Alexandra Adornetto Halo - planeta.pt · estendemos os braços na sua direcção no que esperámos...

23
Alexandra Adornetto Halo

Transcript of Alexandra Adornetto Halo - planeta.pt · estendemos os braços na sua direcção no que esperámos...

Alexandra Adornetto

Halo

Planeta ManuscritoRua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito

1200 ‑242 Lisboa • Portugal

Reservados todos os direitosde acordo com a legislação em vigor

© 2010, Alexandra AdornettoPublicado originalmente por Feiwel and Friends,

uma chancela do Grupo Macmillan Children’s BooksPublicado com a autorização de Jill Grinberg Literary Management LLC

e Sandra Bruna Agencia Literaria SL© 2010, Planeta Manuscrito

Título original: Halo

Tradução: Andreia Mendonça

Editing: Paula Nascimento

Revisão: Eulália Pyrrait

Paginação: Guidesign

1.ª edição: Abril de 2012

Depósito legal n.º 334 023/11

Impressão e acabamento: Guide – Artes Gráficas

ISBN: 978‑989‑657‑241‑9

www.planeta.pt

Oh, fala de novo, anjo brilhante, pois só tuFazes a glória desta noite, por cima da minha cabeça,Como um alado mensageiro das alturasAos olhos para cima revirados, brancos de espanto,Dos mortais que se curvam para mirá ‑lo […]

William Shakespeare, Romeu e Julieta1

Baby, I can see your haloYou know you’re my saving grace

Beyoncé, Halo

1 William Shakespeare, Romeu e Julieta, trad. de Fernando Villas ‑Boas, ilustr. por João Fazenda, Oficina do Livro, Outubro de 2007, Cruz Quebrada.

13

C A P Í T U L O 1

Descida

A nossa chegada não se passou como tínhamos planeado. Recordo ‑me que era quase madrugada quando aterrámos, pois as luzes da rua ainda estavam acesas. Havíamos esperado que a nossa descida ocorresse despercebida, e de facto aconteceu, não fosse o facto de um rapaz de treze anos estar a fazer a ronda de entrega de jornais.

Vinha na sua bicicleta com os jornais enrolados como envoltos em plástico. Havia neblina e o rapaz trazia um casaco de capuz vestido. Parecia estar a fazer um jogo mental consigo mesmo para calcular quando conse‑guiria fazer com que cada jornal aterrasse. Os jornais batiam nas entradas dos carros e nas varandas com uma pancada seca e o rapaz sorria arrogante sempre que o cálculo saía correcto. Um terrier Jack Russel que ladrava por detrás de um portão fez com que olhasse para cima, avisando ‑o da nossa chegada.

Olhou para cima mesmo a tempo de ver uma coluna de luz branca a retroceder para dentro das nuvens, deixando três estranhos semelhan‑tes a espectros no meio da estrada. Apesar da nossa forma humana, algo acerca de nós o assustou – talvez porque a nossa pele era tão luminosa como a Lua ou porque as nossas vestes brancas e folgadas de viagem esta‑vam em farrapos devido à descida turbulenta. Talvez fosse o modo como olhou para os nossos membros, como se não fizéssemos ideia do que fazer com eles, ou o vapor de água ainda a pingar do nosso cabelo. Fosse qual fosse a razão, o rapaz perdeu o equilíbrio, guinou a bicicleta para o lado

14

Alexandra Adornetto

e foi contra a sarjeta. Levantou ‑se atrapalhado e parou, fascinado, durante alguns segundos, apanhado entre o alarme e curiosidade. Em uníssono, estendemos os braços na sua direcção no que esperámos ser um gesto tranquilizador. Mas esquecemo ‑nos de sorrir. Quando nos lembrámos de como fazê ‑lo, era demasiado tarde. No momento em que contorcemos as bocas numa tentativa de sorrir, o rapaz virou ‑se e fugiu. A posse de um corpo físico era ainda algo estranho para nós – havia tantas partes diferen‑tes que precisavam de funcionar concomitantemente, como uma máquina complexa. Os músculos no meu rosto e corpo estavam tensos, as pernas tremiam como as de uma criança que dava os primeiros passos e os olhos ainda não se tinham ajustado à luz pálida terrestre. Tendo vindo de um lugar de luz brilhante, as sombras eram ‑nos alheias.

Gabriel aproximou ‑se da bicicleta cuja roda dianteira ainda girava e endireitou ‑a. Encostou ‑a à cerca mais próxima sabendo que o rapaz iria regressar mais tarde para a reaver.

Imaginei o rapaz a irromper pela porta da frente de casa e a relatar a história aos pais espantados. A mãe afastar ‑lhe ‑ia o cabelo para verificar se tinha febre. O pai, de olhar vago, comentaria acerca da capacidade da mente de pregar partidas às pessoas.

Descobrimos a Rua Byron e percorremos o irregular caminho pedonal à procura do número 15. Já naquele momento os nossos sentidos estavam a ser atacados de todas as direcções. As cores do mundo eram tão garridas e variadas. Nós havíamos vindo de um mundo puramente branco e che‑gado a uma rua que se assemelhava ao paladar de um artista. Com excep‑ção da cor, tudo possuía a sua própria textura e forma, diferente de tudo o resto. O vento roçava nas pontas dos meus dedos e parecia ter tanta vida que me perguntei se podia alcançá ‑lo e apanhá ‑lo. Abri a boca e saboreei o ar fresco e cortante. Conseguia sentir o cheiro a gasolina e a torrada queimada misturado com fragrância de pinheiro e aroma penetrante do oceano. O pior era o barulho. O vento parecia uivar e o som do mar a embater nas rochas rugia na minha cabeça como uma confusão. Conseguia ouvir tudo o que estava a acontecer na rua, o som do arranque do motor de um carro, o bater de uma porta, o choro de uma criança, uma velha cadeira de baloiço no alpendre a ranger ao vento.

