Alan Pauls - História Do Pranto

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HIST=D3RIA DO PRANTOALAN PAULSTradu=E7=E3o JOSELY VIANNA BAPTISTACOSACNAIFYDigitalizado e corrigido por J. Martins em setembro de 2011.85 p=E1ginas - rodap=E9.HIST=D3RIA DO PRANTO UM TESTEMUNHONuma idade em que as crian=E7as ficam desesperadas para falar, ele podepassar horas s=F3 ouvindo. Tem quatro anos, ou foi o que lhe disseram.Em face do espanto de seus av=F3s e de sua m=E3e, reunidos na sala de =estarda rua Ortega y Gasset, o apartamento de tr=EAs c=F4modos do qual seu =pai,que ele se lembre, sem nenhuma explica=E7=E3o, desaparece uns oito mesesantes levando consigo seu cheiro de tabaco, seu rel=F3gio de bolso e suacole=E7=E3o de camisas com o monograma da camisaria Castrill=F3n, e aoqual agora volta quase todos os s=E1bados de manh=E3, sem d=FAvida n=E3ocom a pontualidade que sua m=E3e desejaria, para apertar o bot=E3o do =interfonee pedir, n=E3o importa quem o atenda, com aquele tom crispadoque mais tarde aprende a reconhecer como o emblema do estado5em que fica sua rela=E7=E3o com as mulheres depois de ter filhos com =elas, quedes=E7a de uma vez!, ele cruza a sala com toda pressa, vestido com a =pat=E9ticaroupa de Super-Homem que acaba de ganhar de presente, e com osbra=E7os estendidos para frente, numa tosca simula=E7=E3o de v=F4o, pato =comtalas nas asas, m=FAmia ou son=E2mbulo, atravessa e estilha=E7a o vidro =da janelafrancesa que d=E1 para a sacada. Um segundo depois volta a si, comose acordasse de um desmaio. Descobre-se de p=E9 entre floreiras, apenasum pouco acalorado e tr=EAmulo. Olha suas m=E3os e v=EA, como que =desenhados,dois ou tr=EAs filetes de sangue escorrendo-lhe pelas palmas.O que o salvou n=E3o foi a complei=E7=E3o de a=E7o do super-her=F3i que =eleevoca, como poderia parecer =E0 primeira vista e como logo ir=E3o cuidarde repetir os relatos destinados a manter viva essa fa=E7anha, a mais =chamativa,sen=E3o a =FAnica, de uma inf=E2ncia que, ali=E1s, destinada desde o =in=EDcioem n=E3o chamar a aten=E7=E3o, prefere ir levando em atividades =solit=E1rias,leitura, desenho, a juven=EDssima televis=E3o da =E9poca, ind=EDcios de =que issoque em geral chamamos de mundo interior e que define, ao que parece,crian=E7as um tanto esquisitas, nele =E9 consideravelmente mais =desenvolvidodo que na maioria dos meninos de sua idade. O que o salvou foisua pr=F3pria sensibilidade, pensa, embora guarde segredo da =explica=E7=E3o,como se temesse que, ao revel=E1-la, al=E9m de contrariar a vers=E3o =oficial,o que lhe =E9 perfeitamente indiferente, pudesse neutralizar o efeitom=E1gico que pretende explicar. Ainda n=E3o consegue entender essa =sensibilidadecomo um privil=E9gio, que =E9 como a consideram seus familiares,principalmente seu pai, de longe o que mais tira proveito dela,mas apenas como um atributo cong=EAnito, t=E3o an=F4malo e a seus olhost=E3o natural, em todo caso, quanto sua capacidade de desenhar com asduas m=E3os, que, festejada ami=FAde pela fam=EDlia e pelos mais =chegados,n=E3o tem nenhum antecedente e n=E3o demora a perder. Porque do Super-Homem, her=F3i absoluto, monumento, sempre, cujas aventuras o absorvemde tal modo que, como os m=EDopes, praticamente gruda as p=E1ginas das =revistas nos olhos,6menos para ler, porque ainda n=E3o l=EA, do quepara deixar-se obnubilar por cores e formas, n=E3o s=E3o as proezas que =odeslumbram, mas os momentos de deser=E7=E3o, muito raros, =E9 verdade,e talvez por isso tanto mais intensos do que aqueles em que o =superher=F3i,no perfeito dom=EDnio de seus superpoderes, det=E9m no ar o peda=E7ode montanha que algu=E9m deixa cair sobre uma fila de montanhistasnos Andes, por exemplo, ou constr=F3i em segundos um dique para frearuma torrente devastadora, ou resgata num v=F4o rasante o ber=E7o com obeb=EA que um caminh=E3o de mudan=E7as descontrolado amea=E7a esmagar.Distingue duas esp=E9cies de fragilidade. Uma delas, que valoriza at=E9certo ponto, deriva de um dilema moral. Super-Homem deve optarentre dois males: deter o tornado que amea=E7a centrifugar uma cidadeinteira ou impedir que um cego mendicante tropece e caia na sarjeta.A despropor=E7=E3o entre os perigos, evidente para qualquer um, paraSuper-Homem =E9 irrelevante, e at=E9 mesmo, do ponto de vista moral,conden=E1vel, e =E9 justamente por isso, pela intransig=EAncia que o =leva aconferir-lhes o mesmo valor, que ele fica numa posi=E7=E3o de =fragilidadee se torna mais vulner=E1vel do que nunca a qualquer ataque inimigo. Aoutra, entretanto, =E9 uma fragilidade org=E2nica, original, a =FAnica, =ali=E1s,que o obriga, aos quatro anos, a pensar no impens=E1vel por =excel=EAncia,na possibilidade de que o homem de a=E7o morra. Para que isso aconte=E7a=E9 absolutamente imprescind=EDvel a interven=E7=E3o de uma das duaschamadas pedras do mal, a kriptonita verde, que o baqueia mas n=E3oo mata, e a vermelha, a =FAnica capaz de aniquil=E1-lo, ambas vindas deseu planeta natal como lembretes da vulnerabilidade que o mundohumano, talvez menos exigente, empenha-se em faz=EA-lo esquecer. Sealgo o arrebata =E9 esse homem de a=E7o que, t=E3o logo =E9 exposto =E0 =radia=E7=E3odos minerais mal=E9ficos, sente-se desfalecer, entrecerra as p=E1lpebras =e,obrigado a suspender no ato o que est=E1 fazendo, pousa um joelho naterra, depois o outro, os ombros vencidos por um peso insuport=E1vel,7terminando por arrastar seu corpo azul e vermelho como um moribundo.