algumas formas primitivas de classificação - durkheim

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    GRANDESCIENTISTAS SOCIAlSCole

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    182sobrepor-se ao primeiro somente por urn ato criador. - Mas atribuira sociedade 0 papel preponderante na genese da nossa natureza nao enegar essa criacao; pois a sociedade dispoe precisamente de urn podercriador que nenhum ser observavel pode igualar. Toda criacao, comefeito, a menos que seja uma operacao mistica que escapa a cienciae a inteligencia, e produto de uma sintese. Ora, se as sinteses dasrepresentacoes particulares que se produzem no seio de cada conscienciaindividual sao, por si proprias, inovadoras, quanta mais essas vastassinteses de consciencias completas que sao as sociedades! Uma socieda-de e 0 mais poderoso feixe de forcas ffsicas e morais que a naturezanos proporciona. Em nenhum lugar se encontra tal riqueza de materiaisdiversos, elevados a tal grau de concentracao, Nao e pois surpreendenteque uma vida mais elevada se desprenda dela, que, reagindo aos ele-mentos de que resulta, eleva-os a uma forma superior de existencia etransforma-os.

    Assim, a Sociologia parece ser chamada a abrir urn novo caminhopara a ciencia do homem. Ate aqui, estavamos colocados diante destaalternativa: ou explicar as faculdades superiores e especfficas do homem,reduzindo-as as formas inferiores do ser, a razao aos sentidos, 0 espiritoa materia, 0 que levaria a negar sua especificidade; ou entao liga-las aqualquer realidade supra-experimental que se postulasse, mas de quenenhuma observacao poderia estabelecer a existencia, 0 que colocavao espfrito nesse embaraco e que 0 individuo passava por ser finisnatura: parecia que nada havia alem, pelo menos nada que a cienciapudesse atingir. Mas, desde 0 momenta em que se reconheceu que,acima do individuo, existe a sociedade, e que esta nao e urn ser nominale de razao, mas urn sistema de forcas atuantes, uma nova maneira deexplicar 0 homem tornou-se possivel. Para conservar-lhe os atributosdistintivos, nao e necessario coloca-los fora da experiencia, Pelo menos,antes de chegar a esse extremo, convem pesquisar se aquilo que, noindividuo, ultrapassa 0 individuo, nao the viria dessa realidade supra--individual, mas dado pela experiencia, que e a sociedade. E certo quenao saberfamos dizer desde ja ate onde essas explicacoes podem serlevadas e se elas sao capazes de suprimir todos os problemas. Mas einteiramente impossivel tambem assinalar por antecedencia urn limiteque elas nao poderiam ultrapassar. E preciso testar a hipotese, subme-te-la tao metodicamente quanta seja possivel ao controle dos fatos. Foiisso que tentamos realizar.

    17. ALGUMAS FORMAS PRIMITIVASDE CLASSIFICA

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    Classe matrimonial A CIa da emaCIa da serpenteClasse matrimonial B CIa da lagarta etc.

    Classe matrimonial A'CIa do canguru

    Classe matrimonial B' CIa do qarnbaCIa do corvo etc.

    185cern a esta ou aquela fratria". G Esta tribo esta bastante proxima deoutra, a de Port-Mackay, no Queensland, onde encontramos 0 mesmosistema de classificacao, Segundo a resposta de Bridgmann aos ques-tionarios de Curr, de Br. Smyth e de Lorimer Fison, tal tribo, assimcomo as vizinhas, compreende duas fratrias, uma chamada Yungaroo,a outra Wootaroo. Existem tambem classes matrimoniais; mas estasnao parecem ter afetado as nocoes cosmologicas. A divisao em fratrias,ao contrario, e considerada "como uma lei universal da natureza"."Todas as coisas animadas ou inanimadas estao divididas por estas tri-bos em duas classes chamadas Yungaroo e Wootaroo", escreve Curr,de acordo com a informacao de Bridgmann. 7 "Elas dividem as coisasentre si", afirma 0 mesmo observador (Br. Smyth). Dizem que os cro-codilos sao Yungaroo e os cangurus, Wootaroo. 0 sol e Yungaroo, alua Wootaroo e assim por diante, tanto para as constelacoes quantapara as arvores, as plantas etc. 8 E Fison diz: "Tudo na natureza sereparte entre as duas fratrias, na opiniao deles. 0 vento pertence a uma,a chuva a outra. .. Quando interrogados sobre uma estrela part icular,dirac a que divisao (fratria) ela pertence";" (p. 9.)

    Tal classificacao e de extrema simplicidade, pois nao e mais quebipartida. Todas as coisas estao dispostas em duas categorias que cor-respond em as duas fratrias. 0 sistema se torna mais complexo quandonao e mais unicamente a divisao em fratrias mas tambem a divisao emquatro classes matrimoniais, que servem de quadro a distribuicao dosseres.

    As classes designadas pelas mesmas letras (A, A' etc. e B, B' etc.)sao aquelas entre as quais e permitido 0 comibio.Todos os membros da tribo se encontram assim classificados emquadros definidos e que se encaixam uns nos outros. Ora, a classiii-caciio das coisas reprodu: a classiiicadio dos homens.

    Cameron ja tinha observado que entre os ta-ta-this 3 "todas ascoisas do Universo estao divididas entre os diferentes membros datribo". Diz ainda: "Alguns desses membros atribuem a si as arvores,outros as planicies, outros 0 sol, 0 vento, a chuva, e assim por diante".Infelizmente, esta informacao e falha quanto a precisao. Nao declaraa que grupos de individuos os diversos grupos de coisas estao assimligados. 4 Possuimos todavia dados muito mais evidentes, documentosde alta significacao,

    As tribos do rio Bellinger estao divididas em duas fratrias cadauma; ora,' segundo Palmer, esta divisao tambem se aplica a natureza."Toda a natureza", diz ele, "esta dividida de acordo com a denomina-

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    186 187australianas, nas quais ate hoje passou desapercebida; mas nao podemosprejulgar resultados de observacoes que nao forem feitas. Os documen-tos de que dispomos atualmente nos permitem afirmar, todavia, queessa classificacao certamente e ou foi muito espalhada.