15

Halo

– Hás ‑de aprender a bloquear tudo isto – disse Gabriel. O som da sua voz assustou ‑me. Lá de onde vínhamos, comunicávamos sem linguagem. A voz humana de Gabriel, descobri, era baixa e suave.

– Quanto tempo vai demorar? – Fiz uma careta de desagrado quando o pio estridente de uma gaivota soou lá no alto. Ouvi a minha própria voz, que era tão melodiosa como uma flauta.

– Não muito – respondeu Gabriel. – É mais fácil se não resistires.A Rua Byron continuava numa subida e a meio, no ponto mais alto

dessa colina, ficava a nossa nova casa. Ivy ficou de imediato encantada.– Oh, vejam – gritou ela. – Até tem um nome. – A casa recebera o nome

da rua e havia uma placa de cobre onde estava escrito numa letra elegante «byron». Mais tarde descobriríamos que as ruas adjacentes tinham nomes de outros poetas românticos ingleses: Alameda Keats, Rua Coleridge, Ave‑nida Blake. Byron seria a nossa casa e o nosso santuário enquanto estivéssemos confinados à Terra. Era uma casa de arenito coberta de hera, com duas frentes, construída longe da rua escondida por detrás de uma cerca de ferro forjado e portões duplos. Apresentava uma graciosa fachada georgiana e um caminho de gravilha que conduzia à porta da frente, cuja tinta estava a lascar. O pátio da frente ostentava um ulmeiro impressionante, e em redor crescia uma con‑fusão emaranhada de hera. Ao longo da cerca lateral crescia uma quantidade excessiva de hortênsias, de tom pastel, vacilantes na geada matinal. Gostei da casa – parecia ter sido construída de modo a resistir a qualquer adversidade.

– Bethany, passa ‑me a chave – pediu Gabriel. Cuidar da chave da casa fora a única tarefa que me confiaram. Tacteei os bolsos fundos do meu vestido.

– Está aqui algures – tranquilizei ‑o.– Por favor, diz ‑me que não a perdeste.– Nós caímos do céu, sabias? – respondi indignada. – É normal que

desapareçam coisas.Ivy riu ‑se de súbito.– Tens ‑na ao peito.Soltei um suspiro de alívio quando retirei a corrente e entreguei

a chave a Gabriel. Quando entrámos para o salão de entrada, vimos que a casa havia sido preparada para nos receber. Os Agentes Divinos que nos

16

Alexandra Adornetto

tinham antecedido foram meticulosos na sua atenção ao pormenor e não olharam a despesas.

Tudo naquela casa sugeria luz. Os tectos eram altos, os quartos espaço‑sos. Depois do salão de entrada central havia uma sala de música à esquerda e uma sala de estar à direita. Mais ao fundo um estúdio que abria para um pátio pavimentado. As traseiras da casa eram uma extensão que fora modernizada e era constituída por uma grande cozinha de aço inoxidável e mármore, virada para um largo recanto com carpetes persas e grandes sofás. Portas de fole abriam ‑se para um largo telheiro de sequóia vermelha. No andar superior ficavam os quartos e a casa de banho principal, com lavatório de bancada em mármore e uma banheira. À medida que cami‑nhávamos pela casa, o soalho rangia como se nos desse as boas ‑vindas. Começou a chuviscar levemente e a água que caía no telhado de ardósia soava como dedos que tocavam uma melodia num piano.

Aquelas primeiras semanas foram passadas em meditação e adaptação às nossas personalidades. Trouxemos provisões, esperámos pacientemente enquanto nos habituávamos a ter uma forma física e penetrámos nos rituais do nosso quotidiano. Havia tanto para aprender e com certeza não era fácil. Primeiro dávamos um passo e surpreendíamo ‑nos por encontrar solo firme por baixo. Sabíamos que tudo na Terra era feito de matéria entrelaçada num código molecular para formar substâncias diferentes: ar, rocha, madeira, animais. Mas a experimentar era muito diferente. Sentíamo ‑nos rodeados por barreiras físicas. Tínhamos de orientar o nosso caminho por entre estas barreiras e tentar evitar a sensação contínua de claustrofobia. Sempre que pegava num objecto, parava para me maravilhar com a sua funcionalidade. A vida humana era tão complicada; havia aparelhos para ferver água, sulcos na parede para correntes eléctricas, e todo o tipo de utensílios na cozinha e na casa de banho para poupar tempo e aumentar o conforto. Tudo possuía uma textura diferente, um cheiro diferente – era como um circo para os sentidos. Conseguia perceber que Ivy e Gabriel desejavam bloquear tudo e regressar ao silêncio extasiante, mas eu saboreava cada momento ainda que fosse avassalador.

17

Halo

Houve fins de tarde em que recebemos a visita de um mentor sem rosto e de manto branco, que surgia sentado num cadeirão na sala de estar. A sua identidade nunca era revelada, embora soubéssemos que actuava como um mensageiro entre os anjos na Terra e os poderes superiores. Seguia ‑se uma sessão de instruções durante a qual podíamos discutir os desafios da encarnação e obter respostas às nossas perguntas.

– O senhorio pediu documentos comprovativos da nossa residência anterior – disse Ivy durante a primeira reunião.

– Pedimos desculpa pelo descuido. É como se já estivesse tratado – respondeu o mentor. O seu rosto estava oculto, mas quando falava, saíam pequenas nuvens de nevoeiro branco do interior do seu capuz.

– Quanto tempo mais demorará até sermos capazes de compreender os nossos corpos? – perguntou Gabriel, com curiosidade.

– Isso depende – respondeu o mentor. – Não deve demorar mais do que algumas semanas, a não ser que resistam à mudança.

– Como estão a reagir os outros emissários? – Ivy parecia preocupada.– Alguns estão a adaptar ‑se à vida humana, como vós, e outros foram

de imediato recrutados para a batalha – respondeu o mentor. – Existem cantos aqui na Terra repletos de Agentes das Trevas.