=C9 esse que, como se exportasse para o al=E9m da p=E1gina o efeitoletal da pedra, fere-o tamb=E9m no plexo, nunca t=E3o bem nomeado solar,no cora=E7=E3o de seu cora=E7=E3o, com uma for=E7a e uma profundidade =dasquais nenhuma fa=E7anha, por mais extraordin=E1ria que seja, poder=E1jamais se vangloriar.Se existe algo realmente excepcional, isso =E9 a dor. S=F3 uma coisa nomundo pode caus=E1-la, e essa coisa, muito mais do que todas as =a=E7=F5esprovidenciais pelas quais o Super-Homem =E9 reverenciado, =E9 o que elelogo passa a temer, a esperar, a prever com o cora=E7=E3o na m=E3o cada =vezque volta da banca de jornal, e enquanto caminha sem parar, correndoo risco, como j=E1 aconteceu mais de uma vez, de esbarrar no que vempela frente, abre a revista rec=E9m-comprada e mergulha na leitura. =[...]A dor =E9 o excepcional e, por isso, o que n=E3o se pode suportar. =Divideos epis=F3dios em duas categorias incompar=E1veis, aqueles em que =interv=E9me aqueles em que n=E3o interv=E9m as pedras fatais. Despreza ossegundos, confinando-os =E0 =FAltima gaveta de seu arm=E1rio, a mesma naqual v=E3o juntando p=F3 as revistas, os brinquedos e os livros que sua =maturidadevai deixando para tr=E1s, que agora detesta e que mais tarde, aosentir-se fora de sua =F3rbita de influ=EAncia, exuma com fervor e =adora,testemunhos do idiota inocente que ele j=E1 n=E3o =E9, mas com o qual =agoran=E3o pode sen=E3o se enternecer. Se lhe perguntassem o que tanto oimpressiona, o que sente exatamente quando v=EA o halo luminoso daspedras se aproximando do corpo do homem de a=E7o e tingindo-o porum segundo de vermelho ou de verde, e por que estremece desse jeitoquando, j=E1 sem for=E7as, exangue, Super-Homem permanece deitado noch=E3o, com aspecto id=EAntico ao de antes, quando vencia a gravidade esuperava a velocidade da luz e nada no mundo podia prejudic=E1-lo, mas,no entanto, fraco, completamente =E0 merc=EA de seus inimigos, ele n=E3osaberia o que dizer. N=E3o tem palavras. N=E3o =E9 de falar muito.8O que sabe =E9 que o fen=F4meno =E9 muito semelhante ao ardor quesente crescer do lado interno das pontas de seus dedos aos domingos,=E0 noitinha, quando o pai se despede dele na porta do edif=EDcio daOrtega y Gasset depois de terem passado o dia juntos em Embrujo,Sunset, New Olivos ou em qualquer uma dessas piscinas p=FAblicasque, com os primeiros sopros quentes do ano, meados de outubro, omais tardar come=E7o de novembro, ocupam suas sa=EDdas de fim de semana.Chegam por volta das onze, onze e meia da manh=E3, quando aspoucas pessoas presentes - em geral mulheres sozinhas da mesmaidade que seu pai, t=E3o bronzeadas que poderia apostar que vivemnum ver=E3o eterno, numa esp=E9cie de estado tropical paralelo do qualprovavelmente a piscina =E9 a capital, e alguns poucos homens tamb=E9msozinhos, tamb=E9m em trajes de banho, o rosto blindado por =F3culosde sol que s=F3 s=E3o tirados para exibir fugazmente as aur=E9olas =viol=E1ceasque a noite de s=E1bado fez crescer ao redor de seus olhos, e depois,para besuntar as p=E1lpebras com cremes, lo=E7=F5es, =F3leos que ele, =at=E9 odia de hoje, nunca soube ao certo se protegem das queimaduras ouse, antes, provocam-nas - ainda n=E3o ocuparam os melhores lugaresdo sol=E1rio, do gramado, do bar, das espregui=E7adeiras dobr=E1veis.Ao chegar, o mesmo orgulho de sempre: percebe que n=E3o h=E1 emtoda a piscina ningu=E9m mais jovem que seu pai. Isso nem tanto porquest=F5es de idade, nas quais, considerando-se a sua, seria o primeiro =adeclarar-se incompetente, e mais pela m=E1scara de sordidez que a faltade sono, os estragos do =E1lcool e do fumo e a dissipa=E7=E3o sexual =estamparamem todos os demais, dando-lhes aquele dissimulado ar de fam=EDlia,que s=F3 compartilham os membros de uma mesma ra=E7a viciosa. Malchegam, seu pai lhe garante um lugar na grama, estendendo a toalhafeito uma baliza, sempre seguindo a dire=E7=E3o do vento, para que n=E3o =adesfigurem dobras indesejadas, e desaparece no vesti=E1rio para se =trocar.J=E1 ele, que sempre veste o cal=E7=E3o debaixo da cal=E7a, segundo um9h=E1bito adquirido por conta pr=F3pria, muito rapidamente, e que =mant=E9ma qualquer custo, mesmo com o desconforto que faz da viagem de t=E1xido edif=EDcio da Ortega y Gasset at=E9 a piscina um verdadeiro =calv=E1rio, tiraa roupa cravando os calcanhares desafiantes na toalha, ato com o qualreafirma a posse do territ=F3rio, ao redor de onde orbitar=E1 durante =todoo resto do dia, e, como se tivesse de fazer alguma coisa para evitar sersufocado pelo orgulho que a juventude de seu pai lhe d=E1, corre ese atira de cabe=E7a na =E1gua. Nunca sabe se a =E1gua est=E1 fria ou =se, comoele, como o pr=F3prio dia, e mesmo como o ver=E3o, que na verdade s=F3 =fezse anunciar, =E9 jovem demais, apenas, mas se atira em busca do fundoa toda a velocidade, agitando os bra=E7os e as pernas para que n=E3o =congelem,toca a boca aberta do polvo pintado nos azulejos do piso e d=E1impulso para o outro extremo da piscina, onde emerge segundos depois,com os cabelos completamente lambidos, as