Alfred Tarski - Sobre o Conceito de Conseqüência Lógica

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Sobre o Conceito de Conseqüência Lógica * Alfred Tarski O conceito de conseqüência lógica é um daqueles cuja introdução no campo da investigação estritamente formal não se deve a uma decisão arbitrária da parte deste ou daquele investigador. Esforços foram feitos para que a definição desse conceito se mantivesse fiel ao uso comum da linguagem da vida cotidiana. Mas esses esforços foram confrontados com as dificuldades que normalmente se apresentam em tais casos. No que diz respeito à clareza do seu conteúdo, o conceito comum de conseqüência lógica não é de forma alguma superior a outros conceitos da linguagem cotidiana. Sua extensão não é rigorosamente definida e seu uso apresenta variações. Qualquer tentativa de harmonizar todas as tendências possivelmente vagas e algumas vezes contraditórias que estão relacionadas com o uso desse conceito está certamente destinada ao fracasso. Devemos, desde o início, nos conformar com o fato de que toda definição precisa desse conceito apresentará características arbitrárias, em maior ou menor grau. Até bem pouco tempo, muitos lógicos acreditavam ter sido bem-sucedidos em apreender quase exatamente o conceito comum de conseqüência lógica através de um estoque de conceitos relativamente reduzido ou, antes, em definir um novo conceito que coincidisse em extensão com o conceito comum. Uma tal convicção pôde facilmente surgir entre os novos progressos da metodologia da ciência dedutiva. Graças ao progresso da * Este é o resumo de uma palestra apresentada no International Congress of Scientific Philosophy em Paris, 1935. O artigo foi primeiro publicado em polonês sob o título ‘ O pojciu wynikania logicznego’ em Przeglad Filozoficzny, vol. 39 (1936), pp. 58-68, e depois em alemão sob o título ‘Über den Begriff der logischen Folgerung’, Actes du Congrès International de Philosophie Scientifique vol. 7 (Actualités Scientifiques et Industrielles, vol.394, Paris, 1936, pp. 1-11. Tradução de Abílio Rodrigues Filho, ([email protected]) do artigo ‘On the concept of logical consequence’, versão em inglês revisada por Tarski do artigo ‘O pojciu wynikania logicz-nego’, publicado na coletânea Logic, Semantics, Metamathematics (Indiana: Hacket Publishing Company, 1983) pp. 409-420. Esta tradução foi feita originariamente em 2003. A versão original está disponível em http://br.geocities.com/logicaelinguagem/tarski1.html. A nova versão, revisada em janeiro de 2008, foi cotejada com a tradução de MORTARI, C. A. (Org.) ; DUTRA, L. H. A. (Org.), A concepção semântica da verdade: textos

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Sobre o Conceito de Conseqüência Lógica ∗∗∗∗

♦♦♦♦

Alfred Tarski

O conceito de conseqüência lógica é um daqueles cuja introdução no campo da

investigação estritamente formal não se deve a uma decisão arbitrária da parte deste ou

daquele investigador. Esforços foram feitos para que a definição desse conceito se

mantivesse fiel ao uso comum da linguagem da vida cotidiana. Mas esses esforços foram

confrontados com as dificuldades que normalmente se apresentam em tais casos. No que

diz respeito à clareza do seu conteúdo, o conceito comum de conseqüência lógica não é de

forma alguma superior a outros conceitos da linguagem cotidiana. Sua extensão não é

rigorosamente definida e seu uso apresenta variações. Qualquer tentativa de harmonizar

todas as tendências possivelmente vagas e algumas vezes contraditórias que estão

relacionadas com o uso desse conceito está certamente destinada ao fracasso. Devemos,

desde o início, nos conformar com o fato de que toda definição precisa desse conceito

apresentará características arbitrárias, em maior ou menor grau.