– Por que me dá dores de cabeça a pasta de dentes? – perguntei. O meu irmão e a minha irmã lançaram ‑me olhares severos, mas o mentor perma‑neceu imperturbável.

– A pasta de dentes contém um conjunto de fortes ingredientes quí‑micos para matar bactérias – disse ele. – Daqui a uma semana verás que as dores de cabeça desaparecerão.

Depois de a sessão de conselhos terminar, Gabriel e Ivy ainda se demo‑ravam numa conversa privada e ficava a questionar ‑me o que teriam eles para dizer que eu não pudesse ouvir.

O primeiro grande desafio foi cuidar dos nossos corpos. Eram frágeis. Precisavam de alimentação bem como de protecção contra os elementos – o meu mais do que os dos meus irmãos porque era nova; era a minha pri‑meira visita e não tivera tempo para desenvolver resistências. Gabriel fora um guerreiro desde o início dos tempos e Ivy era abençoada com pode‑res de cura. Eu, por outro lado, era muito mais vulnerável. As primeiras

18

Alexandra Adornetto

vezes que me aventurei a dar um passeio, regressei a tremer antes de me aperceber de que estava vestida de maneira desadequada. Gabriel e Ivy não sentiam o frio. Mas os seus corpos ainda necessitavam de manuten‑ção. Perguntámo ‑nos por que nos sentíamos tontos por volta do meio ‑dia, e depois descobrimos que os corpos precisavam de refeições regulares. A preparação da comida era uma tarefa entediante e, por fim, o nosso irmão, Gabriel, ofereceu ‑se graciosamente para cuidar dessa parte. Existia uma extensa colecção de livros de culinária na bem recheada biblioteca e tratou de se debruçar sobre o assunto aos fins de tarde.

Mantivemos o contacto humano ao mínimo. Fazíamos as compras às tantas da noite na maior cidade próxima de Kingston e, se por acaso a campainha ou o telefone tocassem, não abríamos a porta a ninguém nem atendíamos chamadas. Dávamos longos passeios em alturas que os huma‑nos estavam ocupados nas suas casas. De vez em quando, íamos à cidade e sentávamo ‑nos em esplanadas de cafés para observar os transeuntes, ten‑tando parecer absortos na companhia uns dos outros para não chamar a atenção. A única pessoa a quem nos apresentámos foi ao padre Mel, que era o sacerdote na Igreja de São Marcos, uma capela pequena de basalto situada à beira ‑mar.

– Graças a Deus – disse quando nos viu. – Por fim chegaram.Gostámos do padre Mel porque não nos fazia perguntas nem exigências;

apenas se juntava a nós nas orações. Esperávamos que com o tempo a nossa subtil influência na cidade pudesse resultar numa reaproximação das pessoas com a sua espiritualidade. Não confiávamos que se tornassem obedientes e fossem à igreja todos os domingos, mas desejávamos devolver ‑lhes a fé e ensiná ‑las a acreditar em milagres. Mesmo se parassem na igreja no cami‑nho para a mercearia e acendessem uma vela, nós ficaríamos contentes.

Venus Core era uma cidade desinteressante com praia, o tipo de lugar onde nada mudava. Gostávamos da calma e íamos caminhar ao longo da costa, por norma à hora do jantar quando a praia estava quase deserta. Certa noite, caminhámos até ao paredão para observar as embarcações ali atracadas. Estavam pintadas de cores tão garridas que pareciam pertencer a um postal. Chegámos ao fim do paredão antes de reparar num solitário rapaz ali sentado. Não devia ter mais de dezassete anos, mas era possível

19

Halo

ver nele o homem em que se tornaria um dia. Trazia umas bermudas até aos joelhos e uma T ‑shirt branca folgada com as mangas recortadas. As pernas musculadas pendiam para o lado de fora da extremidade do pontão. Estava a pescar e tinha uma sacola de serapilheira cheia de isco e carretéis variados ao seu lado. Paralisámos quando o vimos e daríamos meia volta e ido embora se não nos tivesse visto.

– Olá – disse com um sorriso rasgado. – Bela noite para passear. – O meu irmão e a minha irmã apenas responderam com um aceno de cabeça e não se mexeram. Eu decidi que era demasiado indelicado não responder e avancei.

– Sim, pois é – respondi. Julgo que este tenha sido o primeiro sinal da minha fraqueza… a minha curiosidade humana fez ‑me avançar. Suposta‑mente tínhamos de interagir com humanos, mas nunca ser seus amigos ou recebê ‑los nas nossas vidas. Mas já estava a ignorar as regras da nossa missão. Sabia que devia calar ‑me, afastar ‑me, mas ao invés gesticulei na direcção dos carretéis do rapaz. – Tiveste alguma sorte?

– Eu faço isto por diversão – respondeu, inclinando um balde para eu ver que estava vazio. – Se por acaso apanhar alguma coisa, atiro ‑a de novo para a água.

Dei outro passo em frente para ver melhor. O cabelo castanho ‑claro do rapaz era do tom das nozes. Caía sobre a fronte e tinha um brilho lus‑troso sob a luz desvanecida. Os olhos claros eram amendoados e a cor de um azul ‑turquesa impressionante. Mas completamente hipnotizante era o sorriso dele. Então é assim que se faz, pensei: sem esforço, por instinto e o mais humano possível. Ao olhar, sentia ‑me atraída, quase por uma qualquer força magnética. Ignorando o olhar de advertência de Ivy dei outro passo em frente.

– Queres experimentar? – perguntou, sentindo a minha curiosidade e estendendo ‑me a cana de pesca.

Enquanto eu tentava com dificuldade pensar numa resposta apro‑priada, Gabriel respondeu por mim.