p=E1lpebras cerradas, os =pulm=F5esprestes a estourar.Pode ser que na hora n=E3o perceba nada, mas se ao chegar =E0 bordada piscina ele observasse a ponta dos dedos com que tocou a boca dopolvo, iria reconhecer as pequenas riscas verticais que mais tarde, comos toques repetidos a que uma rotina de atividades sempre id=EAntica oexp=F5e - trampolim rugoso, mergulho, expedi=E7=E3o =E0 goela do polvo, =descansojunto =E0 borda =E1spera da piscina, busca de moedas, de chaveirose at=E9 de rel=F3gios de pulso water proof que seu pai joga =sucessivamentena piscina para trein=E1-lo na arte do mergulho etc. -, agravadas pelaa=E7=E3o prolongada da =E1gua, transformam-se em suaves manchas =avermelhadasque ele chama de rasp=F5es e mais tarde naquela vermelhid=E3ogeneralizada, sem contornos definidos, que o faz acreditar pela =en=E9simavez que est=E1 com os dedos em chamas, que em vez de dedos temf=F3sforos de carne. Em seis ou sete horas de piscina, sua pele ficou =t=E3ofina que est=E1 quase transparente, a ponto de ter dificuldade de =decidir,quando olha os dedos =E0 luz da tarde que cai, se o vermelho intenso10que v=EA =E9 a cor do sangue que ferve dentro da ponta ou o mero efeitodos raios do sol que o fazem recrudescer, atravessando sem resist=EAnciaa membrana debilitada. Esse mesmo ardor, esse mesmo afinamentoda membrana que deveria separar o interior do exterior, =E9 o que sentequando Super-Homem, nas p=E1ginas da revista rec=E9m-comprada, vaisucumbindo ao resplendor criminoso das pedras malignas. [...] O estragon=E3o =E9 instant=E2neo. Tem sua lentid=E3o. O que ele reconhece comoardor na s=E9rie da pele e da piscina n=E3o passa do modo como nele =ressoaa agonia do homem de a=E7o ao longo dos quadrinhos que a desdobram.=C9 tal a proximidade com o super-her=F3i, t=E3o brutal o desvanecimentodo limite que deveria separ=E1-los, que ele poderia jurar que a mescla =deardor, vulnerabilidade e ang=FAstia que sente alojar-se no centro de seuplexo vem diretamente do brilho da kriptonita desenhada na revista.De fato, certa vez ele chega a apagar a luz do abajur de seu quarto paraver se as pedras malignas continuam brilhando na escurid=E3o.A dor =E9 sua educa=E7=E3o e sua f=E9. A dor o torna crente. Acredita =apenas,ou sobretudo, naquilo que sofre. Acredita em Super-Homem, emquem, por outro lado, =E9 evidente que n=E3o acredita, n=E3o importa a =provacontr=E1ria que apresente seu pobre corpo de quatro anos enfronhadonuma roupa de super-her=F3i atravessando o vidro da janela francesa dasala da Ortega y Gasset. Acredita quando o v=EA se encolher pela =a=E7=E3odas pedras e estertorar, joelho na terra, fora de combate, minguado, =ele,sempre t=E3o gigantesco, =E0 merc=EA de seus arquiinimigos. J=E1 na =felicidade,bem como em qualquer um de seus sat=E9lites, n=E3o encontra nada al=E9mde artif=EDcio; n=E3o exatamente engano ou simula=E7=E3o, mas o fruto de =umartesanato, a obra mais ou menos laboriosa de uma vontade, que podeentender e apreciar e que =E0s vezes at=E9 compartilha, mas que por =algumaraz=E3o, viciada que est=E1 por sua origem, sempre parece interpor entreele e ela uma dist=E2ncia, a mesma, provavelmente, que o separa de =qualquerlivro, filme ou can=E7=E3o que representem ou girem em torno da =felicidade.11[...] A felicidade =E9 o inveross=EDmil por excel=EAncia. N=E3o que =n=E3opossa fazer nada com ela. Em certo sentido, o que ocorre =E9 o =contr=E1rio,como afinal de contas o provam ele mesmo, o of=EDcio ao qual se dedica,sua vida inteira. Mas tudo o que venha a fazer com O Feliz, e depois,tamb=E9m, com O Bom em geral, traz a sombra da desconfian=E7a - e porBom ele entende, grosso modo, o rol de sentimentos positivos que algunscostumam chamar de bondade humana, sendo o mais famoso,que ele saiba, o cineasta japon=EAs Akira Kurosawa, de quem v=EA e =admiratoda a obra, com uma =FAnica exce=E7=E3o, o filme chamado justamente =Bondadehumana.* Esse simples t=EDtulo, e pouco importa que ele saiba muitobem que n=E3o nasceu da cabe=E7a de Kurosawa, mas do distribuidor local,=E9 suficiente para o manter longe dos cinemas em que o exibem, e isson=E3o s=F3 para ir contra a opini=E3o geral, sempre sens=EDvel =E0 =alian=E7a extorsivaentre bondade e humanidade, ou contra os elogios descarados comque a cr=EDtica festeja sua estr=E9ia, mas sim contra o arrebatamento de =seupai, que, num primeiro momento, citando sem saber as palavras dosmesmos cr=EDticos que de uma sexta-feira a outra condena a arder no =infernopor sua in=E9pcia, n=E3o hesita em consider=E1-lo "a obra-prima" deKurosawa e contrap=F5e-se escandalosamente =E0 retic=EAncia de seu filhopara alguns anos depois, quando a subst=E2ncia do conflito, por=E9m =n=E3osua forma, j=E1 virou hist=F3ria, reciclar sua velha indigna=E7=E3o numa =grandecena de humor repetitivo, ali=E1s, seu g=EAnero preferido de humor. A =gag,que n=E3o tarda a tornar-se cl=E1ssica, consiste basicamente em ligar =paraele toda quinta-feira, dia de estr=E9ias nos cinemas de Buenos Aires, e =antesde dizer qualquer coisa, antes mesmo de cumpriment=E1-lo, perguntar-lhe =E0 queima-roupa: "E a=ED? Voc=EA finalmente foi ver Bondade =humana?", eassim a cada quinta-feira de cada semana, at=E9 que ele atinge amaioridade* T=EDtulo original: Akahige (1965); e, no Brasil, Barba Ruiva. [N. T.]12e na quinta-feira seguinte, depois de assessorar-se de um conhecidocom alguma experi=EAncia em quest=F5es legais, atende o telefone eadivinha a voz de seu pai sem precisar ouvi-la, e antes que ele articulemais uma vez a pergunta de praxe, se finalmente ele foi ver etc., =amea=E7amand=E1-lo para a pris=E3o por abuso psicol=F3gico reiterado. [...] Em =tudoisso h=E1 sempre a vontade, quase a obsess=E3o, que p=F5e em pr=E1tica =comuma lucidez e um encarni=E7amento assustadores, de comprovar a suspeitade que toda felicidade se erige ao redor de um n=FAcleo de dor =intoler=E1vel,de uma chaga que a felicidade talvez esque=E7a, eclipse ou embelezeat=E9 torn=E1-la irreconhec=EDvel, mas que jamais conseguir=E1 apagar- pelo menos n=E3o aos olhos dos que, como ele, n=E3o se enganam, n=E3o =sedeixam enganar, e sabem muito bem de que subsolo sangrento procedeessa beleza. E sua tarefa, a dele, que n=E3o se lembra de t=EA-la =escolhido,mas que sem demora a adota como miss=E3o, =E9 limpar as frondes que aocultam, trazer o escuro ferimento =E0 luz, impedir a todo custo que =algu=E9m,em algum lugar, caia na armadilha, para ele a pior que se possaimaginar, de acreditar que a felicidade =E9 o que se op=F5e =E0 dor, o =que sed=E1 ao luxo de ignor=E1-la, o que pode viver sem ela. De modo que seu =pai,ao falar dele para um amigo, mencionando sua famosa sensibilidadee arregalando os olhos, num transe ext=E1tico que quanto mais pareceelev=E1-lo mais esmaga quem o causa, mais o afunda no abatimento, talvezfizesse melhor se dissesse tudo e falasse do que est=E1 realmente emjogo: uma sensibilidade que s=F3 tem olhos para a dor e =E9 absoluta, =irreparavelmentecega a tudo o que n=E3o seja dor.Modest=EDssima que =E9, a superf=EDcie das pontas crestadas de seus =dedosn=E3o demora a parecer-lhe t=E3o cheia de segredos quanto o c=E9u =noturnopara um astr=F4nomo, mas o interesse e a concentra=E7=E3o que demonstraao interrogar esse diminuto mapa de pele se dissipam s=FAbita,irreversivelmente, quando algo lhe chega do mundo com um sorrisonos l=E1bios, quando o sinal de alguma forma de felicidade,13n=E3o importa se t=EAnue ou flagrante, parece apelar para sua =cumplicidade oupedir sua considera=E7=E3o. A =FAnica coisa que se lhe d=E1 fazer nesses =casos,e ele o faz sem pensar, mecanicamente, respondendo a algum tipo deprograma=E7=E3o secreta, =E9 se comportar como um consumidor treinado,sempre alerta para detectar a ast=FAcia com que pretendem engan=E1-lo:investir contra, rasgar o v=E9u sorridente com que a felicidade se lheapresenta, atravess=E1-lo e deparar com o obscuro co=E1gulo de dor queoculta e do qual, segundo ele, e talvez essa seja uma das coisas que =maiso sublevam, essa esp=E9cie de parasitismo jamais confessado n=E3o fazsen=E3o se alimentar. Isso quando lhe d=E1 na veneta fazer alguma coisa.Porque na maioria das vezes nem chega a isso. =C9 tal a inquietude, e =t=E3oesmagador o abatimento que o invade, que solta os bra=E7os, deixa-secair, desvia o rosto e olha para outro lado.[...] Tamb=E9m n=E3o acredita na felicidade, nem em qualquer emo=E7=E3oque fa=E7a com que aquele que a atravesse n=E3o precise de nada. Por =algummotivo sente-se pr=F3ximo da dor, ou desde muito cedo sentiu a =rela=E7=E3oprofunda que existe entre a proximidade, qualquer que seja ela, e a dor:tudo o que h=E1 de =E1lgido no fato de que entre duas coisas de repente =adist=E2ncia se encurte, desapare=E7a o ar, eliminem-se os intervalos. =Aliele brilha, brilha como ningu=E9m, ali ele encontra um lugar. Ao Feliz eao Bom, ele, se pudesse, oporia isto: O Pr=F3ximo. Antes mesmo de terexperimentado, aproximando dos olhos, quase at=E9 perder o foco, opapel das p=E1ginas das hist=F3rias em quadrinhos, antes de ver comoa pele da ponta de seus dedos fica polida at=E9 quase desaparecer, O =Pr=F3ximofoi para ele uma imagem em primeiro plano, nunca saber=E1 se decinema ou de televis=E3o, na qual uma boca sussurra, ou melhor, vertealgo que ele n=E3o consegue escutar, que nem sequer poderia garantirque soa, na cavidade espiralada de um ouvido, um pouco como l=EAdepois numa trag=E9dia elisabetana em que se vertem, n=E3o no est=F4magonem no sangue, mas no ouvido, os venenos verdadeiramente letais.14=C9 o que acontece, guardando-se as dist=E2ncias, com a charge de NormanRockwell que em algum momento lhe cai nas m=E3os na casa de seusav=F3s, sem d=FAvida o lugar menos natural para encontr=E1-la, emboratamb=E9m ali, guardados sob dupla chave no arm=E1rio dos jogos de mesa,tropece com os dois ma=E7os de cartas de p=F4quer com fotos de mulheresnuas dos anos cinq=FCenta, primeira fonte de inspira=E7=E3o para seus =desafogoslascivos. Na charge uma mulher conta uma fofoca no ouvido deuma amiga, a amiga o conta, por sua vez, a uma amiga, esta amiga aoutra, e esta a outra, ainda, e assim sucessivamente -=E0 raz=E3o de =meiad=FAzia de amigas fofoqueiras por fileira e de meia d=FAzia de fileiras =-, at=E9que uma =FAltima amiga conta a fofoca a um homem, o primeiro e =FAnicode toda a p=E1gina, que faz cara de espanto e num repente de f=FAria =come=E7aa ralhar com sua esposa, que n=E3o =E9 outra sen=E3o a primeira mulher, =aque acendeu o rastilho da s=E9rie. Nessa gag, que n=E3o cessa