    Em primeiro lugar, essa forma de classificacao nao foi observadadiretamente em muitos casos, mas totens secundarios foram encontradosenos foram assinalados; e estes, como vimos, supoem tal classificacao,Observacao que e notadamente verdadeira para as ilhas do estreito deTorres, vizinhas da Nova Guine Britanica. Em Kiwai, os claspossuem quase todos por totem (miramara) especies vegetais;urn deles, 0 da arvore de palma (nipa), tern por totem secun-dario 0 caranguejo, que habita a arvore do mesmo nome. 10 Em Mabuiag(ilha situada a oeste do estreito de Torres) 11 encontramos uma organiza-c;:aode clas agrupados em duas fratrias: a do pequeno augud (augud sig-nifica totem) e a do grande augud. Uma e a fratria da terra, a outra,a fratria da agua; uma acampa a favor do vento, a outra contra 0vento; uma esta a leste, a outra a oeste. A da agua tern por totens avaca-marinha * e urn ani nal aquatico que Haddon chama de shovel--nose skate; os totens da outra sao todos auimais terrestres, com excecaodo crocodilo, que e anffbio: 0 crocodilo, a serpente, 0 casoar. 12 Ai estaoevidentemente tracos importantes de classificacao, Ainda mais, Haddonmenciona expressamente "totens secundarios ou subsidiaries propria-mente ditos": 0 tubarao-martelo, 0 tubarao, a tartaruga, a raia-de-ferrao(sting ray) estao ligados assim a fratria da agua; 0 cao, a fratria daterra. Dois outros subtotens estao ainda atribuidos a esta ultima; saoos omamentos feitos de conchas em forma de crescente. 13 Se lembrar-mos que, em todas essas ilhas, 0 totemismo esta em plena decadencia,parecer-nos-a muito legitimo considerar tais fatos como restos de urnsistema mais completo de classificacao. E tambem muito possivel queuma organizacao analoga se encontre noutros lugares do estreito de

    Torres e no interior da Nova Guine, 0 princfpio fundamental, isto e,a divisao em fratrias e em clas agrupados tres a tres, foi formalmenteconstatado em Asibai (ilha do estreito) e em Daudai. IISentimo-nos tentados a apontar traces da mesma classificacao nasilhas Murray, Mer, Waier' e Dauar.v" Sem entrar em detalhes sobre a

    organizacao social delas, tal qual no-la descreveu Hunt, chamamos aatencao sobre 0 seguinte fato. Urn certo mimero de totens existe entreesses povos. Cada urn dos totens confere aos individuos, deles porta-dores, poderes variados sobre diferenes especies de coisas. Assim, aosindividuos que tern por totem 0 tarnbor, estao atribuidos os poderesseguintes: e a eles que compete realizar a cerimonia que consiste emimitar os caes e em tocar os tambores; sao eles que fomecem os feiti-ceiros encarregados de fazer multiplicar as tartarugas, de assegurar acolheita das bananas, de adivinhar os assassinos por meio dos movimen-tos do lagarto; sao eles, finalmente, que impoem 0 tabu da serpente.Pode-se, pois, dizer com verossimilhanca que ao cla do tambor estaoligados, de certa maneira, alem do proprio tambor, a serpente, as ba-nanas, os caes, as tartarugas, os lagartos. Todas estas coisas dependem,pelo menos parcialmente, de tm mesmo grupo social e, por conseguinte,como as duas expressoes sao no fundo sinonimas, de uma mesma classede seres. 16

    A mitologia astronomica dos australianos apresenta marcas dessemesmo sistema mental. Efetivamente, sua mitologia e, por assim dizer,modelada sobre a organizacao totemica. Os nativos dizem, quase portoda a parte, que tal astro e determinado antepassado. 17: E : mais que provavel que se deveria mencionar para 0 astro, comopara 0 individuo com 0 qual se confunde, a que fratria, a que classe,

    14HADDON. Op, cit. p. 171.15HUNT. "Ethnographical Notes of the Murray Islands." J. A. 1. I, nova s~rie,p. 5 et seqs.16Queremos chamar a atencao para este fato, porque nos fornece a ocasiao deuma observacao de ordem geral. Por toda a parte onde encontramos urn ciaou uma confraria religiosa exercendo poderes magico-religiosos sobre eapeciesdiferentes de coisas, e muito legitimo inquirir se nao existe nisso 0 indicio daantiga classificacao, atribuindo a esse grupo social tais especies diferentcs deseres.17 Os documentos a respeito sao de tal maneira numerosos que nao os citaremostodos. A referida mitologia e mesmo tao desenvolvida que, muitas vezes, oseuropeus acreditaram que os astros eram as almas dos mortos. (Y. CURRo I, p.255, 403; II, p. 475; III, p. 25..)

    10HADDON. Head Hunters. Londres, 1901. p. 102.11Sabe-se, desde as obras de Haddon (Head Hunters. p. 13 e "The Etnographyof the Western Tribe of Torres Straits." J. A. 1. XIX, p. 39) que 0 totemismonao e encontrado senao nas ilhas de Oeste, e nao nas de Leste.* Dugong, (N. do T.)12HADDON. Head Hunters. p. 132. Mas os nomes que damos as fratrias nfiosao dados por Haddon.13HADDON. Ibid. p. 138. ct. RIVERS, W. H. "A Genealogical Method of Col lec-ting.", etc. J. A. 1. 1900. p. 75 et seqs.

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    188 189a que cHi pertence. Em vista disso, ele se encontraria classificado emdeterminado grupo; urn parentesco, urn lugar determinado the seriamatribuidos na sociedade. 0 que e certo e que estas concepcoes mitolo-gicas sao observadas nas sociedades australianas em que temos encon-trado a classificacao das coisas em fratrias e em clas, com todos os seustraces caracteristicos; nas tribos do Monte Gambier, entre os wotjobaluk,has tribos do norte de Vitoria. "0 sol", diz Howitt, "e uma mulherKrokitch do cia do sol, que todos os dias parte em busca do filhinhoque perdeu". 18 Bungil (a estrela Fomalhaut) foi, antes de subir aoceu, urn poderoso cacatua branco da fratria Krokitch, Este cacatuapossuia duas mulheres que, em virtude natural mente da regra exoga-mica, pertenciam a fratria oposta, Gamutch. Eram cisnes (provavel-mente dois subtotens do pelicano). Ora, ambas sao tambem estrelas. 19Os woiworung, vizinhos dos wotjobaluk.P? acreditam que Bungil (nomeda fratria) com todos os seus filhos, todos eles seres totemicos (homense animais ao mesmo tempo), subiu ao ceu num turbilhao; 21 Bungil eFomalhaut, como entre os wotjobaluk, e cada urn de seus filhos e umaestrela; 22 dois dos filhos sao duas estrelas do Cruzeiro do SuI. Osmycooloon do suI do Queensland, 23 grupo que se encontra muito afas-tado dos atras citados, classificam as nuvens do Cruzeiro do SuI nototem da ema; 0 cinturao de Orion faz parte do cia Marbaringal, e cadaestrela cadente, do cla Iinbabora. Quando uma dessas estrelas cai, vaitocar a arvore gidea e se transforma numa arvore do mesmo nome.Isto indica que a citada arvore esta tambem relacionada com 0 referidocla. A lua e antigo guerreiro, do qual nao se sabe nem 0 nome, nema classe. 0 ceu esta povoado de antepassados dos tempos imaginaries.