– Vem ‑te embora, Bethany. Temos de ir para casa.Reparei no quão formal era o discurso de Gabriel em comparação com

o do rapaz. As palavras de Gabriel pareciam ensaiadas, como se estivesse

20

Alexandra Adornetto

a representar uma cena de uma peça. Provavelmente sentia ‑se mesmo assim. Parecia uma personagem num dos antigos filmes de Hollywood que eu vira como parte da nossa pesquisa.

– Talvez para a próxima – disse o rapaz, percebendo a tensão de Gabriel. Reparei nas rugas ténues que se formavam nos cantos dos olhos quando sorria. Algo na sua expressão me fez pensar que estava a troçar de nós. Afastei ‑me relutante.

– Foste tão grosseiro – disse ao meu irmão logo que nos afastámos o suficiente para não sermos ouvidos. Fiquei surpreendida com as minhas palavras. Desde quando os anjos se preocupam em parecer reservados? Desde quando confundi o modo distante de Gabriel com grosseria? Ele fora criado assim, não tinha contacto com a humanidade – não compreen‑dia os modos humanos. E, mesmo assim, estava a repreendê ‑lo por carecer de traços humanos.

– Temos de ser cuidadosos, Bethany – explicou como se falasse com uma criança tonta.

– Gabriel tem razão – acrescentou Ivy, sempre aliada do nosso irmão. – Ainda não estamos prontos para contacto humano.

– Eu acho que estou – respondi.Virei ‑me para olhar pela última vez para o rapaz. Ainda estava a obser‑

var ‑nos e a sorrir.

21

C A P Í T U L O 2

Carne e osso

Quando acordei de manhã, a luz do Sol filtrava ‑se pelas altas paredes e banhava as nuas tábuas de pinho do meu quarto. Nos feixes de luz, par‑tículas de pó rodopiavam numa dança desenfreada. Conseguia cheirar o salgado ar do mar; reconhecer os sons de gaivotas a guinchar e as ondas espumosas a embater nas rochas. Conseguia observar os objectos familia‑res espalhados pelo meu quarto que se haviam tornado meus. Quem quer que fosse o responsável pela decoração do meu quarto fizera ‑o com uma pequena ideia acerca do futuro ocupante. Tinha um charme de meninice na mobília branca, na cama de ferro com abóbada e no papel de parede com botões de rosa. O toucador branco com um desenho floral nas gavetas e a um canto uma cadeira de baloiço de vime. Ao lado da cama, junto a uma parede, havia uma mesa elegante com pernas trabalhadas.

Espreguicei ‑me e senti os lençóis amarrotados contra a pele; a sua tex‑tura ainda era uma novidade. De onde vínhamos, não existia textura, não existiam objectos. Não precisávamos de nada físico para nos suster e por lá nada havia. O céu não era de fácil descrição. Alguns humanos poderão ser capazes de alcançar um vislumbre de como é nalguma ocasião, vislumbre esse enterrado algures nos recônditos do inconsciente, e perguntar ‑se bre‑vemente o que tudo aquilo significaria. Tentem imaginar uma extensão de branco, uma cidade invisível, sem nada material para se ver mas mesmo assim a paisagem mais bela que se pode imaginar. Um céu como ouro líquido e quartzo cor ‑de ‑rosa, uma sensação de flutuabilidade, de leveza,

22

Alexandra Adornetto

parecendo vazio mas mais majestoso do que o mais grandioso palácio na Terra. Isto era o melhor que conseguia fazer quando tentava descrever algo tão inefável como a minha antiga casa. Não fiquei demasiado impressio‑nada com a linguagem humana; parecia limitada. Havia tanta coisa que não podia ser transmitida por palavras. Essa era uma das coisas mais tristes sobre as pessoas – muitas vezes os seus pensamentos e sentimentos mais importantes não eram exprimidos e nem compreendidos.

Uma das palavras mais frustrantes na linguagem humana, na minha opi‑nião, era amor. Tanto significado ligado a esta palavra tão pequena. As pessoas falavam disso livremente, usando ‑o para descrever as ligações a pertences, animais de estimação, destinos de férias e comidas preferidas. No mesmo segundo aplicavam então esta palavra à pessoa que consideravam ser a mais importante das suas vidas. Não seria insultuoso? Não deveria haver outro termo para descrever emoções mais profundas? Os humanos preocupavam‑‑se tanto com amor. Estavam desesperados para formar uma ligação com uma pessoa a quem se pudessem referir como a sua «cara ‑metade». Pelas minhas incursões literárias, parecia que apaixonar ‑se significava tornar ‑se o mundo da pessoa amada. O resto do universo reduzia ‑se à insignificância em comparação com os amantes. Quando se separavam, entravam num estado melancólico, e quando se encontravam de novo, os corações de ambos vol‑tavam a bater. Apenas quando estavam juntos é que podiam ver de facto as cores do mundo. Quando estavam longe um do outro, essa cor esmorecia, transformando tudo numa neblina cinzenta. Deitei ‑me na cama a pensar na intensidade desta emoção, que era tão irracional e tão irrefutavelmente humana. E se o rosto de uma pessoa fosse tão sagrado para nós que ficava gravado na nossa memória? E se o cheiro e o toque dela fosse mais valioso para nós do que a própria vida? É claro que nada sabia acerca do amor humano, mas a ideia sempre me intrigara. Os seres celestiais nunca fingiam compreender a intensidade das relações humanas; mas achei fantástico o modo como os humanos permitiam que outra pessoa lhes arrebatasse o coração e a mente. Era irónico como o amor podia acordá ‑los para as mara‑vilhas do universo, e ao mesmo tempo fixavam a atenção um ao outro.

O som do meu irmão e da minha irmã a moverem ‑se na cozinha no piso de baixo interrompeu o meu sonho acordado e arrancou ‑me da cama.

23

Halo

Afinal o que importavam as minhas meditações quando o amor humano estava interdito aos anjos?

