca, ainda que para uma parcela da população que

compunha a elite da época.

Todavia, a crise da borracha no inicio do século XX transformou este cenário

conduzindo Manaus a estagnação econômica sendo reerguida apenas na segunda metade do

século XX com a instalação da Zona Franca de Manaus e a transformação do modelo

econômico da atividade extrativista para a industrial em que o valor de troca é preponderante.

O valor de troca predomina numa sociedade cujas coisas são criadas para serem

vendidas. No entanto, as mercadorias para conseguirem ser vendidas precisam possuir valor

de uso que é fomentado pela criação de necessidades (LAHORGUE, 2002, p. 46).

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A industrialização promove a generalização da mercadoria e do valor de troca

produzindo, segundo Lahorgue (2002, p. 49) reflexos no espaço urbano que é construído

principalmente como valor de uso, intensificando, assim, a contradição entre valor de uso e

valor de troca ou conforme Lefebvre (2011, p. 12) a contradição entre obra e produto.

A análise do espaço urbano, no entanto, não pode ser uma simples transposição

da analise realizada da mercadoria, já que o espaço, em que pese ter se tornado com o

capitalismo uma mercadoria, possui diferenças substanciais que a difere das demais

mercadorias.

O desenvolvimento do capitalismo produz transformações na propriedade cuja

questão principal reside em apreender que o sistema capitalista tem suas bases estabelecidas

na propriedade privada cujo escopo principal segundo Lahorgue (2002, p. 49) é fazer do

proprietário só, e somente só, proprietário de um pedaço de terra para lhe conferir valor de

troca.

Com isso, a terra enquanto bem essencialmente com valor de uso, é transformada

em bem com valor de troca, e, portanto, uma mercadoria, mas que diferentemente das demais

não é ordinariamente reproduzida ou fabricada, mas que no campo das normas jurídicas

encontrou na outorga onerosa do direito de construir, instrumento jurídico-urbanístico

previsto no artigo 28 do Estatuto da Cidade também denominado de solo criado, mecanismos

capazes de reproduzi-la para o mercado.

Essa reflexão, segundo Lefebvre (2011, p. 16) nos coloca diante de um processo

dialético com dois aspectos que são inseparáveis e possuem uma unidade, mas que, no

entanto, são conflitantes: industrialização e urbanização, crescimento e desenvolvimento,

produção econômica e vida social.

[...] a urbanização, que privilegia as questões ligadas à reprodução e à lógica imposta pelo espaço social, produzido, gerido e apropriado acima de tudo como valor de uso coletivo, e a industrialização, que privilegia as questões da produção e lógica imposta pelo espaço abstrato ou econômico, sob o domínio da acumulação e do valor de troca (MONTE-MOR, 2006b, p. 76).

Este processo dialético ocasiona um fenômeno chamado por Lefebvre (2011, p.

18) de “implosão-explosão” em que “a cidade, invadida pela indústria, implode sobre sua

centralidade e explode na forma de tecido urbano sobre seu entorno” (MONTE-MOR, 2006b,

p. 80).

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O tecido urbano que “pode ser descrito utilizando o conceito de ecossistema,

unidade coerente constituída ao redor de uma ou várias cidades, antigas ou recentes” funciona

como o suporte de um modo de viver: a sociedade urbana (LEFEBVRE, 2011, p. 18-19).

A metáfora do tecido urbano nos ajuda a identificar as transformações sociais

ocorridas num mesmo espaço no decorrer da história e a perceber a presença do passado

encravado na cidade como monumentos e edificações de valor histórico e estético.

O centro da cidade de Manaus tombado pela LOMAN e pelo IPHAN esta repleto

de exemplos desta convivência entre edificações de valor cultural como o Teatro Amazonas, a

Biblioteca Pública do Amazonas, o Palácio da Justiça, o Porto Público, o Mercado Adolfo

Lisboa e edificações atuais fruto de intervenções que transformaram o centro para adequá-los

ao intenso comercio de produtos proporcionado pelos incentivos fiscais da Zona Franca de

Manaus, mas também transformados pela deterioração e ocupação desordenada por pessoas

do interior do Estado e de outras regiões atraídas pelas oportunidades geradas pela

industrialização que acabaram se deslocando para o centro da cidade de Manaus que após o

declínio da borracha tornou-se um lugar de comercio informal, moradias irregulares e

prostituição.

Todavia, os núcleos urbanos antigos como o centro histórico e o centro antigo de

Manaus têm nas suas qualidades estéticas um fator relevante para a sua manutenção em que

contém além de monumentos e sedes de instituições espaços que podem ser destinados para o

lazer e manifestações culturais.

A proteção do patrimônio cultural assim como a cidade na qual ele se localiza

fisicamente, deve ser pensada e construída com base no valor de uso a que Lefebvre (2011),

se refere, a fim de que as ideias de referência, ressonância e testemunho não percam seu

sentido e evite que esses bens tornem-se simples objetos de consumo da indústria do turismo.

Segundo Kotkin (2012, p. 201), as cidades estão deixando de ser o centro de

comando da vida econômica para exercer um papel mais efêmero baseado em conceitos como

moda, estilo, tendência e focado na indústria cultural cuja importância é definida pelo seu

crescente setor turístico.

A cidade efêmera está segundo Kotkin (2012, p. 204) propensa a sofrer com

conflitos sociais profundos, pois “uma economia orientada para o entretenimento, turismo e

para funções “criativas” está mal preparada para fornecer mobilidade e ascensão social para

mais do que uma pequena parcela de sua população”.

Lefebvre (2011, p. 17) utiliza-se do exemplo da moderna cidade de Atenas,

afirmando que ela não possui mais nada em comum com a Cidade-Estado antiga: “Os

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monumentos e os lugares (àgora, acrópole) que permitem encontrar a Grécia antiga não

representam mais do que um local de peregrinação estética e de consumo turístico”.

Prossegue referido autor abordando o duplo papel do núcleo urbano:

O núcleo urbano torna-se, assim, produto de consumo de uma alta qualidade para estrangeiros, turistas, pessoas oriundas da periferia, suburbanos. Sobrevive graças a este duplo papel: lugar de consumo e consumo do lugar. Assim, os antigos centros entram de modo mais completo na troca e no valor de troca, não sem continuar a ser valor de uso em razão dos espaços oferecidos para atividades especificas. Tornam-se centros de consumo. O ressurgimento arquitetônico e urbanístico do centro comercial da apenas uma versão apagada e mutilada daquilo que foi o núcleo da antiga cidade, ao mesmo tempo comercial, religioso, intelectual, político, econômico (produtivo) (LEFEBVRE, 2011, p. 20).

A abordagem que Lefebvre (2011, p. 17) realizou acima sobre a Grécia Antiga

também pode ser realizada em relação à cidade de Manaus notadamente ao espaço

correspondente ao centro antigo e ao centro histórico, pois é um lugar que detém potencial

turístico por concentrar um conjunto arquitetônico e urbanístico de valor cultural que

representa uma versão da Manaus da belle époque, aquela que foi possível alcançar através da

memória e da história.

Segundo Lefebvre (2011, p. 21), a cidade encontra-se numa crise teórica e prática.

Na teoria, a cidade “compõe-se de fatos, de representações e de imagens emprestadas à cidade

antiga (pré-industrial, pré-capitalista), mas em curso de transformação e de nova elaboração”.

Na prática, o núcleo urbano esta deteriorando e apodrecendo, mas se mantém e não

desaparece.

Trata-se de uma interação entre o novo e o antigo muitas vezes conflituosa, que

numa analise acerca da cidade de Manaus vai conferindo ao tecido urbano uma nova forma

resultante desta interação que não traz somente elementos novos relacionados à Manaus atual,

marcada pela indústria e pela zona franca, mas que, igualmente, conserva e transforma

elementos da Manaus da borracha e das obras de embelezamento.

Valendo-se da metáfora do tecido urbano e analisando este processo dialético a

partir do campo, percebe-se o seu despovoamento com a perda ou transformação de alguns

dos seus elementos tradicionais que integravam a vida no campo. Analisando este fenômeno a

partir das cidades, observa-se que as concentrações urbanas se tornam elevadas com

densidade demográfica em níveis desconcertantes.

A urbanização passa a ser percebida como necessária para a transformação das

sociedades que perseguem um futuro moderno e melhor com “aprofundamento da divisão do

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trabalho, libertação das amarras da vida rural, sua complexificação e integração à vida

citadina” (MONTE-MOR, 2006b, p. 66).

Todavia, um grande contingente de pessoas que compõem a massa de excluídos

social e economicamente acabam se deslocando para regiões periféricas da cidade que não

raras vezes se encontram desprovidas de uma infraestrutura mínima ou insuficiente para

atender o grande contingente que se desloca do campo para a cidade com os objetos e valores

do sistema urbano tais como água, energia elétrica, gás, área de lazer, segurança pública.

Em países subdesenvolvidos, de industrialização fordista periférica e incompleta, como o Brasil, os espaços “incompletamente organizados” (Santos, 1978) e as periferias urbanas precárias proliferam com áreas de sub-habitação e ausência de serviços urbanos e sociais básicos (MONTE-MOR, 2006b, p. 68).

A industrialização ocorrida no Brasil voltada para substituir as importações gerou

espaços periféricos com pouca integração à dinâmica urbana e agravamentos das condições de

exclusão urbana (MONTE-MOR, 2006b, p. 68).

A cidade de Manaus com a implantação da zona franca e o desenvolvimento da

indústria, na segunda metade do século XX, vivenciou um rápido crescimento populacional e

o surgimento de inúmeros problemas urbanos relacionados à ocupação desordenada do solo e

problemas de infraestrutura urbana.

Com efeito, a cidade da urbanização, do desenvolvimento e da vida social cede

lugar à cidade da industrialização, do crescimento e da produção econômica baseada no

capital.

O sistema urbano encontra-se sobre a ação dos conflitos entre o valor de uso e o

valor de troca. Todavia, segundo Lefebvre (2011, p. 13-14) os conflitos sociais decorrentes

dos contrastes entre a riqueza e a pobreza, opressores e oprimidos, classe dominante e classe

dominada contraditoriamente “não impedem nem o apego à Cidade, nem a contribuição ativa

para a beleza da obra”. Segundo o autor, esses conflitos reforçam o sentimento de pertença e

de amor pela cidade, arena dessas disputas.

A cidade e a realidade urbana dependem do valor de uso. O valor de troca e a generalização da mercadoria pela industrialização tendem a destruir, ao subordiná-las a si, a cidade e a realidade urbana, refúgios do valor de uso, embriões de uma virtual predominância e de uma revalorização do uso (LEFEBVRE, 2011, p.14).

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A divisão da terra em propriedades é uma característica básica da organização do

espaço. A atuação do Estado neste processo de constituição do espaço urbano intervindo nas

disputas pela apropriação dos espaços e nas tensões entre o valor de uso e o valor de troca é

facilmente perceptível, especialmente, através das administrações municipais.

A justaposição num mesmo espaço urbano de diversas classes sociais atraídas

para as cidades pelo processo de industrialização e urbanização potencializa os conflitos e

transforma em necessidade a imposição de uma ordem disciplinadora do espaço.

O zoneamento e a regulação do uso do solo urbano visava resolver uma contradição central da cidade capitalista: o conflito entre a propriedade privada do solo e as demandas coletivas de integração e resposta à cooperação implícita no espaço urbano. A criação de comissões e/ou órgãos técnicos de planejamento local respondiam ao caráter supostamente isento e independente face aos interesses específicos, mascarando de fato o processo de despolitização que se impõe a cidade e à sua expansão, subordinando-a cada vez mais às necessidades das várias frações do capital e das classes dominantes (MONTE-MÓR, 2006b, p. 70).

Com efeito, os problemas que assolam as cidades como a ausência de moradias

dignas, de espaços de lazer e de transporte público eficiente, segundo Lahorgue (2002, p. 53)

são equivocadamente atribuídos à ausência de planejamento ou de normas quando na

realidade deve-se à “contradição existente entre a privatização do espaço e do consumo e as

tentativas de ação de cunho coletivo (ou social) representadas pelo planejamento”.

A relação conflituosa que se desenvolve na cidade encontra no Direito um campo

de regulação possível destas tensões. No Brasil, são documentos fundamentais nesse sentido a

Constituição Federal de 1988, o Estatuto das Cidades (Lei n° 10.257/2001) e o Plano Diretor

Municipal que preveem, entre diversos aspectos, mecanismos de participação popular na

gestão das cidades.

As tensões e conflitos sociais existentes na cidade motivadas pela apropriação

privada dos espaços deve permear o processo de planejamento urbano por meio de uma

gestão democrática das cidades.

3.2 O PLANEJAMENTO URBANO E A GESTAO DEMOCRÁTICA DAS CIDADES.

A política de ordenação do espaço urbano, no Brasil, permaneceu juridicamente

deficiente até a vigência do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) que regulamentou os

artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988 que versam sobre a política urbana.

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A Constituição Federal de 1988 confere ao plano diretor o papel de instrumento

básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana (art. 182, §1º da CF/88). É o

plano diretor o instrumento legal hábil para definir a função social da propriedade urbana (art.

182, §2º da CF/88), com o objetivo de assegurar “o atendimento das necessidades dos

cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades

econômicas, respeitadas as diretrizes fixadas no artigo 2º desta lei” (art. 39 da Lei

10.257/2001).

O planejamento urbano no qual se insere o plano diretor consiste num processo

técnico instrumentado voltado para a transformação da realidade e que deve se basear em

objetivos previamente fixados pela coletividade através da participação popular.

A participação popular no processo decisório em torno da politica urbanística tem

sua base jurídica fincada na Constituição Federal de 1988 ao estabelecer que “todo o poder

emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos

desta Constituição” (CF/88, art. 1°, par. uni.).

O Legislador Constituinte estabeleceu uma convivência entre os sistemas de

democracia representativa e de democracia participativa. O Estatuto da Cidade prevê

mecanismos de participação do povo na tomada das decisões políticas, colocando a gestão

democrática municipal como uma das diretrizes gerais da politica urbanística15.

O Estatuto da Cidade prevê de forma exemplificativa instrumentos para assegurar

a gestão democrática da cidade como “órgãos colegiados de politica urbana”, a realização de

“debates, audiências e consultas públicas”, a promoção de “conferências sobre assuntos de

interesse urbano”, assim como a “iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e

projetos de desenvolvimento urbano” (art. 43 da Lei 10.257/2001).

O planejamento, segundo José Silva (2010, p. 88) não é mais um processo

dependente da mera vontade do governante, mas imposição jurídica constante na Constituição

Federal de 1988 (art. 21, inciso IX, art. 48, inciso IV, art. 174, §1º, art. 30, inciso VIII, art.

182) e na Lei (Estatuto da Cidade).

Todavia, o planejamento urbano deve ser um processo democrático com a efetiva

participação da sociedade na fixação das metas e objetivos a serem alcançados pela política

urbanística, que balizará os processos técnicos de concretização.

15 Art. 2° A politica urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: (...) II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários seguimentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.

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A gestão democrática da cidade com a participação dos cidadãos no processo

legislativo para a elaboração do plano diretor consiste, segundo Santin (2005, p. 123), numa

nova forma de exercer o poder político através da conjugação de instituições representativas e

participativas. Trata-se de um novo paradigma de legitimação que visa introduzir uma gestão

compartilhada entre a Sociedade e o Estado.

Ao dividir o poder decisório com os cidadãos está-se diante de um mecanismo otimizador da gestão da coisa pública, eis que induz os representantes a agirem com mais transparência no intuito de desenvolver as funções sociais da cidade como um todo, garantindo o bem-estar dos seus habitantes. Criam-se as condições para a tomada de decisões mais afinadas ao interesse da cidadania, bem como se aprimora o controle social sobre o poder político (SANTIN, 2005, p. 126).

A participação efetiva da coletividade na promoção e proteção do patrimônio

cultural em colaboração com o poder público deve ser instrumentada com uma educação

patrimonial a ser desenvolvida nas escolas.

Segundo Bonato e Silveira (2008, p. 4), a preservação do patrimônio local, da

história local e da memória social dependem do conhecimento da realidade local. A ação

educativa tem um papel relevante no estabelecimento do diálogo pedagógico entre escola e

comunidade para fomentar a colaboração da coletividade na promoção e proteção do

patrimônio cultural.

A escola assume papel relevante na sociedade à medida que os saberes trabalhados são parte de um patrimônio cultural valorizado e julgado indispensável ao cidadão, que deve ser capaz de uma constante (re)criação de novos significados e subjetividades. Em outras palavras, o processo de constituição do patrimônio cultural é um processo dinâmico que (re)inventa tradições, cria e recria identidades (BONATO & SILVEIRA, 2008, p. 4).

A questão da governança pública ligada à gestão do patrimônio cultural, devido às

deficiências administrativas de alguns municípios para promover a proteção do patrimônio

cultural, somado ao déficit na educação da população sobre a importância da preservação

destes bens, apresenta-se como um desafio a ser enfrentado pela administração pública na

promoção do patrimônio cultural (GAETA, 2010, p. 5).

Segundo Gaeta (2010, p. 5-6), é necessário desenvolver uma cultura

administrativa local para a proteção do patrimônio cultural, com definições legislativas e

ações efetivas de gestão. Destaca referido autor que o próprio processo de construção do

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plano diretor municipal é um elemento importante neste processo de gestão efetiva do

patrimônio cultural.

A participação da coletividade na construção de cidades sustentáveis constitui

uma das metas e princípios da Agenda Habitat II elaborada pela Conferência das Nações

Unidas sobre Assentamentos Humanos16 (Habitat II) realizada em Istambul em 1996:

Assentamentos humanos sustentáveis são aqueles que, inter alia, geram um ambiente de cidadania e identidade, cooperação e diálogo para o bem comum, e um espírito de voluntarismo e engajamento cívico, em que todas as pessoas são estimuladas e têm oportunidades iguais de participar dos processos decisivos e de desenvolvimento (FERNANDES, 2003, p. 28).

A comunidade tem papel relevante assegurado constitucionalmente (art. 216, §1º

da CF/88) para a promoção e proteção do patrimônio cultural. A ação do poder público deve

visar concretizar essa participação com políticas públicas que estimulem a participação dos

diversos grupos formadores da sociedade brasileira, para que a proteção e promoção do

patrimônio cultural ocorram de forma ampla e contemple a diversidade cultural que permeia a

sociedade brasileira.

3.3 O BEM AMBIENTAL E A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA

O Estatuto da Cidade estabelece normas de ordem pública e interesse social que

ressaltam a função social da propriedade, tendo como diretrizes da política urbana a

“proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio

cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico” (Estatuto da Cidade, Lei n.

10.257/2001, art. 2, inc. XII).

A relevância do plano diretor na concretização da função social da propriedade é

externada no artigo 39 do Estatuto da Cidade (Leiº 10.257/2001), transcrito abaixo:

A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2.º desta lei.

16 Sobre a utilização da expressão assentamentos humanos destacamos o seguinte esclarecimento: “assentamentos humanos, termo genérico que abarca todas as formas e tamanhos de centros urbanos e rurais existentes no mundo (em inglês: human settlements ou cities, towns and villages)” (FERNANDES, 2003, p. 14)

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Este dispositivo legal fixa os contornos jurídicos para a confecção do

disciplinamento normativo especifico, destinado à concretização da função social da

propriedade urbana, com respeito às peculiaridades locais e regionais. Igualmente, conferiu tal

atribuição ao legislador municipal através do plano diretor, o que evidencia, também, que a

atividade urbanística consiste numa função pública da administração que detém o poder-dever

de determinar a ordenação urbanística da cidade (SILVA, José, 2010, p. 76).

A Constituição Federal de 1988 garante no rol dos Direitos e Garantias

Fundamentais o direito de propriedade (art. 5°, inc. XXII, da CF/88), e estabelece que a

propriedade atenda a sua função social (art. 5°, inc. XXIII, da CF/88).

A propriedade privada e a função social da propriedade também integram os

princípios gerais da atividade econômica (art. 170, inc. II e III, da CF/88) ao lado, dentre

outros, do principio da defesa do meio ambiente (art. 170, inc. VI, da CF/88), cuja ordem

econômica tem por fim assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da

justiça social (art. 170, caput, da CF/88).

O direito de propriedade é assegurado, mas ele se encontra integrado a um direito

de titularidade coletiva, consistente no atendimento da sua função social. Trata-se de um

direito de viés público assegurado pelo texto constitucional vigente.