Até bem pouco tempo, muitos lógicos acreditavam ter sido bem-sucedidos em

apreender quase exatamente o conceito comum de conseqüência lógica através de um

estoque de conceitos relativamente reduzido ou, antes, em definir um novo conceito que

coincidisse em extensão com o conceito comum. Uma tal convicção pôde facilmente surgir

entre os novos progressos da metodologia da ciência dedutiva. Graças ao progresso da

∗ Este é o resumo de uma palestra apresentada no International Congress of Scientific Philosophy em Paris, 1935. O artigo foi primeiro publicado em polonês sob o título ‘ O pojciu wynikania logicznego’ em Przeglad Filozoficzny, vol. 39 (1936), pp. 58-68, e depois em alemão sob o título ‘Über den Begriff der logischen Folgerung’, Actes du

Congrès International de Philosophie Scientifique vol. 7 (Actualités Scientifiques et Industrielles, vol.394, Paris, 1936, pp. 1-11. ♦ Tradução de Abílio Rodrigues Filho, ([email protected]) do artigo ‘On the concept of logical consequence’, versão em inglês revisada por Tarski do artigo ‘O pojciu wynikania logicz-nego’, publicado na coletânea Logic,

Semantics, Metamathematics (Indiana: Hacket Publishing Company, 1983) pp. 409-420. Esta tradução foi feita originariamente em 2003. A versão original está disponível em http://br.geocities.com/logicaelinguagem/tarski1.html. A nova versão, revisada em janeiro de 2008, foi cotejada com a tradução de MORTARI, C. A. (Org.) ; DUTRA, L. H. A. (Org.), A concepção semântica da verdade: textos

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lógica matemática, nós aprendemos, no curso das últimas décadas, como apresentar

disciplinas matemáticas na forma de teorias dedutivas formalizadas. Nessas teorias, como é

bem sabido, a prova de todo teorema é reduzida a uma ou a repetidas aplicações de algumas

simples regras de inferência − como as regras de substituição e destacamento. Essas regras

nos dizem quais transformações de tipo puramente estrutural (i.e. transformações que

envolvem somente a estrutura externa das sentenças) devem ser realizadas a partir dos

axiomas ou teoremas já provados na teoria, de forma que as sentenças obtidas como

resultado de tais transformações possam ser consideradas provadas. Os lógicos pensaram

que essas poucas regras de inferência esgotavam o conteúdo do conceito de conseqüência.

Sempre que uma sentença se segue de outras, acreditava-se que ela poderia ser obtida a

partir destas, de um modo mais ou menos complicado, através das transformações

prescritas pelas regras. Com o objetivo de defender essa concepção contra céticos que

duvidavam que o conceito de conseqüência, quando formalizado dessa forma, coincide em

extensão com o uso comum, os lógicos foram capazes de apresentar um poderoso

argumento: o fato de terem sido efetivamente bem-sucedidos em reproduzir, na forma de

provas formalizadas, todos os raciocínios exatos que tinham sido levados a cabo na

matemática.

Entretanto, hoje nós sabemos que tal ceticismo estava perfeitamente justificado e

que a visão descrita acima não pode ser mantida. Alguns anos atrás, eu apresentei um

exemplo elementar de uma teoria que mostra a seguinte particularidade: dentre seus

teoremas, ocorrem sentenças como:

A0. 0 possui a propriedade dada P,

A1. 1 possui a propriedade dada P,

e, em geral, todas as sentenças particulares da forma

An. n possui a propriedade dada P,

clássicos de Tarski. São Paulo: Editora Unesp, 2007. Este texto destina-se aos alunos da disciplina Lógica e do

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onde ‘n’ está no lugar de qualquer símbolo que denote um número natural em um dado

sistema numérico (decimal, por exemplo). Por outro lado, a sentença universal

A. Todo número natural possui a propriedade dada P,

não pode ser provada baseado na teoria em questão por meio das regras de inferência

normais.1 Parece-me que este fato fala por si mesmo. Ele mostra que o conceito

formalizado de conseqüência, do modo como é geralmente usado por lógicos matemáticos,

de forma alguma coincide com o conceito comum, ainda que intuitivamente pareça certo

que a sentença universal A se segue, no sentido usual, da totalidade de sentenças

particulares A0, A1,..., An,... . Isso porque se todas essas sentenças são verdadeiras, a

sentença A deve também ser verdadeira.

