Alfred Tarski - Sobre o Conceito de Conseqüência Lógica
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Sobre o Conceito de Conseqüência Lógica ∗∗∗∗
♦♦♦♦
Alfred Tarski
O conceito de conseqüência lógica é um daqueles cuja introdução no campo da
investigação estritamente formal não se deve a uma decisão arbitrária da parte deste ou
daquele investigador. Esforços foram feitos para que a definição desse conceito se
mantivesse fiel ao uso comum da linguagem da vida cotidiana. Mas esses esforços foram
confrontados com as dificuldades que normalmente se apresentam em tais casos. No que
diz respeito à clareza do seu conteúdo, o conceito comum de conseqüência lógica não é de
forma alguma superior a outros conceitos da linguagem cotidiana. Sua extensão não é
rigorosamente definida e seu uso apresenta variações. Qualquer tentativa de harmonizar
todas as tendências possivelmente vagas e algumas vezes contraditórias que estão
relacionadas com o uso desse conceito está certamente destinada ao fracasso. Devemos,
desde o início, nos conformar com o fato de que toda definição precisa desse conceito
apresentará características arbitrárias, em maior ou menor grau.
Até bem pouco tempo, muitos lógicos acreditavam ter sido bem-sucedidos em
apreender quase exatamente o conceito comum de conseqüência lógica através de um
estoque de conceitos relativamente reduzido ou, antes, em definir um novo conceito que
coincidisse em extensão com o conceito comum. Uma tal convicção pôde facilmente surgir
entre os novos progressos da metodologia da ciência dedutiva. Graças ao progresso da
∗ Este é o resumo de uma palestra apresentada no International Congress of Scientific Philosophy em Paris, 1935. O artigo foi primeiro publicado em polonês sob o título ‘ O pojciu wynikania logicznego’ em Przeglad Filozoficzny, vol. 39 (1936), pp. 58-68, e depois em alemão sob o título ‘Über den Begriff der logischen Folgerung’, Actes du
Congrès International de Philosophie Scientifique vol. 7 (Actualités Scientifiques et Industrielles, vol.394, Paris, 1936, pp. 1-11. ♦ Tradução de Abílio Rodrigues Filho, ([email protected]) do artigo ‘On the concept of logical consequence’, versão em inglês revisada por Tarski do artigo ‘O pojciu wynikania logicz-nego’, publicado na coletânea Logic,
Semantics, Metamathematics (Indiana: Hacket Publishing Company, 1983) pp. 409-420. Esta tradução foi feita originariamente em 2003. A versão original está disponível em http://br.geocities.com/logicaelinguagem/tarski1.html. A nova versão, revisada em janeiro de 2008, foi cotejada com a tradução de MORTARI, C. A. (Org.) ; DUTRA, L. H. A. (Org.), A concepção semântica da verdade: textos
lógica matemática, nós aprendemos, no curso das últimas décadas, como apresentar
disciplinas matemáticas na forma de teorias dedutivas formalizadas. Nessas teorias, como é
bem sabido, a prova de todo teorema é reduzida a uma ou a repetidas aplicações de algumas
simples regras de inferência − como as regras de substituição e destacamento. Essas regras
nos dizem quais transformações de tipo puramente estrutural (i.e. transformações que
envolvem somente a estrutura externa das sentenças) devem ser realizadas a partir dos
axiomas ou teoremas já provados na teoria, de forma que as sentenças obtidas como
resultado de tais transformações possam ser consideradas provadas. Os lógicos pensaram
que essas poucas regras de inferência esgotavam o conteúdo do conceito de conseqüência.
Sempre que uma sentença se segue de outras, acreditava-se que ela poderia ser obtida a
partir destas, de um modo mais ou menos complicado, através das transformações
prescritas pelas regras. Com o objetivo de defender essa concepção contra céticos que
duvidavam que o conceito de conseqüência, quando formalizado dessa forma, coincide em
extensão com o uso comum, os lógicos foram capazes de apresentar um poderoso
argumento: o fato de terem sido efetivamente bem-sucedidos em reproduzir, na forma de
provas formalizadas, todos os raciocínios exatos que tinham sido levados a cabo na
matemática.