    As mesmas classificacoes astronomic as estao em usc entre os arun-ta, dos quais tornaremos a falar mais tarde, sob urn ponto de vistadiferente. Para eles, 0 sol e uma mulher da classe matrimonial Panunga,e e a fratria Panunga-Bulthara que esta encarregada da cerimonia reli-

    giosa que 0 concerne. 24 Deixou na terra descendentes que continuama se reencarnar 25 e que formam urn cla especial. Este ultimo detalheda tradicao mitica deve, porem, ser de formacao tardia. Pois, na ceri-monia sagrada do sol, 0 papel preponderante e desempenhado por indi-viduos que pertencem ao grupo totemico do bandicoot e do grandelagarto. 0 que significa entao que 0 sol devia ser antigamente urnPanunga do cla do bandicoot, habitando 0 territorio do grande lagarto.Por outro lado, sabemos que isto e 0 que se da com suas irmas, Ora,estas se confundem com ele. Ele e 0 "filhinho delas", "0 sol delas";em suma, elas nao sao mais do que urn desdobramento do sol. Emdois mitos diferentes, a lua esta ligada ao cla do gamba, Num dosmitos, ela e urn homem desse cia; 26 noutro mito, ela e ela mesma, masfoi roubada a urn homem do cla .27 e foi este homem quem the deter-minou 0 rumo. Nao nos dizem, e verdade, a que fratr ia ela pertencia.Mas 0 cia implica a fratria, ou pelo menos implicava a principio, entreos arunta. Sabemos, da estrela da manha, que pertencia it classe Kumara;vai refugiar-se todas as noites numa pedra que esta no territorio dosgrandes lagartos, com os quais parece estar estreitamente aparentada. 2Ro fogo esta, tambern, intimamente ligado ao totem do "euro". Foi urnhomem desse cla que 0 descobriu no animal do mesmo nome. 29

    Finalmente, quando, em muitos casos, estas classificacoes nao estaoimediatamente aparentes, nao deixam de ser encontradas, mas sob umaforma diferente da que acabamos de descrever. Mudancas sobrevindasit estrutura social alteraram a economia desses sistemas, mas nao a pontede toma-les completamente irreconhecfveis. Alias, as mudancas resul-tam em parte dessas classificacoes e seriam suficientes para revela-las.

    o que caracteriza as referidas classificacoes e que as ideias estaonelas organizadas de acordo com 0 modele fornecido pela sociedade.Mas desde que esta organizacao da mentalidade coletiva exista, ela esuscetivel de reagir it sua causa e de contribuir para modifica-la. Vimos

    18 "On Australian Medicine Men." J. A. I. XVI, nota 2, p. 53.19 HOWITT. "On the Migration on the Kurnai Ancestors." J. A. I. XV, nota 1,p. 415. Ct. "Further Notes" etc. J. A. I. XVIII, nota 3, p. 65.20 "Further Notes" etc. J. A. I. XVIII, p. 66.21 Ibid. p. 59. ct. nota 2, p. 63. Correspondem aos cinco dedos da mao.22 Ibid. p. 66.23 V. PALMER. Art igo citado. J. A. 1. XIII, p. 293, 294.

    24 Os indivlduos que realizam a cerimonia devem, em sua maior parte, pertencera esta fratria. V. SPENCERe GILLEN. Native Tribes oi Central Australia. p. 561.2:\ Sabe-se que, para os arunta, cada nascimento e a reencarnacao do espirito deurn ancestral rnitico.21 1 Ibid. p. 564.27 Ibid. p. 565.28 Ibid. p. 563, in tine.29 Ibid. p, 444.

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    190 191como as especies de coisas, classifi cadas num cla, servem de totenssecundarios ou de subtotens; isto e , no interior do cla, cada grupo parti-cular de individuos, sob a inf luencia de causas que ignoramos, passaa se sentir mais especialmente em r e , a co e s com tais e tais coisas quesao atribuidas, de maneira geral, ao cla inteiro. Desde que este, tornan-do-se muito volumoso, tenda a segmentar-se, sera segundo as linhasmarcadas pela classificacao que se processara a segmentacao, Nao sedeve crer que estas divisoes sejam necessariamente 0 produto de movi-mentos revolucionarios e tumultuosos. Parece, as mais das vezes, queeles tern lugar segundo urn processo perfeitamente 16gico. Foi assimque, em grande mimero de casos, se constituiram as fratrias, que sedividiram os clas,

    Em muitas sociedades australian as, as fratrias se opoem uma aoutra como 0 branco e 0 negro, isto e, como os dois termos de umaantitese, e nas tribos do estreito de Torres, como a terra e a agua; eainda, os clas que se formaram no interior de cada uma delas, conser-yam uns com os outros relacoes de parentesco 16gico. Assim, e rarona Australia que 0 cla do corvo seja de outra fratria que nao a dotrovao, das nuvens e da agua, Da mesma forma, quando num cIa asegmentacao se torna necessaria, sao os individuos 'agrupados em tornode uma das coisas cIassifieadas dentro do cIa que se destacam do resto,para formar urn cIa independente, e 0 subtotem se torna urn totem.Uma vez comecado 0 movimento, pode continuar e sempre segundo 0mesmo processo. Efetivamente, 0 subcla que assim se emancipou trans-porta consigo, para seu dominic ideal, alem da coisa que Ihe servede totem, algumas outras que sao consideradas solidarias com aquela.Estas coisas, no novo cla, desempenham 0 papel de subtotens e podem,se for necessario, tornar-se outros tantos centros em tomo dos quaisse produzirao, mais tarde, novas segmentacoes, 30

    Os wotjobaluk nos permitem precisamente capturar esse fenomenopor assim dizer ao vivo, em suas relacoes com a classificacao, 31Segundo

    Howitt, certo mimero de subtotens sao totens em vias de formacao.P"-"Eles conquistam uma especie de independencia", 33Assim, para deter-minados individuos, 0 pelicano branco e urn totem e 0 sol urn subtotem,enquanto outros os cIassifieam em ordem inversa. Provavelmente, asduas denominacoes deviam servir de subtotens a duas seccoes de urncIa antigo, cujo velho nome teria "decaido",34 e que compreenderia,entre as coisas a ele atribuidas, 0 pelicano e 0 sol. Com 0 tempo, asduas seccoes se destacaram de seu tronco comum; uma tomou 0 peli-cano como totem principal, deixando 0 sol em segundo lugar, enquantoa outra fez 0 contrario. Noutros casos em que nao se pode observartao diretamente a maneira pela qual a segmentacao se faz, ela se tornasensivel atraves das relacoes 16gicas que unem entre eles os subclasprovindos de urn mesmo cla, Ve-se claramente que correspondem asespecies de urn mesmo genero, : 0 que mostraremos expressamentemais adiante, a prop6sito de certas sociedades americanas.