Em relação a situações como a descrita acima, provou-se ser possível formular

novas regras de inferência que não diferem das anteriores na estrutura lógica e que

intuitivamente são igualmente infalíveis, i.e. sempre levam de sentenças verdadeiras a

sentenças verdadeiras, mas não podem ser reduzidas às antigas regras. Um exemplo de uma

tal regra é a chamada regra da indução infinita segundo a qual a sentença A pode ser

considerada como provada desde que todas as sentenças A0, A1,..., An,... tenham sido

provadas (os símbolos ‘A0’, ‘A1’, etc., sendo usados no mesmo sentido que foram

anteriormente). Mas essa regra, devido a sua natureza infinitista, é diferente, em aspectos

essenciais, das antigas regras. Ela pode ser aplicada na construção de uma teoria somente se

nós tivermos sido bem-sucedidos em provar infinitamente muitas sentenças dessa teoria −

uma circunstância que nunca é realizada na prática. Mas esse defeito pode facilmente ser

superado por meio de uma certa modificação da nova regra. Para este propósito, considere-

se a sentença B que afirma que todas as sentenças A0, A1,..., An,... podem ser provadas

baseado nas regras de inferência até aqui utilizadas (não que elas tenham sido efetivamente

provadas). Nós então formulamos a seguinte regra: se se prova a sentença B, então a

grupo de pesquisas sobre Lógicas não-clássicas do CAP/UFSJ. 1 Para uma descrição detalhada de uma teoria com essa peculiaridade, ver Tarski (1983c); para a discussão da regra da indução infinita, estreitamente relacionada, ver Tarski (1983b) pp. 258ss.

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correspondente sentença A pode ser aceita como provada. Mas aqui poder-se-ia ainda

objetar que a sentença B não é, afinal, uma sentença da teoria que está sendo construída,

mas pertence à chamada meta-teoria (i.e. a teoria da teoria discutida) e que, por

conseguinte, uma aplicação prática da regra em questão irá sempre requerer uma transição

da teoria à metateoria. Com o propósito de evitar esta objeção, iremos nos restringir apenas

àquelas teorias dedutivas nas quais a aritmética dos números naturais pode ser desenvolvida

e observar que, em cada uma dessas teorias, todos os conceitos e sentenças da

correspondente metateoria podem ser interpretados (posto que uma correspondência um-um

pode ser estabelecida entre expressões de uma linguagem e os números naturais).2 Podemos

substituir, na referida regra, a sentença B pela sentença B’, que é a interpretação aritmética

de B. Dessa forma, obtemos uma regra que essencialmente não se desvia das regras de

inferência, nem no que diz respeito às condições de sua aplicabilidade nem no que diz

respeito à natureza dos conceitos envolvidos em sua formulação, nem, finalmente, na sua

intuitiva infalibilidade (embora seja consideravelmente mais complicado).

É possível, agora, estabelecer outras regras de natureza similar, tantas quantas se

quiser. Na verdade, é suficiente observar que a regra acima formulada é essencialmente

dependente da extensão do conceito ‘sentença que pode ser provada com base nas regras

usadas até aqui’. Mas ao adotar essa regra nós ampliamos a extensão desse conceito.

Podemos, então, formular uma nova e análoga regra para a extensão ampliada, e proceder

dessa forma ad infinitum. Seria interessante investigar se existem quaisquer razões

objetivas para atribuir uma posição especial às regras ordinariamente usadas.

A conjectura que se coloca é que podemos finalmente ser bem-sucedidos em

apreender plenamente o conteúdo intuitivo do conceito de conseqüência através do método

descrito acima, i.e. complementando as regras de inferência usadas na construção de teorias

dedutivas. Fazendo uso dos resultados de K. Gödel3 podemos mostrar que essa conjectura é

equivocada. Em toda teoria dedutiva (com a exceção de certas teorias de natureza

2 Sobre o conceito de metateoria e o problema da interpretação de uma metateoria na correspondente teoria, ver Tarski (1983b), pp. 167ss, 184 e 247ss. 3 Conforme Gödel, K. (1931) especialmente pp. 190s.

