ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL … · As instituições feudo-vassálicas, ainda que tenham...
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Universidade Estadual de Maringá 07 a 09 de Maio de 2012
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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O PAPEL PEDAGÓGICO
DAS PUNIÇÕES NO IMPÉRIO PORTUGUÊS
MONTAGNOLI, Gilmar Alves (UEM)
COSTA, Célio Juvenal (UEM)
Agência financiadora: CAPES
Introdução
Neste trabalho é realizada uma reflexão sobre os mecanismos de punição
aplicados à época do Império Português. Parte-se do pressuposto de que, naquele
contexto, as penas desempenhavam uma função pedagógica pois, por meio de sua
aplicação, os súditos internalizavam os valores eleitos socialmente. Mais que punir o
culpado, os rituais de punição deviam provocar medo nos demais súditos portugueses,
que evitariam cometer o mesmo feito do condenado.
Importante, nesse ponto, ressaltar a compreensão de educação que
fornece respaldo a este trabalho. A ideia será melhor explorada ao longo do trabalho,
mas convém aqui definir educação como um processo de aprendizagem da forma de ser
que se dá em todas as relações humanas. Trata-se de uma compreensão ampla do
processo educativo, o qual não se restringe às instituições escolares, como comumente
se pensa. No caso desta discussão, parte-se do pressuposto que a legislação e os
mecanismos de punição educavam a sociedade em questão e, portanto, o estudo pode
evidenciar um projeto social e, portanto, um projeto educacional.
De forma geral, será discutida a associação da representação real a
questões religiosas, alguns aspectos políticos, econômicos e culturais do contexto e,
finalmente, será explorada a ideia de uma pedagogia das penas.
Tal ideia de uma “pedagogia punitiva” será ainda problematizada a partir do
estudo da concepção de poder do período, também percebida nas relações entre
senhores e escravos no interior das fazendas e casas senhoriais. Tomar-se-á como base,
por exemplo, as advertências de Jorge Benci, um jesuíta italiano que, no final do século
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XVII, pregava que dar sustento, trabalho e castigo era, além de direito, uma obrigação
devida por um senhor cristão aos seus escravos.
Enfim, objetiva-se problematizar, por alguns caminhos, a relação entre punição e
educação que vigorou no contexto em questão. A hipótese inicial é que, no caso das
Ordenações Portuguesas, a forma de punir estava diretamente relacionada à natureza do
delito ou, em outras palavras, as punições mais severas revelam os comportamentos
tidos como mais prejudiciais àquela organização social. No caso do rei, amparado por
tal legislação, constituíam elementos inerentes ao seu poder: punir, controlar os
comportamentos e instituir uma ordem social, castigar as violações a essa ordem e
afirmar o poder do soberano. No caso dos senhores de escravos, conforme mencionado,
o castigo devia ser exemplar e ao mesmo tempo bem administrado (não exagerado),
uma forma de obter a maior produtividade do trabalho dos escravos.
1 As legislações em Portugal: aspectos históricos
A história do direito oferece elementos para compreender como ele se formou e
se desenvolveu ao longo dos séculos, exercício imprescindível ao estudo do direito em
determinado contexto. No caso do direito português dos séculos XV, XVI e XVII,
consubstanciado nas Ordenações, alguns esclarecimentos iniciais fazem-se necessários.
Sobre o quadro geográfico da abordagem, dever-se-á cuidar, conforme adverte
Gilissen (2003), em não se limitar às fronteiras de Portugal, mas situar o estudo em um
quadro mais vasto, que compreenda parte da Europa Ocidental, em virtude das
influências exercidas pelo direito dos outros países. Isso porque, argumenta o autor:
O direito de cada país não foi criado de um dia para o outro; não foi instituído; antes é a consequência de uma evolução secular. De uma evolução que não é, de resto, própria de cada país. Pois, se desde a época moderna o direito é, antes de mais, nacional ou, dito de outro modo, se actualmente cada Estado soberano tem o seu próprio sistema jurídico, nem sempre assim foi (GILISSEN, 2003, p. 14).
No que se refere à periodização, faz-se necessário, pelo menos, retomar aspectos
da Baixa Idade Média, compreendida entre os séculos XIII e XV, quando “verifica-se
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uma mudança considerável na estrutura da sociedade medieval” (GILISSEN, 2003, p.