    Ora, e facil de ver que mudancas esta segmentacao deve intro-duzir nas classificacoes, 35 Enquanto os subtotens, provenientes de urnmesmo cla original, conservarem a lembranca de sua origem comum,sentirao que sao parentes, associados, partes de urn mesmo todo; porconseguinte, seus totens e as coisas classificadas sob esscs totens fieamsubordinados, de certa maneira, ao totem comum do cIa total. Mascom 0 tempo, esse sentimento se apaga. A independencia de cada seccaoaumenta e termina por se tornar completa autonomia. Os laces queuniam todos esses clas e subclas numa mesma fratria se distendemainda mais facilmente e toda a sociedade acaba por se resolver numapoeira de pequenos grupos autonomos, iguais uns aos outros, sem ne-nhuma subordinacao, Naturalmente, a classificacao se modifiea em con-sequencia, As especies de coisas atribuidas a cada uma dessas subdivi-sees constituem outros tantos generos separados, si tuados no mesmo32 "Further Notes" etc. p. 63 e sobretudo 64.33"Australian Group Relations" in Report. Reg. Smith Inst. 1883. p. 818.34"Further Notes." p. 63, 64, 39.35( . .. ) Esta segrnentacao e as modificacoes que delas resultam na hierarquiados totens e dos subtotens permitem talvez explicar uma particularidade interes-sante de tais sistemas sociais. Sabe-se que, principalmente na Australia, ostotens sao geralmente animais, e muito mais raramente objetos inanimados.Pode-se crer .que primitivamente todos eram emprestados ao mundo animal. Massob esses totens primitivos estavam elassificados objetos inanimados que, devidoas segmentacoes, acabaram por ser promovidos ao lugar de totens principais.

    30 0 estudo das listas de ellis repartidos em fratrias, que Howitt apresenta emsuas "Notes on the Aust. Class Systems." J. A. I. XII, p. 149, em suas "FurtherNotes on the Aust." etc. J. A. L XVIII, p. 52 et seqs., e em suas "Remarks onMr. Palmers Class Systems." Ibid. XII, p. 385, e aItamente convincente.31Foi, alias, sob esse ponto de vista exclusivo que Howitt estudou os wotjobaluk,e foi esta mesma segrnentacao que, dando a' uma especie de coisas ora 0 caraterde urn totem, ora .o carater de subtotem, tornou dificil a constituicao de urnquadro exato dos clas e dos totens.

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    192 193plano. Toda hierarquia desapareceu. Porem, e licito supor que algunstraces restam ainda no interior de cada urn desses pequenos clas. Osseres ligados ao subtotem que se modificou em totem continuam a sersubordinados a ele. Mas, em primeiro lugar, nao podem mais ser muitonumerosos, dado 0 carater fracionario desses pequenos grupos. Aindamais, por pouco que 0 movimento continue, cada subtotem acabara porserelevado a dignidade de totem, cada especie, cada variedade subor-dinada se tornara urn genero principal. Entao, a antiga classificacaotera dado lugar a uma simples divisao sem nenhuma organizacao inter-na, a uma reparticao das coisas por cabeca e nao mais por fontes. Mas,ao mesmo tempo, como ela se processa no meio de urn mimero con-sideravel de grupos, ela compreendera, mais ou menos, 0 universointeiro.

    : nesse estado que se encontra a sociedade dos arunta. Nao existeentre eles uma classificacao completa, urn sistema constituido, Todavia,segundo as proprias expressoes empregadas por Spencer e Gillen, "defato no pais ocupado pelos indigenas, nao existe objeto, animado ouinanimado, que nao de seu nome a. algum grupo totemico de indivi-duos". 36 Encontramos mencionadas no trabalho desses pesquisadorescinqiienta e quatro especies de coisas servindo de totens a outros tantosgrupos totemicos; e, ainda mais, como eles nao se preocuparam emestabelecer uma lista completa dos totens, a que pudemos organizar,segundo as indicacoes esparsas em seu livro, nao e certamente exaus-tiva. 37 Ora, a tribo dos arunta e, sem diivida, uma daquelas em que

    o processo de segmentacao continuou ate 0 extremo limite; pois, devidoas mudancas sobrevindas a estrutura dessa sociedade, todos os obstaculos,suscetiveis de conte-lo, desapareceram. Sob a influencia de causas queforam aqui mesmo expostas, 38 os grupos totemicos dos arunta foramlevados muito cedo a sair do quadro natural que os cercava primitiva-mente e que, de certa maneira, lhes servia de ossatura; istoe, 0 quadfoda fratria. Em lugar de ficarem estri tamente localizados numa metadedeterminada da tribo, cada urn deles se expandiu livremente em todaa extensao da sociedade. Tornados assim estrangeiros a organizacaosocial regular, decaidos quase ao nivel das associacoes .privadas, os gru-pos totemicos puderam multiplicar-se, atomizar-se quase ate 0 infinito.A atomizacao dura ainda .hoje. Existem, efetivamente, especies de

    coisas cujo lugar na hierarquia totemica e ainda incerto, segundo 0 con-fessam os proprios Spencer e Gillen: nao se sabe se sao totens principaisou subtotens. 39 Quer dizer que esses grupos estao ainda num estadomovel, como os clas dos wotjobaluk. Por outro lado, entre totens atual-mente atribuidos a clas independentes, existem, por vezes, ligacoes quetestemunham que primitivamente deviam estar cIassificados num mesmocla. a 0 caso da fIor hakea e do gate selvagem. Assim, as marcas gra-vadas sobre os churingas dos homens do gate selvagem representamso e unicamente arvores de fIor hakea. 40 Segundo os mitos, nos temposfabulosos, era de fIor hakea que se alimentavam os gatos selvagens;ora, os grupos totemicos originarios sao geralmente conhecidos por sealimentarem de seus totens. 41 Isto significa que as duas especies decoisas nao estiveram sempre estranhas uma a outra, e que nao vieram ase-lo senao quando 0 cla i inico que as compreendia se fragmentou. 0cIa da ameixeira parece ser tambem urn derivado desse mesmo cIacomplexo: fIor hakea - gate selvagem.V Do totem do lagarto sedes-36 Native tribes 0/ Central Australia. Londres, 1898. p. 112.37Acreditamos ser uti! reproduzir aqui a Jista, tal qual a reconstituimos. Nao

    seguimos, bern entendido, nenhuma ordem em nossa enumeracao: 0 vento, 0sol, a agua ou nuvem (p. 112), 0 rato, a lagarta witchetty, 0 canguru, 0 lagarto,a ema, a fIor hakea (p. 116), a aguia, 0 falcao, 0 clonka (fruto comestivel) ,uma especie de mana, 0 gato selvagem, 0 irriakura (especie de bulbo), a lagartada borboleta "longicome", 0 bandicoot, 0 mana ilpirla, a formiga do mel, a fa,a frutinha chankuna, a ameixeira, 0 peixe irpunga, 0 gamba, 0 cao selvagem, 0"euro" (p. 177 et seqs.), 0 falcao pequeno (p. 232), a serpente tapis (p. 242),a lagarta pequena, 0 grande morcego branco (p. 300, 301), a semente da relva(p. 311), 0peixe interpitna (p. 316), a serpente coma (p. 317), 0falcao nativo,uma outra especie de fruto de mandinia (p. 320), 0 rate jerboa (p. 329), aestrela da tarde (p. 360), 0 lagarto grande, 0 lagarto pequeno (p. 389), 0ratinho (p. 389, 395), a semente alchantwa (p. 390), uma outra especie de ratapequeno (p. 396), 0 falcao pequeno (p. 397), a serpente okranina (p. 399),o peru selvagem, a pega, 0 morcego branco, 0 morcego pequeno (p. 401, 404, 406.)Existem ainda os clas de uma certa especie de bicho d'agua (p. 414), do falcflo