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particularmente elementar), por mais que as regras de inferência ordinárias sejam

complementadas por novas regras puramente estruturais, é possível construir sentenças que

se seguem, no sentido usual, dos teoremas dessa teoria, mas que, entretanto, não podem ser

provadas nessa mesma teoria baseado nas regras de inferência aceitas.4 Com o propósito de

obter o conceito adequado de conseqüência que, nas suas características essenciais, é

próximo do conceito comum, devemos lançar mão de métodos bem diferentes e aplicar, na

definição desse conceito, aparatos conceituais bem diferentes. Talvez não seja supérfluo

antecipar que, em comparação com o novo, o antigo conceito de conseqüência, como é

usado pelos lógicos matemáticos, de modo algum perde sua importância. Esse conceito

provavelmente terá sempre um significado decisivo para a construção prática de teorias

dedutivas, como um instrumento que nos permite provar ou refutar sentenças particulares

dessas teorias. Parece, entretanto, que em reflexões de natureza teórica geral, o conceito

adequado de conseqüência deve ser colocado em um lugar de destaque.5

A primeira tentativa de formular uma definição precisa do conceito adequado de

conseqüência foi de R. Carnap.6 Mas essa tentativa é particularmente relacionada com as

4 Com o objetivo de antecipar possíveis objeções, o âmbito de aplicação dos resultados há pouco formulados deveriam ser mais exatamente determinados, e a natureza lógica das regras de inferência [deveria ser] exibida mais claramente. Em particular, deveria ser explicado exatamente o que é o caráter estrutural dessas regras. 5 Uma oposição entre os dois conceitos em questão é apontada claramente em Tarski (1983c) pp. 293ss. Todavia, contrariamente ao meu ponto de vista atual, lá eu me expressei de maneira decididamente negativa acerca da possibilidade de estabelecer uma definição formal exata para o conceito adequado de conseqüência. Minha posição, naquela época, explica-se pelo fato de que, quando eu estava escrevendo o mencionado artigo, eu desejava evitar qualquer meio de construção que ultrapassasse a teoria de tipos lógicos em qualquer uma das suas formas clássicas. Mas, a menos que limitemos nossas considerações somente a linguagens formalizadas de caráter elementar e fragmentário (mais precisamente, as chamadas linguagens de ordem finita), pode ser mostrado que é impossível definir adequadamente o conceito de conseqüência lógica usando exclusivamente os meios admissíveis na teoria clássica dos tipos (conforme Tarski (1983b) especialmente pp. 268ss). No seu livro extremamente interessante, Carnap, R, (1934), o termo derivação ou derivabilidade (lógica) é aplicado ao antigo conceito de conseqüência usualmente utilizado na construção de teorias dedutivas, com o objetivo de distingui-lo do conceito correto de conseqüência. A oposição entre os dois conceitos é estendida por Carnap aos mais diversos conceitos derivados (‘f-conceitos’ e ‘a-conceitos’, conforme pp. 88ss. e 124ss.); ele também enfatiza − a meu ver corretamente − a importância do conceito correto de conseqüência e dos conceitos dele derivados, para discussões teóricas em geral (conforme e.g. p. 128). 6 Conforme Carnap, R. (1934), pp. 88s, e Carnap, R. (1935) especialmente p. 181. No primeiro desses trabalhos existe ainda outra definição de conseqüência que é adaptada para uma linguagem formalizada de caráter elementar. Essa definição não é considerada aqui porque não pode ser aplicada a linguagens de estrutura lógica mais complicada. Carnap tenta definir o conceito de conseqüência lógica não apenas para linguagens especiais, mas também dentro do esquema conceitual daquilo que ele chama de ‘sintaxe geral’. Teremos mais a dizer acerca disso na nota 10.