Envolvi ‑me num lenço de caxemira para me aquecer e desci as esca‑das descalça. Na cozinha deparei ‑me com o cheiro convidativo a torra‑das e café. Fiquei satisfeita ao ver ‑me adaptada à vida humana – há umas semanas tais aromas ter ‑me ‑iam causado dores de cabeça ou náuseas. Mas agora começava a desfrutar da experiência. Estiquei os dedos dos pés, apreciando a macieza do soalho. Nem sequer me preocupei quando, ainda apenas meio acordada, bati desastrada com o dedo do pé no frigorífico. A dor alucinante só serviu para me lembrar de que era verdadeira e que a podia sentir.

– Boa tarde, Bethany – disse o meu irmão sarcástico quando me entre‑gou uma caneca de chá fumegante. Segurei nela durante uma fracção de segundo a mais antes de pousá ‑la e logo me escaldou os dedos. Gabriel reparou na minha hesitação e eu vi a sua testa a enrugar ‑se. Lembrei ‑me de que ao contrário dos meus dois irmãos eu não era imune à dor.

A minha forma física tinha as mesmas vulnerabilidades que um corpo humano, embora fosse capaz de curar ferimentos pequenos a mim mesma tais como cortes e ossos partidos. Sempre fora desde o início uma das prin‑cipais preocupações de Gabriel em relação à minha recruta para esta mis‑são. Eu sabia que me via como vulnerável e pensava que esta missão podia revelar ‑se demasiado perigosa para mim. Eu fora escolhida porque estava mais em sintonia com a condição humana do que a maioria dos anjos – cuidava de humanos, empatizava com eles e tentava compreendê ‑los. Tinha fé neles e chorava por eles. Talvez porque era nova – eu fora criada apenas há dezassete anos mortais, o que equivalia à infância nos anos celestiais. Gabriel e Ivy já existiam há séculos; haviam lutado em batalhas e testemunhado atrocidades humanas que ultrapassavam a minha imagi‑nação. Tinham tido todo o tempo do mundo para adquirir força e poder para se protegerem na Terra. Ambos já visitaram a Terra num sem ‑número de missões, por isso tinham tido oportunidade de se ajustarem e estavam conscientes dos perigos e das armadilhas. Mas eu era um anjo na mais pura e mais vulnerável forma. Era ingénua e confiante, jovem e frágil. Conseguia sentir dor porque não tinha anos de sabedoria e experiência que me prote‑

24

Alexandra Adornetto

giam contra isso. Era por este motivo que Gabriel ansiava que não tivesse sido recrutada e esse foi o motivo por que fui.

Mas a decisão final não dependera dele; dependia de outra pessoa, alguém tão supremo que nem Gabriel se atrevia a discutir. Teve de se resignar ao facto de que devia haver uma razão divina por detrás da minha selecção, que ultrapassava até a sua compreensão.

Beberiquei à experiência o chá e sorri para o meu irmão. A sua expres‑são tornou ‑se mais leve e pegou numa embalagem de cereais e escrutinou o rótulo.

– O que vai ser?… Torradas ou algo chamado Flocos de Trigo e Mel?– Prefiro torradas – respondi, franzindo o nariz quando referiu os

cereais.Ivy estava sentada à mesa barrando ociosamente uma torrada com

manteiga. A minha irmã ainda tentava desenvolver um gosto pela comida, e observei ‑a a cortar a torrada em quadradinhos direitos, misturar os boca‑dos no prato e depois a ordená ‑los de novo como se de um puzzle se tra‑tasse. Fui sentar ‑me ao seu lado, inalando o aroma inebriante a junquilhos que sempre parecia impregnar o ar em seu redor.

– Pareces um pouco pálida – comentou com a calma que lhe era carac‑terística, afastando uma melena de cabelo louro ‑claro que caíra sobre os seus olhos cinzentos como a chuva. Ivy autoproclamara ‑se a mãe ‑galinha da nossa pequena família.

– Não é nada – respondi e hesitei antes de acrescentar: – Foi só um pesadelo. – Vi ‑os ambos a ficar um pouco tensos e trocar olhares aflitos.

– Não diria que isso é nada – disse Ivy. – Sabes bem que não devemos sonhar. – Gabriel afastou ‑se da posição à janela para estudar o meu rosto com mais atenção. Ergueu ‑me o queixo com a ponta do dedo. Reparei que o seu franzir do sobrolho regressara, ensombrando ‑lhe a beleza severa do rosto.

– Cuidado, Bethany – avisou no seu tom agora familiar de irmão mais velho. – Tenta não ficar muito ligada às experiências físicas. Por mais exci‑tantes que possam parecer, lembra ‑te de que somos meros visitantes. Tudo isto é temporário e mais cedo ou mais tarde teremos de regressar… – Ao ver o meu olhar melancólico, interrompeu o discurso. Em seguida, pros‑

25

Halo

seguiu com uma voz mais calma: – Bem, ainda falta muito tempo antes de acontecer, por isso podemos discutir este assunto mais tarde.

Era estranho visitar a Terra com Ivy e Gabriel. Atraíam tanta atenção para onde quer que fossem. Na sua forma física, Gabriel podia ter sido uma escultura clássica que ganhara vida. O corpo era de perfeitas proporções e cada músculo parecia ter sido esculpido do mais puro mármore. O cabelo que caía nos ombros era da cor da areia e muitas vezes usava ‑lo apanhado num rabo ‑de ‑cavalo lasso. A fronte era imponente e o nariz em ângulo recto. Hoje trazia vestidas calças de ganga desbotadas rasgadas nos joelhos e uma camisa de linho amarrotada, que lhe davam uma beleza descuidada. Gabriel era um arcanjo e membro dos Sagrados Sete. Embora o seu grupo de amigos apenas se encontrasse em segundo lugar na hierarquia divina, eram exclusivos e tinham mais interacção com os seres humanos do que os outros. De facto, eram criados para formar uma ligação entre o Senhor e os mortais. Mas no coração Gabriel era um guerreiro – o seu nome celes‑tial significava «Herói de Deus» – e ele vira Sodoma e Gomorra a arder.