    (p. 416), da codorniz, da formiga-buldogue (p. 417), das duas especies delagartos (p. 439), do canguru (?) de cauda angulada (p. 441), de uma outraespecie de fIor hakea (p. 444), da mosca (p. 546), do passaro-sino (p. 635).38Annie Sociologique. t. Y, p. 108 et seqs.39 Assim Spencer e Gillen nao sabem ao certo se 0 pombo dos rochedos 6 urntotem ou totem secundario (c], p. 410 e 448). E tambem 0 valor tot8mico dasdiversas especies de lagartos nao esta determinado: assim os seres mlticos quecriaram os primeiros homens, que estes tiveram por totem 0 lagarto, se trans-formaram numa outra especie de lagarto (p. 389).40 P. 449.41 P. 417, 418.42 P. 283, 297, 403, 404.

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    194 195tacaram diferentes especies animais e outros totens, notadamente 0 dora~inho. 43 .Pode-se, pois, ter a certeza de que a organizacao prirnitivafoi submetida a urn vasto trabalho de dissociacao e de fracionamentoque nao esta ainda terminado.

    Assim pois, se nao encontramos mais entre os arunta urn sistemacompleto de classificacao, nao foi por nunca ter existido, foi porque sedecompos a medida que os clas se fragmentaram. 0 estado em que see?cO!~tra0 ,sis~ema nao f~z mais do que refletir 0 estado atual da orga-nizacao totemica dessa tnbo; outra prova, pois, da relacao estreita queune entre elas essas duas ordens de fatos. 0 sistema, todavia, nao desa-pareceu sem deixar traces visiveis de sua existencia anterior. Ja assina-lamos as sobrevivencias na mitologia dos arunta. Outras mais demons-trativas foram encontradas na maneira pela qual os seres se repartementre os clas, Certas especies de coisas estao muito freqiientementeligadas ao totem, de maneira identica a das classificacoes completas queexaminamos. :E urn ultimo vestigio de subordinacao. Assim, a arvorede goma esta especialmente associada ao ela das ras; a galinha-d'aguaesta ligada a agua. 44 Vimos anteriormente que existem relacoes estrei-tas entre 0 totem da agua e 0 fogo; por outro lado, os galhos doeucalipto, as folhas vermelhas do eremophile, 45 0 som da trombeta,o calor e 0 amor 46 estao ligados ao fogo. Ao totem do rato jerboaesta ligada a barba, 47 ao totem das moscas, as doencas dos olhos. 48o ser assim colocado em relacao com 0 totem e no caso mais freqiienteurn passaro, 49 0 passarinho negro' alatirpa depende das formigas domel e, como elas, freqiienta as moitas de mulga, 50 assim como outro

    passarinho alpitarka, que busca os mesmos habitantes. 51 Uma especiede passaro chamado thippa-thippa e 0 aliado do lagarto. 52 A plantairriakura tern por dependente 0 papagaio de pescoco vermelho. 53 Osindividuos do ela da lagarta witchetty nao comem certos passaros quesao chamados comensais deles (quathari que Spencer e Gillen traduzempor inmates). 54 0 totem do canguru tern sob sua dependencia duasespecies de passaros, 55 e 0 mesmo acontece com 0 "euro". 56 0 fatodos seres assim associados a outros terem sido, antigamente, do mesmototem que estes ultimos, mostra de maneira conc1udente que tais cone-xoes sao bern os restos de uma antiga classificacao. Os passaros kar-twungawunga eram antigamente, segundo a lenda, homens-cangurus ecomiam canguru. As duas especies ligadas ao totem da formiga do meleram outrora formigas de mel. Os unchurunga, passarinhos de urn ver-melho muito bonito, eram primitivamente do cIa do "euro". As quatroespecies de lagartos se concentram em dois pares de dois, e 0membrode cada par e ao mesmo tempo 0 associado e a transtormacao do outro.?"

    Finalmente, 0 fato de podermos, entre os arunta, encontrar a seriede estados intermediaries por meio dos quais esta organizacao se prende,quase sem solucao de continuidade, ao tipo classico do Monte Gambier,e uma ultima prova de que estamos bern diante de uma forma alteradadas antigas classificacoes. Entre os vizinhos setentrionais dos arunta, oschingalee, 58 que habitam 0 territ6rio norte da Australia meridional (gol-fo de Carpentaria), encontramos, como entre os pr6prios arunta, umaextrema dispersao das coisas entre clas muito numerosos, isto e , muitofragmentados; sao ai notados 59 totens diferentes. Os grupos totemicosdeixaram de ser elassificados sob as fratrias, da mesma forma que entreos arunta: todos os dois estao a cavaleiro das duas fratrias em que se3 Os churingas, ernblemas individuais em que se acredita residirem as almas

    dos antepassados, ostentam, no cHi das ras, representacses da arvore de goma-as cerimonias em que sao representados os mitos do cIa compreendem a figu-raciio de uma arvore e suas raizes (p. 145, 147, 625, 626, 670. Ct. p. 325, 344e fig. 72, 74).44 P. 448.45 P. 238, 322. [Eremophile - arbusto australiano do genero mioporaceo,(N. do T.)]46 P. 545.47 P. 329.48 P. 546.49 Spencer e Gillen so falam de passaros. Mas,na realidade, 0 fato e muitomais geral,50P. 448, 447.

    51P. 448, 188, 646. l! de notar a analogia que existe entre seus nomes e 0 dellatirpa, 0 grande an tepassado desse totem.52 P. 305. Em certas cerimonias do cIa, em torno do "lagarto", faz-se dancardois individuos que representam dois passaros dessa especie. E, segundo os mitos,esta danca estava ja em uso no tempo de Alcheringa,53P. 320. ct. 318 , 319 .54 P. 447 , 448.55P. 448.56 Ibid.57 Ibid. p. 448, 449.58V. MATTHEWS,R. H. "The Wornbya Organizat ion of the Austral ian Abor igines. "American Anthropologist. N. S. 1900. p. 494 et seqs.