O Código Civil (Lei 10.406/2002) disciplina as relações jurídicas entre os

particulares relativamente ao exercício dos direitos relacionados à propriedade (usar, gozar e

dispor, bem como o de reavê-la de quem a detenha injustamente), bem como estabelece o

seguinte:

O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas (art. 1.228, §1° da Lei 10.406/2002, Código Civil).

Segundo Barroso (2010, p. 369) trata-se da fase de constitucionalização do direito

civil em que a Constituição torna-se o centro do sistema jurídico, atuando como filtro

axiológico para a interpretação do direito civil. E prossegue referido autor afirmando que se

trata da “virada axiológica do direito civil tanto pela vinda de normas de direito civil para a

Constituição como, sobretudo, pela ida da Constituição para a interpretação do direito civil,

impondo um novo conjunto de valores e princípios” dentre os quais a função social da

propriedade.

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A função social da propriedade, segundo Erenberg (2008, p. 101-104) integra a

definição desse direito e a propriedade é o poder-dever de usar, gozar, fruir e dispor da coisa

conforme a sua função social. Trata-se de um dever imputado ao proprietário cuja gestão

patrimonial tem que observar, além dos interesses individuais do proprietário, os interesses da

coletividade.

Diante do novo tratamento constitucional dado ao tema, identifica-se claramente não um instituto uno e monolítico chamado propriedade, mas sim uma instituição multifacetada, abrangendo diversas modalidades de propriedade, que diferem entre si em características e consequências, dai porque falar em propriedades, cada uma com seu regime jurídico próprio [...] cada qual com sua específica função social e, consequentemente, estatuto próprio (ERENBERG, 2008, p. 107).

Com efeito, o direito de propriedade não possui mais o condão de proteger

unicamente o direito do proprietário de usar, gozar e dispor da coisa, mas também de proteger

um direito titulado pela coletividade consistente na função social da propriedade.

Erenberg (2008, p. 160) propõe um conteúdo mínimo para o principio da função

social da propriedade urbana para nortear a elaboração e interpretação dos planos diretores:

A propriedade urbana cumpre a sua função social quando é utilizada de forma a contribuir para a igualdade de acesso aos benefícios sociais assegurados na Constituição Federal. A utilização é adequada a esse fim quando a propriedade serve à destinação para a qual é vocacionada, proporcionando a seu dono o proveito econômico que lhe é característico, em condições de equilíbrio com os interesses da coletividade. Isso se verifica quando o exercício da propriedade se coaduna com as exigências de ordenação das funções sociais da cidade e com o bem-estar de seus habitantes, possibilitando-lhes o pleno exercício, no mínimo, do direito à habitação, à circulação, ao trabalho, ao lazer e, também, à educação, à saúde e à segurança (ERENBERG, 2008, p. 160-161).

A propriedade privada consiste num valor da sociedade brasileira que adota o

modo capitalista de produção. A função social da propriedade apresenta-se como um novo

atributo que se insere na propriedade cuja realização pretende reformular uma pratica social

consistente na privatização dos lucros e socialização das perdas. Assim, segundo Derani

(2008, p. 238) busca-se um equilíbrio entre o lucro privado e o proveito social.

A função social da propriedade integra o direito de propriedade, externalizando

duas dimensões distintas da propriedade: a dimensão econômica e a dimensão socioambiental.

Aquela possui o escopo de possibilitar a exploração privada da propriedade; e esta de

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viabilizar a implementação dos interesses e necessidades da coletividade, cujas tensões são

inerentes à natureza mesma destas dimensões.

A proteção do meio ambiente e a função social da propriedade fundamentam a

ordem econômica e balizam a conceituação do bem ambiental, que corresponde a um bem de

interesse social que integra o patrimônio comum da coletividade (AYALA, 2010, p. 289-326).

O bem de valor cultural e integrante do patrimônio cultural brasileiro, de igual

forma, encontra-se abarcado pela noção de patrimônio comum da coletividade, consistindo

num bem ambiental cuja proteção é uma imposição constitucional (artigo 216 da CF/88).

Os bens materiais sob a ótica civilista são dicotomicamente divididos em públicos

ou privados17. Os bens ambientais nos quais se inserem os bens culturais, segundo Souza

Filho (2005, p. 22) são revestidos de um interesse de caráter público que consiste no interesse

da coletividade na preservação do bem cultural.

Trata-se de uma nova categoria de bens que são caracterizados pelo interesse

público que permeia o seu núcleo e a sua essência:

Na realidade, sobre estes bens nasce um novo direito, que se sobrepõe ao antigo direito individual já existente. O bem como que se divide em um lado material, físico, que pode ser aproveitado pelo exercício de um direito individual, e outro, imaterial, que é apropriado por toda a coletividade, de forma difusa, que passa a ter direitos ou no mínimo interesse sobre ela. Como estas partes ou lados são inseparáveis, os direitos ou interesses coletivos sobre uma delas necessariamente se comunicam à outra (SOUZA FILHO, 2005, p. 22).

A categoria dos bens culturais impregna os bens materiais de domínio público ou

privado com valores imateriais de referência cultural, utilizando-os como suporte físico do

patrimônio cultural brasileiro. Assim, da junção deste aspecto imaterial (referência cultural)

ao aspecto material (bens de domínio público ou privado) originam-se os bens culturais cuja

titularidade pertence à coletividade.

Os bens culturais sendo bens de interesse público devem necessariamente atender

a sua função social especialmente em relação a sua dimensão socioambiental com a

preservação do patrimônio cultural para a manutenção do equilíbrio ambiental e da sadia

qualidade de vida.

17 Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público

interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem. (Lei nº 10.406, de 10

de fevereiro de 2002, Código Civil).

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A dimensão socioambiental da função social da propriedade ao assegurar os

interesses e necessidades coletivas incidentes sobre o direito de propriedade, notadamente,

sobre os bens de valor cultural que integram o domínio privado, segundo a divisão dicotômica

do direito civil, apresenta-se como um fator de legitimação da atuação do poder público na

imposição de restrições e limitações que decorram do planejamento urbano através do plano

diretor ou do tombamento como o realizado pela LOMAN e pelo IPHAN incidentes sobre o

centro antigo e o centro histórico de Manaus.

Assim, o patrimônio cultural além dos valores de referência, ressonância e

testemunho possui uma dimensão socioambiental que integra a função social da propriedade e

o próprio conceito do direito de propriedade que se volta para a defesa dos interesses e

necessidades coletivas e a proteção dos bens de valor cultural.

3.4 O PLANEJAMENTO URBANO E O PATRIMÔNIO CULTURAL MATERIAL

A proteção do patrimônio cultural reclama uma tutela eficiente que atente para os

seus valores de referência, ressonância e testemunho, bem como a sua dimensão

socioambiental e lhe forneça proteção que englobe não apenas o seu aspecto tangível, mas,

também, o seu contexto de significação.

A Carta de Atenas (1933) reúne propostas e conclusões de arquitetos e urbanistas

apresentadas durante o IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna – CIAM, dentre

as quais, define o sol, o verde e o espaço como elementos do urbanismo e estabelece como

funções básicas do homem: habitar, trabalhar, circular e cultivar o corpo e o espírito para a

organização da sociedade na cidade.

Esta concepção, segundo Kanashiro (2004, p. 34) está na base do planejamento

urbano para a ordenação da cidade e “reflete os ideais do funcionalismo a partir do

zoneamento do uso do solo”.

Segundo Monte-Mór (2006b, p. 67), o modelo de zoneamento urbano proposto

pela Carta de Atenas (1933) por urbanistas progressistas baseado nessas quatro funções

básicas do homem influencia a maioria dos planos urbanos no Brasil com maior ou menor

rigidez.

A ordem disciplinadora do espaço difundida pela Carta de Atenas (1933) baseia-

se na ideia do homem biologicamente idêntico e desconsidera questões de cunho social e

cultural.

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A vida urbana é reduzida às quatro funções básicas (habitar, trabalhar, circular e

cultivar) e as especificidades do local em termos físico-ambientais e socioculturais são

ignoradas, conduzindo a uma homogeneização dos espaços urbanos (KANASHIRO, 2004, p.

34).

Todavia, esse modelo homogeneizante de ordenação do espaço urbano que lançou

para um plano secundário as questões sociais e culturais não consegue dar conta dos valores

ambientais, culturais e históricos que emergem durante o século XX:

O panorama de mudança questionava a qualidade do ambiente construído de nossas cidades baseada na ideia desenvolvimentista, que desconsiderava valores da população, a complexidade da vida urbana, do patrimônio histórico, da integração e inter-relação entre as funções e atividades humanas, a importância das redes sociais estabelecidas, dos valores afetivos [...] (KANASHIRO, 2004, p. 35).

As questões de cunho social e cultural desencadearam um repensar urbano que

culminou com a elaboração em 1998 de um novo documento denominado “Nova Carta de

Atenas”18.

A visão do Conselho Europeu de Urbanistas é apresentada através da “Nova Carta

de Atenas” e esta centrada na ideia de cidade coerente apresentada como uma nova opção

para as cidades que se propõe a não ser uma nova utopia, nem num projeto delirante de

inovação tecnológica (NOVA CARTA DE ATENAS, 2003, p. s/n).

A cidade coerente integra um conjunto variado de mecanismos de coerência e de interligação que actuam a diferentes escalas; incluem tanto elementos de coerência visual e material das construções, como os mecanismos de coerência entre as diversas funções urbanas, as redes de infraestruturas e a utilização das novas tecnologias de informação e de comunicação (NOVA CARTA DE ATENAS, 2003, p. s/n).

A ausência de coerência é apontada como a problemática base das cidades, mas

não só em termos materiais, mas aquela que também afeta as estruturas sociais e as diferenças

culturais com implicações na continuidade das características dos espaços construídos e da

identidade (NOVA CARTA DE ATENAS, 2003, p. s/n).

18 “A Nova Carta de Atenas foi adoptada pelo Conselho Europeu de Urbanistas (CEU) em Maio de 1998, na conferência internacional de Atenas. Nessa ocasião, foi decidido que o CEU deveria manter a Carta num processo de revisão contínua e actualizada todos os quatros anos. O presente documento, elaborado por um grupo de trabalho do CEU, é o resultado desse processo de revisão.” (NOVA CARTA DE ATENAS, 2003, p. s/n).

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Com efeito, os valores sociais e culturais de certa forma esquecidos pela Carta de

Atenas (1933) são abordados neste novo documento sob a perspectiva de uma cidade coerente

que necessita dos elementos de coerência social, coerência econômica e coerência ambiental

para comporem uma síntese das relações espaciais (NOVA CARTA DE ATENAS, 2003, p.

s/n):

A coerência social da cidade relaciona-se as práticas democráticas voltadas para

atender as necessidades e o bem-estar dos grupos sociais em que devem ser desenvolvidos

sistemas de representação e participação que ampliem a atuação dos cidadãos, bem como que

sejam respeitadas as peculiaridades de cada cidade mantendo-se as suas características

culturais e identitárias.

A coerência econômica da cidade relaciona-se a capacidade de capitalizar os

atributos culturais e naturais e os valores históricos, combinando-os estrategicamente de

forma que cada cidade possa estabelecer o seu próprio equilíbrio entre prosperidade

econômica e qualidade de vida.

A coerência ambiental da cidade relaciona-se ao desenvolvimento sustentável que

apregoa uma utilização adequada dos recursos disponíveis, a proteção das cidades dos agentes

poluidores e degradadores, a proteção do patrimônio cultural e natural, o planejamento

urbano, o estabelecimento de uma relação de pertencimento ao lugar, tudo voltado para a

promoção da qualidade de vida na cidade.

Com efeito, para a Nova Carta de Atenas (2003) o urbanismo e o

desenvolvimento e ordenamento do território estão sob a influência dos elementos de

coerência econômica, social e ambiental que também são os pilares do desenvolvimento

sustentável que será abordado no tópico seguinte, inclusive sob a perspectiva da cidade como

bem ambiental.

3.5 O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL E A QUALIDADE DE VIDA NAS CIDADES.

A cidade ambientalmente sustentável necessita da efetiva proteção do meio

ambiente em suas várias facetas, dentre as quais a do chamado “meio ambiente cultural”, isto

é, aquele constituído pelo patrimônio cultural que abrange as edificações e os espaços

destinados às manifestações artístico-culturais, os conjuntos urbanos e sítios de valor

histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (art. 216,

CF/88).

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Essa dimensão do meio ambiente possui, segundo Pires (2010, p. 154-155)

relação conflituosa com os processos construtivos da cidade, isto é, com as intervenções

urbanas que transformam o patrimônio cultural e conduzem à exploração dos monumentos e

do patrimônio material com base no valor econômico em detrimento do valor simbólico.

O quadro envolve a apropriação privada dos bônus da preservação e da cultura como um todo, pela exploração egoística de serviços e produtos, com a transformação da tradição, dos saberes e fazeres, das manifestações folclóricas em espetáculo para alimentar a agenda das arenas do mercado, que segue alheio à vocação dos espaços (PIRES, 2010, p. 154-155).

Com efeito, é necessária uma política de planejamento urbano a fim de que a

cidade seja pensada e concretizada a partir de concepções que abranjam a proteção dos bens

culturais, numa perspectiva ambiental que trespasse os seus limites materiais e atinja o seu

valor de referência.

Os discursos modernos sobre o patrimônio cultural, segundo Gonçalves (2005, p.

19,) dão ênfase ao seu caráter construído ou inventado em que as instituições como a nação, o

grupo ou a família constroem o seu patrimônio como forma de expressar sua identidade e sua

memória.

A Constituição Federal de 1988 adota esse discurso quando declara que o

patrimônio cultural brasileiro é constituído por bens portadores de referência à identidade, à

ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (art. 216, CF/88).

A proteção, a preservação e a recuperação do patrimônio cultural (art. 2, inc. XII

da lei 10.257/2001) e a garantia do direito a cidades sustentáveis que é entendido como o

“direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao

transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”

(art. 2, inc. I da lei 10.257/2001) estão entre as diretrizes fixadas para a política urbana com o

objetivo de desenvolver as funções sociais da cidade e da propriedade urbana.

O desenvolvimento sustentável se apresenta como uma síntese advinda do

entrelaçamento dos fatores econômicos, sociais e culturais do desenvolvimento, que devem

ser tratados como um todo, contribuindo para uma sadia qualidade de vida, a partir de

escolhas que devem ser democráticas sobre os rumos desejados para a cidade.

A compreensão do desenvolvimento sustentável passa necessariamente pela

percepção da inter-relação existente entre os seus pilares de sustentação que são segundo

Sachs (2008, p. 15-16) o social, ambiental, territorial, econômico e político.

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A Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento (1987) através do

relatório “Nosso Futuro Comum” ou “Relatório Brundtland” conceituou o desenvolvimento

sustentável como aquele que satisfaz as necessidades presentes sem comprometer a

capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades (MARCHESAN, 2007,

p.186).

O “Relatório Brundtland”, segundo Veiga, (2010, p.113) elaborou um conceito

político e amplo para o desenvolvimento sustentável que institucionaliza o maior desafio e o

principal objetivo das sociedades contemporâneas: a conciliação entre crescimento econômico

e conservação da natureza.

Desenvolvimento sustentável é aquele que satisfaz os interesses de todos os grupos, possibilitando, ao mesmo tempo, proteção ambiental. Deve situar-se em um patamar mínimo de bem-estar e dentro de um limite máximo tolerável de desgaste de recursos ambientais, seja provocado pelo crescimento econômico, seja provocado pela própria comunidade em suas atividades normais. É a harmonização do homem com a natureza. Não significa não crescimento, mas a compatibilização entre crescimento econômico e proteção ambiental (MARQUES, 2009, p. 125).

O desenvolvimento sustentável deve ser uma meta ou um objetivo do poder

público e da coletividade, ainda que ele seja considerado inatingível. Segundo Marques (2009,

p. 126-127) não se pode “aceitar a insustentabilidade ambiental e social em beneficio

exclusivo do crescimento econômico”.

Os aspectos ambientais, econômicos e sociais do desenvolvimento sustentável

estão presentes na Constituição Federal de 1988 quando aborda a ordem econômica (art. 170,

inciso VI, CF/88), a proteção do meio ambiente (art. 225, CF/88) e os objetivos fundamentais

da República Federativa do Brasil (art. 3º, CF/88).

O direito econômico e o direito ambiental, segundo Derani (2008, p.57-58)

comportam essencialmente as mesmas preocupações: a “melhoria do bem-estar das pessoas” e

a “estabilidade do processo produtivo”.

A ordem econômica, conforme a Constituição Federal de 1988 (art. 170, caput e

inciso VI), tem por fim assegurar a todos existência digna segundo os ditames da justiça

social observando, dentre outros princípios, a defesa do meio ambiente.

O meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental e consiste

num bem de uso comum do povo e essencial a sadia qualidade de vida (CF/88, art. 225,

caput).

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Segundo Derani (2008, p. 59), deve haver sintonia entre a qualidade de vida

proposta pela ordem econômica e a almejada pelas normas de direito ambiental. Isto implica

segundo referida autora que a expressão qualidade de vida comporta dois aspectos

concomitantes: “o do nível de vida material e o de bem-estar físico e espiritual”.

O patrimônio cultural enquanto um direito fundamental e integrante de uma das

facetas do meio ambiente (meio ambiente cultural) é um fator condicionante da ordem

econômica. É necessário, portanto, que haja sintonia entre o desenvolvimento econômico e a

promoção e proteção do patrimônio cultural para a geração de qualidade de vida nas cidades.

A cidade possui todos os aspectos que integram o meio ambiente (natural,

artificial e cultural), consistindo num bem ambiental síntese e que possui todas as

características de um bem difuso (YOSHIDA, 2009, p. 74).

Segundo Yoshida (2009, p. 75), a cidade a partir desta visão de bem ambiental

síntese e difuso pode ser definida como:

[...] um macrossistema resultante das interações dos sub-sistemas constituídos pelos meios físico, biótico e antrópico (incluído o espaço urbano construído), marcado por traços culturais, visando assegurar as condições propícias ao desenvolvimento da sadia qualidade de vida da sociedade urbana.

O direito a cidade na esfera do direito internacional é reconhecido como direito

fundamental pela Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (Habitat II)

realizada em Istambul em 1996, resultando na elaboração da Agenda Habitat.

A Conferência Habitat II abordou dois temas de igual relevância global: "Moradia

Adequada para Todos" e "Desenvolvimento de Assentamentos Humanos Sustentáveis em um

Mundo em Urbanização" (FERNANDES, 2003, p. 17).

A inclusão do primeiro tema na referida conferência decorre da constatação de

que um grande segmento da população mundial não possui acesso à moradia e a esgoto

sanitário; e o segundo tema por estar associado ao desenvolvimento econômico e social e

proteção ambiental em que se coloca a democracia, o respeito aos direitos humanos, os

governos responsáveis e transparentes e uma participação efetiva da sociedade civil como

fundamentos indispensáveis para o desenvolvimento sustentável (FERNANDES, 2003, p.

18).

O desenvolvimento sustentável compõe uma das metas e princípios da Agenda

Habitat II, sendo considerado essencial para o desenvolvimento de assentamentos humanos e

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para o atendimento das necessidades de crescimento econômico, desenvolvimento social e

proteção ambiental.

A sustentabilidade dos assentamentos humanos engloba a sua distribuição geográfica equilibrada, ou outra distribuição apropriada, em conformidade com as condições nacionais, promoção do desenvolvimento econômico e social, saúde humana e educação, conservação da diversidade biológica e o uso sustentável dos seus componentes, e a manutenção da diversidade cultural, além da qualidade do ar, água, florestas, vegetação e do solo em padrões suficientes para sustentar a vida humana e o bem-estar das gerações futuras (FERNANDES, 2003, p. 27).

A qualidade de vida nas cidades também compõe uma das metas e princípios da

Agenda Habitat II que além dos fatores econômicos, sociais, ambientais e culturais dependem

das condições físicas e espaciais das cidades.

Os objetivos desse esforço incluem proteção à saúde pública, garantia de segurança, educação e integração social, incentivo à igualdade e ao respeito pela diversidade e identidade cultural, maior acessibilidade para pessoas portadoras de deficiências e preservação de prédios e áreas de valor histórico, espiritual, religioso e cultural, respeito às paisagens locais, e cuidado com o meio ambiente local. A preservação de patrimônios naturais e dos assentamentos humanos históricos, incluindo sítios, monumentos e construções, sobretudo aqueles sob a proteção da Convenção da Unesco sobre Patrimônios Históricos Mundiais, deve ser assistida, inclusive através da cooperação internacional. É também crucial que a diversificação espacial e a utilização mista de moradias e serviços sejam promovidas em nível local, de forma a atender à diversidade de necessidades e expectativas (FERNANDES, 2003, p. 28).

