Algumas Considerações Em Torno Da Antropologia Visual

2
 "Algumas Considerações em torno da Antropologia Visual" ,  por Luis Nicolau Parés (*)  A Antropologia Visual tem sido tradicionalmente entendida como aquela área da A ntropologia Sócio -Cultural que utiliza os suportes imagéticos para descrever e analisar uma cultura ou um aspecto particular de uma cultura A produ!"o de documentários etnográ#icos, ou de monogra#ias que articulam te$to com imagens #otográ#icas #oram, até recentemente, as principais atividades associadas % Antropologia Visual Como #oi notado por Sol &ort' (), e$iste uma di#eren!a entre +utilizar um meio e estudar como um meio é utilizado+ A A ntropologia Visual vem desenvolvendo, desde a década d e , um importante tra.al'o teórico e re#le$ivo, que consiste em determinar e analisar as propriedades dos sistemas visuais e suas estratégias discursivas, assim como as condi!/es da sua interpreta!"o, relacionando esses sistemas particulares com as comple$idades dos processos pol0ticos e sociais dos quais s"o parte 1 estudo do uso dos meios visuais na dissemina!"o do con'ecimento antropológico seria, portanto, o segundo dom0nio de atua!"o da Antropologia Visual Como uma e$tens"o desta preocupa!"o na análise dos sistemas visuais, coloca!/es mais recentes (2orp'3 4 5an6s, 7) argumentam que o dom0nio d a Antropologia Visual deveria estender-se ao estudo dos sistemas representacionais da cultura vis0vel, isto é, ao estudo de qualquer sistema e$pressivo da sociedade 'umana que comunique o seu sentido, parcial ou principalmente, através de meios visuais 8ste 9 m.ito muito mais vasto, que, a rigor, deveria c'amar-se de Antropologia do Visual, incluiria a emergente disciplina dos estudos da cultura visual (Visual Culture Studies), assim como a Antropologia da Comunica!"o Visual :rente a um determinado #ato social, o que interessa % Antropologia é apreender os seus sentidos ou signi#ica!"o, desvendar a sua comple$idade conceitual e entender como os próprios atores interpretam e pro.lematizam as suas práticas e valores A #un!"o do antropólogo é, portanto, essencialmente interpretativa, entendendo a interpreta!"o como um passo intermediário entre a compreens"o e a e$plica!"o Além disso, a interpreta!"o antropológica  comporta um processo de ;tradu!"o<, no sentido de que as representa!/es antropológicas s"o, geralmente, de uma cultura para outra Ao lado da sua dimens"o epistemológica, ou de produ!"o de con'ecimento, o discurso antropológico, de um modo geral, é um processo representacional e comunicativo = precisamente nessa dimens"o representacional e comunicativa que os elementos imagéticos, tanto estáticos (#otogra#ia) quanto din9micos (#ilme, v0deo), ou a sua com.ina!"o nos suportes multim0dia, com a sua capacidade para mostrar, para dar a ver diretamente, constituem recursos descritivos de inegável valor para a re#le$"o antropológica 1 que resulta mais pro.lemático é sa.er até que ponto esses modos de representa!"o visual possuem uma capacidade argumentativa intr0nseca que sirva aos propósitos interpretativos que se espera do discurso antropológico e aqui ca.e distinguir #otogra#ia e linguagem cinematográ#ica >ualquer registro visual traz sempre impl0cito um certo grau de interpreta!"o do #ato representado, pois ele é um recorte su.?etivo dessa realidade @orém, do ponto de vista do espectador, uma imagem estática está a.erta a mltiplas interpreta!/es e n"o é capaz por ela mesma de gerar um sentido un0voco, sendo que precisa ser articulada com outras imagens ou com um te$to para gerar uma narrativa re#le$iva A vi rtude da #otogra#ia está na interrup!"o da dura!"o temporal e na capacidade de analise que se deriva da0 Bá a linguagem cinematográ#ica (ou videográ#ica), na sua linearidade temporal, teria uma discursividade similar % da palavra A dimens"o ;processual< do #ilme cria sentido e e$pressa inten!"o Através de ;concatena!/es sintagmáticas im.u0das com capacidade argumentativa< (8co, 7), o #ilme marca um itinerário narrativo que direciona e esta.elece limites % interpreta!"o do espectador  A imagem #otográ#ica (ou cinematográ#ica) é um arte#ato socialmente constru0do, e, apesar da sua natureza icnica e indicial, capaz de gerar a ilus"o de constituir uma cópia ou analogia da realidade, ela é apenas uma analogia de um determinado ol'ar, de um ponto de vista so.re a realidade Das ultimas décadas, o paradigma do realismo #otográ#ico tem sido seriamente questionado A pretens"o, t"o cara ao positivismo cienti#ico, de que a c9mara é capaz de produzir uma ;evidEncia< do real, ao considerar a imagem #otográ#ica como uma transcri!"o #iel

description

Texto

Transcript of Algumas Considerações Em Torno Da Antropologia Visual

"Algumas Consideraes em torno da Antropologia Visual", por Luis Nicolau Pars (*)

"Algumas Consideraes em torno da Antropologia Visual", por Luis Nicolau Pars (*) A Antropologia Visual tem sido tradicionalmente entendida como aquela rea da Antropologia Scio -Cultural que utiliza os suportes imagticos para descrever e analisar uma cultura ou um aspecto particular de uma cultura. A produo de documentrios etnogrficos, ou de monografias que articulam texto com imagens fotogrficas foram, at recentemente, as principais atividades associadas Antropologia Visual.