239). As instituições feudo-vassálicas, ainda que tenham subsistido parcialmente até o
fim do Antigo Regime, passam então ao segundo plano, provocando a concentração e
consolidação do poder nas mãos de um número limitado de personagens (imperadores,
reis, duques, condes ou outros príncipes territoriais).
Suplantando a velha hierarquia feudal, desenvolve-se uma organização
administrativa estatal. Surgem, então, grandes cidades, centros de comércio e de
indústria que “gozam muitas vezes de um direito próprio nascido das necessidades das
populações urbanas, e que desempenham um papel considerável tanto no plano
econômico e social como no plano político” (GILISSEN, 2003, p. 240). Nessa forma de
entendimento, a lei aparece como fonte de direito e o rei passa a legislar.
O direito canônico1, que atingiu o apogeu de sua autoridade nos séculos XII e
XIII, quando esteve mais ou menos sistematicamente codificado, entrou em decadência
no século XIV, com o Grande Cisma do Ocidente e a laicização do direito. Por outro
lado, assiste-se a um renascimento do direito romano.
Outro ponto que merece destaque é o fato de que, no século XIII, “os sistemas
de provas racionais substituírem as provas irracionais”. Ocorre que “As partes deixam
de recorrer a Deus para resolver seus conflitos; pedem a juízes, ou mesmo a árbitros,
para investigarem a verdade e decidirem tendo em conta regras de direito. Justiça e
equidade aparecem como fundamentos do direito” (GILISSEN, 2003, p. 241).
No contexto, a formulação de um direito objetivo sobrepõe-se à massa dos
direitos subjetivos. O autor lembra que, durante a época feudal, a formulação de regras
jurídicas tende quase exclusivamente para o enunciado de direitos subjetivos, ou seja,
direitos de uma ou de certas pessoas em relação a uma ou algumas outras pessoas. As
obrigações do vassalo para com seu senhor são utilizadas como exemplo pelo autor.
Enfim, o fato é que desde o século XII, por toda parte na Europa, podem ser
percebidos os primeiros esforços de formulação de um direito objetivo. São regras
1 O Direito Canônico poderia ser conceituado como o conjunto de leis propostas, elaboradas ou canonizadas pela Igreja, numa determinada época, Ou, numa definição mais completa, trata-se do conjunto de normas jurídicas, de origem divina ou humana, reconhecidas ou promulgadas pela autoridade competente da Igreja Católica, que determinam a organização e atuação da própria Igreja e de seus fiéis, em relação aos fins que lhe são próprios.
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aplicáveis a todos os habitantes de determinado território ou a todos os membros de um
grupo social, gozando de certa autonomia política.
No que se refere à situação política dos principais Estados, pode-se afirmar que,
no geral, a tentativa de unificação foi prática comum a todos. Logo, no domínio
jurídico, “a unificação do direito é um dos objectivos visados pelos soberanos de
tendência absolutista; vêem aí um meio para eliminar os particularismos regionais e
locais e destruir os privilégios de certos grupos sociais” (GILISSEN, 2003, p. 247).
Vale ainda salientar o fato de, a partir do século XVI, as regras de direito serem
estabelecidas por escrito dando maior segurança aos interessados. Conforme Gilissen
(2003), a lei escrita suplanta o costume oral, o que também acontece com processos e
provas. A legislação torna-se por excelência a fonte viva do direito, tendendo a eliminar
progressivamente o costume, que revoga ou suplanta. É o soberano que legifera.
Gilissen (2003) chama a atenção para o fato de o costume permanecer a fonte
principal do direito civil, mas ter seu caráter alterado. Na sua forma de entendimento,
“os soberanos ordenam a redução a escrito dos costumes; uma vez escrito e homologado
(o que quer dizer reconhecido oficialmente), deixa de ser um verdadeiro costume para
se tornar uma lei de origem consuetudinária” (GILISSEN, 2003, p. 248). Os soberanos
reservam-se o direito de o modificar e o interpretar. Os costumes homologados
adquiriram as características essenciais da lei: certeza, estabilidade e permanência.
Não é fácil precisar quando aparecem as primeiras leis em cada país. Para
Gilissen (2003), foi a partir do século XII, tanto nos textos de direito canônico como nas
interpretações de glosadores, que o direito de legislar foi reconhecido ao imperador e
aos reis. O direito de legislar foi ainda estendido às cidades e, por vezes, às
comunidades de habitantes.