O desenvolvimento sustentável liga-se as questões sociais, econômicas e

ambientais, mas almeja em última instância realizar o princípio da dignidade da pessoa

humana.

Paradoxalmente, entretanto, o homem acaba se tornando a fonte, o fim e – por que não? – o maior obstáculo para a conjunção harmônica entre sustentabilidade e desenvolvimento, conceitos que ainda esperam por ser sedimentados e ter seus caminhos desbravados, caminhos estes que certamente serão alterados, na medida em que também se alterem as necessidades básicas e secundárias da sociedade humana (MAGALHÃES e MOTTA, 2012, p. s/n).

Trata-se de uma concepção antropocêntrica que percebe o desenvolvimento

sustentável como “algo que está em mutação plena e ininterrupta e cuja consecução pressupõe

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qualidades que só o homem é capaz de deter: a alteridade e a capacidade de sonhar e planejar

o seu futuro” (MAGALHÃES e MOTTA, 2012, p. s/n).

Assim, este trabalho busca pensar a cidade sustentável através da proteção do

patrimônio cultural para a manutenção dos valores culturais e identitários dos grupos sociais

que contribuem para a formação da sociedade brasileira.

Com efeito, a cidade sustentável que protege o patrimônio cultural é a mesma da

industrialização e da urbanização e dos conflitos entre valor de uso e valor de troca que

através da logica capitalista transforma o espaço urbano em mercadoria e produz coisas não

para serem usadas, mas para serem trocadas por dinheiro.

Para a lógica capitalista a terra também se torna um bem com valor de troca,

transformando-se em mercadoria apropriável individualmente e protegida pela Constituição

Federal de 1988, pois o direito de propriedade é um direito fundamental. Todavia, a terra é

uma mercadoria de oferta limitada, sendo comumente uma mercadoria única e objeto de

disputas e conflitos.

A legislação civilista divide dicotomicamente a propriedade em bens públicos e

bens privados. Todavia, os bens de valor cultural não se inserem nesta lógica dicotômica, pois

são bens que segundo a função social da propriedade detém além da dimensão econômica que

viabiliza a apropriação individual, uma dimensão socioambiental que se reveste de um direito

coletivo que legitima a atuação do poder público na sua preservação através inclusive de

medidas restritivas ao proprietário como as decorrentes do tombamento e do planejamento

urbano da cidade.

A cidade sustentável deve, portanto, reconhecer a existência destes conflitos e

contradições entre a industrialização e a urbanização, o valor de uso e o valor de troca, a

apropriação privada dos espaços urbanos e as ações públicas de planejamento urbano e

ordenação do espaço para através de uma gestão democrática da cidade com a participação

dos vários grupos sociais que vivem a cidade para em conjunto com o poder publico definir as

politicas urbanísticas e as ações de proteção do patrimônio cultural.

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4 A CIDADE E O PATRIMÔNIO CULTURAL: O TOMBAMENTO DO CENTRO ANTIGO E DO CENTRO HISTORICO DE MANAUS

A seção anterior abordou a cidade sob a perspectiva da problemática urbana

desencadeada pela industrialização em que foi analisado o papel do planejamento urbano para

o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida a partir de uma gestão democrática da

cidade e da função social da propriedade urbana.

A presente seção analisa a cidade e o patrimônio cultural tomando como objeto de

estudo o centro da cidade de Manaus protegido pelos tombamentos promovidos pela LOMAN

e pelo IPHAN.

Inicialmente será apresentada a cidade de Manaus durante o período da borracha e

em seguida, a Manaus atual com os seus problemas urbanos desencadeados pela rápida

industrialização. Em seguida será abordada a proteção conferida ao patrimônio cultural

através do tombamento promovido pela LOMAN do centro antigo de Manaus e do

tombamento promovido pelo IPHAN do centro histórico de Manaus, espaços protegidos que

se sobrepõem e que recebem uma dupla proteção.

Posteriormente, será abordada as conflituosidades desencadeadas pela dupla

proteção incidente sobre os bens culturais situados na área central da cidade referentes aos

entes da federação para ao final, abordar o Plano Diretor Urbano e Ambiental de Manaus e o

seu papel na proteção do patrimônio cultural.

4.1 A CIDADE DE MANAUS: DO EXTRATIVISMO À INDUSTRIALIZAÇÃO

A cidade de Manaus compreende em sua história dois momentos relevantes para o

nosso estudo: o passado da borracha e o presente da industrialização.

O período da borracha tem sua relevância neste estudo justificada pelo fato das

edificações e do traçado urbano desenhado neste período ter o seu valor cultural reconhecido

através do tombamento promovido pelo IPHAN.

A industrialização promovida na cidade com a implantação da Zona Franca de

Manaus – ZFM nos anos setenta do século XX com impactos no seu crescimento urbano

compõe o contexto para a promoção e proteção do patrimônio cultural no presente.

Assim, para a compreensão da importância conferida pelo IPHAN aos bens

culturais que integram o tombamento do centro histórico de Manaus impõe-se, ainda que de

forma sucinta, uma abordagem acerca do contexto histórico da formação da cidade de

Manaus, em especial, o período correspondente ao “ciclo da borracha”, final do século XIX e

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inicio do século XX, seguida de uma análise do contexto atual da cidade de Manaus

decorrente do processo de industrialização desencadeado pela instalação da Zona Franca de

Manaus, nos anos setenta do século XX.

4.1.1 A cidade da borracha e das contradições

O modelo de ocupação inicial da Amazônia pela Coroa portuguesa deu-se de

forma pontual com a construção de fortificações em locais estratégicos nas margens do rio

Amazonas e na foz dos seus principais afluentes (IPHAN, 2010, p. 23).

A ocupação portuguesa na Amazônia (século XVII e XVIII) além de objetivar o

domínio territorial, visava, também, a questão econômica de cunho mercantilista que tinha

nos produtos extraídos da Amazônia uma alternativa aos produtos asiáticos (OLIVEIRA,

2006).

A formação de Manaus insere-se no processo de ocupação e conquista da

Amazônia conduzida pelos portugueses durante o período colonial através da construção de

fortificações.

Em 1669, para garantir um ponto de partida da penetração portuguesa em direção ao norte e impedir a passagem de navios holandeses que desciam do Orenoco para comerciar com os Omágua, o capitão Francisco da Mota Falcão foi nomeado para a importante tarefa de fortificar a boca do rio Negro. Escolheu o outeiro, entre dois igarapés, situado três léguas acima da confluência do rio Negro com o Solimões e levantou, auxiliado por seu filho Manoel da Mota Siqueira, engenheiro de fortificações, um reduto de pedra e barro, de forma quadrangular. era uma obra simples e rápida que levou o nome de fortaleza de São José do Rio Negro, [...] dando origem ao povoado chamado de Lugar da Barra, que no futuro seria a cidade de Manaus (SOUZA, 2009, p. 133).

O governo do Marques de Pombal (1750/1777), segundo Oliveira (2006, p. s/n)

modificou o processo de colonização na Amazônia ocidental com a criação da Capitania de

São José do Rio Negro, a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, a abolição da

administração temporal dos religiosos nas missões indígenas e a transformação de aldeias em

vilas e povoados. Tais medidas fizeram com que Portugal consolidasse o seu domínio na

Amazônia ocidental.

A criação de vilas em lugares estratégicos e nas imediações das fortificações tinha

como função: “defesa, cobrança e controle de tributos, entreposto comercial de produtos

extrativos e agrícolas, base para o preiamento de índios e sede do poder temporal,

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representação do Estado e do poder espiritual através das missões religiosas” (OLIVEIRA,

2006, p. s/n).

Segundo Oliveira (2006, p. s/n), as vilas também significavam aos colonizadores

espaços privilegiados para um projeto civilizatório em que se impunha a língua portuguesa,

obrigava-se a frequência à escola e incentivava o casamento entre soldados e índias. Este

consistia numa estratégia para civilizar os índios pela disseminação da cultura dos brancos

pelo casamento, o que acabou não tendo o efeito almejado.

Mas apesar do processo desigual de como se davam as relações, houve neste caso quase sempre um efeito contrário. “Os casamentos, que tanto persuadiu a lei de 4 de abril de 1775, têm sido pela maior parte pouco afortunados; porque em lugar de as Índias tomarem os costumes de Brancos, estes têm adotados os daquelas” (Diário do Ouvidor Sampaio, 1886, p. 92). Isto mostra que a realidade está carregada de dimensões em que se imbricam a cultura e a natureza e nem sempre a ação de poder é capaz de modifica-las em sua inteireza, visto que cada relação se estabelece numa espacialidade cheia de contradições (OLIVEIRA, 2006, p. s/n).

Os séculos XVII e XVIII são marcados pelo predomínio na Amazônia da

exploração das drogas do sertão e da agricultura que se limitava as proximidades das margens

dos rios. Durante este período, segundo Oliveira (2006, p. s/n), não é possível afirmar que

houve uma interiorização da economia e nem um significativo povoamento sob a perspectiva

do colonizador.

O século XIX registra acontecimentos como: a Cabanagem, a elevação do

Amazonas a categoria de província em 1850, a navegação a vapor em 1853, a exploração dos

seringais. Esses acontecimentos, segundo Oliveira (2006, p. s/n) contribui para modificar a

paisagem amazônica e dar os contornos da futura malha urbana do Amazonas.

A exploração da borracha ocorrida entre 1860 e 1910 impulsionou a criação de

vilas e povoados dispersos e desprovidos de relevância regional. Os benefícios desta atividade

econômica ficaram concentrados em Belém e Manaus, tornando-as as mais importantes

cidades da região (OLIVEIRA, 2006, p. s/n).

A cidade de Manaus cresceu durante o período da borracha como um centro de

comércio, com poucas indústrias de beneficiamento e entreposto para escoar a borracha e para

a entrada de produtos manufaturados (OLIVEIRA, 2006, p. s/n).

A atividade extrativista relacionada à borracha serviu de forte atrativo para os

trabalhadores que se dirigiam a região em busca de riqueza. A euforia em torno da borracha

colocou num plano secundário algumas atividades como a agricultura, a indústria e as obras

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públicas que não conseguiam mão-de-obra para o seu desenvolvimento (MESQUITA, 2006,

p. 123).

Em 1852, segundo relatório de Tenreiro Aranha, primeiro governador da Província do Amazonas, as forças econômicas estavam deixando algumas atividades agrícolas e industriais, implantadas no período colonial, para se dedicar ao extrativismo (SOUZA, 2009, p. 239).

A situação econômica neste período possibilitou o aparecimento de uma elite

composta de latifundiários e comerciantes que atuavam como intermediários entre os

seringalistas e os consumidores estrangeiros – os aviadores. Esta elite introduziu novos

hábitos de aspiração europeia voltados muitas vezes para a mera ostentação e que foram

sendo absorvidos por parte da população (MESQUITA, 2006, p. 123).

O Estado do Amazonas também obteve um elevado incremento da sua receita

decorrente da cobrança de impostos pela exportação da borracha o que era utilizado para

justificar a solicitação de recursos para a implantação de melhoramentos na cidade de

Manaus.

Em 1896, Eduardo Ribeiro (1896, p. 35) voltava a afirmar que as rendas públicas continuavam a crescer progressivamente e era extraordinária a diferença que se observava de um exercício financeiro para outro. As previsões eram sempre superadas em consequência dos acréscimos constantes nas rendas arrecadadas a partir dos direitos cobrados sobre a exportação dos produtos naturais (MESQUITA, 2006, p. 125).

A riqueza gerada pela borracha foi tão intensa que, segundo Mesquita (2006, p.

124), alguns acreditavam na eternidade desta situação diante da imensidão dos seringais e da

promissora indústria automobilística.

A Proclamação da República contribuiu para as mudanças ocorridas no Amazonas

especialmente porque a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de

fevereiro de 1891 conferia aos Estados brasileiros uma autonomia impensável durante o

período Monárquico em que as decisões ficam centralizadas na figura do imperador.

A Constituição de 1891 transformou as antigas províncias em Estados, conferindo

a cada um a incumbência de prover as suas expensas as necessidades de seu governo e

administração (art. 2º e 5º da Constituição de 1891). Também foi atribuída aos Estados a

competência exclusiva para decretar impostos sobre a exportação de mercadorias de sua

própria produção (art. 9° da Constituição de 1891).

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Com efeito, esta nova conjectura política viabilizada com a Proclamação da

República tornou possível ao Estado do Amazonas dispor de seus próprios recursos

justamente num momento de apogeu da borracha.

A exportação deste produto reduzia o déficit do Brasil na relação cambial e as

receitas geradas com a cobrança de impostos financiavam as reformas na cidade de Manaus.

A cidade de Manaus teve um crescimento repentino, sendo submetida a projetos

de embelezamento que lhe conferiram uma aparência moderna e civilizada que, segundo

Mesquita (2006, p. 145) consistia, também, numa forma de maquiar a realidade para iludir e

entreter.

O processo de embelezamento da cidade de Manaus para a sua adequação aos

padrões urbanos vigentes a época impôs a redefinição do espaço urbano com a modificação

do traçado urbano que ignorou a topografia da cidade. Assim, igarapés foram aterrados,

colinas niveladas, prédios erguidos no modelo europeu ainda que inadequados ao clima local.

As mudanças ocorridas na cidade de Manaus não se limitavam ao aspecto material

(arquitetônico) consistente no embelezamento da cidade, mas significava uma mudança

cultural a que Mesquita (2006, p. 145) denominou de branqueamento da vitrine:

Como resultado das mudanças ocorridas no final do [século] 19, surgia com o novo século uma outra cidade, que pode ser interpretada como a imagem da vitrine instalada, resultado de uma série de transformações. Todo processo de mudanças, com suas obras públicas, a introdução de novos costumes e a adoção de modernos serviços públicos podem ser simbolicamente compreendidos como um “rito de passagem” do processo de branqueamento através do qual a cultura local despia-se das tradições de origem indígena e vestia-se com características ocidentais.

A cidade de Manaus que antes era vista como um local provinciano passa a ser

descrita como uma “cidade moderna, graciosa e com ares europeus” especialmente pela

aparência que lhe foi conferida através do processo de embelezamento que pretendia inseri-la

no rol das cidades cosmopolitas (MESQUITA, 2006, p. 146).

Todavia, a opulência do período da borracha que se refletia no embelezamento da

cidade de Manaus também possuía contradições.

A mulher na sociedade da borracha estava sujeita a diversas formas de submissão

dentre as quais a prostituição em que ela consistia num objeto de alto valor constante na lista

das mercadorias comercializadas.

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A sociedade do látex tornar-se-ia uma sociedade falocrata, que daria à mulher uma utilização tão aberrante quanto a forma de explorar a força de trabalho do seringueiro. Adornaram sua terra exótica com a venerável cultura europeia, mas não admitiam uma mulher como pessoa. Mulheres e Victor Hugo estavam no mesmo carregamento, como o parnasianismo parecia constar da mesma lista de panaceias contra a gonorreia (SOUZA, 2009, p. 264).

O seringalista ou coronel da borracha era em si mesmo, também, uma

contradição: em Manaus consistia num cavaleiro citadino, enquanto no seringal era o patriarca

feudal. Segundo Souza (2009, p. 265), essa contradição era ignorada, pois a “face oficial do

látex era a paisagem urbana, a capital coruscante de luz elétrica, a fortuna de Manaus e

Belém, onde imensas somas de dinheiro corriam livremente”.

O seringueiro, ofuscado pela face oficial do látex, foi esquecido em meio à

floresta, subjugado pelo coronel da borracha foi submetido a um regime de trabalho

torturante.

A vida árdua do seringueiro foi registrada por Euclides da Cunha em texto

intitulado “Judas-Ahsverus” escrito durante viagem à Amazônia (1904-1905) e publicado

postumamente (À margem da história), quando chefiou uma comissão mista Brasil-Peru de

reconhecimento do Alto Purus.

No sábado de Aleluia os seringueiros do Alto Purus desforram-se de seus dias tristes. É um desafogo. Ante a concepção rudimentar da vida santificam-se-lhes, nesse dia, todas as maldades. Acreditam numa sanção litúrgica aos máximos deslizes. Nas alturas, o Homem-Deus, sob o encanto da vinda do filho ressurreto e despeado das ínsidias humanas, sorri, complacentemente, à alegria feroz que arrebenta cá em baixo. E os seringueiros vingam-se, ruidosamente, dos seus dias tristes. Não tiveram missas solenes, nem procissões luxuosas, nem lavapés tocantes, nem prédicas comovidas. Toda a Semana Santa correu-lhes na mesmice torturante daquela existência imóvel, feita de idênticos dias de penúrias, de meios-jejuns permanentes, de tristezas e de pesares, que lhes parecem uma interminável sexta-feira da Paixão, a estirar-se, angustiosamente, indefinida, pelo ano todo afora. [...] É um doloroso triunfo. O sertanejo esculpiu o maldito à sua imagem. Vinga-se de si mesmo: pune-se afinal, da ambição maldita que o levou àquela terra; e defronta-se da fraqueza moral que lhe parte os ímpetos da rebeldia recalcando-o cada vez mais do plano inferior da vida decaída onde a credulidade infantil o jungiu, escravo, à gleba empantanada dos traficantes, que o iludiram (CUNHA, 1922, p. 85-94).

Essas contradições presentes na sociedade da borracha eram simplesmente

ignoradas. A preocupação das elites é transformar Manaus num centro de prosperidade e

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riqueza. A aparência da cidade e a ilusão de integrar o mundo moderno eram as preocupações

reinantes. Assim, também foi desenvolvida uma politica de preservação e defesa da ordem

urbana.

O que se percebe ao tentar recuperar a constituição histórica de Manaus como capital da borracha, é que o poder público, aliado aos interesses privados, desenvolvem uma política de pressão, exclusão e dominação contra pessoas ou grupos de pessoas que emergem na cidade e que não se enquadram nos conceitos de valores da elite local. Foi necessário desenvolver uma política da preservação e defesa da ordem urbana, e na medida que os valores eram afrontados, cabiam providências de excluir do espaço urbano, pobres, desocupados, doentes, pedintes, prostitutas, vadios, etc. Numa cidade de “fausto”, a pobreza, a doença, a vagabundagem, agrediam e ao mesmo tempo ameaçavam a ordem e a harmonia da cidade que se projetava na representação burguesa, como limpa, ordeira e sem problemas (DIAS, 1999, p. 132).

Todavia, a borracha entrou em crise quando o látex asiático invadiu o mercado

com grande quantidade deste produto e um reduzido preço o que provocou o deslocamento do

capital externo investido na região amazônica para outras regiões, especialmente, a Ásia19.

Segundo Oliveira (2006), os motivos que conduziram a estagnação gerada com a

crise da borracha podem ser compreendidos da seguinte forma:

Há um limite da atividade extrativa para a criação e dinamização do espaço urbano em decorrência da composição orgânica do capital empregado, com predominância do capital variável sobre o capital constante, em virtude da ausência quase total de equipamentos e maquinaria. A exploração da força de trabalho era facilitada pela abundância de mão-de-obra, ausência de mecanismos de mediação entre patrões e empregados e pelas condições de isolamento a que era submetido o seringueiro. Apenas parte da riqueza extraída dos seringais foi apropriada localmente, enquanto a maior parte ficou retida nas mãos de uma minoria privilegiada, internamente os exportadores de borracha e as casas aviadoras e externamente os importadores de borracha nos mercados americanos e ingleses e no Brasil por segmentos de classe do Centro-Sul (OLIVEIRA, 2006, p. s/n).

A incapacidade de transformar o capital comercial em industrial na Amazônia se

deve em parte às proibições existentes para a instalação de indústrias constantes nas leis

coloniais, que segundo Souza (2009, p. 239) estabeleceram em relação à borracha um

retrocesso de uma atividade manufatureira para um extrativismo em rápida ascensão.

19 Para um estudo da crise da borracha: MENDES. José Amando. A crise amazônica e a borracha. Manaus: Valer, 2004.

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A destinação conferida pelas elites locais à riqueza que permaneceu na região,

também, ajuda a perceber no plano cultural quais eram as suas preocupações e a constatar a

sua incapacidade de transformar a riqueza decorrente da borracha em capital industrial.