Entretanto, hoje nós sabemos que tal ceticismo estava perfeitamente justificado e
que a visão descrita acima não pode ser mantida. Alguns anos atrás, eu apresentei um
exemplo elementar de uma teoria que mostra a seguinte particularidade: dentre seus
teoremas, ocorrem sentenças como:
A0. 0 possui a propriedade dada P,
A1. 1 possui a propriedade dada P,
e, em geral, todas as sentenças particulares da forma
An. n possui a propriedade dada P,
clássicos de Tarski. São Paulo: Editora Unesp, 2007. Este texto destina-se aos alunos da disciplina Lógica e do
onde ‘n’ está no lugar de qualquer símbolo que denote um número natural em um dado
sistema numérico (decimal, por exemplo). Por outro lado, a sentença universal
A. Todo número natural possui a propriedade dada P,
não pode ser provada baseado na teoria em questão por meio das regras de inferência
normais.1 Parece-me que este fato fala por si mesmo. Ele mostra que o conceito
formalizado de conseqüência, do modo como é geralmente usado por lógicos matemáticos,
de forma alguma coincide com o conceito comum, ainda que intuitivamente pareça certo
que a sentença universal A se segue, no sentido usual, da totalidade de sentenças
particulares A0, A1,..., An,... . Isso porque se todas essas sentenças são verdadeiras, a
sentença A deve também ser verdadeira.
Em relação a situações como a descrita acima, provou-se ser possível formular
novas regras de inferência que não diferem das anteriores na estrutura lógica e que
intuitivamente são igualmente infalíveis, i.e. sempre levam de sentenças verdadeiras a
sentenças verdadeiras, mas não podem ser reduzidas às antigas regras. Um exemplo de uma
tal regra é a chamada regra da indução infinita segundo a qual a sentença A pode ser
considerada como provada desde que todas as sentenças A0, A1,..., An,... tenham sido
provadas (os símbolos ‘A0’, ‘A1’, etc., sendo usados no mesmo sentido que foram
anteriormente). Mas essa regra, devido a sua natureza infinitista, é diferente, em aspectos
essenciais, das antigas regras. Ela pode ser aplicada na construção de uma teoria somente se
nós tivermos sido bem-sucedidos em provar infinitamente muitas sentenças dessa teoria −
uma circunstância que nunca é realizada na prática. Mas esse defeito pode facilmente ser
superado por meio de uma certa modificação da nova regra. Para este propósito, considere-
se a sentença B que afirma que todas as sentenças A0, A1,..., An,... podem ser provadas
baseado nas regras de inferência até aqui utilizadas (não que elas tenham sido efetivamente
provadas). Nós então formulamos a seguinte regra: se se prova a sentença B, então a
grupo de pesquisas sobre Lógicas não-clássicas do CAP/UFSJ. 1 Para uma descrição detalhada de uma teoria com essa peculiaridade, ver Tarski (1983c); para a discussão da regra da indução infinita, estreitamente relacionada, ver Tarski (1983b) pp. 258ss.
correspondente sentença A pode ser aceita como provada. Mas aqui poder-se-ia ainda
objetar que a sentença B não é, afinal, uma sentença da teoria que está sendo construída,
mas pertence à chamada meta-teoria (i.e. a teoria da teoria discutida) e que, por
conseguinte, uma aplicação prática da regra em questão irá sempre requerer uma transição
da teoria à metateoria. Com o propósito de evitar esta objeção, iremos nos restringir apenas
àquelas teorias dedutivas nas quais a aritmética dos números naturais pode ser desenvolvida
e observar que, em cada uma dessas teorias, todos os conceitos e sentenças da
correspondente metateoria podem ser interpretados (posto que uma correspondência um-um
pode ser estabelecida entre expressões de uma linguagem e os números naturais).2 Podemos
substituir, na referida regra, a sentença B pela sentença B’, que é a interpretação aritmética
de B. Dessa forma, obtemos uma regra que essencialmente não se desvia das regras de
inferência, nem no que diz respeito às condições de sua aplicabilidade nem no que diz
respeito à natureza dos conceitos envolvidos em sua formulação, nem, finalmente, na sua
intuitiva infalibilidade (embora seja consideravelmente mais complicado).
É possível, agora, estabelecer outras regras de natureza similar, tantas quantas se
quiser. Na verdade, é suficiente observar que a regra acima formulada é essencialmente
dependente da extensão do conceito ‘sentença que pode ser provada com base nas regras
usadas até aqui’. Mas ao adotar essa regra nós ampliamos a extensão desse conceito.