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    divide a tribo. Mas a difusao desses grupos' nao e tao eompleta quantoentre os arunta. Em lugar de se estenderem, ao acaso e sem regula-mentacao, em toda aextensao da sociedade, eles se repartem de acordocom princfpios fixos e se localizam em grupos determinados, emboradiferentes, da fratria. Com efeito, cada fratria esta dividida em oitoclasses matrimoniais; 59 ora, cada classe de uma fratria nao pode casar--se senao com uma classe determinada de outra fratria, que compreendeou pode compreender os mesmos totens que a primeira. Reunidas, estasduas classes correspondentes contem, assim, urn grupo definido de to-tens e de coisas, que nao sao encontrados noutra parte. Por exemplo,todasas formas de pombos, as formigas, as vespas, os mosquitos, ascentopeias, a abelha indigena, a relva, a ra, diversas serpentes, etc.,pertencem as duas classes Chongora-Chabalye; ao grupo -formado pelasclasses Chowan e Chowarding sao atribuidas certas estrelas, 0 sol, asnuvens, a chuva, a galinha-d'agua, 0 ibis, 0 trovao, a aguia-Ialcao, 0falcaoescuro, 0 pato negro, etc.; ao grupo Chagarra-Chocarro, as con-chas, 0 rato bilbi, 0 corvo, 0 porco-espinho, 0 canguru, etc. Assim,num certo sentido, as coisas ainda estao presas a quadros determinados,mas estes possuem ja qualquer coisa de mais artificial e de menos con-sistente, uma vez que cada urn deles e formado de duas seccoes que seprendem a duas fratrias diferentes.

    Com outra tribo da mesma regiao, faremos urn passo a mais nocaminho seguido pela organizacao e sistematizacao. Entre os moorawa-ria, do rio Culgoa, 60 a segmentacao dos clas e levada ainda mais longe

    que entre os arunta; conhecemos ai, efetivamente, 152 especies de obje-tos que servem de totens a outros tantos clas diferentes. Mas esta mul-tidao de coisas esta regularmente enquadrada pelas duas fratrias Ippai--Kumbo e Kubi-Murri. 61 Estamos, pois, muito perto do tipo classico,salvo quanta a atomizacao dos clas, Que a sociedade, em lugarde estara esse ponto dispersa, se concentre, que os clas, assim separados, seagrupem segundo suas afinidades naturais de modo a formar gruposmais volumosos que, por conseguinte, 0 mimero de totens principaisdiminua (tomando as outras coisas que servem presentemente de totens,em relacao as precedentes, urn lugar subordinado) e tornaremos a en-contrar exatamente 0 sistema do Monte Gambier.

    Em resumo, se nao podemos afirmar que esta maneira de classi-ficar as coisas esta necessariamente implici ta no totemismo, em todoo caso ela e certamente encontrada com muita freqiiencia nas socie-dades que se organizaram numa base totemica, Existe, assim, umaligacao estrei ta e nao uma relacao acidental, entre esse sistema sociale 0 sistema logico. Veremos agora como a esta forma primitiva de clas-sificacao outras podem estar ligadas, que apresentam urn grau maisalto de complexidade.

    vAs classificacoes primitivas nao constituem, pois, singularidades

    excepcionais, sem analogia com J as que estao em usa entre povos osmais cultivados; parecem, ao contrario, se ligar sem solucao de continui-dade as primeiras classificacoes cientificas. Com efeito, embora difiramprofundamente destas ultimas sob certos aspectos, nao deixam todaviade possuir todos os caracteres essenciais das mesmas. Em primeirolugar, da mesma forma que as classificacoes dos eruditos, elas sao sis-temas de nocoes hierarquizadas. As coisas nao se encontram dispostassimplesmente sob a forma de grupos isolados uns dos outros, mas estesgrupos mantem uns com os outros relacoes definidas e seu conjuntoforma urn s6 e mesmo todo. Ainda mais, estes sistemas, do mesmomodo que os da ciencia, tern urn fim especulativo. Seu objeto nao efacilitar a acao, mas tornar compreensivas, inteligiveis, as relacoes exis-tentes entre os seres. Dados certos conceitos considerados como funda-

    59Ainda nesse ponto, ha um parentesco notavel entre esta tribo e ados arunta,na qual as classes matrimoniais sao tambem em mimero de oito; e pelo menoso easo entre os arunta do norte; e entre os outros a mesma subdivisao dasquatro classes primitivas esta em vias de formacao, A causa deste seceionamentoea. mesma nas duas sociedades, isto e, a transformacao da filia\rao uterina emfilia\rao maseulina. Nesta revista mesmo foi mostrado, com efeito, como talrevolucao teria por conseqliencia a impossibilidade de qualquer casamento se asquatro classes iniciais nao se subdividissem (V. Annte Sociol. V, n.? I, p. 106).Entre os chingalee, a mudanca se produziu, todavia, de maneira muito especial.A fratria e, por conseguinte, a classe matrimonial, continuam a transmitir-sepor linha materna; somente 0 totem e herdado do pai. Explica-se assim porquecada c1asse de uma fratria possui, na outra fratria, uma c1asse correspondenteque compreende os mesmos totens. . que a crianca pertence a uma classe defratria materna; mas possui os mesmos totens que seu pai, 0 qual pertence auma c1asse da outra fratria.60MATIHEWS, R. H. In: Proceedings 0/ the Amer ican Philosophical Society.(Filadeifia), 1898. t. XXXVII, p. 151 et seqs.

    61Nesta tribo nao se conhecem nomes para designar especialmente as fratrias.Designamos, pois, cada uma deias pelos nomes de suas classes matrimoniais.Ve-se ainda que a nomenclatura e a do sistema Kamilaroi.

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    198 199mentais, 0 espirito sente a necessidade de prender a eles as nocoes queformula a respeito de outras coisas. Tais classif icacoes sao, pois, antesde tudo, destinadas a l igar as ideias entre si, a unificar 0 conhecimento;a esse titulo, podemos dizer sem inexatidao que elas sao obra da cien-cia e constituem uma primeira filosofia da natureza. 62 Nao e tendo emvista a regulamentacao de sua conduta, nem mesmo a justificacao dapratica que 0 australiano divide 0 mundo entre os totens de sua triboe sim porque a nocao de totem, sendo capital, necessita situar, emrelacao a ela, todos os outros conhecimentos seus. Pode-se, pois, pensarque as condicoes de que dependem estas classif icacoes muito antigasnao deixaram de desempenhar um papel importante na genese da fun-c;ao classificatoria em geral.

    Ora, resulta de todo este estudo que tais condicoes sao de naturezasocial. Ao contrario de terem as relacoes logicas entre as coisas forne-cido ba.se as relac;oes sociais dos homens, como parece admitir Frazer,na reahdade foram estas que serviram de prototipo aquelas, SegundoFrazer, os homens se teriam dividido em clas de acordo com uma clas-sif icacao previa das coisas; ora, muito ao contrario os homens classi-fiearam as coisas porque estavam divididos em clas.

