ALARCÃO, Isabel. Professores reflexivos em uma escola reflexiva.

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A educadora portuguesa diz que o questionament o deve ser a base do trabalho de todos os professores izer que o professor precisa refletir sobre seu trabalho não é mais novidade. É possível até afirmar que virou moda, como outras que volta e meia se espalham no meio educacional. Justamente por isso, um perigo, na opinião da educadora portuguesa Isabel Alarcão. Muito comentada mas pouco compreendida, essa idéia pode, segundo ela, se transformar num discurso vazio. "Ser reflexivo é muito mais do que descrever o que foi feito em sala de aula", alerta. O tema chama a atenção de Isabel desde o início da década de 1990, quando conheceu os estudos do americano Donald Schön. Ele defende que os profissionais façam o questionamento sobre situações práticas como base de sua formação. "Só assim nos tornamos capazes de enfrentar situações novas e de tomar decisões apropriadas." Doutora em Educação pela Universidade de Liverpool, na Inglaterra, e vice-reitora da Universidade de Aveiro, em Portugal, ela se dedica à formação docente desde 1974. A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu a NOVA ESCOLA em São Paulo. "A escola precisa pensar continuamente em si própria, na sua missão social e na sua organização" NOVA ESCOLA> Quem é o professor reflexivo? Isabel Alarcão< É aquele que pensa no que faz, que é comprometido com a profissão e se sente autônomo, capaz de tomar decisões e ter opiniões. Ele é, sobretudo, uma pessoa que atende aos contextos em que trabalha, os interpreta e adapta a própria atuação a eles. Os contextos educacionais são extremamente complexos e não há um igual a outro. Eu posso ser obrigado a, numa mesma escola e até numa mesma turma, utilizar práticas diferentes de acordo com o grupo. Portanto, se eu não tiver capacidade de analisar, vou me tornar um

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A educadora portuguesa diz que o questionamento deveser a base do trabalho de todos os professores

izer que o professor precisa refletirsobre seu trabalho não é mais

novidade. É possível até afirmar que viroumoda, como outras que volta e meia seespalham no meio educacional.Justamente por isso, um perigo, na opiniãoda educadora portuguesa Isabel Alarcão.

Muito comentada mas poucocompreendida, essa idéia pode, segundoela, se transformar num discurso vazio."Ser reflexivo é muito mais do quedescrever o que foi feito em sala de aula",alerta. O tema chama a atenção de Isabeldesde o início da década de 1990, quandoconheceu os estudos do americano DonaldSchön. Ele defende que os profissionaisfaçam o questionamento sobre situaçõespráticas como base de sua formação. "Só

assim nos tornamos capazes de enfrentarsituações novas e de tomar decisõesapropriadas." Doutora em Educação pelaUniversidade de Liverpool, na Inglaterra,e vice-reitora da Universidade de Aveiro,em Portugal, ela se dedica à formaçãodocente desde 1974. A seguir, osprincipais trechos da entrevista queconcedeu a NOVA ESCOLA em SãoPaulo.

"A escola precisapensar continuamenteem si própria, na suamissão social e na suaorganização"

NOVA ESCOLA> Quem é o professor reflexivo?

Isabel Alarcão< É aquele que pensa no que faz, que é comprometido com aprofissão e se sente autônomo, capaz de tomar decisões e ter opiniões. Ele é,sobretudo, uma pessoa que atende aos contextos em que trabalha, os interpreta eadapta a própria atuação a eles. Os contextos educacionais são extremamentecomplexos e não há um igual a outro. Eu posso ser obrigado a, numa mesmaescola e até numa mesma turma, utilizar práticas diferentes de acordo com ogrupo. Portanto, se eu não tiver capacidade de analisar, vou me tornar um

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tecnocrata.

NE> O que conta mais no dia-a-dia: teoria ou prática?

Isabel

< Existe aí uma associação complexa entre ciência, técnica e arte. É aquiloque Donald Schön, um estudioso das questões profissionais, defendeu: quem ageem situações instáveis e indeterminadas, como é o caso de quem leciona, tem deter muita flexibilidade e um saber fazer inteligente, uma mistura disso tudo. Aexperiência conta muito, mas tem de ser amadurecida.