de exercersobre ele um magnetismo misterioso, encontra a encarna=E7=E3o vis=EDvel,ainda que mitigada pela comicidade e pelo esp=EDrito caricaturais dodesenho, da cena do envenenamento auricular.Mas ele =E9 o qu=EA: a boca ou o ouvido? Os l=E1bios que sussurram aspalavras de morte ou a cavidade que as recebe? J=E1 aos cinco, seis =anos,ele =E9 o confidente. Diferentemente dos m=FAsicos prod=EDgio, que t=EAm =ouvidoabsoluto, ele =E9 um ouvido absoluto. Est=E1 treinad=EDssimo. V=E1 =entendercomo s=E3o as coisas, como se monta o circuito, se =E9 ele que temo talento necess=E1rio para detectar aquele que arde por confessar-se elhe oferece, ent=E3o, sua orelha, ou se s=E3o os outros, os =desesperados,aqueles que se n=E3o falarem se queimam ou explodem, os que reconhecemnele o ouvido que lhes falta e se atiram sobre ele como n=E1ufragos.=C9 evidente, em todo caso, que se h=E1 algo que seu pai admira nele ecomenta com seus amigos, nessas rodas de pais que a gera=E7=E3o do seu,pouco dada, por natureza, a intercalar numa agenda saturada demulheres, ex-mulheres, dinheiro, esportes, pol=EDtica, entretenimento,15o tema dos filhos - seq=FCelas vivas, por contrapartida, de umaconcess=E3o feita =E0s mulheres da qual, depois, uma vida inteira n=E3o =lhesbasta para se arrependerem -, s=F3 se d=E1 ao trabalho de mencion=E1-losquando apresentam alguma singularidade positiva que justifica isso,mas que comenta tamb=E9m com ele, num transe de intimidade e franquezaque beira a obscenidade - se h=E1 algo que o alegra =E9 precisamenteessa voca=E7=E3o de escutar, da qual seu pai, cada vez que a exalta, =destacasempre a mesma coisa, o dom da ubiq=FCidade, que parece deix=E1-la todoo tempo =E0 disposi=E7=E3o de todos, a paci=EAncia aparentemente =ilimitada, aaten=E7=E3o, que n=E3o deixa escapar nenhum detalhe, e a capacidade de =compreens=E3o,que seu pai define como uma anomalia total, j=E1 ins=F3lita nummenino de cinco ou seis anos, mas inconceb=EDvel em 95% das pessoasadultas que lhe coube conhecer.Em sua presen=E7a, quase como resultado de um efeito qu=EDmico,como a imagem que s=F3 se torna vis=EDvel no papel ao ser exposta =E0 =a=E7=E3odo =E1cido indicado, os adultos se p=F5em a falar. N=E3o tem a =impress=E3ode fazer nada em particular: n=E3o que pergunte, ou interrogue como olhar, ou se interesse, eventualmente alarmado com o gesto dedesgosto, a express=E3o sombria ou o brotar das l=E1grimas com que ooutro delata o calv=E1rio que est=E1 atravessando. Acontece assim. =Est=E1sentado no ch=E3o desenhando, brincando com suas coisas, um carroem miniatura, um desses corgy toys que adora e que, principalmentequando t=EAm portas articuladas que ele pode abrir para substituir ar=FAstica ef=EDgie do motorista por outra, n=E3o trocaria por nada nessemundo, e de repente algu=E9m se aproxima dele, um adulto, cuja sombraimensa v=EA, primeiro, pairar sobre a estrada serpeante que imaginouno tapete, e que termina anuviando o c=E9u com uma promessa de tormenta.H=E1 um pr=F3logo inc=F4modo, hesitante. O adulto sente necessidadede ficar na mesma altura que ele, ajoelha-se, acomoda-se aseu lado e at=E9 lhe rouba - com uma impertin=EAncia que sem d=FAvida16se animaria a defender, atribuindo-a =E0 impulsividade que estimula odesconsolo, mas que ele simplesmente n=E3o pode tolerar - um carrinho,em geral seu preferido, que, talvez para congra=E7ar-se com ele,talvez para dar algum sentido a uma usurpa=E7=E3o que n=E3o pode sermais afrontosa, de repente faz derrapar com uma deplor=E1vel faltade convic=E7=E3o na zona do tapete mais pr=F3xima de suas pernas, onde=E9 evidente para qualquer um, menos para um adulto, absorto queest=E1 em seu drama interior, que a estrada imagin=E1ria n=E3o passa nemjamais passar=E1.Assim, como se fizessem um revezamento para n=E3o sobrecarreg=E1-lo, desfilaram sua m=E3e, sua av=F3, seu av=F4, at=E9 mesmo a empregadaque trabalha como diarista na casa. Sua m=E3e confessou-lhe que aos25 anos, condenada pelo canalha de seu pai, que tratou de se mudar,a viver entre as quatro paredes desse apartamento de classe m=E9dia,outra vez =E0 merc=EA de sua m=E3e e de seu pai, para quem a tristeza de =versozinha e com uma crian=E7a nas costas sua =FAnica filha n=E3o =E9 nada, =absolutamentenada, comparada =E0 euforia triunfal que lhes causam n=E3os=F3 o fato de t=EA-la outra vez com eles, sob sua influ=EAncia, mas =principalmentea evid=EAncia de como tinham raz=E3o - toda a raz=E3o do mundoquando, quatro anos antes, =E0s v=E9speras de um casamento acertado=E0s pressas, profetizaram que, por mais intenso que fosse, "o fogon=E3o duraria", e em dois ou tr=EAs anos, no m=E1ximo quatro, ela =voltariapara eles com uma m=E3o na frente e outra atr=E1s e sem direito a nada,sente-se velha, usada, vazia, numa palavra: morta, uma morta emvida, que =E9 a express=E3o com que ele de fato a descreve para si mesmoalguns anos mais tarde, toda vez que passa diante de seu quarto nomeio da manh=E3 e a v=EA deitada entre travesseiros, de penhoar, =completamenteim=F3vel, com o rosto lambuzado de creme, os olhos cobertospor dois algod=F5es =FAmidos e dois ou tr=EAs frascos de comprimidosna mesa-de-cabeceira, entregue a toda esp=E9cie de tratamentos que17lhe prodigaliza um pequeno ex=E9rcito de