A riqueza retida localmente, Belém e Manaus não foi aplicada na reprodução da atividade econômica, mas em consumo supérfluo e em obras suntuosas. O idealismo de uma elite residente em Belém e Manaus era a fantasia, o capricho e a extravagância, enquanto nos seringais, os meios de trabalho utilizados pelos seringueiros eram quase somente seus corpos (OLIVEIRA, 2006, p. s/n).

O período de opulência da borracha chegou ao fim, mas promoveu mudanças

culturais, sociais, políticas e econômicas que influenciaram as transformações promovidas na

cidade de Manaus durante este período e que o tombamento do centro antigo e do centro

histórico de Manaus busca resgatar, como será demonstrado nos tópicos seguintes.

Todavia, a história que se propõe a resgatar com o tombamento do centro antigo e

do centro histórico de Manaus não é a história do seringueiro, mas a história das elites da

época e dos seus feitos representados na arquitetura e no traçado urbano consistentes em obras

de embelezamento que tinham o escopo de refletir a cidade de Manaus como um lugar

moderno e civilizado.

A cidade de Manaus com a crise da borracha entrou em declínio e passou por um

período de estagnação, erguendo-se economicamente somente com a implantação da Zona

Franca de Manaus, décadas depois, estando atualmente, século XXI, no rol das metrópoles

brasileiras como se verá a seguir.

4.1.2 A cidade da indústria e das questões urbanas

A cidade de Manaus insere-se no rol das metrópoles brasileiras, considerada polo

nacional, cuja função econômica é a produção e difusão tecnológica (FUCAPI, 2011, p. 15).

A criação da Zona Franca de Manaus pela Lei 3.173, de 06 de junho de 1957,

posteriormente alterada pelas disposições do Decreto-Lei nº 288, de 28 de fevereiro de 1967

com a finalidade de constituir uma área de livre comércio de importação e exportação e de

incentivos fiscais para estimular a instalação na Amazônia de centros industriais, comerciais e

agropecuários para o desenvolvimento da região tem grande influência no crescimento da

cidade.

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A industrialização ocorrida em Manaus a partir da criação da Zona Franca

produziu um fluxo migratório intenso ocasionado pelas oportunidades geradas com os

investimentos econômicos e a oferta de trabalho no polo industrial de Manaus.

O aceno de 50.000 empregos atraiu uma população de migrantes que nunca mais cessou de aportar em Manaus. A rápida instalação de empresas comerciais, as lojas de artigos importados que pululavam pelo centro histórico da cidade, a chegada de empresas multinacionais no Distrito Industrial, as firmas de consultoria, os institutos de pesquisas, as novas sucursais de instituições públicas, a horda de turistas em busca de aparelhos eletrônicos baratos e a vaga de migrantes em busca de novas oportunidades, transformou a cidade num inferno. Especialmente porque tal demanda chegava num momento em que a estrutura da cidade estava decadente (SOUZA, 2009, p. 338).

A análise dos dados referentes ao número de habitantes da cidade de Manaus em

1910 e 1920, período de agravamento da crise da borracha, assim como, em 1970 e 1980,

período posterior à instalação da Zona Franca de Manaus possibilita perceber as

consequências ocasionadas por estes acontecimentos (FUCAPI, 2011, p. 16).

O censo demográfico em 1910 indicava em Manaus a existência de 85.340

habitantes, todavia, em 1920 o quantitativo de habitantes sofreu um decréscimo passando a

ser de 75.704 habitantes, o que reflete uma das consequências da crise gerada pelo declínio da

borracha em que as pessoas atraídas num primeiro momento pela prosperidade gerada no

período áureo da borracha tendem, com o declínio desta atividade extrativista, a buscar outros

lugares de maior atrativo econômico e social, ou mesmo retornar a seus lugares de origem

(FUCAPI, 2011, p. 16).

Segundo Mesquita (2006, p. 162), em 1920 a atividade de extração do látex estava

definitivamente falida diante da reduzida participação do Brasil na produção mundial da

borracha.

Decididamente, o primitivo sistema extrativista fora derrotado e não dispunha de recursos capazes de acompanhar a rapidez e a qualidade da produção asiática. A Amazônia despedia-se definitivamente de sua fase áurea e mergulhava numa estagnação econômica que manter-se-ia por várias décadas, surgindo nova demanda somente por um curto período de tempo durante a 2ª Grande Guerra, quando o produto oriental encontrava-se inacessível (MESQUITA, 2006, p. 162).

O rápido desaparecimento da sociedade da borracha após a crise do látex, segundo

Souza (2009, p. 324) deixou para as gerações subsequentes a necessidade de enfrentar a pior

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sequela da decadência econômica que é a inércia, rompida apenas em alguns episódios como

a batalha da borracha.

A Segunda Guerra Mundial ao ocasionar a queda do fornecimento no mercado

mundial da borracha asiática motivou a celebração de acordos entre o Brasil e os Estados

Unidos, trazendo para a região amazônica, em 1942, o esforço de guerra voltado para ampliar

os estoques de borracha dos países aliados, estimulando a vinda de milhares de pessoas,

especialmente da região nordeste, para o trabalho nos seringais na extração do látex (SOUZA,

2009, p. 320).

Segundo Souza (2009, p. 320), alguns anos de euforia econômica que duraram

apenas até o final da guerra, pois o objetivo deste esforço era apenas satisfazer as

necessidades do mercado internacional. Ainda segundo Souza (2009, p. 321), o custo deste

esforço de guerra pago com vidas humanas é incalculável. Estima-se a morte de cerca de vinte

mil trabalhadores nos seringais, numero bem maior que as baixas sofridas pela Força

Expedicionária Brasileira na Itália.

A queda de Getúlio Vargas abre caminho para a redemocratização do Brasil com a

realização de eleições e a alternância do poder. Com isso, o modelo desenvolvimentista ganha

destaque no plano nacional, mas a região amazônica permanece numa posição de reserva,

aproveitando demandas internacionais relacionadas à atividade extrativista de fibras de juta,

pimenta-do-reino, castanha-do-pará e madeiras de lei (SOUZA, 2009, p. 320).

O golpe militar de 1964 coloca novamente o Brasil sob um regime ditatorial que

lança para a Amazônia uma nova estratégia de desenvolvimento regional denominada de

“Operação Amazônia”:

Para os militares, a Amazônia era um vazio demográfico, perigoso de ser controlado e alvo da cobiça de outras nações se não fosse urgentemente ocupado pelo Brasil. Além da cobiça internacional, a Amazônia era um cenário ideal para movimentos subversivos, como indicavam alguns exemplos bem visíveis do outro lado da fronteira colombiana (SOUZA, 2009, p. 320).

Com efeito, para efetivar esta estratégia de desenvolvimento, segundo Souza

(2009, p. 321) criou-se várias instituições governamentais que ficaram encarregadas de

planejar, gerenciar e coordenar as ações do poder público federal na região, dentre as quais a

Superintendência da Zona Franca de Manaus – SUFRAMA. Assim, o governo militar

mesclava o projeto de desenvolvimento da região com a ocupação e integração da região

amazônica.

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A implantação da Zona Franca de Manaus - ZFM muda esta perspectiva de

estagnação, o que é visualizável pelo crescimento da população na cidade: em 1970 a

população da cidade de Manaus era de 311.622 habitantes, chegando em 1980 a 633.383

habitantes, ou seja, a população nos dez anos seguintes a implantação da Zona Franca de

Manaus dobrou, atraída pelas oportunidades econômicas e sociais ocasionadas pela instalação

de empresas comerciais, pelas lojas de artigos importados e pelo Distrito Industrial (FUCAPI,

2011, p. 16).

A cidade de Manaus é a capital do Estado do Amazonas e concentra, segundo o

senso 2010 do IBGE uma população de 1.802.014 habitantes, o que corresponde a 51,7% dos

habitantes deste ente federativo (IBGE, 2011, p. s/n).

O Produto Interno Bruto - PIB da cidade de Manaus evidencia a sua dimensão e

importância econômica já que é responsável por 81,40% de toda a riqueza gerada no Estado

do Amazonas, sendo a sexta maior cidade do Brasil (FUCAPI, 2011, p. 18).

Todavia, este rápido crescimento populacional e econômico ocasionou uma

ocupação irregular e desordenada dos espaços urbanos com impactos na infraestrutura urbana

e na mobilidade viária.

O diagnostico das condições socioeconômicas da cidade de Manaus que integra os

estudos elaborados para a revisão do Plano Diretor Urbano e Ambiental de Manaus aponta o

despreparo da infraestrutura urbana para atender as necessidades do grande contingente

populacional:

Os problemas gerados pela ocupação desordenada e irregular se agravaram, haja vista que a infraestrutura urbana (esgotamento sanitário e serviços básicos para a população) e a mobilidade viária ainda não estão preparadas para proporcionar aos migrantes e os originalmente residentes, as condições que permitam o desenvolvimento equilibrado (FUCAPI, 2011, p. 22-25).

A posição de Manaus como metrópole lhe confere uma situação privilegiada, mas

também atrai uma série de questões que não são absorvidas pelas cidades vizinhas, pois

possuem uma infraestrutura ainda mais precária. Assim, a população dos municípios da região

dirige-se a Manaus para obter serviços como saúde, educação e trabalho.

No caso da saúde, a oferta de leitos em Manaus na proporção de 1.4 leitos a cada

mil habitantes é em relação aos demais municípios que integram a região metropolitana o que

possui a melhor oferta. Mas, se for comparado com outras capitais e a proporção ideal

apontada pelo Ministério da Saúde Manaus encontra-se bem aquém na oferta deste serviço

(FUCAPI, 2011, p. 23).

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88

A concentração da atividade econômica do Estado do Amazonas em Manaus

também atrai as pessoas da região em busca de trabalho na capital, seja no comercio ou no

polo industrial, todavia a mão-de-obra disponível em Manaus de um modo geral, ainda é de

baixa qualificação.

A área urbana da cidade de Manaus concentra 97,7% da população total que esta

distribuída por 457,9 mil domicílios, uma média de 3,8 habitantes por unidade domiciliar

(FUCAPI, 2011, p. 26).

Assim, Manaus tornou-se uma metrópole repleta de problemas urbanos

decorrentes do crescimento desordenado que impacta também na proteção do patrimônio

cultural.

A cidade de Manaus foi abordada neste estudo abrangendo suas principais

peculiaridades referentes a dois períodos marcantes da história local: o período áureo da

borracha marcado pela atividade extrativista do látex e o período da industrialização da cidade

impulsionado pela instalação da Zona Franca de Manaus.

Trata-se de períodos históricos distintos e distantes no tempo que estão sempre em

contato através do patrimônio cultural, testemunho da época áurea da borracha, que resiste às

ações de transformação dos espaços urbanos e aos conflitos de interesses que serão abordados

mais a frente quando forem analisadas as conflituosidades geradas em torno do tombamento

do centro antigo e do centro histórico de Manaus.

O tópico seguinte abordará o tombamento promovido pela Lei Orgânica do

Município de Manaus – LOMAN referente ao centro antigo de Manaus. Também será

abordado o tombamento do centro histórico de Manaus para a compreensão do papel destes

bens culturais para a formação da sociedade brasileira, bem como buscando identificar o

paradigma adotado pelo IPHAN na escolha dos bens que integrarão o patrimônio cultural

brasileiro, além da análise da dupla proteção conferida aos bens culturais situados no centro

da cidade de Manaus e abrangidos pelo tombamento realizado, tanto pela LOMAN, quanto

pelo IPHAN.

4.2 CENTRO ANTIGO E CENTRO HISTÓRICO: ESPAÇO DE INTERESSES E CONFLITOS

O centro da cidade de Manaus congrega um conjunto urbanístico e arquitetônico

de valor cultural declarado duplamente patrimônio cultural através do tombamento promovido

pelo município de Manaus em sua Lei Orgânica e pela União através de um procedimento

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administrativo promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –

IPHAN que culminou com o tombamento.

O espaço tombado pela Lei Orgânica do Município de Manaus - LOMAN desde a

sua promulgação em 5 de abril de 1990 é denominado de centro antigo de Manaus e esta

situado entre a rua Leonardo Malcher e a orla fluvial, limitado esse espaço, à direita, pelo

igarapé de São Raimundo e, à esquerda, pelo igarapé de Educandos, tendo como referência a

Ponte Benjamin Constant (Art. 342 da LOMAN).

O tombamento promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico

Nacional - IPHAN através de um processo administrativo instaurado em 2010 é denominado

de centro histórico de Manaus e o seu espaço20 inicia-se na orla do rio Negro, passando pelo

entorno do Teatro Amazonas, Avenida Eduardo Ribeiro e Rua Leonardo Malcher.

Com efeito, sobre os bens inseridos neste espaço acaba incidindo uma dupla

proteção jurídica desencadeadora de tensões decorrente do regime jurídico que passa a ser

impingido à propriedade com o escopo de promover a proteção do patrimônio cultural.

Assim, o presente tópico pretende analisar os efeitos do instituto do tombamento

estabelecendo suas balizas jurídicas, para então analisar o tombamento promovido pela

LOMAN, bem como o promovido pelo IPHAN no intuito de desvelar o paradigma adotado

por este instituto na proteção do patrimônio cultural, a fim de fazer um cotejo ao final deste

tópico acerca da proteção conferida pela esfera federal e pela esfera municipal aos bens de

valor cultural inseridos no tombamento do centro antigo e do centro histórico de Manaus.

4.2.1 O tombamento e a proteção jurídica do patrimônio cultural

O instituto do tombamento encontra-se previsto no Decreto-Lei nº 25, de 30 de

novembro de 1937. É um instrumento jurídico de proteção do patrimônio cultural que incide

sobre o direito de propriedade, seja ela do domínio público ou privado, estabelecendo uma

série de limitações que afetam o uso, o gozo e a disposição que devem ser suportadas pelo

proprietário.

O direito de propriedade inserido no rol dos direitos e garantias fundamentais

constantes na Constituição Federal de 1988 não consiste num valor absoluto e, portanto, pode

sofrer restrições em favor do interesse público.

20 Para uma identificação precisa da área objeto do tombamento do centro histórico de Manaus conferir no processo de tombamento n. 1.614-T-10 a descrição da poligonal do tombamento do Centro Histórico de Manaus (p. 99-101) e a descrição da poligonal de entorno do centro histórico de Manaus (p. 102-103).

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Para Silva (2001), o tombamento é definido como:

[...] o ato do poder público que, reconhecendo o valor cultural (histórico, arqueológico, etnográfico, artístico ou paisagístico) de um bem, mediante sua inscrição no livro próprio, subordina-o a um regime jurídico especial que lhe impõe vínculos de destinação, de imodificabilidade e de relativa inalienabilidade (SILVA, 2001, p. 159).

O tombamento impõe, portanto, restrições ao direito de propriedade, submetendo-

o a um regime jurídico especial que confere aos bens tombados o status de bens de interesse

público.

Com isso, torna-se relevante estabelecer se o tombamento é um ato constitutivo

ou declaratório da existência do patrimônio cultural.

Para Silva (2001, p. 160), o tombamento é um ato constitutivo do patrimônio

cultural, pois inova a situação jurídica do bem tombado impondo obrigações ao proprietário

que antes não existiam.

A concepção do tombamento como ato constitutivo esta presente no Decreto-Lei

nº 25/1937 cuja norma estabelece que apenas serão considerados pertencentes ao patrimônio

histórico ou artístico nacionais os bens inscritos num dos livros do Tombo.

Todavia, a Constituição Federal de 1988 alterou o conceito de patrimônio cultural

e consequentemente a natureza jurídica do tombamento que segundo Souza Filho (2010, p.

85) não pode ser mais entendida como ato constitutivo.

A Constituição Federal de 1988 ao conceituar o patrimônio cultural no artigo 216

não estabeleceu qualquer vinculação entre este patrimônio e o ato administrativo do

tombamento, diferentemente do que ocorre com relação ao Decreto-Lei nº 25/1937.

Assim, para Souza Filho (2010, p. 85), trata-se de uma diferença jurídica

fundamental e que confere ao tombamento a natureza jurídica de ato declaratório, pois a

existência do patrimônio cultural não depende do tombamento.

Para embasar sua argumentação Souza Filho (2010), descreve a evolução

normativa acerca do patrimônio cultural desde o Decreto-Lei nº 25/1937 até a Constituição

Federal de 1988:

[...] em 1937, o patrimônio cultural era chamado de histórico e artístico, e considerado como o conjunto de bens tombados; na década de quarenta iniciou-se a considerar, por lei, bens coletivos como monumento nacionais, que foram interpretados como de igual efeito ao de tombamento; em 1961, com a Lei dos Sambaquis, se ampliou o conceito de patrimônio histórico e artístico aos bens arqueológicos, ficando estes no domínio da União e

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independente de tombamento. Portanto, a partir daqui, o patrimônio histórico e artístico já não era o conjunto dos bens tombados, mas estes e outros mais, definidos em lei. Em 1988, a Constituição alterou o nome do patrimônio para cultural, ampliando-o e o desencaixando do ato de tombamento, isto é, não exige que haja tombamento para que seja reconhecido como bem integrante do patrimônio cultural (SOUZA FILHO, 2010, p. 87).

Assim, os bens de valor cultural que não tenham sido tombados integram

igualmente o patrimônio cultural, sendo merecedores de proteção jurídica por outros

instrumentos de acautelamento. Logo, o tombamento não é constitutivo do patrimônio

cultural, mas consiste no ato administrativo que impõe aos bens tombados os efeitos jurídicos

que limitam o uso, o gozo e a disposição da propriedade, bem como atribui à proteção do bem

tombado um conjunto de normas jurídicas, inclusive penais, como ocorre com a lei nº

9605/98 que dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas lesivas ao

meio ambiente.

O poder público que efetuou o tombamento passa a dispor de meios para

assegurar que o bem tombado não seja alterado, conspurcado, deteriorado, destruído, bem

como que toda e qualquer alteração ou modificação (reparo, pintura e restauro) que se

pretenda impingir ao bem seja necessariamente precedida de autorização do órgão que

promoveu o tombamento.

O entorno do bem cultural tombado igualmente sofre os efeitos do tombamento

com a imposição de limitações ao direito de propriedade em relação aos bens vizinho aquele

tombado em que não se pode impedir ou reduzir a sua visibilidade.

Os efeitos do tombamento pelas limitações que impõe ao direito de propriedade é

um fator potencialmente promotor de tensão entre o viés individual representado pelo uso,

gozo e disposição da propriedade e o seu viés coletivo relativamente a sua função

socioambiental, o que não raras vezes provoca disputas jurídicas e judiciais em torno do valor

cultural do bem tombado.

4.2.2 O centro antigo de Manaus: patrimônio cultural tombado pela Lei Orgânica do Município de Manaus - LOMAN

O centro da cidade de Manaus com a promulgação em 5 de abril de 1990 da Lei

Orgânica do Município de Manaus – LOMAN torna-se objeto de proteção, acautelamento e

programação especial através do tombamento do centro antigo de Manaus, compreendido

entre a Rua Leonardo Malcher e a orla fluvial, limitado esse espaço, à direita, pelo igarapé de

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São Raimundo e, à esquerda, pelo igarapé de Educandos, tendo como referência a Ponte

Benjamin Constant (Art. 342 da LOMAN).

A Lei Orgânica do Município de Manaus - LOMAN também definiu e delimitou

o Sítio Histórico de Manaus que compreende o seguinte trecho:

[...] entre a Avenida Sete de Setembro até a orla do Rio Negro, inclusive Porto Flutuante de Manaus, Praças Torquato Tapajós, 15 de Novembro e Pedro II, Ruas da Instalação, Frei José dos Inocentes, Bernardo Ramos, Av. Joaquim Nabuco, em toda a sua extensão, Visconde de Mauá, Almirante Tamandaré, Henrique Antony, Lauro Cavalcante e Governador Vitório (Art. 235 da LOMAN).

O município de Manaus realizou antes mesmo da promulgação da LOMAN,

segundo o IPHAN (2010, p. 168) um levantamento com a finalidade de identificar e

inventariar as edificações consideradas merecedoras de proteção em que foram inventariados

cerca de mil bens históricos e culturais que passaram a se submeter à tutela do município,

cujas intervenções nos referidos bens devem se sujeitar a apreciação do município de Manaus.

