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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom. Alexandre Andrade da Costa. Kaleidoscopio político: as representações do cenário internacional nas páginas do jornal O Estado de S. Paulo (1938-1945). (UNESP/Assis – pós- graduando, bolsista Fapesp). (...) A vida econômica, política e social do mundo é tão intrincada, tão complexa e feita de tantos milhares de pequenos mas fortíssimos fios que, sem sabermos, eles nos envolvem numa vasta tela e nos ligam a acontecimentos que parecem não nos interessar. Ainda hoje sofremos todos da última guerra mundial. (...) Sem que o saibamos, esses pequenos fios podem estrangular-nos. Ignorar a existência deles não nos salvará. Despreza-los é suicídio. 1 Conseqüência das mudanças de paradigmas vividas no seio das Ciências Sociais desde os anos 1960 e 197068, os estudos sobre a imprensa sofreram inflexão metodológica importante com o trabalho de Maria Helena Rolim Capelato e Maria Lígia Coelho Prado, publicado no início da década de 1980. Desta data em diante, a análise e interpretação da relação imprensa/sociedade é um dos temas que tem preocupado os historiadores, sobretudo porque “percorrer o caminho que vai da desconsideração à centralidade dos periódicos na produção do saber histórico implica em acompanhar, ainda que de forma bastante sucinta, a renovação dos temas, problemáticas e procedimentos metodológicos da disciplina”. O trabalho com os jornais é sempre arriscado, pois implica em adentrar por meandros repletos de complexidade e sutilezas. O regime estadonovista investiu num projeto político- cultural70 que reservou papel de destaque para os meios de comunicação de massa, como a imprensa e o rádio, veículo recém-surgido e que se difundiu exatamente nesta época.71 Ao lado da persuasão – empréstimos, verbas publicitárias – não se hesitou em tomar medidas mais drásticas, exemplificada na ocupação do jornal O Estado de S. Paulo. Invadido em março de 1940 e dirigido pelo interventor designado pelo DIP, Abner Mourão, o matutino tornou-se porta-voz do varguismo. Evidencia-se, portanto, que a imprensa teve sua liberdade cerceada em nome de uma ideologia e de um regime autoritário que, via coerção, pretendia criar a comunidade nacional fundamentada na “brasilidade”. Isto posto, resta a dúvida: de que forma deve-se abordar essa fonte - o jornal - como objeto de pesquisa. De acordo com Prado e Capelato, 1 Será a Hora H? In: O Estado de S. Paulo, 14 set. 1938, p. 16.

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Texto integrante dos Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão. ANPUH/SP-USP. São Paulo, 08 a 12 de setembro de 2008. Cd-Rom.

Alexandre Andrade da Costa. Kaleidoscopio político: as representações do cenário

internacional nas páginas do jornal O Estado de S. Paulo (1938-1945). (UNESP/Assis – pós-

graduando, bolsista Fapesp).

(...) A vida econômica, política e social do mundo é tão intrincada, tão complexa e feita de tantos milhares de pequenos mas fortíssimos fios que, sem sabermos, eles nos envolvem numa vasta

tela e nos ligam a acontecimentos que parecem não nos interessar. Ainda hoje sofremos todos da última guerra mundial. (...) Sem que o saibamos, esses pequenos fios podem estrangular-nos.

Ignorar a existência deles não nos salvará. Despreza-los é suicídio.1

Conseqüência das mudanças de paradigmas vividas no seio das Ciências Sociais desde os

anos 1960 e 197068, os estudos sobre a imprensa sofreram inflexão metodológica importante com o

trabalho de Maria Helena Rolim Capelato e Maria Lígia Coelho Prado, publicado no início da

década de 1980. Desta data em diante, a análise e interpretação da relação imprensa/sociedade é um

dos temas que tem preocupado os historiadores, sobretudo porque “percorrer o caminho que vai da

desconsideração à centralidade dos periódicos na produção do saber histórico implica em

acompanhar, ainda que de forma bastante sucinta, a renovação dos temas, problemáticas e

procedimentos metodológicos da disciplina”.

O trabalho com os jornais é sempre arriscado, pois implica em adentrar por meandros

repletos de complexidade e sutilezas. O regime estadonovista investiu num projeto político-

cultural70 que reservou papel de destaque para os meios de comunicação de massa, como a

imprensa e o rádio, veículo recém-surgido e que se difundiu exatamente nesta época.71 Ao lado da

persuasão – empréstimos, verbas publicitárias – não se hesitou em tomar medidas mais drásticas,

exemplificada na ocupação do jornal O Estado de S. Paulo. Invadido em março de 1940 e dirigido

pelo interventor designado pelo DIP, Abner Mourão, o matutino tornou-se porta-voz do varguismo.