Mais especificamente no caso de Portugal, algumas considerações referentes ao
contexto são necessárias a fim de entender a formulação das chamadas Ordenações,
foco deste trabalho. Na sequência, então, uma discussão nesse sentido será realizada,
mesmo que brevemente.
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1.1 As Ordenações Portuguesas
Um acontecimento significativo a ser considerado na compreensão da
formulação dos códigos legislativos portugueses a partir do século XV é a expansão
ultramarina portuguesa, em seus aspectos econômicos, políticos e sociais. A partir dos
desdobramentos marítimos, conforme argumenta Saraiva (1995), a vida econômica
concentrou-se no litoral e a atividade governativa do Estado especializou-se na
economia e na política militar ultramarina.
Assim, a partir do século XV cessou-se o esforço de colonização interna que
progredira desde o início da monarquia, entrando a vida campesina numa estagnação
profunda, conservando, até finais do século XIX, numerosas sobrevivências medievais.
O autor acredita que a expansão marítima portuguesa foi decisiva para o início de um
novo ciclo da história de Portugal. Os empreendimentos ultramarinos possibilitaram à
coroa adquiri uma nova dimensão: o pequeno Portugal ibérico transformara-se numa
das maiores potências navais e comerciais da Europa.
O crescimento da corte é apontado como uma forma de exteriorizar a crescente
grandeza da dignidade real, além de evidenciar o resultado da centralização e de um
enorme aumento da atividade do serviço público. Saraiva (1995) chama a atenção para o
fato de que durante os reinados de D. Manuel, D. João III e D. Sebastião, foram
publicadas numerosas reformas legislativas a fim de regulamentar minuciosamente
muitas atividades do estado: fazenda, justiça, exército, administração central e local.
Para ele, o Estado moderno substitui, nas leis como nas armas e nas ideias, o Estado
medieval.
Os códigos legislativos portugueses mais abrangentes eram denominados
Ordenações do Reino, que eram regulamentos cujos nomes faziam referência aos reis
que os promulgaram e que pretendiam dar conta de todos os aspectos legais da vida dos
súditos. Trata-se das Ordenações Afonsinas (1446), Ordenações Manuelinas (1521) e
Ordenações Filipinas, promulgadas no ano de 1595 e editadas em 1603, período de
domínio espanhol do império luso.
Cláudio Valentim Cristiani (2003), na obra O direito no Brasil colonial,
apresenta o contexto de publicação de cada Ordenação, bem como as necessidades de
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tais sistematizações. O autor esclarece que as Ordenações Afonsinas foram a primeira
grande compilação das leis esparsas em vigor. Criadas no reinado de D. Afonso V, que
reinou em Portugal de 1438 a 1481, são divididas em cinco livros que tratam desde a
história da própria necessidade daquelas leis, passando pelos bens e privilégios da
Igreja, pelos direitos régios e de sua cobrança, pela jurisdição dos donatários, pelas
prerrogativas da nobreza e pela legislação especial para os judeus e mouros; o livro IV
trata mais especificamente do chamado direito civil; e o Livro V diz respeito às questões
penais.
As Ordenações Manuelinas foram publicadas pela primeira vez em 1514 e
receberam sua versão definitiva em 1521, ano da morte do rei do rei D. Manuel I.
Foram obra da reunião das leis extravagantes2 promulgadas até então com as
Ordenações Afonsinas, visando a um melhor entendimento das normas vigentes. A
invenção da imprensa e a necessidade de correção e atualização das normas contidas nas
Ordenações Afonsinas foram justificativas para a elaboração das novas leis. A estrutura
de cinco livros foi mantida, algumas leis foram suprimidas e/ou modificadas e um estilo
mais conciso foi adotado.
As Ordenações Filipinas, promulgadas em 1603, durante o reinado de Felipe II
(1598 a 1621), compuseram-se da união das Ordenações Manuelinas com as leis
extravagantes em vigência. No período conhecido como União Ibérica, no qual Portugal
foi submetido ao domínio da Espanha (1580 a 1640), foram concebidas as últimas leis
que o reino lusitano teve até ver o fim na monarquia. As novas Ordenações foram
necessárias devido à atualização com o direito vigente, pois algumas normas já estavam
em desuso e outras precisavam ser revistas. Felipe II, apesar de ser Espanhol, mostrando
habilidade política, promulgou as novas leis dentro de um espírito tradicional
respeitando as leis portuguesas, mantendo-se, inclusive, a mesma forma das Ordenações
anteriores.