A proteção destes bens foi efetivada através da Portaria SEMPLURB nº 26/85, na qual foram relacionadas 284 edificações como Unidades de Interesse de 1º Grau e 585 edificações classificadas como Unidades de Interesse de 2º Grau, além de 11 edificações/conjuntos construídos considerados como Unidades de Interesse de Preservação da Orla Portuária e 11 logradouros públicos classificados como Praças Antigas (IPHAN, 2010, p. 169).

O trabalho de inventariar os bens de valor cultural, localizados no centro da

cidade de Manaus, iniciado em 1984 (IPHAN, 2010, p. 168) marca os antecedentes da

proteção ao patrimônio cultural construído, consolidado através da LOMAN, no âmbito

municipal e, atualmente, na esfera federal pelo tombamento promovido pelo IPHAN através

do processo administrativo nº 1.614-T-10 instaurado em 24 de setembro de 2010.

A área tombada pela LOMAN denominada de centro antigo de Manaus coincide

em boa medida com aquela tombada pelo IPHAN e denominada de centro histórico de

Manaus.

A questão envolvendo o tombamento realizado pela LOMAN e o tombamento

promovido pelo IPHAN através do processo de tombamento n. 1.614-T-10, foi analisada pela

Procuradoria Geral do Município de Manaus - PGM através do parecer nº 014/2011-PMAU

para responder questionamentos formulados pelo Instituto Municipal de Planejamento Urbano

– IMPLURB (MANAUS, 2012, p. 99).

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93

O primeiro questionamento formulado, levando em consideração a questão

mencionada acima, consiste em saber se ainda tem validade o tombamento do centro antigo

de Manaus promovido pela LOMAN. A resposta a referido questionamento foi a seguinte:

Assim, em resposta à primeira indagação, entendo que a iniciativa de tombamento do Centro Histórico de Manaus pelo IPHAN reforça ainda mais a importância histórica e paisagística do Centro Antigo, não torna de nenhuma maneira inválido o tombamento do Centro Histórico de Manaus promovido pela Administração Municipal, tendo em vista se tratar de competência comum dos entes federativos, na verdade o Centro Histórico passará a possuir dupla proteção (MANAUS, 2012, p. 101).

De fato, a competência comum dos entes federados para a promoção e proteção

do patrimônio cultural conduz a conclusão lançada acerca da dupla proteção que o patrimônio

cultural passa a possuir.

O tombamento promovido pela LOMAN decorre da preocupação em proteger o

aspecto material dos bens culturais pela preservação e conservação do patrimônio cultural

construído. O tombamento promovido pelo IPHAN apresenta esta preocupação, mas com o

olhar focado no período histórico da borracha para conferir à Manaus um sentido de cidade

como espaço de memória e trocas sociais, o que será abordado no tópico seguinte.

4.2.3 O centro histórico de Manaus: patrimônio cultural tombado pelo IPHAN: uma abordagem acerca do debate entre os paradigmas da excepcionalidade e da diversidade.

Os estudos elaborados pelo IPHAN, voltados para o tombamento do centro

histórico de Manaus, destacam o processo de desenvolvimento urbano da cidade de

Manaus/AM com o escopo de reratificação da área tombada para fins de ampliação e

integração dos bens tombados anteriormente como o Teatro Amazonas e o Porto Flutuante de

Manaus cujo tombamento no âmbito federal ocorreu em 1966 e o Mercado Adolpho Lisboa

tombado em âmbito federal em 1987 que estão localizados no centro histórico de Manaus e

também abrangidos por esse novo tombamento (IPHAN, 2010, p. 12).

O Mercado Adolpho Lisboa, o Teatro Amazonas e o Porto Flutuante de Manaus

são bens tombados pelo IPHAN, pois foram vinculados a fatos memoráveis da história do

Brasil ou considerados como possuidores de excepcional valor arqueológico ou etnográfico,

bibliográfico ou artístico nos termos do Decreto-Lei n° 25/1937, mas foram protegidos como

monumentos isolados, o que lhes conferiu uma reduzida integração com a cidade.

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O processo de tombamento do centro histórico de Manaus conduzido pelo

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN instaurado em 24 de

setembro de 2010 e registrado junto ao arquivo central deste instituto sob o n. 1.614-T-10,

dentre outros objetivos como a proteção de bens de valor cultural relacionados ao período da

borracha, propõe a revisão desta forma de ação protetiva sobre bens isolados para proteger

pelo tombamento além das edificações, o conjunto arquitetônico e o traçado urbano para uma

maior integração entre os bens tombados e a cidade de Manaus.

O tombamento tem como foco, segundo o processo de tombamento nº 1.614-T-

10, o período econômico conhecido como “ciclo da borracha”, cujo auge deu-se entre 1890 e

1910, ocasionando mudanças urbanas e arquitetônicas com o objetivo de torná-la uma cidade

moderna na perspectiva europeia e com um traçado urbano específico (IPHAN, 2010, p. 12).

A localização de Manaus em meio à floresta amazônica é apontada como um fator

que faz com que a arquitetura resultante do ciclo da borracha, presente também em outras

regiões, torne-se peculiar nesta cidade, tornando-a referência urbanística relativamente ao

período econômico da borracha para todo o país (IPHAN, 2010, p. 13).

O tombamento do centro histórico de Manaus opera uma mudança de paradigma

na proteção do patrimônio cultural, pois abandona a proteção baseada unicamente no

monumento isolado e passa a promover a proteção do conjunto arquitetônico integrado à

cidade.

O IPHAN apresenta as seguintes premissas norteadoras dos seus estudos:

[...] as premissas que nortearam os nosso trabalho partem de uma concepção urbanística do patrimônio cultural, selecionando elementos passíveis de evocar uma visão da capital amazônica como um todo, na qual o patrimônio público e o patrimônio privado se inter-relacionem para dar à Manaus um sentido de cidade como espaço de memória e trocas sociais (IPHAN, 2010, p. 152).

A cidade de Manaus chega ao século XXI marcada por transformações

decorrentes da industrialização que desencadeia um crescimento urbano desordenado,

demolindo e mutilando o patrimônio cultural construído.

O retrato do centro histórico de Manaus no século XXI é apresentado da seguinte

forma pelo IPHAN:

[...] porção urbana formada por edificações do período áureo da cidade, alguns bem preservados, outros nem tanto, mesclada a edifícios modernos, os quais não primam pela preocupação estética ou ajuste de gabaritos com

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relação ao antigo, lugar no qual uma população vinda do interior instalou-se, entregue a ocupações informais e tomando as ruas com barracas com toda sorte de artigos (IPHAN, 2010, p. 152).

A ação do IPHAN com relação ao tombamento do centro histórico de Manaus

esta integrada a outras ações de proteção relacionadas ao “ciclo da borracha” em outras

cidades da região norte como Belterra e Fordlândia, no Pará, Rio Branco e Xapuri, no Acre

em que se busca proteger os bens culturais relacionados à paisagem do seringal e a vida do

seringueiro.

Nesse sentido, a rerratificação do centro histórico de Manaus, fundamental para a valorização daquela capital, não é uma ação isolada. Esta integrada à preocupação corrente de preservação de outros locais, na região Norte, relacionados com a exploração da borracha como por exemplo as cidades de Belterra e Fordlandia, no Pará, a cidade de Rio Branco, no Acre ou relacionados com a vida do seringueiro e à própria paisagem dos seringais em determinados locais, como a casa de Chico Mendes em Xapuri-AC, tombada em 2008 pelo IPHAN (IPHAN, 2010 p. 13).

Trata-se de uma ação protetiva dos bens culturais materiais que se reportam ao

período denominado de ciclo da borracha que influenciou social e economicamente não

somente a cidade de Manaus, mas toda a região norte.

Com efeito, a ação do IPHAN que visa conferir proteção aos vários bens culturais

que se relacionam ao ciclo da borracha, abrangendo bens que vão do Teatro Amazonas aos

seringais, aquele símbolo do poder e da imponência da elite da época e este representativo do

trabalho sofrido do seringueiro (IPHAN, 2010, 28) indicam uma mudança de paradigma na

condução dos trabalhos deste instituto para contemplar a diversidade cultural e a

democratização da cultura pela valorização do cotidiano.

É uma mudança nos valores que permeiam a proteção do patrimônio cultural que

vão ao encontro desses valores consagrados no texto constitucional e relacionados à proteção

do patrimônio cultural.

Todavia, a ideia de conferir proteção apenas aos bens culturais dotados de valores

excepcionais ainda permeia o discurso oficial do IPHAN, ainda que seja para registrar que

não é esta a sua intenção.

A introdução aos estudos elaborados pelo IPHAN para o tombamento do centro

histórico de Manaus registra expressamente a preocupação deste instituto em valorizar todas

as regiões do Brasil por meio de ações de preservação que se reportam a períodos de destaque

na história nacional (IPHAN, 2010, p. 12).

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Referido estudo quando apresenta os aspectos metodológicos em que se baseou

(revisão bibliográfica e pesquisa iconográfica), também apresenta a sua preocupação em

registrar expressamente que não se utilizou de uma historiografia unicamente ufanista

(IPHAN, 2010, p. 13).

Tais registros evidenciam que a proteção do patrimônio cultural, ainda esta ligada

as ideias de excepcionalidade e de fatos memoráveis a que se refere o Decreto-Lei n°

25/1937, mas também demonstra o esforço e a preocupação em desconstruir estas concepções

de patrimônio cultural para se aproximar da concepção constante na Constituição Federal de

1988 atinente a diversidade cultural e a democratização da cultura por meio da estética através

da valorização do cotidiano.

A atuação do IPHAN no tombamento do centro histórico de Manaus está sob a

égide da Constituição Federal de 1988 e, portanto, sob o paradigma da diversidade cultural.

Segundo Sena (2008, p. s/n), a partir da década de 70 o conceito de bens culturais

passa a incluir a ideia de diversidade cultural. Todavia, para a referida autora o discurso

acerca da mudança de paradigma na valoração dos bens culturais não condiz com a prática

engendrada pelo órgão oficial, que faz incidir a proteção sobre os bens considerados de valor

excepcional e ligados a fatos memoráveis da historia conforme preconiza a legislação de

1937.

Nessa perspectiva, o discurso de proteção do patrimônio cultural engendrado na

diversidade cultural permanece ainda distante de ser uma prática efetiva. Segundo Chuva

(2011, p. 40), a produção de conhecimento sobre o patrimônio cultural é marcada por visões

de mundo que implicam em escolhas que limitam e delimitam o olhar sobre a realidade

analisada.

Atribuir valor a bens culturais implica enfrentar questões como a dualidade entre

o nacional e o local, o excepcional e o comum, a identidade e a diversidade. Trata-se de

escolhas que envolvem conflitos de interesses e instrumentos de poder (SENA, 2008, p. s/n).

Com efeito, as ações efetivas dos órgãos oficiais de proteção do patrimônio

cultural estão aquém dos discursos construídos sob a perspectiva da diversidade cultural.

Todavia, marca o inicio de um processo de mudança que se estabeleceu definitivamente com

a Constituição Federal de 1988 e que deve ser marcado por um constante e intenso diálogo

com a sociedade para a compreensão das razões da ação protetiva.

O diálogo entre os órgãos oficiais de proteção e a sociedade, com a mudança de

paradigma para contemplar a diversidade cultural, deve ser intensificado, pois os bens

culturais que a ação protetiva visa resguardar não possuem somente os apelos de

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excepcionalidade e grandiosidade, não se relacionam mais aos feitos heroicos de

personalidades da história. A ação protetiva visa também proteger a historia do seringueiro, a

paisagem do seringal, a cultura popular produzida por pessoas anônimas, mas que são

portadoras de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da

sociedade brasileira.

A mudança no paradigma da proteção do patrimônio cultural é também uma

mudança na forma de compreender a história que não é feita apenas pelos grandes heróis da

nação, mas por pessoas anônimas, cotidianamente, através dos seus modos de criar, fazer e

viver.

O tombamento promovido pela LOMAN em 1990 e o tombamento promovido

pelo IPHAN em 2010, ambos do centro da cidade de Manaus e denominados respectivamente

de centro antigo e centro histórico, incidem praticamente sobre o mesmo espaço geográfico,

ocasionando uma dupla proteção do patrimônio cultural abrangido pela poligonal dos

referidos tombamentos.

O tombamento promovido pelo IPHAN em 2010 do centro histórico da cidade

tem provocado questionamentos e conflituosidades que estão renovando velhas questões

surgidas com o tombamento realizado pela LOMAN em 1990 do centro antigo.

Os questionamentos formulados contrariamente ao tombamento consistem em

considerá-lo como indiscriminado e abrangente de um extenso espaço urbano, pois não

individualizou os bens culturais objeto da proteção e abrange também edificações e espaços

urbanos desprovidos de interesse histórico e cultural (IPHAN, 2010, p. 169).

O Estado do Amazonas também discute aspectos formais do processo

administrativo do tombamento conduzido pelo IPHAN e o município de Manaus veiculou

declarações contraditórias acerca do tombamento em que num primeiro momento manifesta-

se favoravelmente ao tombamento, mas em seguida discorda da ação protetiva do IPHAN, o

que será analisado no tópico seguinte.

Neste contexto, uma questão permeia estes conflitos acerca do tombamento do

centro histórico realizado pelo IPHAN que consiste em saber por que a proteção conferida

pelo IPHAN sobre este espaço esta provocando ações incisivas especialmente do Estado do

Amazonas e contraditorias do próprio município de Manaus contra esta ação protetiva, já que

o centro da cidade de Manaus já se encontra tombado há mais de 20 anos pela LOMAN.

Assim, o tópico seguinte abordará as conflituosidades geradas pelo tombamento

promovido pela LOMAN e especialmente pelo IPHAN entre os três entes da federação que

deveriam atuar em conjunto para a promoção e proteção do patrimônio cultural.

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4.2.4 Conflituosidades entre os processos construtivos da cidade e o patrimônio cultural: uma leitura a partir do projeto do Monotrilho e do “camelódromo” de Manaus

O tombamento do centro antigo e do centro histórico de Manaus, cuja área de

abrangência é expressiva e atinge uma grande quantidade de bens imóveis, encontra-se em

meio a vários debates, especialmente entre os entes federativos (União, Estado do Amazonas

e Município de Manaus) cuja competência constitucional para a promoção e proteção do

patrimônio cultural é comum, o que deveria conduzir a uma atuação conjunta destes entes.

Porém o que se verifica é uma intensa conflituosidade.

O Estado do Amazonas posicionou-se contrário ao ato administrativo do IPHAN

que tombou o centro histórico de Manaus, inclusive propôs uma ação judicial perante a Seção

Judiciária do Amazonas pedindo a anulação do processo de tombamento21.

O argumento para fundamentar a pretensão de anulação do tombamento do centro

histórico de Manaus apresentado pelo Estado do Amazonas consiste na existência de vícios no

processo administrativo de tombamento que violam o principio constitucional do devido

processo legal.

No caso, entre as irregularidades apontadas está a não realização de audiência e

consulta públicas na cidade de Manaus acerca do tombamento, medida considerada necessária

para viabilizar a colaboração da coletividade na proteção do patrimônio cultural e conferir

efetividade à Constituição Federal de 1988 (Art. 216, §1º da CF/88).

Este embate judicial entre o Estado do Amazonas e a União ganhou a amplitude

de conflito federativo e ensejou o deslocamento da competência do seu processamento e

julgamento para o Supremo Tribunal Federal.

Com efeito, a ação judicial que tramitava perante a Seção Judiciária do Amazonas

foi remetida à Suprema Corte cujo relator do processo proferiu o seguinte despacho

reconhecendo a relevância do conflito22.

Despacho: Cuidam os autos de ação originária movida pelo Estado do Amazonas em face da União e do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico com o objetivo precípuo de condenar a União a não homologar o processo de tombamento do centro histórico da cidade de Manaus em decorrência de supostos vícios na tramitação do processo administrativo de tombamento. Este feito envolve relevante conflito entre entes da federação relacionado à tutela do patrimônio cultural que fora assegurada por meio do instituto constitucional do tombamento (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2012).

21 Trata-se do processo judicial n. 1648-33.2012.4.01.3200 da Seção Judiciária do Amazonas. 22 Trata-se da Ação Cível Originária – ACO n. 1966, cuja relatoria compete ao ministro Luiz Fux.

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Referido despacho reconhece também a possibilidade de obtenção de um desfecho

conciliatório entre os entes federativos e designa audiência de conciliação, oportunidade em

que foi celebrado acordo entre os entes públicos envolvidos na querela, cujos pontos

principais são transcritos abaixo:

Realizada a audiência na data de hoje, foi obtido o acordo que se resume aos seguintes termos: 1) O Estado do Amazonas se compromete a apresentar ao IPHAN na via administrativa, no prazo de até 90 (noventa) dias a contar da presente data, uma manifestação clara e expressa quanto à sua concordância ou discordância em relação ao tombamento instituído pela autarquia federal do Centro Histórico de Manaus; 2) Durante o prazo acima declinado, o IPHAN se compromete a colaborar com o Estado do Amazonas, franqueando a vista e acesso a todos os documentos necessários para a análise, pela parte Autora, do tombamento do Centro Histórico de Manaus. 3) Este acordo não desconstitui os efeitos do procedimento de tombamento do Centro Histórico de Manaus ainda não concluído pelo IPHAN. Decorrido o prazo de 90 (noventa) dias, o processo será extinto com resolução do mérito nos termos do artigo 269, inciso III, do Código de Processo Civil em decorrência da presente transação (BRASIL, 2012).

Todavia, referido acordo apenas coloca fim à questão judicial, ou seja, a sua

discussão perante o poder judiciário, mas não à conflituosidade em si, existente entre os entes

federativos decorrente dos interesses afetos ao espaço geográfico abrangido pela poligonal do

tombamento do centro histórico de Manaus.

Trata-se de um desfecho frustrante diante das expectativas geradas com a

dimensão conferida ao conflito pelo reconhecimento da possibilidade de violação ao pacto

federativo, já que o Estado do Amazonas ao postular a nulidade do tombamento do centro

histórico de Manaus, almeja afastar a incidência do regime especial de uso, gozo e disposição

imposto pelo instituto do tombamento à parcela do seu território.

O campo oficial destas disputas retorna, portanto, a esfera administrativa e aos

órgãos oficiais de promoção e proteção do patrimônio cultural no âmbito dos poderes públicos

federal, estadual e municipal. Com isso, questões importantes como a colaboração da

coletividade para a promoção e proteção do patrimônio cultural por intermédio de audiência e

consulta pública não foram enfrentadas pela Suprema Corte.

No entanto, a manutenção dos efeitos do tombamento do centro histórico de

Manaus demonstra a preocupação da Suprema Corte com a preservação do patrimônio

cultural situado no centro da cidade de Manaus e objeto de proteção pelo tombamento

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administrativo realizado pelo IPHAN dos bens de valor cultural relacionados ao período áureo

da borracha que repercutiu estruturalmente na cidade através das obras de embelezamento,

mas também no campo das relações sociais e culturais.

O município de Manaus num primeiro momento externalizou oficialmente sua

satisfação com a atuação protetiva do IPHAN23, mas num segundo momento, a imprensa24

veiculou a sua discordância com o tombamento levado a efeito pelo IPHAN.

Todavia, para uma compreensão acerca dos conflitos em torno do tombamento do

centro antigo e do centro histórico de Manaus necessário inicialmente compreender o que

representa para a cidade este espaço englobado pela poligonal do tombamento, bem como

quais os projetos ou ações que o Estado do Amazonas e o município de Manaus possuem para

este espaço tombado.

O centro antigo e o centro histórico de Manaus tombado pela LOMAN e pelo

IPHAN, respectivamente, situa-se na zona sul da cidade de Manaus, cuja análise da atividade

econômica, das propostas e projetos dos governos estadual e municipal podem auxiliar na

compreensão da conflituosidade advinda com o tombamento realizado, tanto pela LOMAN

quanto pelo IPHAN.

A análise da atividade econômica desenvolvida em cada uma das zonas urbanas

da cidade, levando em consideração a arrecadação média do imposto sobre serviço de

qualquer natureza – ISSQN, instituído pela lei municipal nº 714, de 30 de outubro de 2003,

segundo os relatórios técnicos de revisão do Plano Diretor Urbano e Ambiental de Manaus

(FUCAPI, 2011, p. 30) podem sugerir as áreas aonde há maior presença do setor de serviços.