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propriedades particulares da linguagem formalizada que foi escolhida como tema de

investigação. A definição proposta por Carnap pode ser formulada da seguinte forma:

A sentença S se segue logicamente das sentenças da classe K se, e somente se, a

classe que consiste de todas as sentenças de K e da negação de X for contraditória.

O elemento decisivo da definição acima, obviamente, é o conceito ‘contraditório’. A

definição de Carnap desse conceito é muito complicada e especial para ser reproduzida sem

longas e inoportunas explicações.7

Eu gostaria de esboçar aqui um método geral que, a meu ver, nos torna capazes de

construir uma definição adequada do conceito de conseqüência que englobe uma classe

abrangente de linguagens formalizadas. Eu enfatizo, entretanto, que o tratamento proposto

do conceito de conseqüência não tem a pretensão de ser completamente original. As idéias

envolvidas nesse tratamento certamente parecerão ser bem conhecidas, ou até mesmo

similares às de autoria de lógicos que já examinaram atentamente o conceito de

conseqüência e tentaram caracterizá-lo mais precisamente. Parece-me, entretanto, que

somente os métodos que foram desenvolvidos recentemente para o estabelecimento de uma

semântica científica, bem como os conceitos desenvolvidos com o apoio de tais métodos,

permitem-nos apresentar essas idéias em uma forma exata.8

Certas considerações de caráter intuitivo formarão nosso ponto de partida. Seja uma

classe K de sentenças e uma sentença X que se segue das sentenças de K. Do ponto de vista

intuitivo, nunca pode acontecer da classe K ser composta por sentenças verdadeiras e a

sentença X ser falsa. Além disso, posto que aqui estamos interessados no conceito de

conseqüência lógica, i.e. formal e, portanto, com uma relação que deve ser determinada

unicamente pela forma das sentenças entre as quais ela vale, tal relação não pode ser

influenciada de forma alguma por conhecimento empírico e, em particular, pelos objetos

aos quais se referem a sentença X ou as sentenças da classe K. A relação de conseqüência

7 Ver nota 6. 8 Os métodos e conceitos da semântica e especialmente os conceitos de verdade e satisfação são discutidos em detalhe em Tarski (1983b); ver também Tarski (1983e).

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não pode ser afetada pela substituição, nessas sentenças, das designações dos objetos por

elas referidos por designações de quaisquer outros objetos. As duas circunstâncias acima

indicadas, que parecem ser muito representativas e essenciais ao conceito adequado de

conseqüência, podem ser conjuntamente expressadas através do seguinte enunciado:

(F) Se, nas sentenças da classe K e na sentença X, as constantes – exceto as

constantes puramente lógicas – forem substituídas por quaisquer outras constantes (signos

iguais substituídos por signos iguais), e se denotarmos a classe de sentenças assim obtida a

partir de K por ‘K’’, e a sentença obtida a partir de X por ‘X’’, então a sentença X’ deve

ser verdadeira, se todas as sentenças da classe K’ forem verdadeiras.

[Com o objetivo de simplificar a discussão, certas complicações incidentais não são

consideradas, tanto aqui quanto no que se segue. Elas são relacionadas parcialmente à

teoria de tipos lógicos e parcialmente à necessidade de eliminar quaisquer signos definidos

que possam possivelmente ocorrer nas sentenças em questão, i.e. a necessidade de

substituir tais signos por signos primitivos.]

No enunciado (F) nós obtemos uma condição necessária para a sentença X ser uma

conseqüência da classe K. Cabe agora perguntar se essa condição é também suficiente. Se

essa questão for respondida afirmativamente, o problema de formular uma definição

adequada do conceito de conseqüência terá sido resolvido afirmativamente. A única

dificuldade seria relacionada ao termo ‘verdadeiro’ que ocorre na condição (F). Mas esse

termo pode ser exata e adequadamente definido na semântica.9

Infelizmente, a situação não é tão favorável. Pode acontecer, e de fato acontece – o

que pode ser mostrado sem dificuldade considerando linguagens formalizadas especiais –

que a sentença X não se segue no sentido comum das sentenças da classe K, muito embora a

condição (F) seja satisfeita. Essa condição pode, na verdade, ser satisfeita somente porque a

linguagem com a qual estamos lidando não possui um estoque suficiente de constantes não

lógicas. A condição (F) poderia ser considerada suficiente para a sentença X se seguir da