    Vimos, com efeito, como estas classif icacoes se modelaram sobrea organizacao social mais proxima e mais fundamental. Esta expressaoe insuficiente para exprimi-Io. A sociedade nao foi simplesmente ummodelo de acordo com 0 qual 0 pensamento classificatorio teria traba-lhado; foram os proprios quadros da sociedade que serviram de quadrosao sistema. As primeiras categorias logicas foram categorias sociais; asprimeiras classes de coisas foram classes de homens nas quais as coisasforam integradas. Foi porque os homens estavam agrupados e se conce-biam a si mesmos sob a forma de grupos, que agruparam idealmente os

    outros seres, e as duas modalidades de agrupamento comecaram porse confundir a ponto de serem indistintas. As fratrias foram os primeirosgeneros; os clas, as primeiras especies. As coisas eram tidas. comofazendo parte integrante da sociedade, e era 0 seu lugar na sociedadeque determinava seu lugar na natureza. Pode-se mesmo perguntar ~e amaneira esquematica pela qual os generos sao comumente concebidosnao dependeria em parte das mesmas influencias, E urn fato de obser-vacao corrente que as coisas compreendidas pelos generos sao geralme?-te imaginadas como se situando numa especie de meio ideal, de cir-cunscricao espacial mais ou menos nitidamente delimitada, Nao foi semuma razao, certamente, que tantas vezes os conceitos e suas relacoesforam figurados por circulos concentricos, excentricos, interiores, exte-r iores uns aos outros, etc. Esta tendencia para representarmos agrupa-mentos puramente logicos sob uma forma que contrasta a tal pontocom sua verdadeira natureza, nao provir ia do fato deles terem sido con-cebidos, no comeco sob a forma de grupos sociais, ocupando, por con-seguinte, local determinado no espaco? E, de fato, nao temos observadoesta local izacao especial dos generos e das especies em grande mimerode sociedades muito diferentes?

    Tambem as relacoes que unem as classes umas as outras, e naosomente sua forma exterior , sao de origem social. Foi porque os gruposhumanos se continham uns nos outros, 0 subcla no cla, e cla na fratria,a fratria na tribo, que os grupos de coisas se dispuseram segundo amesma ordem. Sua extensao regularmente decrescente a medida que sepassava do genero a especie, da especie a variedade etc., vern da ex-tensao igualmente decrescente que apresentam as divisoes sociais a me-dida que nos afastamos das mais vastas e mais antigas para nos apro-ximarmos das mais recentes e mais derivadas. E se a totalidade dascoisas e concebida como um sistema tinieo 6 porque a sociedade, elapropria, e concebida como tal. Ela forma um todo, ou melhor, ela eo todo iinico, ao qual tudo se liga. Assim a hierarquia logica nao .6senao um outro aspecto da hierarquia social e a unidade do conheci-mento nao 6 outra coisa senao a propria unidade da coletividade, esten-dida ao universo.

    Ainda mais: os proprios lacos que unem, seja os seres de ummesmo grupo, seja os diferentes grupos entre si, sao concebidos comolaces sociais. Lembravamos no inicio do trabalho que as expressoes pelasquais designamos ainda hoje tais relacoes tern urn significado moral;mas, enquanto para nos nao significam mais que metaforas, pr imitiva-mente elas conservavam todo 0 seu sentido. As coisas de uma mesma

    62Distinguem-se, por esse lado, nitidamente do que se poderia chamar as c1assi-fica!roes tecnol6gicas. E provavel que, em todos os tempos, ohomem mais oumenos nitidamente c1assificou as coisas de que se alimenta, de acordo com osprocessos usados para apropria-las: por exemplo, em animais que vivem naagua, ou nos ares, ou na terra. Mas, primeiro, estes grupos assim constituidosnao estao ligados uns aos outros e sistematizados. Sao divisoes, distincoes denocoes, mas nao quadros de classificacao. E, mais ainda, e evidente que estasdistincoes estao estreitamente comprometidas com a pratica, da qual elas naofazem mais do que exprimir certos aspectos. Foi por esta razao que naofalamos delas neste trabalho em que procuramos principalmente esclarecer urnpouco as origens do processo logico que esta nabase das classificacoes cien-tificas.

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    200 20 1classe eram realmente consideradas como parentes dos individuos domesmo grupo social e, por conseguinte, como parentes uns dos outros.:'::las er:m "da mesma c~rne", da mesma familia. As relacoes logicassao, entao, em certo sentido, relacoes domesticas. Vimos tambem algu-m~s vezes que elas se comparam em.itodos os pontos as relacoes queexistem entre 0 senhor e a coisa possuida, entre 0 chefe e seus subor-d!nados . . ~oder-Sf:-ia perguntar se a nocao, tao estranha do ponto devista POSltlVO,da :uperioridade do genero sobre a especie nao teve aquisua f orma rudimen tar. Do mesmo modo que, para 0 realista a ideiageral domina 0 individuo, assim tambem 0 totem do cia domina 0 doss~bcLis e, mais ainda, 0 totem pessoal dos individuos; e hi onde a fra-tna guardou sua primeira c~nsistencia, ela possui, sobre as divisoes queco~pr:ende e os seres particulares a estas atribuidos, uma especie dep~lmazla. EII_1borasendo essencialmente Wartwut e parcialmente Moi-viluk, 0 wotjobaluk de Howitt e , antes de tudo, urn Krokitch ou urnGamutch. Entre os zufii, os animais que simbolizam os seis clas funda-~entais estao soberanamente preponderantes sobre seus subclas respec-

    tlVOSe sabre os seres de toda especie ai agrupados.o que precede permite compreender como se pode constituir anocao de classes, ligadas entre elas num unico e mesmo sistema masignoramos .ainda quais as forcas que induziram as homens a repartira.scorsas entre essas classes da maneira que adotaram. Do quadro exte-nor d.a classificacao ter sido fornecido pela sociedade, nao decorre ne-cessanamente que 0 modo pelo qual foi empregado tenha as mesmasrazoes ~e origem. E muito possivel, a priori, que motivos de ordemmuito diferente tenham determinado 0 modo pelo qual os seres foramaproximados, confundidos, ou entao distinguidos e separados., AAconcepcao parti~ul,ar que se tern dos lacos logicos permite, po-

    rem, p~r de lado esta hipotese. Acabamos de ver, com efeito, que esteslaces sao representados sob a forma de lacos famiIiares, ou como reia-c;:oesde subordi?ac;:ao economica ou politica; pode-se dizer, pois, queos .mesmos sent~~entos que estao na base da organizacao domestica,social, etc., presidiram tambem a reparticao logica das coisas. Estas seatraem ou se opoem da mesma maneira que os homens se ligam peloparentesco ou se opoem pela vendeta. Elas se confundem como os mem-bros de uma mesma familia se identificam num pensamento comum. 0qu~ faz com que umas se .subordinem as outras e em todos os pontosanalogo ao que Iaz 0 objeto possuido aparecer como inferior a seuproprietario: 0 servo a seu senhor. Foram, pois, estados coletivos quederam nascimento a estes grupos e, ainda mais, estes estados sao mani-

    festamente afetivos. Existem afinidades sentimentais entre as coisas comoentre os individuos, e elas se classificam segundo tais afinidades.Chegamos, pois, a esta conclusao: que e possivel cIassificar outracoisa que nao os conceitos, e de maneira diferente das seguidas pelasleis do entendimento puro. Pois, para que nocoes possam assim se