Com efeito, ainda segundo referido relatório, a zona sul apresenta a maior

arrecadação média do ISSQN, o que indica que possuem mais negócios terciários com

serviços que exigem uma maior qualidade e, portanto, uma exigência maior na qualificação da

mão de obra (FUCAPI, 2011, p. 31).

23 O Município de Manaus após ter sido notificado pelo IPHAN acerca do tombamento do Centro Histórico de Manaus remeteu o oficio n. 295/2010-GP de 16 de dezembro de 2010 ao Presidente do IPHAN em que terce os seguintes comentários: “Assim, considerando que a iniciativa de tombamento do Centro Histórico de Manaus reforça ainda mais a importância histórica e paisagística do Centro Antigo, este Município de Manaus manifesta-se favorável ao tombamento do Centro Histórico de Manaus pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional – IPHAN”. Este documento encontra-se anexado ao processo administrativo n. 01450.012718/2010-93 e processo de tombamento n. 1.614-T-10, fls. 183/184. 24 O Portal Acritica.com divulgou em 27 de janeiro de 2012 noticia intitulada: “Prefeito de Manaus contesta tombamento do Centro Histórico da cidade” e de que o prefeito municipal questionara o IPHAN acerca do tombamento. Disponível em: <http://acritica.uol.com.br/manaus/Manaus-Amazonas-Amazonia-politica-Governo_do_Amazonas-Prefeitura_de_Manaus-Centro_Historico_de_Manaus-Iphan Tombamento_0_635336495.html>.

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O oferecimento de serviços de maior qualidade implica não raras vezes na

necessidade de readequação física do imóvel para atender as necessidades da atividade que

precisa se reinventar diante da competitividade do mercado.

As consequências legais decorrentes do tombamento impõem exigências antes

não previstas, ou não efetivamente exigidas cujo impacto torna-se expressivo quando incide

num espaço com intensa presença do setor terciário e com forte arrecadação tributária.

O centro da cidade de Manaus também está sendo objeto de projetos de

intervenção do governo estadual relativamente às obras de mobilidade urbana para atender a

copa do mundo de 2014 em que Manaus é uma das sedes.

O projeto do monotrilho inicialmente previa no seu itinerário o centro histórico de

Manaus com uma estação central nas imediações do largo da Matriz. Todavia, com o

tombamento promovido pelo IPHAN o projeto deve sofrer readequações conforme noticiado

no Portal Amazônia (MONTEIRO e FRANCO, 2012).

O portal do governo do Estado do Amazonas divulgou a realização de reunião

entre o Governo Estadual e o Governo Federal com o objetivo de articular a celebração do

contrato com a Caixa Econômica Federal, empresa pública federal, para a obtenção de

recursos destinados a financiar a construção do monotrilho, cujo valor do empréstimo é da

ordem de R$ 1,4 bilhão. O destaque da reunião, no entanto, foi para a participação do

Ministério da Cultura e do IPHAN tendo em vista as discussões sobre a construção do

monotrilho e a proteção do centro histórico de Manaus (PORTAL DO GOVERNO DO

ESTADO DO AMAZONAS, 2012).

O centro histórico de Manaus é um espaço repleto de interesses das três esferas de

poder: federal, estadual e municipal, bem como de interesses privados, pois é um espaço de

intensa atividade comercial.

O projeto do monotrilho é uma obra que lança sobre Manaus um olhar para o

futuro com a proposta de solucionar os problemas de mobilidade urbana na cidade através de

um serviço de transporte coletivo que ofereça aos seus usuários qualidade e eficiência.

O centro histórico de Manaus, por sua vez, lança sobre a cidade um olhar para um

passado seletivo, com o escopo de preserva-lo através do tombamento que confere proteção

aos bens culturais considerados como testemunho do período áureo da borracha e portadores

de referência cultural à identidade, à ação e à memória dos grupos que contribuíram durante

este período histórico para a formação de Manaus e da sociedade brasileira e que mantém com

o passado uma relação enriquecedora do presente.

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Com efeito, o centro histórico de Manaus é um espaço marcado pela

conflituosidade entre os processos construtivos da cidade e a preservação do patrimônio

cultural.

O projeto do monotrilho pelo investimento bilionário envolvido é uma obra de

grande porte e visibilidade. Segundo Lahorgue (2002, p. 56), obras desta envergadura

costumam gerar prestígio entre a população que as relacionam às ideias de progresso e

modernidade que, por sua vez, são eivadas de ideologias que consistem na busca pela

“identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada, isto é, a

imagem da classe dominante”.

Assim, as obras precisam ser visíveis para que a ideologia do progresso e da

modernidade seja absorvida pela população e, consequentemente, associada às façanhas

daquele indivíduo ou grupo que se apresenta como o seu idealizador ou executor, passando

então a divulga-las como forma de ampliar o seu prestigio junto à população.

A administração do ex-governador Eduardo Ribeiro durante o período áureo da

borracha, cuja politica de embelezamento apresenta Manaus como uma cidade moderna com

aparência europeia, segundo Mesquita (2006, p. 121-122) é um dos fatores responsáveis pela

inserção de Manaus no espirito próprio da belle époque, ostentando uma aparente situação de

riqueza e progresso.

Eduardo Ribeiro foi o típico representante dos governantes da era da borracha no Amazonas e teve, provavelmente, a mais bem-sucedida administração. Em poucos anos, conseguiu realizar grande parte dos planos traçados, transformando radicalmente a visualidade da pequena vila, tornando-a uma moderna e graciosa cidade e exerceu forte influência sobre os seus sucessores, principalmente no que tange à politica de embelezamento e higiene publica (MESQUITA, 2006, p. 137).

A administração de Eduardo Ribeiro marcada pela realização de obras de

embelezamento é um exemplo do prestigio que esta façanha agrega ao seu executor, fazendo

com que a história o identifique como o responsável pela transformação de Manaus e,

segundo Freire (apud Mesquita 2006, p. 139) perde-se o título de “Tapera de Manaus” para

ser conhecida como a “Paris dos Trópicos”.

O prestígio adquirido com a realização de obras explica então a insistência em

divulgá-las especialmente com a realização de solenidades de inauguração com a participação

das pessoas ligadas ao grupo político realizador da obra que disputam espaço no palanque na

tentativa de associar a sua imagem à obra realizada e, consequentemente, à ideia de progresso

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e modernidade cujas imagens são resgatadas durante o período eleitoral na tentativa de atrair a

simpatia do eleitor.

Todavia, as obras não são realizadas unicamente para produzir prestigio, assim

como não são realizadas com o único intuito de serem usadas. Segundo Lahorgue (2002, p.

57), a obra consiste num investimento do qual se espera um retorno que tradicionalmente

consiste numa valorização imobiliária no entorno da obra, no encurtamento e agilidade no

deslocamento das pessoas e mercadorias, mas também um retorno ligado à indústria do

turismo.

A Copa do Mundo e as Olimpíadas são os dois maiores eventos esportivos do

planeta e que serão sediados nos próximos anos no Brasil. No caso de Manaus, esta será uma

das sedes da Copa do Mundo de 2014.

Esses eventos esportivos são vistos pelos governos como a oportunidade de

angariar investimentos para a melhoria da infraestrutura nas cidades sedes e no entorno, pois

estimulam o crescimento econômico atraindo investimentos especialmente para as obras, mas

que repercutem nas diversas cadeias produtivas (DIEESE, 2012, p. 2).

O projeto do monotrilho é uma obra que se insere no contexto das oportunidades

trazidas pela Copa do Mundo de 2014 para a melhoria da qualidade de vida, para o

desenvolvimento da economia, assim como para o desenvolvimento do turismo, que recebe

um incremento pelas obras realizadas, mas também pela visibilidade que a cidade passa a ter

no mundo em decorrência desse evento esportivo.

Analisando a realização da Copa do Mundo 2014 no Brasil, o Departamento

Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – DIEESE terce as seguintes

considerações:

É um marco na história das cidades que a acolhem, o que faz com que a importância do evento extrapole muito a organização e o momento dos jogos. É uma chance real para essas localidades mudarem para melhor a qualidade de vida de suas populações, além de configurar excelente oportunidade de geração de receita para diferentes setores da economia. Os ganhos para o turismo são outro benefício de longo prazo evidente. No Brasil o setor encontra margem para crescimento, já que, há cinco anos, o número de turistas estrangeiros que o país recebe se mantém praticamente estável em cinco milhões. Um evento como a Copa do Mundo é uma grande oportunidade de divulgação do país tanto interna quanto externamente, proporcionando aumento do fluxo turístico (DIEESE, 2012, p. 6).

Neste contexto, o centro histórico de Manaus pode equivocadamente ser visto

como um entrave para a execução do projeto do monotrilho e consequentemente para o

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progresso e a modernidade da cidade, quando na realidade são ações desarticuladas dos entes

da federação que não conseguem conferir efetividade ao direito fundamental ao patrimônio

cultural e simultaneamente construir alternativas para o desenvolvimento da cidade de

Manaus.

No plano jurídico, no entanto, os efeitos do tombamento do centro histórico de

Manaus foram resguardados pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito da ação cível

originário nº 1966 (BRASIL, 2012), o que deve conduzir à reformulação do projeto do

monotrilho para comtemplar a proteção destes bens culturais (MONTEIRO e FRANCO,

2012).

O centro antigo e o centro histórico da cidade de Manaus também é espaço do

comércio informal que está ocasionando problemas urbanos e ambientais como o

impedimento do uso dos espaços públicos por pedestres e veículos e o desrespeito a lugares

históricos da cidade em virtude do grande numero de vendedores conhecidos como “camelôs”

que ocupam as ruas e calçadas no centro da cidade.

Trata-se de um problema socioeconômico que atinge a cidade de Manaus desde a

década de oitenta do século XX e cujas tentativas de solução engendradas pelo poder

executivo municipal iniciadas em 2010 com a proposta de edificação de um “camelódromo”

ou shopping popular para abrigar este comércio informal no centro da cidade encontra

gerando conflitos relacionados ao patrimônio cultural tombado pela LOMAN e pelo IPHAN.

A revitalização do centro da cidade de Manaus para viabilizar o uso adequado dos

espaços públicos insere-se, também, no contexto da Copa do Mundo de 2014 e dos

compromissos assumidos com a FIFA e consiste numa das proposta de reordenação urbana

apresentada pela município de Manaus enquanto uma das sedes deste evento esportivo.

O município de Manaus, neste contexto, empreendeu ações em 2010 para a

edificação do “camelódromo” numa área situada no Porto Flutuante de Manaus que esta

tombada pelo IPHAN e pela própria LOMAN. Esta situação desencadeou uma disputa

judicial perante a Justiça Federal entre o município de Manaus e a União acerca da construção

do camelódromo na referida área.

As obras de construção do “camelódromo” foram embargadas judicialmente e na

tentativa de reverter esta decisão judicial o município de Manaus recorreu para o Tribunal

Regional Federal da 1ª Região através de pedido de suspensão de liminar ou antecipação de

tutela – SLAT nº 52151-26.2010.4.01.0000, argumentando que se trata de uma decisão

contrária ao interesse público e que ameaça a ordem pública (BRASIL, 2010, p 273-277).

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O município de Manaus argumentou, também, que existem mais de 2.300 (dois

mil e trezentos) camelôs situados entre o prédio da Alfândega do Porto e a Rua Epaminondas

e que o projeto do “camelódromo” produzirá cerca de 2.760 (dois mil setecentos e sessenta)

empregos diretos pela instalação de 2.200 (dois mil e duzentos) boxes, atraindo cerca de 100

mil visitantes diariamente (BRASIL, 2010, p 273-274).

Além destes dados, o município de Manaus informa também que o

“camelódromo” consiste em uma das ações do poder público municipal voltadas para o

reordenamento do centro da cidade, tais como a revisão de semáforos, cruzamentos, faixas de

pedestre, dimensionamento de calçadas, aterramento de postes e fios para atender as

exigências da FIFA relacionadas a copa do mundo de 2014 (BRASIL, 2010, p 273-274).

Todavia, os argumentos apresentados pelo município de Manaus não foram

acolhidos, pois os procedimentos exigidos pelos órgãos competentes não foram observados,

dentre os quais os estudos requeridos pelo IPHAN haja vista que o conjunto arquitetônico do

Porto Flutuante de Manaus é um bem tombado por este instituto.

O município de Manaus então publica o Decreto nº 819, de 31 de março de 2011

em que declara de interesse social para fins de desapropriação 16 (dezesseis) imóveis situados

na Travessa Tamandaré, na Praça 15 de novembro e na rua Visconde de Mauá, todos no

centro da cidade de Manaus e nas proximidades do Porto Flutuante de Manaus, para a

construção do “camelódromo”.

O Decreto nº 819, de 31 de março de 2011 apresenta dentre outros motivos para a

desapropriação dos imóveis mencionados acima a tentativa frustrada de instalação do

“camelódromo” no Porto Flutuante de Manaus, o compromisso assumido com a realização da

Copa do Mundo de 2014 e o desrespeito aos lugares históricos situados no centro da cidade de

Manaus ocasionada pelo comércio informal.

A imprensa também noticiou através do portal Acrítica.com em 06 de julho de

2012 a pretensão do município de Manaus de construir o “camelódromo” na rua Theodoreto

Souto, imediações da Praça Tenreiro Aranha (SILVA, Carolina, 2012).

Este espaço situado no centro de Manaus também está abrangido pelos

tombamentos promovidos pela LOMAN e pelo IPHAN, assim como os imóveis declarados de

interesse público pelo decreto expropriatório nº 819, de 31 de março de 2011.

A proteção do patrimônio cultural permeia o discurso tanto do poder público

municipal, quanto do poder público federal, mas sob perspectivas diversas e muitas vezes

contraditórias relacionadas à questão socioeconômica afeta aos “camelôs” que ocupam os

espaços públicos no centro da cidade de Manaus.

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O ponto de convergência entre o município de Manaus e a União reside na

necessidade de revitalização do centro da cidade tombado tanto pela LOMAN, quanto pelo

IPHAN que implica necessariamente na realocação destes trabalhadores informais em outros

espaços que também lhes forneçam uma infraestrutura adequada para o exercício das suas

atividades.

A divergência reside justamente na definição do local em que será construído o

“camelódromo” no centro da cidade de Manaus já que este se encontra tombado para a

preservação do patrimônio cultural da cidade.

Com isso, o discurso oficial do município de Manaus voltado para a proteção do

patrimônio cultural na cidade de Manaus, especialmente para a revitalização do centro

histórico, transparece mais como elemento legitimador das ações de desobstrução das ruas do

centro da cidade para atender as exigências estabelecidas para Manaus sediar a Copa do

Mundo de 2014, do que uma preocupação efetiva com o patrimônio cultural, já que as

soluções apresentadas como o Porto Flutuante de Manaus e a Praça Tenreiro Aranha são bens

culturais tombados.

O problema relacionado à proteção do patrimônio cultural decorrente do comércio

informal no centro da cidade de Manaus, segundo as propostas do poder publico municipal

mencionadas acima, apenas será deslocado de um local para outro no próprio centro histórico

de Manaus, e a proposta de proteção dos bens culturais abrangidos pela poligonal do

tombamento como um conjunto urbano e arquitetônico estará prejudicada.

A questão, no entanto, ainda encontra-se indefinida e os espaços públicos no

centro da cidade de Manaus tombado tanto pela LOMAN, quanto pelo IPHAN encontram-se

ocupados pelos “camelôs” que também sofrem como essa indefinição e precisam de ações do

poder público municipal que consiga conciliar estas questões através do Plano Diretor Urbano

e Ambiental de Manaus, da gestão democrática das cidades e do próprio reconhecimento da

existência destes conflitos. E por parte do poder público federal uma maior aproximação das

ações de proteção do patrimônio cultural com a coletividade de forma que esta participe do

processo de escolha dos bens de valor cultural para que a ressonância entre as ações protetivas

dos órgãos oficiais de memória e a coletividade seja assegurada.

A conflituosidade gerada em torno das ações desarticuladas dos entes públicos das

três esferas de poder incidentes sobre um mesmo espaço traz apenas consequências negativas

para a coletividade: a promoção e proteção do patrimônio cultural não ocorrem de forma

efetiva e as oportunidades para a realização de obras importantes para a cidade não são

aproveitadas em sua plenitude.

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A ressonância entre o patrimônio cultural e a coletividade igualmente é impactada

negativamente, pois sem um diálogo permanente dos órgãos incumbidos da proteção dos bens

culturais com a sociedade para transmitir os significados das ações de proteção, a

coletividade, especialmente, os grupos afetados pelo tombamento, apenas visualizarão a

imposição de um ônus repleto de obrigações e obstáculos ao desenvolvimento das suas

atividades.

Podemos citar como grupos afetados pelo tombamento os proprietários dos bens

tombados que devem se submeter às restrições impostas pelo poder público no uso, gozo e

fruição da propriedade; os usuários do serviço público de transporte coletivo que poderiam

estar utilizando veículos de transporte mais modernos e eficientes; e os comerciantes

informais que ocupam as ruas e calçadas do centro da cidade de Manaus irregularmente e sem

uma perspectiva próxima para a solução desta situação, pois a construção de um espaço pelo

município de Manaus para abrigar este tipo de comércio foi judicialmente embargada e

demolida já que inserida no conjunto arquitetônico do Porto Flutuante de Manaus, bem de

valor cultural tombado pelo IPHAN e as outras opções apresentadas pelo município no centro

da cidade de Manaus como a Praça Tenreiro Aranha e os imóveis desapropriados pelo

Decreto nº 819, de 31 de março de 2011 estão também inseridos na poligonal do tombamento

realizado tanto pela LOMAN, quanto pelo IPHAN e demandam a realização de estudos para a

aferição da viabilidade da instalação do “camelódromo” nestes espaços diante dos mesmos

serem bens protegidos pelo tombamento.

Essa ausência de diálogo também deixa espaço para a proliferação de discursos

que tendem a simplificar a complexidade da conflituosidade existente entre os processos

construtivos da cidade e o patrimônio cultural que por isso mesmo radicalizam o conflito e ao

invés de construir soluções apenas buscam apontar culpados.

Neste sentido, a fala atribuída ao Presidente do Sindicato dos Vendedores

Ambulantes em matéria veiculada no portal da CBN na internet é ilustrativa:

Vamos discutir o assunto por meio de uma audiência Pública. Toda vez que a gente indica um local, o MP embarga, como embargou a obra que já estava 80% pronta. Agora, temos um outro local, então, precisamos de uma medida por meio da qual a gente se entenda. Os camelôs não podem mais viver sofrendo. Quando a gente tenta fazer, a prefeitura apóia, a sociedade apoia a gente, mas o MP e o IPHAN dizem não. Será que só o Ministério Púbico e o Ipham não podem nos apoiar?, inquire (CBN MANAUS, 2012).

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Essa fala do Presidente do Sindicato dos Vendedores Ambulantes simplifica a

problemática, pois ela polariza o conflito afirmando que existem aqueles que são favoráveis

aos camelôs e os que são contra. No caso, aqueles contrários aos camelôs são os órgãos que

atuam na proteção do patrimônio cultural. Trata-se de uma simplificação maniqueísta da

conflituosidade, pois não se trata de ser a favor ou contra os camelôs, mas de conferir

proteção aos bens de valor cultural através de uma solução que contemple a questão

socioeconômica e a estratégia de qualificação cultural do centro da cidade de Manaus com a

revitalização do centro histórico, o restauro de prédios de valor histórico e cultural, bem como

o resgate da história da cidade.

Com efeito, a forma como lidar com essas conflituosidades não reside unicamente

na elaboração de normas de planejamento urbano ou de proteção ao meio ambiente. Segundo

Lahorgue (2002, p. 53), esse enfrentamento reside no reconhecimento da contradição entre

privatização dos espaços e planejamento urbano. Assim, para Lahorgue (2002, p. 54)

“planejar a cidade deve ser um processo de reconhecimento de interesses e classes sociais

diferentes lutando, entre outras coisas, por vantagens locacionais e serviços urbanos”.

O conflito em torno do projeto do monotrilho, do “camelódromo” e do

tombamento do centro antigo e do centro histórico de Manaus pode ser resolvido pelo poder

judiciário através da aplicação das normas jurídicas. A conflituosidade, no entanto, precisa de

um processo de transformação social em torno da própria percepção dos conflitos e do

envolvimento da coletividade na tomada de decisões.