mulheres sol=EDcitas =E0s quaisela denomina cosmet=F3loga, massagista, manicure, fisioterapeuta,acupunturista, pouco importa, mas que ele j=E1 sabe n=E3o passarem dereanimadoras profissionais, gente especializada, como os bombeirosou os salva-vidas, em devolver a vida, ali=E1s bastante prec=E1ria, apessoas que j=E1 est=E3o com um p=E9 na cova.Sua av=F3, que em p=FAblico, ou seja, basicamente na presen=E7a domarido, n=E3o abre a boca a n=E3o ser para dizer sim e est=E1 bem-e issos=F3 quando seu marido lhe dirige a palavra -, para rir de uma ou outrapiada picante dos programas c=F4micos que v=EA na televis=E3o ou paraengolir bocados de comida que antes corta no prato em peda=E7oscada vez mais pequeninos, confessa-lhe uma tarde que seu maridoacaba de descobrir, dissimulado numa meia, um dinheiro que elaesteve economizando dia ap=F3s dia durante quatro anos em quantidades=EDnfimas, desviando-as, de modo que ele n=E3o notasse, da =modest=EDssimacaixinha que ele se digna a lhe dar para os gastos cotidianosda casa, para comprar o aparelho depilador que acabaria com apenugem que a envergonha desde quando, trinta anos?, e que ele,naturalmente, n=E3o quer nem quis jamais que ela desterre de seurosto, pois sabe que embora tamb=E9m n=E3o lhe agrade, que a envelheceprematuramente e a torne masculina, cumpre a fun=E7=E3o, dequalquer maneira vital, talvez a mais vital de todas: impedir que elapossa parecer desej=E1vel para qualquer outro que n=E3o ele, que poroutro lado n=E3o a deseja h=E1 tempos, e que depois de descobrir isso ede obrig=E1-laa comparecer diante dele bem ali, como se diz, no localdo crime, contou uma por uma as moedas e notas e depois de calculara quantidade exata que, segundo ele, ela lhe roubou, depois delhe arrancar, inclusive sob amea=E7a de viol=EAncia f=EDsica, o destino =quepensava dar ao dinheiro, obrigou-a a jogar tudo, at=E9 o =FAltimo =centavo,nas goelas enegrecidas do incinerador.18Seu av=F4, que j=E1 naquela =E9poca, ele com quatro, cinco anos, =costumavacumpriment=E1-lo =E0 sua maneira imortal, agarrando-lhe umagrande mecha de cabelo do cocuruto e puxando-a com for=E7a enquantolhe pergunta no ouvido: "Quando voc=EA vai cortar este cabelo de =menininha,quer me dizer, seu mariquinhas?", surpreende-o certo diadesenhando suas precoces hist=F3rias em quadrinhos numas folhasde papel canson grandes como len=E7=F3is, e sentando-se diante dele, naborda da mesinha da sala, depois de entrela=E7ar os dedos das m=E3os,nos quais deixa cravado o olhar ao longo dos vinte minutos seguintes,conta-lhe =E0 queima-roupa que se fosse por ele venderia tudo, a =f=E1bricaque ele levantou do zero, sozinho, a despeito da incredulidade e at=E9do sarcasmo de seu pr=F3prio pai, imigrante ferrovi=E1rio, e que agora,al=E9m de dar de comer a meia centena de empregados, permite-lhegozar uma vida de luxos que o sarc=E1stico do seu pai s=F3 acreditaria =serposs=EDvel para gente nascida em ber=E7o de ouro e respaldada por =s=E9culose s=E9culos de riqueza, tudo, o apartamento mais que espa=E7oso em quevive com sua esposa e o que empresta - contra a vontade, porque elegostaria de v=EA-la aprender a li=E7=E3o, ou seja, v=EA-la come=E7ar =tudo de novo,mas realmente sozinha - para sua filha desencaminhada, o apartamentono centro de Mar del Plata, os terrenos nas serras de Alta Graciae Ascochinga, a casinha de Fort=EDn Tiburcio, os tr=EAs carros, venderiatudo o que tem e sumiria do mapa de um dia para o outro, sem deixarrastros, e se dedicaria a viver, finalmente, a vida, sua pr=F3pria vida, =n=E3oa dos outros, e nos outros tamb=E9m o inclui, naturalmente, com essecabelinho de menininha, mesmo sendo evidente que essa vida que elechama de sua, seu av=F4 n=E3o faz a menor id=E9ia de como seria nem decomo gostaria de viv=EA-la, mas que sabe que =E9 um covarde, que jamaisfar=E1 isso, que n=E3o ter=E1 peito para tanto, e que por isso, porque o =resplendordessa outra vida, embora imposs=EDvel, nunca se apagar=E1 totalmentee continuar=E1 a lembr=E1-lo de tudo o que deseja e n=E3o faz,19est=E1 condenado a uma irremedi=E1vel amargura, condenado a envenenar-see a envenenara vida dos que o cercam, ele inclu=EDdo, naturalmente, ele =eseus cabelos loiros de mariquinhas e sua roupa de Super-Homem e seusdesenhinhos e esses crayons infames que a tr=EAs por dois deixa =esquecidosno ch=E3o e que depois algu=E9m esmaga sem perceber e que acabamfeito p=F3 no tapete, manchando-o para sempre.Certa noite, no banho, enquanto ele contempla como o saboneteque salvou do naufr=E1gio na =E1gua da banheira desfruta de sua =inesperadasobrevida a bordo da esponja que faz de balsa, a empregada entra,apaga a luz por engano e o faz estremecer de medo. N=E3o chega a chorar,mas a empregada, quem sabe se para consol=E1-lo de antem=E3o dasl=E1grimas que n=E3o derramou ou para conseguir que as derrame de umavez, senta-se na borda da banheira com as pernas de lado, como ele viuas mulheres fazendo quando montam a cavalo, e lhe conta sobre seunoivo Rub=E9n, cabo de pol=EDcia em San Miguel de Tucum=E1n, de quemespera um menino e com quem se imaginava casada em menos de tr=EAsmeses at=E9 que recebeu a carta de uma mulher chamada Blanca, da qualela nunca ouvira falar em sua vida, que lhe anuncia ser a mulher