NE> Como se caracteriza o trabalho desse tipo de educador?

Isabel< Pelo questionamento. Ele deve ser capaz de levantar dúvidas sobre seutrabalho. Não apenas ensinar bem a fazer algumas contas de Matemática ou a lerum conto. É preciso ir mais fundo, saber o que acontece com o estudante que

não aprende a lição. Por que ele não aprende? Por que está com ar de sono?Quais são as questões sociais que o enredam? E mais: Os currículos estão bemfeitos? Deveriam ser diferentes? A escola está funcionando bem? Há váriosníveis de questões e tudo tem de partir de um espírito de interrogação.

NE> Por que a senhora diz, no prefácio de um de seus livros, que essa idéiapode estar se transformando num slogan alienador?

Isabel< Todos sabemos que questionar é extraordinariamente difícil. É precisoter muita vontade de aprender a fazer. No entanto, rapidamente todoscomeçaram a falar sobre isso, sem saber muito bem do que se tratava. Muitos

acham que basta alguém descrever como tinha acontecido algo em sua aula paraser tratado como reflexivo — e esse processo é muito mais que descrever.

NE> É possível perceber efeitos de uma prática questionadora nos estudantes?

Isabel< Sim. Quando o professor faz isso corretamente, o aluno aprende a gerirseu estudo. Dificilmente ele será alguém que só decora, porque o mestre incutenele estratégias de interrogação e busca formá-lo como um indivíduo autônomo.

NE> Como deve ser a avaliação?

Isabel< Quem quer um aluno reflexivo tem de avaliar essa competência. Se aclasse obteve maus resultados, cabe perguntar-se: Por quê? De quem é a culpa?Eu ensinei mal? As crianças têm problemas? Há inúmeras questões a se fazer.

NE> Como se dá a relação entre esse profissional e o livro didático?

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"É difícil refletir no Brasil porcausa dos salários baixos, queobrigam os docentes a ter maisde um emprego"

Isabel< Ele deve ter uma base detrabalho, que pode muito bem sero livro. E o aluno também precisa

ter livros. Mas há muitasmaneiras de usar esse material.Uma delas é seguir tudo o queestá ali e não questionar. Quemage assim é tecnocrata. O opostoé aquele que, embora siga o livro,levanta questões com base no queestá lá e não segue nada à risca.

NE> O professor pode se tornarreflexivo sozinho?

Isabel< Podemos distinguirvários momentos. Quem está emformação precisa de alguém que oajude. Como? Levando-o aresponder perguntas que, aprincípio, ele não é capaz de sefazer. Ao aprofundar o nível dasquestões, ele aprofunda o própriopensamento. Outra estratégia queutilizo é pedir que o colega vá

registrando as coisas queaconteceram, o que sentiu, asdificuldades que tem. Numcaderno, ele pode até pôrfotografias que tirou das situaçõesde sala de aula. Quando essematerial chega às minhas mãos,faço perguntas e ele tem deraciocinar para responder.

NE> Mas nem sempre haverá alguém ao lado para ajudar...

Isabel< É evidente! Por isso, o objetivo é fazer com que todos sejamos capazesde fazer isso sozinhos. Um professor, individualmente, tem influência apenassobre suas turmas. Mas quando pensamos no coletivo desses educadores,chegamos a uma metáfora, a da escola reflexiva. Quando falamos sobre a escola,pensamos num edifício, mas ela é um conjunto de pessoas.

NE> Como é uma escola nesse modelo?

Isabel< Ela pensa continuamente em si própria, na sua missão social e na sua

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organização. Está sempre em desenvolvimento. É aprendente e ensinante.

NE> Qual a importância do projeto pedagógico para essa instituição?