2 Após a publicação dos três grandes Códigos do Direito Português, que são as Ordenações, surgiram muitas leis ditas extravagantes, pois na sequência de cada um dos períodos em que foram publicadas estas três grandes obras, houve uma fase de produção de legislação dita extravagante, em se tentavam corrigir algumas falhas e fazer alterações. Com a passagem do tempo, também estas leis tiveram necessidade de ser compiladas.
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Apresentadas as Ordenações e compreendidas as relações que se estabelecem
entre a legislação e as vicissitudes do seu contexto histórico, discutir-se á algumas
relações entre direito e religião no contexto em questão.
2 Considerações sobre as relações entre direito e religião
O fato de a sociedade portuguesa ver como natural a atribuição ao rei da guarda
e vigilância da fé e da prática cristã sugere que a religiosidade cristã fosse a forma de
ser da sociedade portuguesa, forma que lhe garantia a identidade e a unidade, cabendo,
portanto, ao rei sua preservação, o que o fazia por meio do direito e da educação. Nas
palavras de Paiva (2007, p. 12), “Deus ocupa todo o espaço da realidade. O rei o
representa”.
Paiva (2007) também destaca a presença da religiosidade nas práticas sociais que
se estabeleciam. Sobre o contexto, o autor argumenta:
Deus, com efeito, está presente e atuante, tudo convergindo para Ele, a Ele se referindo não por decisão da vontade mas pela própria constituição. O corpo social se organiza hierarquicamente, conforme as funções exercidas, o rei e o papa no ápice. A unidade do corpo prevalece sobre as partes e, portanto, sobre as pessoas. As competências das partes lhes garantem o direito de as exercerem, sem intromissão das demais, o rei se distinguindo por distribuir a justiça em casos de conflito. Assim, religiosidade e direito são características privilegiadas da maneira social de ser dos portugueses (PAIVA, 2007, p. 10. Grifo no original).
A fim de entender essa lógica político-religiosa, faz-se necessário voltar às suas
origens que remontam ao medievo. Naquele contexto havia a concepção de que o rei
tinha dois corpos: um natural, essencialmente igual ao de qualquer pessoa, e outro
místico. O primeiro, sujeito às imperfeições de nascimento ou adquiridas, e o segundo,
perfeito e imortal. Kantorowicz (1998) demonstra que tal doutrina resultou de uma
construção histórica e mostra como conceitos utilizados pelos teólogos da Idade Média
para caracterizar a Igreja ou o próprio Cristo foram sendo lentamente adaptados e
transferidos da esfera religiosa para o campo da política e do direito, conforme se
percebe no seguinte trecho:
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O Rei possui duas Capacidades, pois possui dois Corpos, sendo um deles um Corpo natural, constituído de Membros naturais como qualquer outro Homem possui e, neste, ele está sujeito a paixões e Morte como os outros Homens, o outro é um Corpo político, e seus respectivos Membros são seus Súditos, e ele e seus Súditos em conjunto compõem a Corporação (KANTOROWICZ, 1998, p. 24-25).
Responsável pela organização do corpo social, o soberano constituía o centro
único e indissolúvel do poder. Para tanto, uma estrutura hierárquica de jurisdições e
alçadas o possibilitava estar presente em todo o Reino. Na sequência, discutir-se-á, além
dessa organização, outras práticas desse modo de conceber a política, que também se
afirmava e se fazia presente por meio de dispositivos simbólicos e rituais.
2 O papel pedagógico das punições no Império Português: algumas considerações
Conforme mencionado, constituíam elementos inerentes ao poder real “Punir,
controlar os comportamentos e instituir uma ordem social, castigar as violações a essa
ordem e afirmar o poder do soberano”. Para ser eficaz “a punição devia ser afirmativa e
exemplar: como exercício de poder, ela devia explicitar a norma, fazer-se inexorável e
suscitar o temor” (LARA, 1999, p. 21).