Ivy, por outro lado, era um dos anjos mais sábios e antigos da nossa espécie, embora não parecesse ter mais de vinte anos. Era um serafim, a ordem de anjos mais próxima de Deus. No Reino, o serafim tinha seis asas para marcar os seis dias da criação. Ivy tinha uma serpente dourada tatuada no pulso como insígnia da sua categoria. Dizia ‑se que em batalha o serafim avançaria para cuspir fogo sobre a Terra, mas era uma das criaturas mais gentis que alguma vez conhecera. Na sua forma física, Ivy parecia uma Madonna do Renascimento com o pescoço de cisne e o rosto oval e pálido. Tal como Gabriel, tinha olhos cinzentos como a chuva e penetrantes. Nesta manhã usava um vestido branco esvoaçante e sandálias douradas.

Eu, por outro lado, não tinha nada de especial, apenas era um anjo de transição simples e antigo – mesmo do fim da hierarquia. Não me impor‑tava; significava que era capaz de interagir com os espíritos humanos que entravam no Reino. Na minha forma física, parecia etérea como a minha família, com excepção dos meus olhos, que eram castanhos como seixos do rio, e o meu cabelo castanho como chocolate caía solto e ondulado pelas costas. Pensava que, uma vez que fora recrutada para um posto na Terra, teria a possibilidade de escolher a minha forma física, mas isso não aconteceu.

26

Alexandra Adornetto

Fui criada com baixa estatura, de estrutura óssea fina, e não especialmente alta com um rosto em forma de coração, orelhas de fada e pele que parecia da cor do leite. Sempre que vislumbrava o meu reflexo no espelho via uma ansiedade que faltava nos rostos dos meus irmãos. Mesmo quando tentava, nunca conseguia parecer tão distante como Gabe e Ivy. As suas expressões de compostura severa era raro alterarem ‑se, independentemente do drama que se desenrolava em seu redor. O meu rosto tinha sempre uma expressão de curiosidade inquieta, por muito que tentasse parecer mundana.

Ivy atravessou a cozinha até ao lava ‑loiças com o prato na mão, movendo ‑se como se dançasse em vez de andar. Tanto o meu irmão como a minha irmã moviam ‑se com uma graça espontânea que eu era incapaz de imitar. Já fora acusada mais de uma vez de andar com passos pesados pela casa, assim como de ter as mãos pesadas.

Quando se desfez da torrada meio comida Ivy estendeu ‑se sobre o banco da janela, com o jornal aberto à sua frente.

– O que há de novo? – perguntei.Como resposta ergueu a página frontal para eu ver. Li os cabeçalhos

– bombardeamentos, desastres naturais e colapso económico – e senti ‑me logo derrotada.

– Não é novidade nenhuma que as pessoas não se sentem seguras – disse Ivy com um suspiro. – Não têm fé umas nas outras.

– Se é verdade, então o que podemos fazer por elas? – perguntei hesi‑tante.

– Não tomemos as coisas como garantidas – interveio Gabriel. – Eles dizem que a mudança demora tempo.

– Além disso, não nos cabe a nós tentar salvar o mundo – continuou Ivy. – Temos de nos concentrar no nosso pequeno cantinho aqui.

– Referes ‑te a esta vila?– Claro. – A minha irmã acenou com a cabeça. – Esta cidade foi mar‑

cada como um alvo das Forças do Mal. É estranho os sítios que escolhem.– Imagino que estejam a começar devagar, infiltrando ‑se nos meios

pequenos, para se tornarem poderosos – disse Gabriel com desagrado. – Se conseguirem conquistar uma vila, conseguem conquistar uma cidade, depois um estado, depois um país.

27

Halo

– Como sabes quantos danos já causaram? – perguntei.– Isso revelar ‑se ‑á com o tempo – respondeu Gabriel. – Mas ajuda‑

‑nos, pois iremos pôr um fim ao seu trabalho destrutivo. Não falharemos a nossa missão e, antes de partirmos, este lugar estará de novo nas mãos d’O Senhor.

– Entretanto, vamos tentar ajustar ‑nos a esta vida – disse Ivy, talvez num esforço para animar o ambiente. Eu quase ri alto e bom som e senti‑‑me tentada a sugerir ‑lhe que se olhasse ao espelho. Ela podia ser velha como a própria Terra, mas por vezes Ivy conseguia parecer muito ingénua. Até eu sabia que o ajuste ia ser um desafio.

Qualquer pessoa conseguia ver que éramos diferentes – e não como se fôssemos estudantes de arte com cabelo pintado e meias extravagan‑tes. Nós éramos mesmo diferentes – diferentes do tipo não ‑deste ‑mundo. Julgo que não fosse invulgar dado o facto de ser quem éramos… ou melhor, da nossa origem. Dávamos nas vistas por diversos motivos. Para começar, os seres humanos tinham defeitos, nós não. Se nos vissem no meio de uma multidão, a primeira coisa em que reparariam era na nossa pele. Era tão translúcida que podiam convencer ‑se de que a nossa pele continha verdadeiras partículas de luz. Isso tornava ‑se ainda mais evidente quando escurecia, altura em que parte da nossa pele exposta emitia um brilho como se viesse de uma qualquer fonte de energia interna. Além disso, nunca deixávamos pegadas, mesmo quando caminhávamos sobre algo impressível como erva ou areia. E nunca usávamos camisolas deco‑tadas – usávamos sempre camisolas altas para esconder um pequeno pro‑blema cosmético.