deRub=E9n, sua leg=EDtima esposa h=E1 cinco anos, com o qual tem j=E1 os =doisfilhos que aparecem nas fotos anexas, e lhe pede com bons modos quedeixe de uma vez de escrever para o destacamento e que trate de refazersua vida com algum outro homem que n=E3o tenha o cora=E7=E3o tomado.E assim por diante.Com seu pai, em compensa=E7=E3o, escuta menos do que fala - e doque chora. Seu pai =E9 o superior diante do qual comparece regularmente,para informar, sem d=FAvida, embora nunca lhe seja f=E1cil decidirat=E9 que ponto as hist=F3rias que lhe conta importam, mas =principalmentepara garantir-lhe que tem, que continua tendo nele um todo-ouvidos, algu=E9m capaz de fazer qualquer um falar em decorr=EAncia desua mera presen=E7a f=EDsica. A bem da verdade, pelo ar distra=EDdo e ==E0s vezes20at=E9 de t=E9dio com que as segue, n=E3o s=E3o hist=F3rias o que seu pai =pareceesperar dele nessas sess=F5es em que ele sente que est=E1 representando,nem sequer as hist=F3rias que sua m=E3e conta, que invariavelmente =afetamseu pai, e n=E3o s=F3 como pai, mas tamb=E9m como marido, comoamante e como profissional, hist=F3rias que em vez de indignar seu pai,como ele esperaria que acontecesse, enternecem-no, dulcificam-noquase at=E9 a n=E1usea, a tal ponto que, longe de desmenti-las, seu pai,que nunca termina de escut=E1-las sem lhe pedir que em vez de julgarsua m=E3e tente compreend=EA-la, tenha paci=EAncia com ela, parece, aocontr=E1rio, confirm=E1-las - n=E3o s=E3o hist=F3rias, mas l=E1grimas. =Se a hist=F3riaque seu filho lhe oferece =E9 ind=EDcio de sua sensibilidade, do graude proximidade que =E9 capaz de estabelecer com qualquer adulto, opranto =E9 a prova, a obra-prima, o monumento, que ele alenta e celebrae protege como se fosse uma chama =FAnica, inestim=E1vel, que, casose apague, jamais voltar=E1 a se acender.Dif=EDcil, como sempre, saber o que =E9 causa e o que =E9 efeito, mas =ele,essa capacidade extraordin=E1ria que ele tem de chorar em face do menorest=EDmulo, seja a dor f=EDsica, a frustra=E7=E3o, a tristeza, a =desgra=E7a alheia, emesmo o espet=E1culo fortuito que lhe oferecem na rua mendigos ou =pessoasmutiladas, tem a impress=E3o de que s=F3 a p=F5e em pr=E1tica, e mesmode que a possui, assim, pura e simplesmente, quando seu pai est=E1 =pr=F3ximo.Longe, em outros contextos, a vida com sua m=E3e, por exemplo,ou com seus av=F3s, ou, sem ir muito al=E9m, a vida escolar, t=E3o =pr=F3digaem crueldade, humilha=E7=E3o e viol=EAncia que at=E9 os meninos mais =duros,ou mais sens=EDveis ao descr=E9dito social, jamais atravessam sem choro, ==E9preciso infligir um dano desumano para arrancar-lhe uma l=E1grima,e, nas rar=EDssimas ocasi=F5es em que se consegue arranc=E1-la, nem =mesmo=E9 leg=EDtimo dizer que chora, pois o que brota dos canais lacrimais, =al=E9mde escasso, =E9 neutralizado pelo estado de impassibilidade em que semant=E9m o resto de seu corpo. =C9 quase patol=F3gico, tanto quanto =ser=E1,21mais tarde, sua retic=EAncia em suar. Sua m=E3e pensou mesmo em =lev=E1-lopara uma consulta, mas ao se imaginar diante do m=E9dico se arrependeu.O que dir=E1? "Meu filho n=E3o chora."? A quem dir=E1 uma frase comoessa? Ainda n=E3o h=E1 psic=F3logos, n=E3o, ao menos, orbitando como =corvosao redor de uma fam=EDlia de classe m=E9dia como haver=E1 mais tarde,e a psicopedagogia =E9 uma disciplina que ainda est=E1 engatinhando eque aquece suas turbinas nos gabinetes das institui=E7=F5es escolares. =Aom=E9dico da fam=EDlia? Talvez. Mas antes sua m=E3e teria de encontrar umm=E9dico verdadeiro, algu=E9m que, diferentemente daquele que herdoude seu pai, um carniceiro veterano que s=F3 em sentido muito figuradopode-se dizer que os atende, para o qual nada que esteja abaixo de umapneumonia aguda ou de uma peritonite merece ser chamado de doen=E7anem justifica o tempo de uma consulta, possa ouvir um coment=E1riodesses sem explodir em gargalhadas, olh=E1-la como se estivesse loucaou inclu=ED-la na lista de pacientes que n=E3o voltar=E1 a receber. Tudo =oque n=E3o chora de um lado chora de outro. Simples assim. Pode estarcorrendo no p=E1tio do col=E9gio com seus sapatos de couro, =ortop=E9dicos,porque tem p=E9 chato ou "o arco ca=EDdo", como lhe diz depois o mesmoortopedista progressista que aos doze lhe serra os joanetes de ambosos p=E9s, e escorregar e esfolar os joelhos nos ladrilhos e se levantar =noato e continuar correndo sem ao menos olhar para os machucados.Mas, se ele sabe que seu pai est=E1 por perto e v=EA de repente um =cachorrovagabundo que se arrasta mancando entre caixotes de fruta pelo clube,=E9 capaz de chorar vinte minutos sem parar. Desde quando tem essacapacidade, isso n=E3o poderia dizer. Mas para ele =E9 dif=EDcil se =imaginarcom seu pai sem se ver tocado de algum modo pelo pranto, seja chorando,seja assoando o nariz depois de chorar, seja sendo assaltadopelo tremor e pela congest=E3o massiva que pressagiam o pranto. Elenem se reconhece ao ver fotos antigas onde aparece com o pai e sedescobre com o rosto seco. "N=E3o sou eu", pensa.22[...] Considera as l=E1grimas uma esp=E9cie de moeda, um instrumentode troca com o qual ele compra ou paga coisas. Ou talvez seja a formaque O Pr=F3ximo assume nele quando est=E1 com seu pai. H=E1 em choraralgo que o faz recordar