Evidencia-se, portanto, que a imprensa teve sua liberdade cerceada em nome de uma

ideologia e de um regime autoritário que, via coerção, pretendia criar a comunidade nacional

fundamentada na “brasilidade”. Isto posto, resta a dúvida: de que forma deve-se abordar essa fonte -

o jornal - como objeto de pesquisa. De acordo com Prado e Capelato,

1 Será a Hora H? In: O Estado de S. Paulo, 14 set. 1938, p. 16.

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(...) a escolha de um jornal como objeto de pesquisa justifica-se por entender-se a imprensa fundamentalmente como instrumento de manipulação de interesses e de intervenção na vida social, nega-se pois, aqui, aquela perspectiva que a teoria como mero veículo de informações, transmissor imparcial e neutro dos acontecimentos, nível isolado da realidade político social na qual se insere.

Esta pesquisa insere-se na intersecção entre os campos da história política e da história

cultural. A História Política foi bastante criticada pelos Annales por reduzir o campo do político aos

grandes acontecimentos, a vida dos reis ou a decisões tomadas pelos principais líderes dos Estados

Nacionais. No entanto, conheceu renovações que trouxeram novos conceitos como representação e

imaginário, por exemplo. Segundo Roger Chartier, a História Cultural, “tem por principal objetivo

identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é

construída, pensada, dada a ler”.

No que se refere ao jornal O Estado de S. Paulo, os proprietários do periódico divergiam

dos projetos do presidente Getúlio Vargas. Apesar de apoiar algumas das ações do governo, como a

luta contra o comunismo em 1935, a partir do golpe, limitou-se a liberdade de expressão e os

opositores sofreram as conseqüências de sua ação política. Júlio de Mesquita Filho, que já

conhecera o exílio em 1932, devido a sua participação na Revolução Constitucionalista, partira

novamente, em novembro de 1938, rumo à Paris.

Entretanto, mesmo exilado, o jornalista enviava diretrizes que se referiam aos problemas

nacionais e internacionais e atuava politicamente ao estabelecer contatos com personalidades dos

Estados Unidos, país para onde se dirigiu após a estada na França. Dessa forma, as idéias que os

colaboradores defenderam nos comentários foram emitidas por ele antes da ocupação do jornal. A

partir dessa data, em que o periódico passara a órgão diretamente ligado ao Estado, apesar da

censura e da presença de um diretor sob as ordens do Departamento de Imprensa e Propaganda, as

idéias de cunho abertamente democrático e antitotalitárias se mantiveram.

Nesse sentido, vinculando a análise das fontes aos vários contextos que as dimensionavam,

pretende-se buscar no cotidiano, no rés do chão,2 sinais, indícios,3 que a 2a Guerra Mundial

produziu. Desta forma, “poderia ser restituída a dinâmica da luta das representações, as implicações

das estratégias simbólicas em confronto. É nesse espírito que o conceito de representação pode ser

2 REVEL, Jacques. A história ao rés do chão. In: LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória de um exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. 3 Segundo Ginzburg, se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifra-la. In: GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

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fecundo, desde que seja concebido a partir de sua capacidade de articular o espaço dos possíveis

dentro do qual se inserem as produções, as decisões, as intenções explícitas.”4

Não se pode esquecer, porém, que a essência do texto jornalístico é a efemeridade, a

transitoriedade, a velocidade com a qual o autor é obrigado a construir suas reflexões. O desafio,

neste caso, era escrever ainda sobre o impacto dos acontecimentos e traçar considerações analíticas

a respeito do assunto abordado. Vitórias retumbantes, cercos mortíferos, novos armamentos, tudo

comentado criticamente por uma série de jornalistas que tinham o ônus de espreitar o desconhecido.

No livro recém-publicado no Brasil, o historiador italiano Carlo Ginzburg, ao se referir à sua

prática de pesquisa, relembra um pequeno trecho de uma história da mitologia grega. Segundo o

autor, “os gregos contam que Teseu recebeu de presente de Ariadne um fio. Com esse fio, Teseu se

orientou no labirinto, encontrou o Minotauro e o matou. Dos rastros que Teseu deixou ao vagar pelo

labirinto, o mito não fala”.5 A exemplo da metodologia do referido autor, pretende-se analisar, por

meio dos comentários publicados pelo jornal O Estado de S. Paulo, os rastros deixados pelos

colaboradores que, durante os anos de 1938 a 1945, interpretaram os acontecimentos do campo

internacional como transformadores da realidade interna. Nesse sentido, não se trata de estudar os

fatos que marcaram a Segunda Guerra Mundial, mas sim de demonstrar de que modo os articulistas

do jornal construíram imagens que se firmaram ao longo do tempo e que destoavam em grande

medida das diretrizes propugnadas pelo Estado Novo.