À medida que começávamos a assimilar a vida da cidade, os locais não podiam deixar de imaginar o que estaríamos a fazer num sítio isolado e adormecido como a Enseada de Vénus. Por vezes pensavam que éramos turistas numa estada prolongada; outras, éramos confundidos com cele‑bridades e perguntavam ‑nos sobre programas televisivos de que nunca tínhamos ouvido falar. Ninguém sonhava que estávamos ali em trabalho; que fôramos recrutados para auxiliar um mundo à beira da destruição. Bastava abrir um jornal ou ligar a televisão para ver as razões pelas quais havíamos sido enviados: assassínio, rapto, ataques terroristas, maus ‑tratos

28

Alexandra Adornetto

a idosos… a horrenda lista não tinha fim. Havia tantas almas em perigo e os Agentes das Trevas estavam a criar a oportunidade para recrutar. Eu, Gabriel e Ivy tínhamos sido enviados para contrabalançar a sua influên‑cia. Foram enviados outros Agentes de Luz para várias localizações do globo, e eventualmente seríamos convocados para avaliar as nossas desco‑bertas. Eu sabia que a situação era terrível, mas tinha a certeza de que não poderíamos falhar. De facto, pensava que seria fácil – a nossa presença seria a solução divina. Estava prestes a descobrir que estava muito enganada.

Tivemos a felicidade de ir parar à Enseada de Vénus. Era um lugar arrebatador repleto de contrastes impressionantes. Partes da linha costeira eram expostas ao vento e acidentadas, e da nossa casa podíamos ver os penhascos proeminentes cuja vista dava para o oceano negro e ondulado e ouvir o vento a uivar entre as árvores. Mas um pouco mais longe da costa existiam paisagens pastoris de colinas sinuosas com vacas a pastar e lindos moinhos de vento.

Quase todas as casas na Enseada de Vénus eram cabanas cujas paredes exteriores tinham um revestimento de tábuas de madeira compridas e finas que se sobrepunham umas às outras. Mas, mais perto da costa, havia uma série de ruas ladeadas por árvores com casas maiores e mais imponentes. A nossa casa, Byron, era uma delas. Gabriel não estava muito entusiasmado com o acomodamento – o clérigo nele considerava ‑a excessivo e ter ‑se ‑ia sem dúvida sentido mais à vontade dentro de algo menos luxuoso, mas eu e Ivy adorávamo ‑la. E se os poderes superiores não viam mal nenhum em desfrutarmos do nosso tempo na Terra, por que haveríamos nós de o fazer? Julguei que a casa podia não nos ajudar a alcançar o nosso objectivo de nos ajustarmos a esta vida, mas permaneci calada. Não queria queixar ‑me quando já me sentia demasiado responsabilizada nesta missão.

A Enseada de Vénus tinha uma população de cerca de trezentas pessoas, embora duplicasse durante as férias de Verão quando a vila se transformava numa estância de férias apinhada de gente. Independentemente da altura do ano, os locais eram simpáticos e generosos. Eu gostava da atmosfera do lugar: não havia pessoas com fatos de negócios num frenesim a caminho de empregos de alta categoria; ninguém andava numa correria. As pessoas não pareciam importar ‑se se tinham jantar marcado no restaurante mais

29

Halo

elegante da vila ou no snack ‑bar à beira ‑mar. Estavam demasiado relaxadas para se preocuparem com coisas desse tipo.

– Não concordas, Bethany? – O timbre rico da voz de Gabriel chamou‑‑me de volta ao presente. Tentei lembrar ‑me do fio condutor da conversa, mas a minha memória ficou vazia.

– Desculpa – disse –, estava a quilómetros de distância. O que estavas a dizer?

– Estava apenas a definir algumas regras básicas. A partir de hoje tudo vai ser diferente.

Gabriel estava outra vez a franzir o sobrolho, algo aborrecido com a minha falta de atenção. Naquela manhã, nós os dois íamos começar as aulas na Escola Bruce Hamilton, eu como aluna e Gabriel como o novo professor de música. Fora decidido que uma escola seria um local útil para começar o nosso trabalho de enfrentar os emissários das trevas, dado que estava cheio de pessoas jovens cujos valores ainda se encontravam em desenvolvimento. Ivy era demasiado celeste para ser enviada para o liceu, por isso ficou acordado que seria a nossa mentora e certificar ‑se ‑ia da nossa segurança, ou melhor, da minha segurança, uma vez que Gabriel sabia cui‑dar de si mesmo.

– O importante é não esquecer a razão por que estamos aqui – disse Ivy. – A nossa missão é óbvia: realizar boas acções, actos de caridade e bondade; liderar dando o exemplo. Por enquanto ainda não queremos milagres, enquanto não soubermos prever como seriam recebidos pelas pessoas. Ao mesmo tempo, queremos observar e aprender o mais e melhor possível sobre as pessoas. A cultura humana é tão complexa e diferente de tudo no universo.

Suspeitei que estas regras básicas eram na sua maioria para o meu bene‑fício. Gabriel nunca tinha dificuldades a lidar fosse com que situação fosse.

– Isto vai ser divertido – disse eu, talvez um pouco entusiástica de mais.– Isto não é divertido – retorquiu Gabriel. – Não ouviste nada do que

dissemos?– Essencialmente estamos a tentar afastar as influências do mal e devol‑

ver a fé das pessoas umas nas outras – explicou Ivy num tom conciliador. – Não te preocupes com a Bethany, Gabe… Ela vai ficar bem.

30

Alexandra Adornetto

– Em resumo, estamos aqui para abençoar a comunidade – continuou o meu irmão. – Mas não podemos dar demasiado nas vistas. A nossa pri‑meira prioridade é passar despercebidos. Bethany, por favor tenta não dizer nada que vá… perturbar os estudantes.

Desta vez foi a minha vez de me sentir ofendida.– Como por exemplo? – perguntei autoritária. – Não sou assim tão

assustadora.– Sabes bem o que Gabriel quer dizer – disse Ivy. – Só está a sugerir

que penses antes de falar. Nada de conversas pessoais sobre a nossa família e a casa, nada de «Deus julga»… ou «Deus disse ‑me»… Podem pensar que estás sob a influência de alguma coisa.