9 Ver nota 8.

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classe K somente se a linguagem em questão possuísse designações de todos os possíveis

objetos. Tal pressuposto, entretanto, é uma ficção, e não pode ser realizado.10

Conseqüentemente, nós devemos procurar um meio de expressar a finalidade pretendida

pela condição (F) que seja completamente independente dessa pressuposição fictícia.

Tal meio é fornecido pela semântica. Dentre os conceitos fundamentais da

semântica temos o conceito de satisfação de uma função sentencial por objetos singulares

ou por uma seqüência de objetos. Seria supérfluo fornecer aqui uma explicação precisa do

conteúdo desse conceito. O significado intuitivo de frases como: João e Pedro satisfazem a

condição ‘x e y são irmãos’, ou a tripla de números 2, 3 e 5 satisfaz a equação ‘x + y = z’

não pode dar origem a nenhuma dúvida. O conceito de satisfação – assim como outros

conceitos semânticos – deve ser sempre relativizado a alguma linguagem particular. Os

detalhes de sua definição precisa dependem da estrutura da linguagem. Entretanto, pode ser

desenvolvido um método geral que nos torne capazes de construir tais definições para uma

classe abrangente de linguagens formalizadas. Infelizmente, por motivos técnicos, não é

possível descrever aqui esse método, mesmo nas suas linhas mais gerais.11

Um dos conceitos que pode ser definido em termos do conceito de satisfação é o

conceito de modelo. Suponhamos que na linguagem em questão certas variáveis

correspondam a cada uma das constantes não lógicas, e de tal modo que toda sentença

torna-se uma função sentencial se as suas constantes forem substituídas pelas variáveis

correspondentes. Seja L uma classe qualquer de sentenças. Substituamos todas as

constantes não lógicas que ocorrem nas sentenças de L pelas variáveis correspondentes,

constantes iguais substituídas por variáveis iguais, e diferentes por diferentes. Obtemos,

assim, uma classe L’ de funções sentenciais. Uma seqüência arbitrária de objetos que

satisfaz toda função sentencial da classe L’ será chamada um modelo ou realização da

10 Esses últimos comentários constituem uma crítica a algumas tentativas anteriores de definir o conceito de conseqüência formal. Elas dizem respeito, particularmente, às definições de Carnap de conseqüência lógica e de uma série de conceitos derivados (L-conseqüências e L-conceitos, conforme Carnap R. (1934) pp.137ss). Essas definições, na medida em que são estabelecidas baseado em uma ‘sintaxe geral’, me parecem materialmente inadequadas porque os conceitos definidos dependem essencialmente, em sua extensão, da riqueza da linguagem investigada. 11 Ver nota 8.

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classe L de sentenças (é apenas nesse caso que se fala de modelos de um sistema

axiomático de uma teoria dedutiva). Se, em particular, a classe L consiste de uma única

sentença X, também nos referimos a um modelo da classe L como um modelo da sentença

X.

Em termos de tais conceitos, podemos definir o conceito de conseqüência lógica da

seguinte forma:

A sentença X se segue logicamente das sentenças da classe K se, e somente se, todo

modelo da classe K é também um modelo da sentença X.*

Parece-me que todo aquele que compreende o conteúdo da definição acima deve

admitir que ela é perfeitamente adequada ao uso comum. Isso se torna ainda mais claro nas

suas várias conseqüências. Em particular, pode ser provado, baseado nessa definição, que

toda conseqüência de sentenças verdadeiras deve ser verdadeira, e também que a relação de

conseqüência, que vale entre sentenças dadas, é completamente independente do sentido

das constantes não lógicas que ocorrem nessas sentenças. Em suma, pode ser mostrado que

a condição (F) formulada acima é necessária se a sentença X se segue da classe K. Por outro

lado, essa condição, em geral, não é suficiente, posto que o conceito de conseqüência aqui

definido (conforme o ponto de vista que assumimos) é independente de quanto a linguagem

em questão é rica em conceitos.