Podemos, então, formular uma nova e análoga regra para a extensão ampliada, e proceder
dessa forma ad infinitum. Seria interessante investigar se existem quaisquer razões
objetivas para atribuir uma posição especial às regras ordinariamente usadas.
A conjectura que se coloca é que podemos finalmente ser bem-sucedidos em
apreender plenamente o conteúdo intuitivo do conceito de conseqüência através do método
descrito acima, i.e. complementando as regras de inferência usadas na construção de teorias
dedutivas. Fazendo uso dos resultados de K. Gödel3 podemos mostrar que essa conjectura é
equivocada. Em toda teoria dedutiva (com a exceção de certas teorias de natureza
2 Sobre o conceito de metateoria e o problema da interpretação de uma metateoria na correspondente teoria, ver Tarski (1983b), pp. 167ss, 184 e 247ss. 3 Conforme Gödel, K. (1931) especialmente pp. 190s.
particularmente elementar), por mais que as regras de inferência ordinárias sejam
complementadas por novas regras puramente estruturais, é possível construir sentenças que
se seguem, no sentido usual, dos teoremas dessa teoria, mas que, entretanto, não podem ser
provadas nessa mesma teoria baseado nas regras de inferência aceitas.4 Com o propósito de
obter o conceito adequado de conseqüência que, nas suas características essenciais, é
próximo do conceito comum, devemos lançar mão de métodos bem diferentes e aplicar, na
definição desse conceito, aparatos conceituais bem diferentes. Talvez não seja supérfluo
antecipar que, em comparação com o novo, o antigo conceito de conseqüência, como é
usado pelos lógicos matemáticos, de modo algum perde sua importância. Esse conceito
provavelmente terá sempre um significado decisivo para a construção prática de teorias
dedutivas, como um instrumento que nos permite provar ou refutar sentenças particulares
dessas teorias. Parece, entretanto, que em reflexões de natureza teórica geral, o conceito
adequado de conseqüência deve ser colocado em um lugar de destaque.5
A primeira tentativa de formular uma definição precisa do conceito adequado de
conseqüência foi de R. Carnap.6 Mas essa tentativa é particularmente relacionada com as
4 Com o objetivo de antecipar possíveis objeções, o âmbito de aplicação dos resultados há pouco formulados deveriam ser mais exatamente determinados, e a natureza lógica das regras de inferência [deveria ser] exibida mais claramente. Em particular, deveria ser explicado exatamente o que é o caráter estrutural dessas regras. 5 Uma oposição entre os dois conceitos em questão é apontada claramente em Tarski (1983c) pp. 293ss. Todavia, contrariamente ao meu ponto de vista atual, lá eu me expressei de maneira decididamente negativa acerca da possibilidade de estabelecer uma definição formal exata para o conceito adequado de conseqüência. Minha posição, naquela época, explica-se pelo fato de que, quando eu estava escrevendo o mencionado artigo, eu desejava evitar qualquer meio de construção que ultrapassasse a teoria de tipos lógicos em qualquer uma das suas formas clássicas. Mas, a menos que limitemos nossas considerações somente a linguagens formalizadas de caráter elementar e fragmentário (mais precisamente, as chamadas linguagens de ordem finita), pode ser mostrado que é impossível definir adequadamente o conceito de conseqüência lógica usando exclusivamente os meios admissíveis na teoria clássica dos tipos (conforme Tarski (1983b) especialmente pp. 268ss). No seu livro extremamente interessante, Carnap, R, (1934), o termo derivação ou derivabilidade (lógica) é aplicado ao antigo conceito de conseqüência usualmente utilizado na construção de teorias dedutivas, com o objetivo de distingui-lo do conceito correto de conseqüência. A oposição entre os dois conceitos é estendida por Carnap aos mais diversos conceitos derivados (‘f-conceitos’ e ‘a-conceitos’, conforme pp. 88ss. e 124ss.); ele também enfatiza − a meu ver corretamente − a importância do conceito correto de conseqüência e dos conceitos dele derivados, para discussões teóricas em geral (conforme e.g. p. 128). 6 Conforme Carnap, R. (1934), pp. 88s, e Carnap, R. (1935) especialmente p. 181. No primeiro desses trabalhos existe ainda outra definição de conseqüência que é adaptada para uma linguagem formalizada de caráter elementar. Essa definição não é considerada aqui porque não pode ser aplicada a linguagens de estrutura lógica mais complicada. Carnap tenta definir o conceito de conseqüência lógica não apenas para linguagens especiais, mas também dentro do esquema conceitual daquilo que ele chama de ‘sintaxe geral’. Teremos mais a dizer acerca disso na nota 10.