4.3 O PATRIMÔNIO CULTURAL E O PLANO DIRETOR URBANO E AMBIENTAL DE MANAUS

O planejamento urbano tem no plano diretor o seu principal instrumento de

concretização que deve ser concebido tomando como referência a função social da

propriedade, especialmente, a sua dimensão socioambiental para a efetiva proteção do

patrimônio cultural.

O plano diretor é um instrumento relevante para a gestão pública do patrimônio

cultural, tanto por ser o responsável pela definição legislativa da função social da propriedade

(art. 182, §2º, da CF/88), quanto por ser um instrumento que deve contar com a participação

da população no seu processo de elaboração e revisão, e na fiscalização de sua implementação

(art. 40, §4º da Lei 10.257/2001).

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José Silva (2010, p. 137-138), discorrendo sobre o plano diretor, esclarece em que

consiste este instituto:

É plano, porque estabelece os objetivos a serem atingidos, o prazo em que estes devem ser alcançados (ainda que, sendo plano geral, não precise fixar prazo, no que tange as diretrizes básicas), as atividades a serem executadas e quem deve executá-las. É diretor, porque fixa as diretrizes do desenvolvimento urbano do município.

A título de síntese, extraímos a seguinte definição para o plano diretor:

O plano diretor é o mais importante instrumento de planificação urbana previsto no Direito Brasileiro, sendo obrigatório para alguns Municípios e facultativo para outros; deve ser aprovado por lei e tem, entre outras prerrogativas, a condição de definir qual a função social a ser atingida pela propriedade urbana e de viabilizar a adoção dos demais instrumentos de implementação da política urbana (CÂMARA, 2010, p. 324).

O plano diretor apresenta-se, portanto, como um importante instrumento de

planificação e com um papel relevante na proteção do patrimônio cultural e no planejamento

das cidades para o resgate do seu valor de uso.

Os aspectos físico-urbanísticos não podem ser as únicas preocupações dos planos

diretores, estes devem abranger de forma articulada, também, as questões sociais, políticas,

econômicas e culturais afetas a administração local.

A Constituição do Estado do Amazonas elege como um dos seus objetivos

prioritários a preservação da identidade cultural do povo amazonense (art. 2º, inciso VII) que

também integrará os órgãos de deliberação coletiva, estaduais e municipais nas áreas de

educação, cultura, saúde, desenvolvimento socioeconômico, meio-ambiente, segurança

pública, distribuição de justiça, assistência e previdência social e defesa do consumidor (art.

7º).

O Estado do Amazonas possui competência para legislar concorrentemente com a

União sobre a proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico (art.

18 da Constituição Estadual), competindo ao município promover a proteção do patrimônio

histórico-cultural local, observando a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual (art.

125 da Constituição Estadual).

A preservação do patrimônio ambiental, histórico e cultural insere-se entre as

funções sociais da cidade, sendo considerado direito de todos os cidadãos. Assim, deve

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integrar a politica de desenvolvimento urbano da cidade (art. 136, §1º, da Constituição

Estadual).

O plano diretor encontra previsão também na Constituição Estadual seguindo em

linhas gerais os mesmos princípios constantes na Constituição Federal e no Estatuto das

Cidades. Todavia, estabelece a assistência do Estado aos Municípios relativamente à

elaboração dos seus planos diretores que incluem liberação de recursos e concessão de

benefícios que se relacionem, dentre outros assuntos, a preservação do ambiente urbano

histórico-cultural e a proteção e preservação de núcleos e acervos de natureza histórica e

arquitetônica (art. 137, §1º, da Constituição Estadual).

O planejamento é considerado pela Lei Orgânica do Município de Manaus -

LOMAN um processo permanente para a promoção do desenvolvimento do município e o

bem-estar da população.

O objetivo do desenvolvimento do município é o homem, através da realização

plena do seu potencial econômico, devendo ser preservado o seu patrimônio cultural (art. 207

da LOMAN).

Os parâmetros para a definição dos bens integrantes do patrimônio cultural do

município são estabelecidos pela LOMAN (art. 338) a semelhança daqueles fixados pela

Constituição Federal de 1988.

A democracia e a transparência no acesso a informação é um dos princípios

básicos do planejamento municipal constante na LOMAN (art. 209) e que deverá nortear toda

a ação do poder público.

O Plano Diretor Urbano e Ambiental de Manaus em vigor foi instituído através da

lei municipal nº 671/2002 e possui várias disposições normativas voltadas para a proteção do

meio ambiente cultural. Entre os princípios norteadores do desenvolvimento urbano e

ambiental consta a promoção da qualidade de vida e do ambiente, assim como, a valorização

cultural da cidade, dos costumes e tradições (art. 1º da lei 671/2002).

A estratégia de qualificação ambiental e cultural prevê como objetivo específico a

proteção e conservação dos bens integrantes do patrimônio cultural de Manaus (art. 7º, inciso

IV, da lei 671/2002). Integrando esta estratégia são estabelecidas as diretrizes para a proteção

dos bens que integram o patrimônio cultural de Manaus que consistem em identificar,

catalogar e proteger os bens imóveis de valor significativo além do incentivo e a criação de

mecanismos de divulgação, valorização e potencialização do uso do patrimônio cultural.

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Entre as medidas para a proteção do patrimônio cultural estão previstas a

execução de programas de valorização do patrimônio cultural, a adoção de instrumentos de

intervenção que incentivem a conservação dos bens de interesse histórico e cultural.

A LOMAN, também, fixa regras sobre o gabarito máximo para edificações em

áreas abrangidas pelo sítio histórico de Manaus e pelo centro antigo de Manaus, bem como o

seu entorno (art. 235).

As normas do plano diretor voltadas para disciplinar o uso e ocupação do solo

urbano mantém de igual forma disposições que externam a preocupação com o meio ambiente

e a proteção do patrimônio cultural na execução desta política pública, inclusive com a

previsão de programas de revitalização e valorização das áreas de interesse histórico e

cultural.

O Plano Diretor Urbano e Ambiental de Manaus prevê, também, a possibilidade

de constituição de áreas de especial interesse ambiental através de lei municipal especifica

para a proteção do patrimônio natural e cultural da cidade de Manaus.

O conjunto de normas jurídicas que compõem o ordenamento jurídico pátrio com

reflexos nas legislações estaduais e municipais contemplam a proteção do patrimônio cultural

e o planejamento urbano como um dos seus instrumentos protetivos, devendo a proteção do

patrimônio cultural empenhar-se na efetivação destas normas através do enfrentamento dos

conflitos e das relações de poder que permeiam os bens culturais.

O Plano Diretor Urbano e Ambiental de Manaus instituído pela lei municipal nº

671/2002 encontra-se em processo de revisão, conforme preconiza a Constituição Federal de

1988.

O Poder Executivo municipal remeteu à Câmara Municipal de Manaus – CMM

através da Mensagem nº 017/2012, um total de sete projetos de lei para deliberação do

plenário desta casa legislativa, em que o primeiro refere-se à revisão do Plano Diretor Urbano

e Ambiental de Manaus e os demais a matérias correlatas, conforme ementas transcritas

abaixo:

PROJETOS DE LEI COMPLEMENTAR 01 – ATUALIZA O PLANO DIRETOR URBANO E AMBIENTAL DE MANAUS, objeto da Lei nº 671, de 04 de novembro de 2002, com suas posteriores alterações, introduzindo modificações e adaptações resultantes de sua revisão e estabelecendo outras providencias relativas ao planejamento e à gestão territorial do Município; 02 – ATUALIZA O CÓDIGO DE OBRAS E EDIFICAÇÕES DO MUNICÍPIO DE MANAUS, instituído pela Lei nº 673, de 04 de novembro de 2002, com suas posteriores alterações, e estabelece outras providencias;

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03 – INSTITUI O CÓDIGO DE POSTURAS DO MUNICÍPIO DE MANAUS, resultante da atualização e consolidação das normas objeto da Lei nº 674, de 04 de novembro de 2002, com suas posteriores alterações; 04 – INSTITUI O CÓDIGO DE PARCELAMENTO DO SOLO URBANO DO MUNICÍPIO DE MANAUS, resultante da atualização e consolidação das normas objeto da Lei nº 665, de 23 de julho de 2002, com suas posteriores alterações; PROJETOS DE LEI ORDINÁRIA 05 – ATUALIZA as Normas de Uso e Ocupação do Solo no Município de Manaus, instituídas pela Lei nº 672, de 04 de novembro de 2002, com suas posteriores alterações, e estabelece outras providências; 06 – REDEFINE, conforme as diretrizes do Plano Diretor Urbano e Ambiental do Município, o perímetro urbano e descreve os limites da cidade de Manaus, objeto da Lei nº 644, de 08 de março de 2002; 07 – ATUALIZA as normas urbanísticas aplicáveis às ÁREAS DE ESPECIAL INTERESSE SOCIAL previstas no Plano Diretor Urbano e Ambiental de Manaus e objeto da Lei nº 846, de 24 de junho de 2005, estabelecendo outras providências (AMAZONAS, 2012, p. 274-275).

A imprensa também noticiou o envio da Mensagem nº 017/2012 subscrita pelo

Prefeito de Manaus e direcionada ao Presidente da Câmara Municipal de Manaus veiculando

declarações deste acerca da importância do Plano Diretor e da participação da sociedade na

sua elaboração25 (SEIXAS, 2012).

Na época, havia a expectativa de que o mesmo fosse colocado em votação até o

final do ano de 2012. Todavia, esta pretensão restou frustrada, pois o poder judiciário

apreciando pedido do Ministério Público Estadual, em sede de ação civil pública, reconheceu

que a elaboração do plano diretor deu-se com inobservâncias à legislação e com prejuízos à

sociedade. Assim, determinou à Câmara Municipal de Manaus - CMM que promovesse a

devolução do projeto de lei de revisão do plano diretor ao poder executivo municipal para as

adequações necessárias (AMAZONAS, 2012, p. 546-554).

O núcleo central da discussão judicial consiste na alegação de que não houve

durante o processo de revisão do plano diretor uma ampla participação popular o que viola as

normas previstas no Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) e na Resolução nº 25, de 18 de

março de 2005, editada pelo Conselho das Cidades. Referindo-se a tais disposições

normativas a decisão judicial apresentou as seguintes conclusões:

25 O Portal de Notícias Acrítica.com além de divulgar o encaminhamento do projeto de lei pelo Poder Executivo Municipal à Câmara Vereadores, divulgou declarações do presidente da Câmara que destaca a importância do Plano Diretor e da participação da sociedade na sua elaboração. “O projeto do Plano Diretor deve ser analisado e discutido por várias comissões técnicas. De acordo com Tayah, o propósito é rediscutir o plano, permitindo o acesso das informações à população. “Temos a maior responsabilidade no término do projeto. Para isso, faremos rediscussões por meio das equipes que vão liderar os temas como transporte e meio ambiente. Queremos criar um local, de fácil acesso, para que as pessoas possam assistir às discussões”, disse o presidente da CMM.” Disponível em: <http://acritica.uol.com.br/noticias/Amazonia-Amazonas-CMM-projeto-Plano-Diretor-Manaus_0_690530957.html > Acesso em: 25 maio 2012.

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Inafastável, no caso posto, que tais requisitos foram desprezados pelos Poderes Executivo e Legislativo: um porque deu seguimento ao procedimento, repassando o Plano Diretor ao outro, mesmo sem a observância das disposições legais supramencionadas, e este outro porque prosseguiu nas diligências, tampouco se atentando ao fiel cumprimento do que lhe cabia (AMAZONAS, 2012, p. 551).

A efetiva proteção do patrimônio cultural, no entanto, não pode ficar a mercê da

indefinição politica do planejamento urbano. Assim, a sua proteção deve pautar-se pelas

normas constantes na Constituição Federal de 1988, na Constituição do Estado do Amazonas,

na Lei Orgânica do Município de Manaus, e também no Plano Diretor Urbano e Ambiental de

Manaus em vigor, mas buscando em relação a este perceber quais as tendências indicadas

pelo seu projeto de revisão.

Os relatórios elaborados pela FUCAPI (2011) com o escopo de auxiliar no projeto

de revisão do Plano Diretor Urbano e Ambiental de Manaus trazem dados e informações

coletados sobre a cidade de Manaus extraídos de órgãos oficiais, bem como a partir de

propostas coletadas junto à sociedade nas audiências públicas realizadas e que podem auxiliar

na concretização deste conjunto normativo que permeia o planejamento urbano e a proteção

do patrimônio cultural.

Neste ponto, relevante registrar que apesar do entendimento do poder judiciário

em primeira instância acerca dos vícios apontados no projeto de revisão do Plano Diretor

Urbano e Ambiental de Manaus com relação à efetiva participação da sociedade, os relatórios

produzidos pela FUCAPI (2011) apresentam-se como importante fonte de pesquisa pelos

dados que apresenta sobre a cidade de Manaus.

O projeto de revisão do Plano Diretor Urbano e Ambiental de Manaus divide a

cidade em seis zonas urbanas: zona centro-oeste, zona centro-sul, zona leste, zona norte, zona

oeste e zona sul (FUCAPI, 2011, p. 26).

O centro histórico de Manaus, patrimônio cultural tombado, esta localizado na

zona sul da cidade de Manaus que possui peculiaridades que a diferenciam das demais zonas

conforme o relatório sobre o diagnostico das condições socioeconômicas da cidade de

Manaus.

Manaus é constituída por um conjunto de zonas com características histórico-geográficas únicas, habitadas por populações com suas maneiras de pensar, sentir e agir e forjando diferentes hábitos no uso do espaço urbano. Cada zona possui natureza e topografia distintas, arquitetura e estilo singulares, “atmosfera” e “jeito de ser” próprios (FUCAPI, 2011, p. 204).

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O relatório final dos estudos promovidos pela FUCAPI (2011, p. 219) para a

atualização do Plano Diretor Urbano e Ambiental de Manaus indica os dois passos

fundamentais para desenvolver uma base sólida para o planejamento: o primeiro consiste em

obter informações organizadas e atualizadas para embasar o planejamento promovendo a

democratização dessas informações com fácil acesso a população; e o segundo é promover o

compartilhamento do planejamento entre o poder publico e a sociedade com o enfrentamento

integral da problemática local, formando um novo vínculo entre a sociedade e o Estado.

A participação da coletividade no processo de discussão e atualização do Plano

Diretor Urbano e Ambiental de Manaus, segundo o relatório final da FUCAPI (2011, p. 221)

resultou em contribuições que foram inseridas ao longo do texto elaborado pelo executivo

municipal para encaminhamento a Câmara Municipal de Manaus - CMM para apreciação.

Com efeito, em relação às propostas oriundas da participação da sociedade

registradas no referido relatório serão abordadas apenas àquelas direcionadas à zona sul da

cidade de Manaus, aonde se localiza o centro histórico de Manaus tombado pelo IPHAN, bem

como o centro antigo de Manaus e o sitio histórico de Manaus protegidos pela LOMAN.

Assim, relativamente aos objetivos e estratégias centrais que funcionaram como

referencial para as políticas públicas a proposta para a zona sul consiste justamente em

explorar o seu atrativo cultural e turístico.

Com isso, a zona sul tem como proposta “ser a principal referência cultural e

arqueológica da cidade, reforçando as atividades referentes ao turismo e ao patrimônio

histórico e garantindo o desenvolvimento de serviços” (FUCAPI, 2011, p. 222).

A valorização de Manaus como metrópole regional lança como estratégia

especifica para a zona sul o adensamento do centro da cidade, mas de forma a não

comprometer o patrimônio histórico e os espaços públicos, bem como a revitalização do

centro de acordo com plano urbanístico especifico, assim como a revitalização da orla de

Manaus (FUCAPI, 2011, p. 223).

A estratégia de qualificação cultural do território coloca como estratégia

especifica para a zona sul, dentre outras, a promoção do tombamento do perímetro do

patrimônio histórico, a revitalização do patrimônio histórico do centro da cidade, a

revitalização da Manaus Moderna, o restauro dos casarões centrais e o resgate da história do

centro da cidade e das suas principais ruas (FUCAPI, 2011, p. 223).

A estratégia de desenvolvimento do turismo coloca como estratégia especifica

para a zona sul, dentre outras, a requalificação do centro da cidade para o turismo com a

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implantação de melhorias em mobiliário urbano e ser referência para cultura e lazer

(FUCAPI, 2011, p. 223).

A mobilidade urbana coloca como estratégia especifica para a zona sul, dentre

outras, a reordenação do centro da cidade com a implantação de novos modais de acesso

(FUCAPI, 2011, p. 233).

O uso e ocupação do solo urbano coloca como estratégia especifica para a zona

sul, dentre outras, a definição em quatro pavimentos para o gabarito máximo no centro da

cidade (FUCAPI, 2011, p. 235).

As estratégias de gestão urbana relativamente à zona sul da cidade de Manaus e

em especial ao centro da cidade coloca o patrimônio cultural como o foco central das

estratégias para o desenvolvimento deste espaço e a promoção da qualidade de vida na cidade

e a sua exploração pelo turismo.

Com isso, é necessária a preservação deste patrimônio pelos valores culturais que

impregnam os bens situados no centro histórico, mas também porque consiste num espaço

que possui características histórico-geográficas próprias e grupos sociais que promovem

segundo seus modos de criar, fazer e viver o uso do espaço urbano.

O projeto de revisão do Plano Diretor Urbano e Ambiental de Manaus apresenta

uma preocupação com o centro da cidade de Manaus e o patrimônio cultural com o escopo de

proteger os bens culturais para a promoção da qualidade de vida na cidade.

Todavia, em que pese haver um discurso geral em torno da proteção do

patrimônio cultural as restrições que são impostas para a salvaguarda deste patrimônio geram

tensão e conflito e tendem a sobrepujar os bens culturais sob os apelos ideológicos do

progresso e da modernidade.

As normas jurídicas voltadas para o planejamento urbano neste sentido devem ser

efetivamente aplicadas para assegurar a proteção do patrimônio cultural, mas também é

imprescindível a participação da sociedade durante a própria concepção deste planejamento,

bem como na própria escolha seletiva dos bens integrantes do patrimônio cultural.

A cidade de Manaus é atualmente caracterizada pela atividade industrial

desencadeada pela implantação da Zona Franca de Manaus nos anos setenta do século XX.

Ela concentra a atividade econômica do Estado do Amazonas com um PIB corresponde a

mais de 80% das riquezas produzidas no Estado. É uma cidade eminentemente urbana com

97,7% da população vivendo na área urbana, mas também é repleta de problemas ocasionados

pela ocupação desordenada e irregular dos espaços urbanos.

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Essa cidade urbana e industrial também possui espaços que mantém a sua

memória através do patrimônio cultural que liga o presente marcado pela industrialização e

pela urbanização ao passado da borracha e, também, o relacionado à presença indígena nesta

região antes da chegada do europeu.

O centro da cidade de Manaus, situado na zona sul e aonde se iniciou a ocupação

europeia com a construção da fortaleza de São José do Rio Negro em 1669, concentra a maior

parte dos bens de valor cultural que estabelecem esse elo com o passado da borracha e dos

povos indígena na formação da cidade.

A Manaus da borracha vivenciou no período de 1890 a 1910 um momento de

intenso crescimento econômico decorrente da exportação da borracha cuja riqueza ficou

concentrada numa pequena elite local e nos cofres do Estado que teve um incremento na

arrecadação dos impostos.

A riqueza gerada com a exploração da borracha financiou o projeto da elite local

de transformar Manaus numa cidade moderna e cosmopolita conforme o modelo europeu de

civilização quando foram construídas obras de embelezamento da cidade como o Teatro

Amazonas e a abertura de grandes avenidas como a Eduardo Ribeiro.

As obras de embelezamento, também, tinham o importante papel de se sobrepor

as construções regionais e a cultura local de origem indígena, que sob a ótica desta elite

representava o primitivo, o não civilizado, o atrasado e que, portanto, deveria ser substituído

pelas construções modernas e civilizadas.

Nesta perspectiva, a cidade de Manaus sofreu no período da borracha

transformações arquitetônicas, mas também culturais em que as elites e parte da população

influenciada pelos valores europeus de civilização substituem a cultura local, influenciada

pelas tradições indígenas, por uma cultura de características ocidentais, cujas transformações

foram denominadas por Mesquita (2006, p. 145) de branqueamento da vitrine.