Por fim, não é difícil reconciliar a definição proposta com aquela de Carnap. Pois

podemos concordar em chamar uma classe de sentenças contraditória se ela não possui

modelo. Analogamente, uma classe de sentenças pode ser chamada analítica se toda

seqüência de objetos é modelo de tal classe. Esses dois conceitos podem ser relacionados

não apenas a classes de sentenças mas também a sentenças singulares. Consideremos, além

disso, que na linguagem em questão, para toda sentença X existe uma negação dessa

* Após o original deste artigo ter sido publicado, H. Scholz no seu artigo ‘Die Wissenschaftslehre Bolzanos, Eine Jahrhundert-Betrachtung’, Abhandlungen der Fries’schen Schule, nova série, vol. 6 pp. 399-472 (ver em particular p. 472 nota 58) apontou uma ampla analogia entre essa definição de conseqüência e aquela sugerida por B. Bolzano cerca de cem anos atrás.

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sentença, i.e. uma sentença Y cujos modelos são aquelas e somente aquelas seqüências de

objetos que não são modelos da sentença X (esse pressuposto é particularmente essencial

para a construção de Carnap). Baseado nesses pressupostos e convenções, é fácil provar a

equivalência dessas duas definições. Podemos também provar − como faz Carnap − que

aquelas e somente aquelas sentenças que se seguem de todas as classes de sentenças

(especialmente da classe vazia) são analíticas, e que aquelas e somente aquelas das quais

toda sentença se segue são contraditórias.12

Eu não compartilho de modo algum da opinião segundo a qual a discussão acima

soluciona completamente o problema de uma definição materialmente adequada do

conceito de conseqüência. Pelo contrário, eu vejo ainda muitas questões em aberto, dentre

as quais somente uma − talvez a mais importante delas − eu mostrarei aqui.

A divisão de todos os termos da linguagem em questão entre lógicos e não lógicos é

subjacente à toda a nossa construção. Essa divisão, certamente, não é de todo arbitrária. Se,

por exemplo, incluíssemos entre os signos não lógicos o signo de implicação, ou o

quantificador universal, a nossa definição do conceito de conseqüência levaria a resultados

que obviamente contradizem o uso comum. Por outro lado, não conheço nenhum

fundamento objetivo que permita estabelecer um limite preciso entre os dos tipos de

termos. Parece-me possível incluir entre os termos lógicos alguns termos que os estudiosos

de lógica usualmente consideram como não lógicos sem resultar em conseqüências que se

oponham diretamente ao uso comum. No caso extremo, poderíamos considerar todos os

termos da linguagem termos lógicos. O conceito de conseqüência formal coincidiria então

12 Conforme Carnap, R. (1934), pp. 135ss, especialmente teoremas 52.7 e 52.8; Carnap, R. (1935), p. 182, teoremas 10 e 11. Incidentalmente, gostaria de observar que a definição do conceito e conseqüência aqui proposta não ultrapassa os limites da sintaxe na concepção de Carnap (conforme Carnap, R. (1934) pp. 6ss). É bem sabido que o conceito geral de satisfação (ou de modelo) não pertence à sintaxe; mas nós usamos somente um caso especial desse conceito - satisfação de funções sentenciais que não contêm constantes não lógicas, e esse caso especial pode ser caracterizado usando somente conceitos lógicos gerais e conceitos sintáticos específicos. Entre o conceito geral de satisfação e o caso especial desse conceito usado aqui, vale aproximadamente a mesma relação que vale entre o conceito semântico de sentença verdadeira e o conceito sintático de sentença analítica.