Como foi notado por Sol Worth (1981), existe uma diferena entre "utilizar um meio e estudar como um meio utilizado". A Antropologia Visual vem desenvolvendo, desde a dcada de 70, um importante trabalho terico e reflexivo, que consiste em determinar e analisar as propriedades dos sistemas visuais e suas estratgias discursivas, assim como as condies da sua interpretao, relacionando esses sistemas particulares com as complexidades dos processos polticos e sociais dos quais so parte. O estudo do uso dos meios visuais na disseminao do conhecimento antropolgico seria, portanto, o segundo domnio de atuao da Antropologia Visual.

Como uma extenso desta preocupao na anlise dos sistemas visuais, colocaes mais recentes (Morphy & Banks, 1992) argumentam que o domnio da Antropologia Visual deveria estender-se ao estudo dos sistemas representacionais da cultura visvel, isto , ao estudo de qualquer sistema expressivo da sociedade humana que comunique o seu sentido, parcial ou principalmente, atravs de meios visuais. Este mbito muito mais vasto, que, a rigor, deveria chamar-se de Antropologia do Visual, incluiria a emergente disciplina dos estudos da cultura visual (Visual Culture Studies), assim como a Antropologia da Comunicao Visual.

Frente a um determinado fato social, o que interessa Antropologia apreender os seus sentidos ou significao, desvendar a sua complexidade conceitual e entender como os prprios atores interpretam e problematizam as suas prticas e valores. A funo do antroplogo , portanto, essencialmente interpretativa, entendendo a interpretao como um passo intermedirio entre a compreenso e a explicao. Alm disso, a interpretao antropolgica comporta um processo de traduo, no sentido de que as representaes antropolgicas so, geralmente, de uma cultura para outra. Ao lado da sua dimenso epistemolgica, ou de produo de conhecimento, o discurso antropolgico, de um modo geral, um processo representacional e comunicativo.

precisamente nessa dimenso representacional e comunicativa que os elementos imagticos, tanto estticos (fotografia) quanto dinmicos (filme, vdeo), ou a sua combinao nos suportes multimdia, com a sua capacidade para mostrar, para dar a ver diretamente, constituem recursos descritivos de inegvel valor para a reflexo antropolgica. O que resulta mais problemtico saber at que ponto esses modos de representao visual possuem uma capacidade argumentativa intrnseca que sirva aos propsitos interpretativos que se espera do discurso antropolgico e aqui cabe distinguir fotografia e linguagem cinematogrfica.

Qualquer registro visual traz sempre implcito um certo grau de interpretao do fato representado, pois ele um recorte subjetivo dessa realidade. Porm, do ponto de vista do espectador, uma imagem esttica est aberta a mltiplas interpretaes e no capaz por ela mesma de gerar um sentido unvoco, sendo que precisa ser articulada com outras imagens ou com um texto para gerar uma narrativa reflexiva. A virtude da fotografia est na interrupo da durao temporal e na capacidade de analise que se deriva da. J a linguagem cinematogrfica (ou videogrfica), na sua linearidade temporal, teria uma discursividade similar da palavra. A dimenso processual do filme cria sentido e expressa inteno. Atravs de concatenaes sintagmticas imbudas com capacidade argumentativa (Eco, 1982), o filme marca um itinerrio narrativo que direciona e estabelece limites interpretao do espectador.

A imagem fotogrfica (ou cinematogrfica) um artefato socialmente construdo, e, apesar da sua natureza icnica e indicial, capaz de gerar a iluso de constituir uma cpia ou analogia da realidade, ela apenas uma analogia de um determinado olhar, de um ponto de vista sobre a realidade. Nas ultimas dcadas, o paradigma do realismo fotogrfico tem sido seriamente questionado. A pretenso, to cara ao positivismo cientifico, de que a cmara capaz de produzir uma evidncia do real, ao considerar a imagem fotogrfica como uma transcrio fiel e neutra do real, no mais aceita. Hoje prevalecem as teorias que entendem a mensagem fotogrfica como um signo convencional, to arbitrrio quanto a linguagem verbal. A subjetividade implcita na produo de qualquer imagem relativiza a sua suposta verdade, autenticidade ou objetividade.

Entretanto, apesar dessas e outras possveis criticas, os registros visuais, sob certas condies, so susceptveis de serem utilizados como fonte primria para a anlise antropolgica. Se as imagens so produzidas com a necessria eficincia visual para destacar elementos teis reflexo e se explicitam os modos de produo empregados, a documentao visual pode constituir-se numa meta-realidade, acessvel e permanente, a partir e em torno da qual se desenvolva o exerccio interpretativo. Certamente, dependemos do compromisso tico do pesquisador para garantir a confiabilidade dos documentos visuais, especialmente hoje, em que as tecnologias digitais permitem uma cada vez mais fcil manipulao imagtica - mas isso acontece tambm com as etnografias textuais.

A proximidade ntima e singular que proporciona um registro visual capaz de descrever complexos aspectos do real e evocar um sentido de experincia e participao dificilmente expressveis pela palavra. As imagens podem funcionar, no como representaes fieis da realidade fenomenolgica, mas como um caminho, uma janela aberta para aceder realidade invisvel que se oculta por trs da aparncia sensvel. Com a crise dos discursos antropolgicos de carter totalizante, existe uma crescente tendncia a experimentar formas etnogrficas parciais, abertas, metafricas, que adotam estilos reflexivos e dialgicos, susceptveis de provocar perguntas ao espectador. Talvez nesses experimentos, os elementos imagticos, e com eles a Antropologia Visual, venham a propor novos caminhos para o futuro do projeto antropolgico.

(*) Luis Nicolau Pars pesquisador Visitante no PPCS da FFCH, UFBA, PhD em Londres com a tese The phenomenology of spirit possession in the Tambor de Mina: an ethographic and audio-visual study. London, SOAS, 1997.