    dispor sistematicamente segundo razoes sentimentais, e preciso que elasnao sejam ideias puras, mas que sejam, sim, obra de sentimentos. Efeti-vamente, para esses que chamamos primitivos, uma especie de coisasnao e simples objeto de conhecimento, mas corresponde antes de maisnada a uma certa atitude sentimental. Toda especie de elementos afe-tivos concorre para a representacao que dela se concebe. Principalmenteemocoes religiosas que nao apenas the comunicam urn colorido espe-cial, mas ainda the atribuem as propriedades mais essenciais que a cons-tituem. As coisas, antes de mais nada, sao sagradas ou profanas, purasou impuras, amigas ou inimigas, favoraveis ou desfavoraveis; 63 isto e ,seus caracteres fundamentais nao fazem mais do que exprimir a maneirapela qual elas afetam a sensibilidade social. Diferencas e semelhancasmais afetivasque intelectuais determinam a maneira pela qual elas seagrupam. E por isso - porque afetam diferentemente os sentimentosdos grupos -, que as coisas, de certo modo, mudam de natureza, se-gundo as sociedades. 0 que aqui e concebido como perfeitamente homo-geneo, adiante e representado como essencialmente heterogeneo, Paranos, 0 espaco esta formado de partes semelhantes entre si, substituiveisumas as outras. Vimos, todavia, que, para muitos povos, 0 espaco estaprofundamente diferenciado segundo as regioes. E que cada regiao ternseuvalor afetivo proprio. Sob a influencia de sentimentos diversos, elase liga a urn principio religioso especial e, por conseguinte, esta dotadade virtudes sui generis que a distinguem de qualquer outra. E e estevalor emocional das nocoes que desempenha papel preponderante namaneira pela qual as ideias se aproximam ou se separam. E este valorque serve de carater dominante na classificacao.

    Afirmou-se freqiientemente que 0 homem comecou por conceberas coisas que se relacionavam com ele proprio. 0 que foi exposto atraspermite compreender melhor em que consiste este antropocentrismo, queseria chamado com mais propriedade de sociocentrismo. 0 centro dosU:l Ainda agora , para 0 crente de muitos cultos, os alimentos se classificam antesde tudo em dois grandes generos, os gordurosos e os magros, e sabe-se quantoexiste de subjet ivo nesta classi ficacao,

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    primeiros sistemas da natureza nao e 0 indivfduo, e'a sociedade. 64 :eela que se objetiva e nao mais 0 homem. Nada mais demonstrativo aesse respeito que 0 modo pelo qual os indios sioux englobam de certamaneira 0 mundo inteiro nos Iimites do espaco tribal; e vimos como 0pr6prio espaco universal nada mais e do que 0 local ocupado pelatribo, indefinidamente estendido alem de seus Iimites reais. Foi em vir-tude da mesma disposicao mental que tantos povos colocaram 0 centrodo mundo, "0 umbigo da terra", em sua capital politica ou religiosa, 611isto e , la onde se encontra o centro de sua vida moral. Da mesmaforma ainda, mas numa outra ordem de ideias, a forca criadora douniverso e de tudo 0 que af se encontra foi concebida primeiramentecomo 0 antepassado mftico, gerador da sociedade. Bis por que a nocaode uma classificacao 16gicafoi tao diffcil de se formar, como mostramosno infcio deste trabalho. :e que uma classificacao 16gica e uma c1assi-fica~ao de conceitos. Ora, 0 conceito e a nocao de urn grupo de seresnitidamente determinado; os Iimites desse grupo podem ser marcadoscom precisao. A emocao, ao contrario, e qualquer coisa de vago e deinconsistente. Sua influencia contagiosa se irradia muito alem do pontoem que se originou, estende-se a tudo quanto a cerca, sem que se possadizer onde termina seu poder de propagacao, Os estados de naturezaemocional participam necessariamente do mesmo carater. Nao se podedizer nem onde comecam, nem onde acabam; perdem-se uns nos outros,misturam suas propriedades de tal maneira que nao podem ser catego-rizados com rigor. Por outro lado, para poder marcar os Iimites de umac1asse seria preciso ainda ter analisado os caracteres pelos quais sedistinguem e se reconhecem os seres reunidos nesta c1asse. Ora, a emo-~ao e naturalmente refrataria it analise, ou, pelo menos, a ela se prestacom dificuldade porque e muito complexa; desafia 0 exame critico eraciocinado, principalmente quando e de origem coletiva.' A pressaoexercida pelo grupo social sobre cada urn de seus membros nao per-mite aos indivfduos julgar com Iiberdade nocoes que a pr6pria sociedadeelaborou, e em que colocou qualquer coisa de sua personalidade. Taisconstrucoes sao sagradas para os particulares. Desse modo, a hist6ria

    da classificacao cientifica e , em definitivo, a pr6pria hist6ria das etapasno curso das quais este elemento de afetividade social se enfraqueceuprogressivamente, deixando cada vez mais 0 lugar livre para 0 pensa-mento refletido dos indivlduos. Todavia, muito falta ainda para queestas influencias Ionginquas, que acabamos de estudar, tenham cessadode se fazer sentir. Deixaram atras de si uma conseqiiencia que sobre-vive e que continua sempre presente: 0 quadro mesmo de todas as cla~-sificacoes, 0 conjunto to do de habitos mentais em virtude dos quaisconcebemos os seres e os fatos sob a forma de grupos coordenados esubordinados uns aos outros.

    Pode-se ver, por exemplo, 0 raio de luz que a Sociologia projetana genese e, por conseguinte, no funcionamento das operacoes 16gicas.o que tentamos fazer para a classificacao poderia ser igualmente ten-tado para outras funcoes ou nocoes fundamentais do entendimento. Jativemos ocasiao de indicar de passagem como mesmo ideias tao abstra-tas quanto as de tempo e de espaco estao, em cada momento de suahist6ria em relacao estreita com a organizacao social correspondente.o mesmo metodo poderia ajudar igualmente a compreender a maneirapela qual se formaram as ideias de causa, _de substancia, ~s difere~t:sformas de raciocinio, etc. Todas estas questoes, que metaffsicos e pSlCO-logos agitam ha tanto tempo, serao enfim Iibertadas das repeticoesfastidiosas em que se detem marcando passo, no dia em que forem colo-cadas em termos sociol6gicos. Ai esta, pois, urn novo caminho quemerece ser trilhado.

    64 De La Grasserie desenvolveu, mas de maneira assaz obscura e sobretudo semapresentar prova, ideias semelhantes as nossas em Religions comparees au pointde vue sociologique. cap. III.611 0 que 6 compreensivel em relalfao aos romanos, e mesmo em relalfao aoszufii, 0 e muito menos em relacao aos habitantes da ' Ilha da Pascoa, chamadaTe Pito-te Henua (umbigo do mundo); mas a ideia e inteiramente natural emtoda a' parte.