A análise dos resultados ocorrerá após minuciosa leitura e interpretação da fonte pesquisada.

Para isso, é imprescindível reconhecer como essencial o paradigma proposto por Maurizio

Gribaudi, que sobre a abordagem microanalítica, asseverou:

Observam-se dinâmicas complexas e aparentemente irregulares. Assume-se essa irregularidade, colocando-a no centro da análise e constrói-se um conjunto de hipóteses sobres os mecanismos subjacentes que a geraram. A partir desses mecanismos, definem-se as formas e as ligações pertinentes ao contexto analisado. A volta às fontes e ao contexto é o momento que permite pôr à prova e, eventualmente, corrigir o modelo.

Assim, a partir dessa premissa, pretende-se verificar quais as representações que parte da

elite paulista, reunida no jornal, construiu a respeito do(s) contexto(s) de crise que o mundo

vivenciou nas décadas de trinta e quarenta. A pesquisa iniciou-se com o exemplar de 20 de abril de

1938 quando, pela primeira vez, publicaram-se, com destaque gráfico, considerações sobre a

4 DOSSE, François. A História à prova do tempo: Da história em migalhas ao resgate do sentido. São Paulo: Unesp, 2001. 5 GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 07.

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situação internacional. A partir dessa data, esse tipo de recurso tornou-se diário, com breve

interrupção apenas nos meses de janeiro e fevereiro de 1939, período em que figuraram no matutino

esporadicamente.

Na grande maioria das vezes, tais informações eram alocadas na última página, ainda que,

circunstancialmente, aparecessem na de abertura. A localização no interior da página, por sua vez,

era fixa, conforme se observa nas figuras em anexo (ver figuras 01 e 02). Nesse momento, a

paginação era feita com nove colunas dispostas paralelamente. Observe-se que o destaque deriva da

junção de quatro ou três colunas em apenas duas, o que, de imediato, chamava a atenção do leitor e

configurava o que poderia ser denominado de uma espécie de quadro.6 Às vezes, esse quadro,

costumeiramente publicado abaixo do título do jornal, era deslocado para a parte inferior da página,

sem, todavia, abandonar o seu centro. (Ver figura 03).

De 20 de abril de 1938 a 31 de dezembro de 1941 foram publicados 1073 quadros que, até

17 e maio de 1939, não foram assinados. Na edição subseqüente (18 de maio), surgiu o primeiro

quadro assinado e, daí em diante, nota-se alternância entre assinados e não assinados. Na amostra

estudada 883 (82,30%) não identificaram autoria e 190 (17,70%) o fizeram.

Dentre os colaboradores que podem ser identificados havia:

- autores brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil

- notícias de agências internacionais, tais como Havas, Reuters e United Press, cujos

autores eram devidamente identificados e também artigos de líderes e de personalidades

do cenário internacional, distribuídos por essas agências. Do ponto de vista quantitativo,

tal material era o mais representativo. A seguir, apresenta-se o rol completo dos

colaboradores em função do número de vezes que figuraram no matutino:

6 Vale lembrar que, como têm afirmado vários estudiosos da área da história dos livros e da leitura, o suporte não é inocente. Segundo Chartier, por exemplo, “um romance de Balzac pode ser diferente, sem que uma linha do texto tenha mudado, caso ele seja publicado em um folhetim, em um livro para os gabinetes de leitura, ou junto com outros romances, incluído em um volume de obras completas”. In: CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Unesp/Imprensa Oficial do Estado, 1999, p. 138.

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Tabela número 01

Colaboradores e número de contribuição (20/04/1938 a 31/12/1941)

Colaborador Número

Ralph Ingersoll 35

Major Affonso de Carvalho 24

James Roosevelt 19

V. K. 16

Hermann Rauschning 10

Conde Emmanuel de Bennigsen ; H. R. Knickerbocker 06

Leland Stowe 05

Luiz Amador Sanchez 04

A Duff Cooper; Edgar Anael Mowrer; Paul Vanorden Shaw 03

Alfred Tyrnauer; Charles Benedec; E. Pavlovitch; Maurice DUPONT ;

Pierre Cot; W. H. Rings-Kell; Wickham Steed; Winston Churchill

02

Adgar Anael Mowrer; Andrew Barnes; Anthony Eden; A .S. F.; B. H.