Para Lara (1999), tal concepção de poder “aparecia também nas relações entre
senhores e escravos no interior das fazendas e casas senhoriais”. A autora cita a seguinte
advertência que fazia o jesuíta italiano Jorge Benci no final do século XVII: “o escravo
calejado com o castigo já não o teme; e, porque não o teme, não lhe aproveita”. Por isso,
ela lembra sua recomendação de “açoites moderados” (BENCI, 1977 apud LARA,
1999, p. 26). Pedagogicamente, pode-se afirmar que o castigo físico exemplar exibia o
poder do senhor a todos que acompanhavam ao suplício e, infundindo temor, produzia
obediência e sujeição.
Menezes (2006), no artigo intitulado “Escravidão e educação nos escritos de
Antônio Vieira e Jorge Benci”, oferece importantes elementos para se refletir sobre as
propostas pedagógicas contidas nos sermões dos autores. É observado que, embora
tenham posições distintas, ambos os jesuítas não questionam a escravidão, ao contrário,
procuram preservá-la. O fato é que Vieira tenta educar os escravos para a aceitação, ao
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passo que Benci busca ensinar aos senhores como governar os escravos. É importante
mencionar que a análise é realizada em sermões escritos em uma época em que a
escravidão, por um lado, já não é mais apenas uma constatação, e por outro, ainda não
se tornou injusta e execrável. Trata-se de meados do século XVII, quando a prática
torna-se objeto de reflexão.
Citado por Menezes (2006), Benci (1977, p. 50) considera que a escravidão
implica em obrigações mútuas entre senhores e escravos pois, “assim como o servo está
obrigado ao senhor, assim o senhor está obrigado ao servo”. Para o jesuíta, dar ao
escravo sustento, trabalho e castigo é, além de direito, uma obrigação devida por um
senhor cristão aos seus escravos.
Sobre as obrigações do senhor para com o escravo, Benci (1977) estabelece: o
“sustento”; o “vestido” e o cuidado que devem ter os senhores com os servos em suas
enfermidades; a “doutrina cristã” que os senhores são obrigados a ensinar e, finalmente,
o castigo, ponto que merece destaque nesta discussão.
Menezes (2006) destaca a enfática consideração de Benci de que, quando
merecido, os senhores têm obrigação de castigar fisicamente os escravos. Para ele,
castigo não é direito, é obrigação do senhor. Para os objetivos deste texto, merece
destaque a função disciplinadora do castigo naquela sociedade. Sendo assim, observa
Menezes (2006, p. 223), “os faltosos devem ser castigados para que não se habituem a
errar”.
Conforme mencionado, essa era a concepção de poder do período, podendo ser
percebida, também, na legislação que então vigorava. Da mesma forma, punia-se com o
objetivo de educar os súditos, conforme afirma Lara (1999): Para ser eficaz, portanto, a punição devia ser afirmativa e exemplar: como exercício de poder, ela devia explicitar a norma, fazer-se inexorável e suscitar o temor. Não é por outra razão que as punições no Antigo Regime transformavam-se em espetáculo, em pedagogia capaz de atingir o corpo do criminoso e, principalmente, impressionar os sentidos dos demais súditos e vassalos (LARA, 1999, p. 21).
A autora ressalta ainda que
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Não se trata de simplesmente matar o criminoso, mas de relacionar a gravidade de sua falta ao rigor da punição, fazer com que o sofrimento do condenado inspire temor e sirva de exemplo, expiando suas culpas e restaurando o poder real violado pelo crime em toda a sua força e plenitude (LARA, 1999, p. 22).
Sobre a forma como era realizada a aplicação das penas, é importante observar
que o julgamento dos crimes era feito por tribunais clericais, mais especificamente, o
Tribunal do Santo Ofício Inquisição. Na maior parte das vezes as penas eram aplicadas
em cerimônias conhecidas como os autos-de-fé, ocasiões em que publicamente eram
lidas e executadas as sentenças da Inquisição.
Os autos-de-fé, que podiam ser realizados tanto no interior do Palácio da
Inquisição como em um Convento, eram destinados aos "reconciliados", pessoas que
eram readmitidos no seio da Igreja e condenadas a penas que consistiam desde
penitências espirituais até a prisão. A cerimônia podia ainda ser realizada na praça
pública, isso quando eram condenados não somente os "reconciliados", mas também os
"relaxados", sujeitos entregues à Justiça secular para execução da pena de morte.