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com o de conseqüência material. Nesse caso, a sentença X seguiria da classe K de sentenças

se X fosse verdadeira ou se pelo menos uma sentença da classe K fosse falsa.13

Com o objetivo de compreender a importância desse problema para certas

concepções filosóficas gerais, basta observar que a divisão dos termos entre lógicos e não

lógicos tem também um papel essencial no esclarecimento do conceito ‘analítico’. Mas,

segundo muitos lógicos, este último conceito deve ser considerado o exato correspondente

formal do conceito de tautologia (i.e. de um enunciado que ‘nada diz acerca da realidade’),

um conceito que, a meu ver, é consideravelmente vago, mas que tem sido de importância

fundamental para as discussões filosóficas de L. Wittgenstein e de todo o Círculo de

Viena.14

Não resta dúvida de que investigações posteriores irão esclarecer muitíssimo o

problema que nos interessa. Será possível, talvez, encontrar importantes argumentos

objetivos que nos tornarão capazes de justificar o tradicional limite entre expressões lógicas

e não lógicas. Mas eu também considero perfeitamente possível que tais investigações não

tragam nenhum resultado positivo nessa direção, de modo que seremos compelidos a

13 Será possivelmente instrutivo justapor os três conceitos: ‘derivabilidade’ (conforme nota 5), ‘conseqüência formal’ e ‘conseqüência material, para o caso especial em que a classe K, da qual se segue a sentença X, consiste de um número finito de sentenças: Y1, Y2,...,Yn. Consideremos que o símbolo ‘Z’ denota a sentença condicional (a implicação) cujo antecedente é a conjunção das sentenças Y1, Y2,...,Yn e cujo conseqüente é a sentença X. As seguintes equivalências podem ser estabelecidas:

a sentença X é (logicamente) derivável das sentenças da classe K se, e somente se, a sentença Z é logicamente

provável (i.e. derivável dos axiomas da lógica);

a sentença X se segue formalmente das sentenças da classe K se, e somente se, a sentença Z é analítica;

a sentença X se segue materialmente das sentenças da classe K se, e somente se, a sentença Z é verdadeira.

Das três equivalências, somente a primeira pode dar origem a objeções; conforme Tarski (1983d), pp. 342-64, especialmente 346. Em conexão com essas equivalências, conforme também Ajdukiewicz, K. (1928a), p. 19, e (1928b), pp. 14 e 42.

Tendo em vista a analogia indicada entre as diversas variantes do conceito de conseqüência, cabe perguntar se não seria útil introduzir, em acréscimo aos conceitos especiais, um conceito geral de caráter relativo e, por conseguinte, o conceito de conseqüência em relação a uma classe L de sentenças. Se utilizarmos novamente a notação já utilizada (limitando-nos ao caso em que K é finito), podemos definir esse conceito da seguinte forma:

a sentença X se segue das sentenças da classe K em relação à classe L de sentenças se, e somente se, a sentença Z

pertence à classe K.

Baseado nessa definição, derivabilidade coincidiria com conseqüência em relação à classe de todas as sentenças logicamente prováveis, conseqüências formais seriam conseqüências em relação à classe de todas as sentenças analíticas, e conseqüências materiais seriam aquelas relativas à classe de todas as sentenças verdadeiras. 14 Conforme Wittgenstein, L. (1922), Carnap, R. (1934), pp. 37-40.

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considerar que conceitos como ‘conseqüência lógica’, ‘enunciado analítico’ e ‘tautologia’

são conceitos relativos que devem, em cada ocasião, ser relacionados com uma determinada

divisão dos termos em lógicos e não lógicos, muito embora tal divisão seja em maior ou

menor grau arbitrária. Em uma tal situação compulsória, variações no uso comum do

conceito de conseqüência seriam naturalmente refletidas – pelo menos parcialmente.

* * *

Referências

Ajdukiewicz, K.: 1928a. Z metodologji nauk dedukcyjnych. Lvóv.

___________.: 1928b. Logiczne podstawy nauczania. Encylopedja Wychowania, v.II.

Varsóvia.

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___________.: 1935. ‘Ein Gültigkeitskriterium für die Sätze der klassischen Mathematik’,

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