propriedades particulares da linguagem formalizada que foi escolhida como tema de
investigação. A definição proposta por Carnap pode ser formulada da seguinte forma:
A sentença S se segue logicamente das sentenças da classe K se, e somente se, a
classe que consiste de todas as sentenças de K e da negação de X for contraditória.
O elemento decisivo da definição acima, obviamente, é o conceito ‘contraditório’. A
definição de Carnap desse conceito é muito complicada e especial para ser reproduzida sem
longas e inoportunas explicações.7
Eu gostaria de esboçar aqui um método geral que, a meu ver, nos torna capazes de
construir uma definição adequada do conceito de conseqüência que englobe uma classe
abrangente de linguagens formalizadas. Eu enfatizo, entretanto, que o tratamento proposto
do conceito de conseqüência não tem a pretensão de ser completamente original. As idéias
envolvidas nesse tratamento certamente parecerão ser bem conhecidas, ou até mesmo
similares às de autoria de lógicos que já examinaram atentamente o conceito de
conseqüência e tentaram caracterizá-lo mais precisamente. Parece-me, entretanto, que
somente os métodos que foram desenvolvidos recentemente para o estabelecimento de uma
semântica científica, bem como os conceitos desenvolvidos com o apoio de tais métodos,
permitem-nos apresentar essas idéias em uma forma exata.8
Certas considerações de caráter intuitivo formarão nosso ponto de partida. Seja uma
classe K de sentenças e uma sentença X que se segue das sentenças de K. Do ponto de vista
intuitivo, nunca pode acontecer da classe K ser composta por sentenças verdadeiras e a
sentença X ser falsa. Além disso, posto que aqui estamos interessados no conceito de
conseqüência lógica, i.e. formal e, portanto, com uma relação que deve ser determinada
unicamente pela forma das sentenças entre as quais ela vale, tal relação não pode ser
influenciada de forma alguma por conhecimento empírico e, em particular, pelos objetos
aos quais se referem a sentença X ou as sentenças da classe K. A relação de conseqüência
7 Ver nota 6. 8 Os métodos e conceitos da semântica e especialmente os conceitos de verdade e satisfação são discutidos em detalhe em Tarski (1983b); ver também Tarski (1983e).
não pode ser afetada pela substituição, nessas sentenças, das designações dos objetos por
elas referidos por designações de quaisquer outros objetos. As duas circunstâncias acima
indicadas, que parecem ser muito representativas e essenciais ao conceito adequado de
conseqüência, podem ser conjuntamente expressadas através do seguinte enunciado:
(F) Se, nas sentenças da classe K e na sentença X, as constantes – exceto as
constantes puramente lógicas – forem substituídas por quaisquer outras constantes (signos
iguais substituídos por signos iguais), e se denotarmos a classe de sentenças assim obtida a
partir de K por ‘K’’, e a sentença obtida a partir de X por ‘X’’, então a sentença X’ deve
ser verdadeira, se todas as sentenças da classe K’ forem verdadeiras.
[Com o objetivo de simplificar a discussão, certas complicações incidentais não são
consideradas, tanto aqui quanto no que se segue. Elas são relacionadas parcialmente à
teoria de tipos lógicos e parcialmente à necessidade de eliminar quaisquer signos definidos
que possam possivelmente ocorrer nas sentenças em questão, i.e. a necessidade de
substituir tais signos por signos primitivos.]