Liddell Hart; Cel. Frank Knox; Charles Brun; C. J.; Conde Sforza; E. Vila-

Nova Santos; Frederich Dechner; Geneviève Tabouis; Helmut Klotz; Major

George Fielding Eliot; G. K. Morell; Howard French; Howard J. Beattle;

Jean Champennois; Jean Grandt; Jean-Louis; John H. Craige; Kenneth T.

Downs; Louis Marin; Gen.Ladislau Sikorski; Marguerite Durand; Mato

Voutchetich; Meeda Munro; Peroy Wimer; Peter C. Rodhes; Philip Noel

Baker; Phyllis Brow; Pierre-Etienne Flandin; Pierre Mombeig; Reynolds

Packard; Richard de Rochemont; Thomaz Wilson; Vex Kuel; Visconde

Samuel; Yvon-Delbos

01

Em algumas oportunidades, os temas tratados configuram verdadeiras séries, já que eram

retomados seguida e continuamente em várias edições. Dentre os colaboradores brasileiros, o Major

e depois Tenente Affonso de Carvalho, que figura com 24 textos assinados, foi o que mais vezes

colaborou com a narrativa de sua viagem ao continente europeu. Ele dirigia a revista Nação

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Armada, cujo primeiro número foi publicado em 1938 e que reunia diversos setores da sociedade

tais como padres, intelectuais, além de representantes do Exército, em torno do tema da segurança

nacional.

No que concerne ao material vindo do exterior, os editores selecionaram e reproduziram

largos trechos dos escritos de Hermann Rauschning, extraído do livro Hitler me disse; de Ralph

Ingersoll, que viajou à Inglaterra e de lá remetia artigos enfeixados Londres sob os bombardeios

alemães; e o relato de James Roosevelt a Isabel Leighton e Gabrielle Forbush, Meu filho Franklin.

É importante notar que todas essas iniciativas guardavam relação direta com o momento que

se atravessava nas relações internacionais. Assim os escritos de Hermann Rauschning foram

publicados entre janeiro e fevereiro de 1940, data em que a guerra estacionara na frente ocidental,

apresentando aqueles que julgava serem os objetivos do chanceler alemão.

A série Londres sob os bombardeios alemães, publicada entre dezembro de 1940 e março de

1941 informava, a partir de uma testemunha ocular, quais as conseqüências dos ataques da

Luftwaffe, a reação da população londrina aos ataques, as agruras da vida cultural, social e política

inglesa nesse momento crítico em que a Inglaterra lutava sozinha contra a Alemanha.

E, por último, Meu filho Franklin, que veio à público entre outubro e dezembro de 1941,

objetivava demonstrar a formação da personalidade do presidente dos Estados Unidos, figura chave

para o desenrolar dos acontecimentos mundiais.7

Chama a atenção o fato de a ocupação do jornal pela polícia varguista, em 25 de março de

1940, não haver modificado nem a estrutura nem o conteúdo dos quadros: a estratégia gráfica, a

freqüência e os colaboradores permaneceram os mesmos em 07 de abril, quanto o matutino voltou

às ruas.

Antes de discutir a origem e o conteúdo dos quadros publicados, é importante esclarecer

como o próprio periódico se referia a esse material. Ao mencionar informação ou análises

publicadas em números anteriores, os responsáveis valiam-se dos termos “boletim” (01 vez),

“notas” (01 vez), “artigo”, (08 vezes), “artiguete”, (09 vezes) e “comentários” (17 vezes), o que

mostra certa indecisão quanto à forma de intitular esse material diversificado e de difícil

classificação pelos próprios jornalistas envolvidos na sua construção.

Vale destacar que essa forma de dar conta dos acontecimentos internacionais era muito

diferente dos famosos Boletins Semanais, publicados durante a Primeira Guerra Mundial e que

foram escritos exclusivamente pelo proprietário do jornal, Júlio de Mesquita. Os quadros, por sua 7 A série foi retomada em 1942, quando se voltou a publicar excertos da mesma obra.

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vez, distinguiam-se pelo seu conteúdo variado, tanto podiam comentar discursos de chefes de

Estado, notícias de outros jornais e transmissões radiofônicas das agências internacionais, livros,

que direta ou indiretamente, tratavam da guerra e seus protagonistas.