Os autos, com o tempo, passaram a constituir um grandioso espetáculo, seguindo
um cerimonial rigorosamente estabelecido. Além de autoridades religiosas e civis,
grande parte da população da cidade comparecia para assistir. Apesar de rápida, a
apresentação de tal cerimonial é aqui realizada com o objetivo de fortalecer a ideia de
uma pedagogia das penas. Ao tornar públicas as punições, se pretendia causar medo na
população, educado-a para que evitasse cometer os mesmos delitos.
Como na sociedade portuguesa do período estudado a ideia de igualdade jurídica
não existia, cada um era punido de acordo com sua posição social. As penas de
humilhação pública, como os açoites, eram reservadas para aqueles que não eram de
origem nobre. Nota-se que, em vários casos, os nobres eram punidos com o degredo,
enquanto, cometendo os mesmos delitos, servos podiam ser açoitados publicamente. Em
outras palavras, as penas variavam de acordo com a condição do criminoso, a natureza
de seu crime e a condição da vítima, o que permite considerar, mais uma vez, a função
pedagógica das penas, agora no sentido de legitimar e cristalizar diferenças, que faziam
parte daquela sociedade.
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Dessa forma, este trabalho apresenta uma compreensão ampla de educação, não
restrita a mecanismos formais, mas entendida como um processo de aprendizagem da
forma de ser que se dá em todas as relações humanas, no caso, as punições. Tal forma
de entendimento permite, com base nas Ordenações Portuguesas, refletir sobre o ideal
de homem que se queria formar naquele contexto.
Nessa perspectiva, a educação é entendida como a tarefa de suscitar valores ou,
em outras palavras, como uma possibilidade de adaptar o sujeito à sua sociedade. O fato
é que toda sociedade define qual o indivíduo ideal para nela viver e agir, o que permite
afirmar ser o fim da educação constituir um ser social nos seres humanos.
Isso posto, pode-se afirmar que o direito é um instrumento educacional uma vez que
ensina e obriga os seres humanos a se adaptarem à sociedade em que vivem, fazendo-os
cumprir regras e deveres.
Enfim, na legislação portuguesa dos séculos XV ao XVII, as Ordenações
Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, mais especificamente em seu livro V (parte
criminal), as penas também eram retributivas e preventivas, funções que possuíam fins
pedagógicos. Conforme discutido, tal concepção de poder podia ser percebida, também,
na relação entre senhores e escravos.
Considerações finais
Considerando que na lei estão presentes os valores que a sociedade quer proteger
e tutelar, o direito, como se tentou evidenciar, possui uma função educacional. No caso
das punições aplicadas à época do Império Português, foi explorada tal possibilidade
com base no medo causado entre os súditos.
Além disso, as penas previstas e aplicadas nas Ordenações Portuguesas
possibilitaram, ainda que em linhas gerais, compreender aspectos daquela organização
social. A religiosidade, a Monarquia, a expansão marítimo-comercial e a hierarquia
estabelecida, eram valores cujas penas estavam atreladas. Ou seja, as punições tinham o
objetivo de despertar nas pessoas a percepção de que tais questões eram socialmente
relevantes para a vida coletiva e, portanto, deveriam evitar qualquer infração aos
referidos valores.
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Nota-se, finalmente, quão ricos são os ordenamentos jurídicos estudados.
Explorá-los pode possibilitar uma compreensão ampliada do contexto, o qual ainda
carece de investigações, independente do aspecto que se opte por discutir.
REFERÊNCIAS
BENCI, Jorge. Economia Cristã dos senhores no governo dos escravos. São Paulo: Grijalbo, 1977. CRISTIANI, Cláudio Valentim. O direito no Brasil colonial. In: Wolkmer, Antônio Carlos. Fundamentos de história do direito. Belo Horizinte: Del Rey, 2003. pp. 331 – 347. KANTOROWICZ, Ernest H. Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. LARA, Silvia Hunold. (Org.). Ordenações Filipinas: Livro V. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. MENEZES, Sezinando Luiz. Escravidão e educação nos escritos de Antônio Vieira e Jorge Benci. In: Diálogos, DHI/PPH/UEM, v. 10, n. 3, p. 215-228, 2006. ORDENAÇÕES FILIPINAS. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1984.