No enunciado (F) nós obtemos uma condição necessária para a sentença X ser uma
conseqüência da classe K. Cabe agora perguntar se essa condição é também suficiente. Se
essa questão for respondida afirmativamente, o problema de formular uma definição
adequada do conceito de conseqüência terá sido resolvido afirmativamente. A única
dificuldade seria relacionada ao termo ‘verdadeiro’ que ocorre na condição (F). Mas esse
termo pode ser exata e adequadamente definido na semântica.9
Infelizmente, a situação não é tão favorável. Pode acontecer, e de fato acontece – o
que pode ser mostrado sem dificuldade considerando linguagens formalizadas especiais –
que a sentença X não se segue no sentido comum das sentenças da classe K, muito embora a
condição (F) seja satisfeita. Essa condição pode, na verdade, ser satisfeita somente porque a
linguagem com a qual estamos lidando não possui um estoque suficiente de constantes não
lógicas. A condição (F) poderia ser considerada suficiente para a sentença X se seguir da
9 Ver nota 8.
classe K somente se a linguagem em questão possuísse designações de todos os possíveis
objetos. Tal pressuposto, entretanto, é uma ficção, e não pode ser realizado.10
Conseqüentemente, nós devemos procurar um meio de expressar a finalidade pretendida
pela condição (F) que seja completamente independente dessa pressuposição fictícia.
Tal meio é fornecido pela semântica. Dentre os conceitos fundamentais da
semântica temos o conceito de satisfação de uma função sentencial por objetos singulares
ou por uma seqüência de objetos. Seria supérfluo fornecer aqui uma explicação precisa do
conteúdo desse conceito. O significado intuitivo de frases como: João e Pedro satisfazem a
condição ‘x e y são irmãos’, ou a tripla de números 2, 3 e 5 satisfaz a equação ‘x + y = z’
não pode dar origem a nenhuma dúvida. O conceito de satisfação – assim como outros
conceitos semânticos – deve ser sempre relativizado a alguma linguagem particular. Os
detalhes de sua definição precisa dependem da estrutura da linguagem. Entretanto, pode ser
desenvolvido um método geral que nos torne capazes de construir tais definições para uma
classe abrangente de linguagens formalizadas. Infelizmente, por motivos técnicos, não é
possível descrever aqui esse método, mesmo nas suas linhas mais gerais.11
Um dos conceitos que pode ser definido em termos do conceito de satisfação é o
conceito de modelo. Suponhamos que na linguagem em questão certas variáveis
correspondam a cada uma das constantes não lógicas, e de tal modo que toda sentença
torna-se uma função sentencial se as suas constantes forem substituídas pelas variáveis
correspondentes. Seja L uma classe qualquer de sentenças. Substituamos todas as
constantes não lógicas que ocorrem nas sentenças de L pelas variáveis correspondentes,
constantes iguais substituídas por variáveis iguais, e diferentes por diferentes. Obtemos,
assim, uma classe L’ de funções sentenciais. Uma seqüência arbitrária de objetos que
satisfaz toda função sentencial da classe L’ será chamada um modelo ou realização da
10 Esses últimos comentários constituem uma crítica a algumas tentativas anteriores de definir o conceito de conseqüência formal. Elas dizem respeito, particularmente, às definições de Carnap de conseqüência lógica e de uma série de conceitos derivados (L-conseqüências e L-conceitos, conforme Carnap R. (1934) pp.137ss). Essas definições, na medida em que são estabelecidas baseado em uma ‘sintaxe geral’, me parecem materialmente inadequadas porque os conceitos definidos dependem essencialmente, em sua extensão, da riqueza da linguagem investigada. 11 Ver nota 8.
classe L de sentenças (é apenas nesse caso que se fala de modelos de um sistema
axiomático de uma teoria dedutiva). Se, em particular, a classe L consiste de uma única
sentença X, também nos referimos a um modelo da classe L como um modelo da sentença
X.
Em termos de tais conceitos, podemos definir o conceito de conseqüência lógica da
seguinte forma:
A sentença X se segue logicamente das sentenças da classe K se, e somente se, todo
modelo da classe K é também um modelo da sentença X.*
Parece-me que todo aquele que compreende o conteúdo da definição acima deve
admitir que ela é perfeitamente adequada ao uso comum. Isso se torna ainda mais claro nas
suas várias conseqüências. Em particular, pode ser provado, baseado nessa definição, que
toda conseqüência de sentenças verdadeiras deve ser verdadeira, e também que a relação de
conseqüência, que vale entre sentenças dadas, é completamente independente do sentido
das constantes não lógicas que ocorrem nessas sentenças. Em suma, pode ser mostrado que
a condição (F) formulada acima é necessária se a sentença X se segue da classe K. Por outro
lado, essa condição, em geral, não é suficiente, posto que o conceito de conseqüência aqui
definido (conforme o ponto de vista que assumimos) é independente de quanto a linguagem
em questão é rica em conceitos.