Pode-se indagar porque, mais de um ano antes da guerra começar, o jornal se impôs a

iniciativa de interpretar os acontecimentos internacionais. A justificativa foi exposta no primeiro

comentário, datado de 20 de abril, no qual se argumentava que

(...) tão complexos, variados, inesperados, surpreendentes se sucedem atualmente os acontecimentos mundiais, que nem sempre será possível à maioria dos leitores, naturalmente solicitados por outras preocupações, reter e coordenar tantos e tão díspares notícias, em uma síntese diária, que os instrua e lhes aproveite por forma mais duradoura. Assim, e sem descurar da parte meramente informativa, que terá o volume e a variedade de sempre, vamos oferecer doravante aos leitores, em notas como a que abaixo se insere, comentários aos casos mais significativos ou palpitantes da vida internacional, buscando por essa forma complementar uma seção que já de si tantas e honrosas referências nos tem merecido. Entregues esses comentários a colaboradores nossos, de toda competência e idoneidade, estamos certos de que os nossos leitores saberão avaliar condignamente mais este esforço que fazemos afim de continuar a corresponder à preferência com que tão cativantemente nos distinguem.8

As características que os comentários assumiram durante todo o período estudado foram

aqui delineadas. Os leitores, absorvidos pelas tarefas diárias, não teriam tempo para “reter e

coordenar” as notícias internacionais. O argumento apresentado para justificar a iniciativa não pode

ser dissociado dos interesses dos responsáveis pela publicação. Afinal, cortar, selecionar, destacar e

ordenar não são tarefas isentas de intencionalidade. Trata-se de apresentar ao leitor uma dada

apreensão dos acontecimentos, que não se dissocia de uma visão de mundo, que se espera o leitor

interiorize e compartilhe com o periódico. Assim, o matutino tomava a si o trabalho de organizar,

reordenar e produzir uma “síntese” que viesse “complementar” a “seção” de notícias internacionais,

que já existia. Não se tratava de fornecer novas informações, mas sim de interpretar e apreender o

contexto externo analiticamente.

É importante ressaltar que os quadros diferiam das notícias esparsas e dispostas

caoticamente nas páginas do jornal: por sua configuração gráfica antes convidavam o leitor a

recortar e guardar o material para posterior consulta. Note-se que a estratégia gráfica adotada pelos

responsáveis ensejava que o texto fosse lido, recortado e guardado e quiçá lido por outros.

Pode-se perguntar porque os responsáveis pelo jornal apostariam nesta estratégia e que

finalidades os moviam. As rápidas alterações no quadro externo justificariam tal decisão? Pode-se 8 “Roosevelt e as eleições”. In: O Estado de S. Paulo, 20 abr. 1938, p. 14.

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supor que a realidade interna também conferia ao período singularidade ímpar. O Brasil, presidido

por Getúlio Vargas, estava sob o Estado Novo, regime de força no qual as liberdades democráticas

foram seriamente restringidas.

Os responsáveis pelo jornal tinham que amargar aqui e além fronteiras a ascensão e o triunfo

de regimes políticos que, em tese, sempre combateram. O bravo matutino, paladino e o baluarte dos

valores de 1789, via seus princípios mais caros ameaçados. A fim de interpretar e transmitir

pedagogicamente aos leitores sua visão de mundo, os responsáveis pelos comentários trataram dos

mais variados temas e assuntos. É importante ressaltar que, como toda pedagogia, as análises eram

construídas a partir de velhos e arraigados preconceitos – como o posicionamento radical contra a

Revolução Russa e seus resultados – e transmitiam os valores e ideologias pelos quais

propugnavam.

Esses preconceitos, valores e ideologias chegavam ao leitor por meio dos escritos e das

temáticas selecionadas. As principais foram: a polarização democracia versus totalitarismo, a guerra

e suas batalhas e a posição dos Estados Unidos diante do conflito. Na seqüência, intenta-se mostrar

como e de que modo esses preconceitos, valores e ideologias formaram e informaram uma dada

visão de mundo e quais as representações que os colaboradores construíram acerca dos mais

distintos e complexos problemas que então se colocavam.

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ANEXOS

Figura 1: O Estado de S. Paulo, 20 abr. 1938, p. 14. Destaque por meio da junção de quatro

colunas em duas.

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Figura 2: O Estado de S. Paulo, 12 dez. 1939, p. 01. Destaque por meio da junção de três colunas

em duas.

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Figura 3: O Estado de S. Paulo, 10 nov. 1939, p. 01. Apesar de inserido na parte inferior da página,

mantém-se a centralização do quadro.

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