– Está bem – respondi na defensiva. – Mas espero que pelo menos me autorizem a voar pelos corredores durante a hora de almoço.

Gabriel lançou ‑me um olhar severo. Esperei que percebesse a piada, mas os seus olhos permaneceram sérios. Suspirei. Por muito que o amasse, Gabriel não possuía sentido de humor.

– Não te preocupes, vou portar ‑me bem. Prometo.– O autocontrolo é de elevadíssima importância – afirmou Ivy.Suspirei outra vez. Sabia que era a única que tinha de se preocupar com

autocontrolo. Ivy e Gabriel tinham experiência suficiente nestas situações e acabava por ser a sua segunda natureza – sabiam as regras de trás para a frente. Não era justo. Também tinham personalidades mais estáveis do que eu. Mais valia serem chamados de Rei e Rainha do Gelo. Nada os agi‑tava, nada os perturbava, e, mais importante, nada os transtornava. Eram como actores bem ensaiados cujas falas lhes surgiam sem esforço. Para mim era diferente; desde o início lutara contra isso. Por alguma razão, tornar ‑me humana deitara ‑me abaixo. Não estava preparada para esta intensidade. Era como ir de uma felicidade vazia para a experiência de uma montanha‑‑russa de sensações simultâneas. Por vezes, as sensações cruzavam ‑se e alteravam ‑se como se fossem areia e o resultado final era uma confusão total. Eu sabia que devia desligar ‑me de tudo relacionado com emoções, mas não descobrira como fazê ‑lo. Maravilhava ‑me como simples humanos conseguiam viver com tamanha agitação a borbulhar dentro dos corpos a toda o momento – era esgotante. Tentei esconder as minhas dificuldades

31

Halo

de Gabriel; não queria provar ‑lhe que estava certo ou fazer com que me desvalorizasse devido aos meus problemas. Se os meus irmãos alguma vez experienciaram algo semelhante, eram especialistas em escondê ‑lo.

Ivy sugeriu que fosse buscar o meu uniforme e arranjar umas calças e camisa limpas para Gabe. Como membro da equipa de docentes, Gabriel tinha como regra usar camisa e gravata, e a ideia não lhe agradava de todo. Por norma usava calças de ganga largas e camisola de decote redondo. Roupa apertada fazia ‑nos sentir constringidos. A roupa em geral causava‑‑nos uma sensação estranha de encurralados, por isso simpatizei com Gabriel quando regressou a descer as escadas contorcendo ‑se na camisa branca pouco macia que abraçava o seu peito bem constituído e puxando a gravata para cima até ter alargado o nó o suficiente.

Mas a roupa não era a única diferença; também tínhamos de aprender a fazer rituais de higiene e beleza, como tomar banho, escovar os dentes e pen‑tear o cabelo. Nunca tivemos de pensar nestas coisas no Reino, onde a exis‑tência não exigia manutenção. A vida num corpo humano era tão diferente que receava de me esquecer da infinidade de coisas que tínhamos de fazer.

– Tens a certeza de que há norma de vestuário para os professores? – perguntou Gabriel.

– Acho que sim – respondeu Ivy –, mas mesmo que esteja errada, que‑res arriscar no primeiro dia?

– O que tinha de mal o que tinha vestido? – resmungou ele, enrolando as mangas para cima numa tentativa de libertar os braços. – Pelo menos era confortável. – Ivy fez um estalido com a língua em desaprovação e virou ‑se para verificar se eu vestira o uniforme correctamente.

Eu tinha de admitir que era bastante estiloso no que toca a uniformes. O vestido era de um bonito azul ‑claro com uma frente plissada e uma gola branca em bico. A completar tínhamos de usar meias de algodão até ao joelho, sapatos castanhos de atacadores e um blazer azul ‑marinho com o emblema da escola bordado a dourado no bolso do peito. Ivy comprara‑‑me laçarotes brancos e azul ‑claros, que agora entrançava habilmente nas minhas tranças.

– Pronto – disse ela com um sorriso de satisfação. – De embaixadora celestial a miúda de liceu.

32

Alexandra Adornetto

Quem me dera que não tivesse usado a palavra embaixadora – era ener‑vante. Carregava tanto peso, tantas expectativas. E não era o tipo de expec‑tativas que os humanos esperavam de os filhos arrumarem os quartos, de cuidarem dos irmãos ou de terminarem os trabalhos de casa. Era o tipo de expectativas que tinham de ser cumpridas, e se não fossem… bem, não sei o que aconteceria se não fossem. Os joelhos tremeram ‑me como se pudessem dobrar ‑se a qualquer instante.

– Não tenho tanta certeza disto, Gabe – comecei, mesmo ao aperceber‑‑me do quão instável podia soar. – E se não estiver pronta?

– Essa escolha não é tua – respondeu Gabriel com grande compos‑tura. – Temos apenas um objectivo: cumprir os nossos deveres para com o Criador.

– E eu quero cumprir, mas isto é o liceu. Uma coisa é observar a vida dos bastidores, mas vamos ser atirados para o coração da coisa.

– O objectivo é esse – proferiu Gabriel. – Não podemos esperar que façamos a diferença a partir dos bastidores.

– Mas e se algo corre mal?– Hei ‑de lá estar para resolver as coisas.– É só que a Terra parece um lugar tão perigoso para os anjos.– É por isso que estou aqui.Os perigos que imaginava não eram só físicos. Com estes lidaríamos

com facilidade. O que me preocupava era a sedução de tudo o que era humano. Duvidava de mim mesma e sabia que isso podia levar a que per‑desse o rumo do meu objectivo mais importante – todos tínhamos ouvido as lendas terríveis de anjos caídos, seduzidos pelas indulgências do homem, e sabíamos o que lhes havia acontecido.

Ivy e Gabriel observavam o mundo à sua volta com experiência, cons‑cientes das armadilhas, mas para uma principiante como eu o perigo era enorme.