Por fim, não é difícil reconciliar a definição proposta com aquela de Carnap. Pois
podemos concordar em chamar uma classe de sentenças contraditória se ela não possui
modelo. Analogamente, uma classe de sentenças pode ser chamada analítica se toda
seqüência de objetos é modelo de tal classe. Esses dois conceitos podem ser relacionados
não apenas a classes de sentenças mas também a sentenças singulares. Consideremos, além
disso, que na linguagem em questão, para toda sentença X existe uma negação dessa
* Após o original deste artigo ter sido publicado, H. Scholz no seu artigo ‘Die Wissenschaftslehre Bolzanos, Eine Jahrhundert-Betrachtung’, Abhandlungen der Fries’schen Schule, nova série, vol. 6 pp. 399-472 (ver em particular p. 472 nota 58) apontou uma ampla analogia entre essa definição de conseqüência e aquela sugerida por B. Bolzano cerca de cem anos atrás.
sentença, i.e. uma sentença Y cujos modelos são aquelas e somente aquelas seqüências de
objetos que não são modelos da sentença X (esse pressuposto é particularmente essencial
para a construção de Carnap). Baseado nesses pressupostos e convenções, é fácil provar a
equivalência dessas duas definições. Podemos também provar − como faz Carnap − que
aquelas e somente aquelas sentenças que se seguem de todas as classes de sentenças
(especialmente da classe vazia) são analíticas, e que aquelas e somente aquelas das quais
toda sentença se segue são contraditórias.12
Eu não compartilho de modo algum da opinião segundo a qual a discussão acima
soluciona completamente o problema de uma definição materialmente adequada do
conceito de conseqüência. Pelo contrário, eu vejo ainda muitas questões em aberto, dentre
as quais somente uma − talvez a mais importante delas − eu mostrarei aqui.
A divisão de todos os termos da linguagem em questão entre lógicos e não lógicos é
subjacente à toda a nossa construção. Essa divisão, certamente, não é de todo arbitrária. Se,
por exemplo, incluíssemos entre os signos não lógicos o signo de implicação, ou o
quantificador universal, a nossa definição do conceito de conseqüência levaria a resultados
que obviamente contradizem o uso comum. Por outro lado, não conheço nenhum
fundamento objetivo que permita estabelecer um limite preciso entre os dos tipos de
termos. Parece-me possível incluir entre os termos lógicos alguns termos que os estudiosos
de lógica usualmente consideram como não lógicos sem resultar em conseqüências que se
oponham diretamente ao uso comum. No caso extremo, poderíamos considerar todos os
termos da linguagem termos lógicos. O conceito de conseqüência formal coincidiria então
12 Conforme Carnap, R. (1934), pp. 135ss, especialmente teoremas 52.7 e 52.8; Carnap, R. (1935), p. 182, teoremas 10 e 11. Incidentalmente, gostaria de observar que a definição do conceito e conseqüência aqui proposta não ultrapassa os limites da sintaxe na concepção de Carnap (conforme Carnap, R. (1934) pp. 6ss). É bem sabido que o conceito geral de satisfação (ou de modelo) não pertence à sintaxe; mas nós usamos somente um caso especial desse conceito - satisfação de funções sentenciais que não contêm constantes não lógicas, e esse caso especial pode ser caracterizado usando somente conceitos lógicos gerais e conceitos sintáticos específicos. Entre o conceito geral de satisfação e o caso especial desse conceito usado aqui, vale aproximadamente a mesma relação que vale entre o conceito semântico de sentença verdadeira e o conceito sintático de sentença analítica.