Este processo de branqueamento da vitrine caracteriza-se por uma relação

hierarquizada entre a cultura dominante baseada em valores europeus e a cultura dominada

relacionada aos povos indígenas. No caso, não se esta afirmando a superioridade ou

inferioridade de uma cultura em relação à outra, mas a impossibilidade de a cultura indígena

desconsiderar a influência da cultura europeia no período da borracha e as transformações que

lhe foram impostas.

Assim, neste processo de formação da cidade de Manaus os valores culturais de

origem indígena foram intencionalmente sobrepujados, pois incompatíveis com os valores de

civilização representados pela cultura europeia.

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Todavia, a memória da presença indígena na formação da cidade de Manaus é

evidenciada pelos achados arqueológicos sob a Praça D. Pedro II e o Paço Municipal, mas

ainda permanece ausente nas narrativas históricas sobre a cidade de Manaus, o que é

evidenciado pelo tombamento do centro histórico de Manaus promovido pelo IPHAN que

ignorou solenemente a presença da cultura indígena em Manaus, fazendo um recorte histórico

para proteger apenas a memória do período áureo da borracha através das edificações e do

traçado urbano que num processo de branqueamento cultural sobrepujou a cultura indígena.

A Constituição Federal de 1988 adota o paradigma da diversidade cultural para a

proteção do patrimônio cultural com a democratização da cultura e a valorização do cotidiano

em que as ideias de excepcionalidade e monumentalidade não são as únicas norteadoras das

ações dos órgãos oficiais de proteção da memória.

No entanto, o tombamento do centro histórico de Manaus realizado pelo IPHAN

em 2010, cem anos após o período identificado como o áureo da borracha (1890-1910),

permanece replicando os valores europeus de branqueamento cultural da cidade de Manaus,

pois confere valor cultural e histórico apenas aos bens vinculados a belle époque ignorando os

achados arqueológicos que evidenciam a presença da cultura indígena.

É certo que há uma tentativa do IPHAN em concretizar os valores constitucionais

da diversidade cultural e da democratização da cultura, bem como ações para o resgate e

salvaguarda dos achados arqueológicos sob a Praça D. Pedro II e o Paço Municipal, dentre

outros sítios arqueológicos existentes na cidade de Manaus. Todavia, são ações pontuais que

apenas timidamente relacionam a cultura indígena com a formação da cidade de Manaus, o

que ficou claro pela ausência nos estudos do IPHAN para o tombamento do centro histórico

de Manaus de uma abordagem acerca da presença indígena no processo de formação da

cidade de Manaus.

A proteção do patrimônio cultural sob o paradigma da diversidade cultural

adotado pela Constituição Federal de 1988 impõe uma reconstrução da história da cidade de

Manaus para que, além das referências culturais relacionadas à memória do período da

borracha, também, faça parte da história da cidade as referências culturais relacionadas à

memória dos povos indígenas.

Assim, o tombamento do centro histórico de Manaus realizado pelo IPHAN deve

ser complementado com ações que promovam a inter-relação entre o passado indígena e o da

borracha para a reconstrução da história da cidade de Manaus.

O tombamento do centro antigo e do centro histórico de Manaus realizado

respectivamente pela LOMAN e pelo IPHAN, criticado acima em virtude da sua

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incompletude decorrente da omissão na integração da memória indígena com a história da

cidade de Manaus, encontra-se, sob a perspectiva do direito, produzindo todos os seus efeitos

jurídicos, impondo limitações ao direito de propriedade que atingem o uso, o gozo e a

disposição e conferindo ao poder público meios legais para assegurar a preservação do

patrimônio cultural.

As limitações impostas pelo tombamento ao direito de propriedade são

legitimadas pela Constituição Federal de 1988 que prevê a função social da propriedade e o

dever do poder público, com a colaboração da comunidade, de promover e proteger o

patrimônio cultural.

As limitações impostas pelo tombamento ao direito de propriedade especialmente

a que proíbe qualquer intervenção no bem cultural tombado, sem a prévia manifestação do

órgão público que promoveu o tombamento é um fator que potencializa os conflitos e está no

cerne das conflituosidades relacionadas ao projeto do monotrilho e a construção do

“camelódromo”.

O plano diretor, principal instrumento do planejamento urbano e da concretização

da função social da propriedade, possui um importante papel na proteção do patrimônio

cultural, pois através dele é possível desenvolver a nível local mecanismos de coerência

social, econômica e ambiental conforme apregoados pela Nova Carta de Atenas (2003, p. s/n).

Assim, é possível através do plano diretor adotar práticas democráticas com a

construção de soluções para as disputas entre os diversos grupos sociais para a superação da

contradição apontada por Lahorghe (2002, p. 53) entre a privatização do espaço e do consumo

e as ações de interesse coletivo afetas ao planejamento da cidade. Também é possível através

do plano diretor a adoção de estratégias locais que conciliem o desenvolvimento econômico e

a qualidade de vida, bem como a proteção do meio ambiente natural, cultural e artificial que

inclusive caracterizam a cidade como bem ambiental síntese.

O plano diretor, no entanto, é voltado para um planejamento da cidade a médio e

longo prazo, devendo ser revisado a cada dez anos, o que talvez não se amolde a viabilizar

grandes projetos de intervenção urbana como o monotrilho ou de grande repercussão social

como a remoção de um grande contingente de camelôs do centro da cidade, num curto espaço

de tempo para readequar a cidade de Manaus para sediar a Copa do Mundo de 2014, segundo

os compromissos assumidos pelo Brasil perante a FIFA.

Esta ausência de tempo para concretizar os compromissos assumidos pelo Brasil

junto a FIFA relativamente à mobilidade urbana e a reordenação do centro da cidade fornece

uma explicação possível para a compreensão das razões pelas quais, contraditoriamente, o

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Estado do Amazonas e o município de Manaus questionam o tombamento do centro histórico

de Manaus realizado pelo IPHAN, já que o Estado do Amazonas possui um histórico de

investimentos em politicas públicas voltados para a promoção da cultura e o município de

Manaus desde a promulgação da LOMAN, em 5 de abril de 1990 tombou o centro da cidade

de Manaus, o denominando de centro antigo.

No caso, as limitações impostas pelo tombamento realizado pelo IPHAN do

centro histórico de Manaus, como a manifestação prévia deste instituto sobre as intervenções

urbanas e arquitetônicas que incidam nos bens de valor cultural inseridos na poligonal do

tombamento, são tratadas pelos outros entes da federação como um entrave a execução dos

projetos viabilizadores da Copa do Mundo de 2014 em Manaus.

O patrimônio cultural enquanto valor de referência, ressonância e testemunho que

representa a identidade e a memória de um povo não pode ser concebido simplesmente como

um entrave ou obstáculo aos projetos de modernização da cidade, mas deve ser percebido

como um fator indispensável ao desenvolvimento sustentável da cidade que deve ser tratado

com prioridade no planejamento urbano.

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CONCLUSÃO

A cultura e a natureza possuem um relação dialética (OST, 1995, p. 17) em que

aquela possibilita ao homem a transformação desta de forma auto-reflexiva (EAGLETON,

2005, p. 15). Trata-se de um processo de interação continuo entre o homem e a natureza que

tem na cultura a sua força criativa que impulsiona a diversidade cultural.

A diversidade cultural deve ser compreendida como um princípio metodológico

que consiste em afastar-se de julgamentos de valor e compreender as diferentes culturas a

partir das suas relações hierarquizadas presente na relação entre cultura dominante e cultura

dominada (CUCHE, 2002, p. 239).

A institucionalização da proteção do patrimônio cultural no Brasil iniciada

durante o governo Vargas é marcada por estas relações hierarquizadas, cujos bens de valor

cultural protegidos eram representativos dos valores da classe dominante na época. Assim, a

identidade nacional foi forjada sobre um passado estrategicamente escolhido e permeado dos

valores da classe dominante e emoldurado na categoria patrimônio cultural.

As relações hierarquizadas entre culturas ou as relações entre grupos que

reciprocamente estão em situação de domínio e de subordinação (CUCHE, 2002, p. 145)

estão pelo menos no campo normativo relativamente à proteção do patrimônio cultural numa

situação de igualdade.

A Constituição Federal de 1988 ao associar os valores de referência dos bens

culturais à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade

brasileira para que eles possam integrar o patrimônio cultural brasileiro desvincula-se da

estética oficial que forjou a identidade nacional durante o governo Vargas sob as ideias de

excepcionalidade e monumentalidade para se relacionar a ideia do que é relevante para os

grupos formadores da sociedade brasileira (SOARES, 2009, p. 45).

O patrimônio cultural forjado através de escolhas seletivas não consegue controlar

totalmente o passado que de forma inesperada apresenta-se – como ocorreu com as urnas

funerárias localizadas no sitio arqueológico Manaus, o que desencadeou uma série de

conflitos e impôs uma releitura da história da cidade de Manaus e da sua formação social.

Assim, como o patrimônio é uma categoria ambígua situada entre o passado e o

presente (GONÇALVES, 2005, p. 20) está constantemente sujeito a releituras que devem ser

incentivadas para o resgate dos valores culturais dos grupos em situação de subordinação que

foram apagados através do processo de objetificação cultural (GONÇALVES, 2002, p. 14).

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As ideias de referência, ressonância e testemunho inerentes ao patrimônio cultural

o particularizam em relação à noção de cultura e fazem incidir sobre estes bens a proteção

jurídica estabelecida na Constituição Federal de 1988. Assim, o patrimônio cultural apresenta-

se como uma parcela da cultura sobre a qual é conferida uma proteção numa perspectiva

coletiva que comporta o conjunto de regras e princípios inerentes ao direito ambiental e detém

o status de direito fundamental.

A cidade é um espaço geográfico representativo do comportamento cultural, da

forma de ocupação do espaço urbano, dos sistemas de produção e palco dos conflitos sociais

(MARQUES, 2005, p. 88) e aonde o patrimônio cultural objeto deste estudo encontra-se

localizado.

A sociedade moderna é caracterizada pela industrialização (LEFEBVRE, 2011, p.

11) e fundamentada na logica do mercado que produz e vende mercadorias para a reprodução

e valorização do capital (LAHORGUE, 2002, p. 46). Com isso, a funcionalidade da cidade

desloca-se do valor de uso para o valor de troca (MONTE-MÓR, 2006a, p. 13) com reflexos

no espaço urbano.

O sistema capitalista tem como base a propriedade privada. Todavia, a terra é um

bem essencialmente com valor de uso, mas que é transformada em mercadoria, com valor de

troca, o que estabelece uma relação dialética entre a industrialização e a urbanização

(LEFEBVRE, 2011, p. 16).

O sistema capitalista através das normas jurídicas superou as leis da natureza,

fazendo com que a terra deixasse de ser uma mercadoria que não podia ser reproduzida ou

fabricada através da adoção de um instrumento jurídico-urbanístico previsto no artigo 28 do

Estatuto da Cidade e denominado de outorga onerosa do direito de construir ou solo criado.

Assim, a urbanização privilegia as questões ligadas ao espaço social e a sua

apropriação como valor de uso, e a industrialização liga-se à logica do espaço econômico e da

acumulação como valor de troca (MONTE-MOR, 2006b, p. 76).

A industrialização é um fator de atração das pessoas para as cidades que passam a

conviver num mesmo espaço, e em virtude disto, potencializam-se os conflitos que

necessitam de uma ordem disciplinadora do espaço.

Assim, o zoneamento e a regulação do uso do solo apresentam-se como

mecanismos de solução desta contradição entre a propriedade privada e as demandas coletivas

de organização do espaço urbano (MONTE-MOR, 2006b, p. 70). Ou seja, as contradições

entre o valor de uso e o valor de troca.

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Com efeito, a base do planejamento urbano desenvolvido no Brasil apoiado nas

ideias propostas pela Carta de Atenas (1933) que pressupunha o homem biologicamente

idêntico e o tratamento homogêneo do espaço urbano (MONTE-MOR, 2006b, p. 67) apenas

servia para atender aos interesses e as necessidades da industrialização, pois simplesmente

desconsiderava as questões de cunho social e cultural para privilegiar os interesses do capital

que eram sombreados pelo discurso da racionalidade do trabalho desenvolvido por uma

equipe técnica imparcial.

A propriedade privada, base do sistema capitalista, transforma-se e passa a

agregar no seu cerne um direito de titularidade coletiva que é a função social da propriedade.

Esta impõe ao proprietário que no atendimento dos seus interesses individuais observe,

também, os interesses da coletividade (ERENBERG 2008, p. 101).

A função social da propriedade e a proteção do meio ambiente incidem sobre a

propriedade pública ou privada que possuam valor cultural, tornando-a um bem de interesse

público (SOUZA FILHO, 2005, p. 22) que funciona como o suporte físico do patrimônio

cultural.

As questões culturais, sociais e ambientais são abordadas na Nova Carta de

Atenas (2003) cujas questões urbanas são tratadas a partir da ideia de cidade coerente que

precisa desenvolver práticas democráticas de gestão da cidade, estabelecer o seu próprio

equilíbrio entre crescimento econômico e qualidade de vida e criar seus próprios mecanismos

de proteção ambiental, tudo isso levando em consideração as questões locais.

Trata-se de uma mudança de visão que abandona a ideia de homem

biologicamente igual para centrar-se na ideia de homem culturalmente diferente que deve

permear o planejamento urbano para a construção da cidade ambientalmente sustentável.

A efetiva proteção do patrimônio cultural passa por um politica de planejamento

urbano que insira estes bens numa perspectiva ambiental que ultrapasse os limites materiais e

alcance o valor de referência cultural, ressonância e testemunho.

Para atingir este intento as preocupações do direito econômico e do direito

ambiental devem ser uníssonas no sentido de promover a qualidade de vida das pessoas e a

estabilidade do processo produtivo, em que a expressão qualidade de vida deve

concomitantemente observar o nível de vida material e o bem-estar físico e espiritual

(DERANI, 2008, p.57). Nesta perspectiva, o patrimônio cultural possui um papel relevante

para a qualidade de vida já que funciona como suporte dos valores culturais da sociedade.

A cidade é um bem ambiental síntese (YOSHIDA, 2009, p. 74) e o direito a

cidade considerado um direito fundamental (FERNANDES, 2003, p. 17). Para o seu

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desenvolvimento sustentável, precisa congregar questões relacionadas ao desenvolvimento

econômico e social, saúde e educação, bem como a manutenção da diversidade cultural

(FERNANDES, 2003, p. 27) que se dá através da proteção do patrimônio cultural sob a

perspectiva do paradigma da diversidade cultural.

Com isso, a proteção do patrimônio cultural apresenta-se como um dos fatores de

promoção do desenvolvimento sustentável das cidades e da qualidade de vida das pessoas.

A cidade de Manaus é marcada por um rápido processo de industrialização

desencadeado pela instalação da Zona Franca de Manaus - ZFM que promove o crescimento

econômico e intensifica o fluxo migratório ocasionando a ocupação irregular e desordenada

dos espaços urbanos.

O centro da cidade de Manaus, espaço que congrega um conjunto de bens dotados

de valor cultural, sofre as ações dessa ocupação desordenada e dos interesses imobiliários e

comerciais que tendem a mutilar o patrimônio cultural.

O centro da cidade é objeto de proteção pelos poderes públicos municipal e

federal através do tombamento do centro antigo e do centro histórico da cidade que visam

salvaguardar o patrimônio cultural relacionado ao período áureo da borracha.

A Manaus da borracha é marcada pelo apogeu econômico (1890/1910), mas

também pelas contradições de uma sociedade que ansiava ser moderna e civilizada segundo

os padrões europeus (MESQUITA, 2006, p. 145), mas que nos seringais submetia o

seringueiro a condições sub-humanas de exploração.

A vida do seringueiro é uma realidade que intencionalmente não era apresentada

na época, e que atualmente ainda esta sujeita ao apagamento histórico através do processo de

objetificação cultural, já que o tombamento do centro histórico promovido pelo IPHAN não

visa resgatar a história do seringueiro, mas das obras de embelezamento da cidade.

E neste ponto, merece destacar que as ações de proteção do patrimônio cultural

em outras cidades da região norte que contemplam o seringueiro e a paisagem do seringal,

não afastam esta constatação em relação ao tombamento do centro histórico, em que pese

marcar uma mudança no paradigma em relação ao patrimônio cultural relacionado à ideia de

conferir proteção ao que é relevante para os grupos formadores da sociedade brasileira, em

que o seringueiro compõe um destes grupos.

A proteção do patrimônio cultural seja através do tombamento ou do

planejamento urbano impõe restrições ao direito de propriedade e limitações as ações do

próprio poder público gerando conflituosidades em decorrência dos vários interesses

envolvidos no espaço urbano protegido.

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Os próprios entes públicos que integram a federação encontram-se envolvidos nas

conflituosidades geradas pela proteção conferida pelo tombamento do centro antigo e do

centro histórico de Manaus. Trata-se de questões discutidas na seara judicial acerca de

aspectos formais do processo de tombamento, mas que não deixam claros para a sociedade os

interesses na realização de ações de intervenção na cidade, que se reveste também do interesse

público e que precisam ser sopesadas.

A Copa do Mundo de 2014, que tem Manaus como uma das sedes, viabiliza a

disponibilização de recursos para execução de obras públicas como o projeto do monotrilho

desenvolvido pelo Estado do Amazonas e a reordenação do centro da cidade de Manaus, e

que preveem intervenções no centro da cidade, duplamente protegido pelos tombamentos

realizados pela LOMAN e pelo IPHAN.

O monotrilho é uma obra de mobilidade urbana e considerado o transporte do

século XXI que lança sobre a cidade um visão de futuro. O patrimônio cultural tombado no

centro da cidade projeta o olhar para o passado e visa proteger os bens de valor cultural.

Trata-se de conflituosidades desencadeadas por ações desarticuladas dos poderes públicos das

três esferas que produzem discursos maniqueístas entre as obras de modernização da cidade e

o patrimônio cultural, como se não fosse possível a convivência do passado com o presente.

A revitalização do centro de Manaus com a remoção dos camelôs é considerada

pelo município como uma intervenção voltada para proteção e promoção do patrimônio

cultural segundo o Decreto nº 819, de 31 de março de 2011, todavia, as propostas de

realocação destas pessoas num camelódromo no Porto Flutuante de Manaus ou na Praça

Tenreiro Aranha, ambos os espaços protegidos pelos tombamentos realizados pela LOMAN e

pelo IPHAN não assegura a proteção do patrimônio cultural, mas apenas atende os

compromissos assumidos pelo Brasil junto a FIFA para a Copa do Mundo de 2014

relacionados à desobstrução dos espaços públicos no centro da cidade.

O planejamento urbano através do plano diretor é um importante instrumento de

concretização da dimensão socioambiental da propriedade para a efetiva proteção do

patrimônio cultural. Neste sentido, o Plano Diretor Urbano e Ambiental de Manaus, tanto o

vigente, quando o seu projeto de atualização permeado igualmente por disputas judiciais,

contemplam no seu bojo um conjunto de normas que conferem proteção ao patrimônio

cultural tombado no centro da cidade de Manaus, inclusive reconhecendo a vocação deste

espaço para a cultura e o turismo.

O presente trabalho é movido pelas conflituosidades geradas pelo homem através

da relação da cultura com a natureza, passando pela cidade e a sua relação conflituosa entre a

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industrialização e urbanização, até chegar à cidade de Manaus e os seus conflitos sobre o

patrimônio cultural e os processos construtivos da cidade.

Com efeito, as normas jurídicas contemplam regras e princípios para a proteção

do patrimônio cultural e a promoção do desenvolvimento sustentável e da qualidade de vida

nas cidades. Assim, a questão principal para a efetiva proteção do patrimônio cultural através

do planejamento urbano conforme defende Lahorgue (2002, p. 54), consiste em reconhecer a

contradição existente entre a privatização dos espaços e o planejamento urbano, para que o

planejamento da cidade seja um processo de reconhecimento de interesses e classes sociais

sobre o espaço urbano.

Assim, é necessário promover a gestão democrática da cidade pela participação da

sociedade na tomada de decisões de forma que todos os interesses relacionados a cidade e as

ações do poder público sejam levadas ao conhecimento da coletividade e debatidas, e esta em

conjunto com o poder público possa decidir os rumos da cidade através da identificação dos

valores culturais que devem ser protegidos ao lado das intervenções urbanas que devem ser

realizadas, ambas voltadas para o desenvolvimento sustentável da cidade e para a melhoria da

qualidade de vida.

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ANEXOS

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ANEXO A

Traçado urbano – Manaus 1893.

Fonte: Arquivo Iphan.

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ANEXO B