Isabel<

O projeto é um instrumento de desenvolvimento que deve nascer dodiálogo. Eu posso lhe dar como exemplo minha experiência na reitoria. Nósproduzimos documentos estratégicos sobre o que queríamos que a universidadefosse e definimos a visão que temos dela. Para fazer aquilo que desejamos,precisamos de um projeto, discutido com as pessoas, que defina os objetivos daescola e as estratégias para atendê-los.

NE> Para que o projeto tenha êxito, então, todos precisam participar?

Isabel< Se ficarem uns poucos, não me preocupo. Mas se só dois, três ou quatroquiserem mudar, não terão sucesso. Esse é um grande problema: a dificuldade de

pôr o corpo docente para pensar em conjunto. Tudo depende da grade horária.Nos intervalos, alguns se encontram por alguns minutos, mas não é suficiente.Acabou a aula, vão embora. No Brasil, há um agravante. Os salários baixosobrigam os docentes a ter mais de um emprego. Eles não chegam a conhecerprofundamente os colegas e a criar uma identidade com a instituição em quelecionam.

NE> Mas discutir o projeto não é tarefa só dos professores...

Isabel< Sem dúvida. É também dos estudantes, da comunidade. E é precisohaver um líder. Não uma pessoa que faça tudo, mas alguém capaz de desafiar,

sem ser autocrático. A princípio, é mais fácil que seja o diretor, desde que umgrupo o apóie. São necessários outros líderes  — como os coordenadores. Aliderança tem vários níveis porque só assim é possível envolver a escola toda.

NE> Em Portugal os docentes já estão sendo formados para ser reflexivos?

Isabel< Não quero generalizar, mas em muitas universidades há essapreocupação. A idéia espalhou-se pelo país. E algumas instituições sabemmelhor como fazer isso.

NE> Os cursos de formação de seu país estão em sintonia com o que acontecena escola?

Isabel< Quando a formação começou a ser feita nas universidades, nos anos1970, já tínhamos essa preocupação. Mas a escola muda tão rapidamente quecorremos o risco de perder o pé. Eu estive um tempo afastada da escola e agora,quando voltei, já não a conhecia. Esse é um problema.

NE> Que mudanças são essas?

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Isabel< Tudo estámudando, a sociedade, osalunos. O efeito das

novas tecnologias decomunicação está sendoenorme nos estudantes. Eos problemas deindisciplina tambémtornam os contextos deaprendizagem muitodifíceis.

NE> Esse contato entre auniversidade e a escola é

sistemático?

Isabel< O que nos ajudaa manter um certocontato com a realidadeda sala de aula é asupervisão, oacompanhamento dosformandos que fazemospara ajudá-los a sedesenvolver.

NE> Como funcionaisso?

Isabel< Durante o últimoano na universidade, ofuturo colega tem oestágio pedagógico, emque vai ficar à frente deuma turma, sob aresponsabilidade de umsupervisor, um docenteuniversitário. Oestagiário, além de daraulas para sua classe,também leciona algumasvezes para a turma que osupervisor tem na mesmaescola. O supervisorobserva, critica econtribui para a

"O aluno reflexivo gerencia seu estudoporque o professor tenta formá-locomo indivíduo autônomo"

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classificação do aluno,com uma nota. O estágioé difícil, exigente. É aí 

que a gente dá um salto,se torna professor deverdade.

Escola Reflexiva e Nova Racionalidade, Isabel Alarcão (org.), 144 págs., Ed.Artmed, tel. 0800 703-3444, 23 reais Escola Reflexiva e Supervisão: UmaEscola em Desenvolvimento e Aprendizagem, Isabel Alarcão (org.), 108 págs.,Ed. Porto, tel. (0_ _11) 3104-0128 (Livraria Portugal, distribuidor no Brasil), 37reaisFormação Reflexiva de Professores: Estratégias de Supervisão, Isabel

Alarcão (org.), 192 págs., Ed. Porto, 44 reaisProfessor Reflexivo no Brasil:Gênese e Crítica de um Conceito, Selma Garrido Pimenta e Evandro Ghedin(orgs.), 224 págs., Ed. Cortez, tel. (0_ _11) 3864-0111, 26 reais