com o de conseqüência material. Nesse caso, a sentença X seguiria da classe K de sentenças
se X fosse verdadeira ou se pelo menos uma sentença da classe K fosse falsa.13
Com o objetivo de compreender a importância desse problema para certas
concepções filosóficas gerais, basta observar que a divisão dos termos entre lógicos e não
lógicos tem também um papel essencial no esclarecimento do conceito ‘analítico’. Mas,
segundo muitos lógicos, este último conceito deve ser considerado o exato correspondente
formal do conceito de tautologia (i.e. de um enunciado que ‘nada diz acerca da realidade’),
um conceito que, a meu ver, é consideravelmente vago, mas que tem sido de importância
fundamental para as discussões filosóficas de L. Wittgenstein e de todo o Círculo de
Viena.14
Não resta dúvida de que investigações posteriores irão esclarecer muitíssimo o
problema que nos interessa. Será possível, talvez, encontrar importantes argumentos
objetivos que nos tornarão capazes de justificar o tradicional limite entre expressões lógicas
e não lógicas. Mas eu também considero perfeitamente possível que tais investigações não
tragam nenhum resultado positivo nessa direção, de modo que seremos compelidos a
13 Será possivelmente instrutivo justapor os três conceitos: ‘derivabilidade’ (conforme nota 5), ‘conseqüência formal’ e ‘conseqüência material, para o caso especial em que a classe K, da qual se segue a sentença X, consiste de um número finito de sentenças: Y1, Y2,...,Yn. Consideremos que o símbolo ‘Z’ denota a sentença condicional (a implicação) cujo antecedente é a conjunção das sentenças Y1, Y2,...,Yn e cujo conseqüente é a sentença X. As seguintes equivalências podem ser estabelecidas:
a sentença X é (logicamente) derivável das sentenças da classe K se, e somente se, a sentença Z é logicamente
provável (i.e. derivável dos axiomas da lógica);
a sentença X se segue formalmente das sentenças da classe K se, e somente se, a sentença Z é analítica;
a sentença X se segue materialmente das sentenças da classe K se, e somente se, a sentença Z é verdadeira.
Das três equivalências, somente a primeira pode dar origem a objeções; conforme Tarski (1983d), pp. 342-64, especialmente 346. Em conexão com essas equivalências, conforme também Ajdukiewicz, K. (1928a), p. 19, e (1928b), pp. 14 e 42.
Tendo em vista a analogia indicada entre as diversas variantes do conceito de conseqüência, cabe perguntar se não seria útil introduzir, em acréscimo aos conceitos especiais, um conceito geral de caráter relativo e, por conseguinte, o conceito de conseqüência em relação a uma classe L de sentenças. Se utilizarmos novamente a notação já utilizada (limitando-nos ao caso em que K é finito), podemos definir esse conceito da seguinte forma:
a sentença X se segue das sentenças da classe K em relação à classe L de sentenças se, e somente se, a sentença Z
pertence à classe K.
Baseado nessa definição, derivabilidade coincidiria com conseqüência em relação à classe de todas as sentenças logicamente prováveis, conseqüências formais seriam conseqüências em relação à classe de todas as sentenças analíticas, e conseqüências materiais seriam aquelas relativas à classe de todas as sentenças verdadeiras. 14 Conforme Wittgenstein, L. (1922), Carnap, R. (1934), pp. 37-40.
considerar que conceitos como ‘conseqüência lógica’, ‘enunciado analítico’ e ‘tautologia’
são conceitos relativos que devem, em cada ocasião, ser relacionados com uma determinada
divisão dos termos em lógicos e não lógicos, muito embora tal divisão seja em maior ou
menor grau arbitrária. Em uma tal situação compulsória, variações no uso comum do
conceito de conseqüência seriam naturalmente refletidas – pelo menos parcialmente.
* * *
Referências
Ajdukiewicz, K.: 1928a. Z metodologji nauk dedukcyjnych. Lvóv.
___________.: 1928b. Logiczne podstawy nauczania. Encylopedja Wychowania, v.II.
Varsóvia.
Carnap, R.: 1934. Logische Syntax der Sprache. Viena.
___________.: 1935. ‘Ein Gültigkeitskriterium für die Sätze der klassischen Mathematik’,
in: Monatshefte für Mathematik und Physik 42: 163-90.
Tarski, A.: 1983a. Logic, Semantics, Metamathematics. Indiana: Hacket Publishing
Company.
___________.: 1983b. ‘The concept of truth in formalized languages’, in: Tarski (1983a).
___________.: 1983c. ‘Some observations on the concepts of ω-consistency and ω-
completeness’, in: Tarski (1983a).
___________.: 1983d. ‘Foundations of the calculus of systems’, in: Tarski (1983a).
___________.: 1983e. ‘The establishment of scientific semantics’, in: Tarski (1983a).
Wittgenstein, L.: 1922. Tractatus logico-philosophicus. Londres.
* * *