as pontas de seus dedos polidas pelo atrito como fundo da piscina. Se os dedos pudessem sangrar, se sangrassem semferimento, s=F3 em virtude do extremo afinamento da pele, ent=E3o seriaperfeito. Afinal, ao chorar compra imediatamente a admira=E7=E3o de seupai. Pode sentir a que ponto sua condi=E7=E3o de l=E1grima f=E1cil o =transforma,de algum modo, num trof=E9u, em algo que seu pai pode passear pelomundo com um orgulho =FAnico, que n=E3o ter=E1 de compartilhar com =nenhumoutro pai, ao contr=E1rio das habilidades esportivas, da lasc=EDviaprecoce, e mesmo da intelig=EAncia, virtudes infantis proveitosas, =por=E9mpor demais comuns. Ele logo se conscientiza de que =E9 uma esp=E9cie demenino prod=EDgio, parente menor dos meninos enxadristas =freq=FCentemente mencionados na revista Sele=E7=F5es do Reader's Digest, que sempre l=EAna casa de seus av=F3s, e tamb=E9m do monstro de franja e cal=E7as =curtas queresponde ciciando sobre Homero no programa de televis=E3o de perguntase respostas que mant=E9m o pa=EDs inteiro ligado. Sua principal =caracter=EDstica=E9 a sensibilidade. Escutar, chorar, =E0s vezes, e, muito de vez emquando, tamb=E9m falar. Falar, quando acontece, =E9 o est=E1gio =superior.Em certas ocasi=F5es fala do que o fez chorar, o vendedor ambulante semperna, a mulher hemipl=E9gica que fuma s=F3 com um dos lados do rosto,o colega de carteira que numa tarde de inverno perde o =F4nibus escolare precisa voltar a p=E9 ao tenebroso sub=FArbio onde vive. Mas o =m=E1ximo, oc=FAmulo, a sess=E3o de gala da cena =EDntima com seu pai =E9 quando =fala desi, quando "se expressa", quando diz "o que se passa com ele". A=ED,nada de menino prod=EDgio. A=ED, =E9 campe=E3o ol=EDmpico, semideus e o =escambau.Precisa ver como ele fala bem. De onde tira esse talento, seu pain=E3o sabe. De fato, n=E3o deixou de lhe perguntar isso desde o primeirodia, desde que o surpreende pela primeira vez chorando no vesti=E1rio23do clube e pergunta o que ele tem, de passagem, como se o caderno deencargos de pai que algum cr=E1pula o fez assinar num momento deinconsci=EAncia, na penumbra insalubre de um dos botequins da Recovade Palermo, que sem d=FAvida freq=FCenta todas as noites de s=E1bado emque ele, prostrado por uma angina, deve passar o fim de semana noapartamento da Ortega y Gasset com sua m=E3e, acrescentando ao ardordas placas de pus, das am=EDdalas inflamadas e da febre o mal-estar quelhe provoca uma intimidade tensa, grosseira, na verdade menos umaintimidade e mais a coexist=EAncia for=E7ada, sob o mesmo teto, de duaspessoas que n=E3o fazem sen=E3o se ignorar, uma porque, embora aindaame a outra e esteja disposta a tudo por ela, de fato n=E3o tem a menorid=E9ia do que fazer com ela, a outra porque n=E3o passa um minuto semque sinta vontade de estar em outro lugar, com outra pessoa - como seo fat=EDdico caderno de encargos inclu=EDsse n=E3o apenas o dever de =associaro esgar do choro =E0 raz=E3o invis=EDvel que porventura o esteja =causando,mas tamb=E9m o de perguntar aos filhos o que est=E1 acontecendo comeles quando o esgar come=E7a a deformar-lhes a face. E quando menosse espera, quando seu pai s=F3 quer que se vire para ocultar as =l=E1grimas eque mude de assunto ou que v=E1 embora a toque de caixa, fingindo =responderao chamado de um amigo que se dirige, raquete na m=E3o, paraas quadras de t=EAnis, ele lhe joga na cara essa raz=E3o invis=EDvel, =que n=E3o =E9uma, s=E3o duas, tr=EAs, um longo rastilho de raz=F5es entesouradas =n=E3o sesabe h=E1 quanto tempo, n=E3o no idioma balbuciante que se esperaria deuma crian=E7a, mas num mon=F3logo org=E2nico, articulado, t=E3o =consistenteque seu pai, por um momento, poderia jurar que ele est=E1 a falarenquanto dorme, e de olhos abertos, como soube por sua ex-mulherque ele =E0s vezes faz de noite durante a semana. [...] Decerto ele =n=E3opuxou esse talento de seu pai, formado numa escola para a qual a =introspec=E7=E3o,bem como as palavras que a traduzem, s=E3o uma perda detempo, sen=E3o uma fraqueza. Talvez seja o contr=E1rio: =E9 ele, o =filho,24com seus quantos anos?, ele tem seis ou sete quando o pai surpreende emseus olhos o lampejo de ansiedade com que mira o amigo que se dirigepara as quadras de t=EAnis, =FAnico salvador poss=EDvel, e o arroubo de =decis=E3oque o leva a ficar, a rejeitar qualquer possibilidade de fugir, a ficarpara chorar e falar?, =E9 ele quem, de algum modo, forma, reforma o paie o alista na escola da sensibilidade, em tal medida que, como Obelix,eternamente enfeiti=E7ado com a po=E7=E3o m=E1gica, n=E3o precisar=E1 =banhar-senela novamente para dispor de seus poderes. Claro que, se h=E1 algo =insond=E1vel,acaso n=E3o seria isso?: de onde se arrancam as coisas, de ondeque n=E3o seja desse interior impreciso, brando, sempre saturado deemo=E7=E3o, mas t=E3o convincente e extorsivo, por outro lado, quanto =suacontrapartida exterior, o fora igualmente imundo para o qual as coisassempre devem ser arrancadas?N=E3o consegue evitar a lembran=E7a da cena em que, com seu primeirochoro seguido de confiss=E3o, comove seu pai at=E9 as l=E1grimas e oalista para sempre nas fileiras da sensibilidade quando, levado =precisamentepor seu pai, vai certa noite a um desses bares com m=FAsica que acidade come=E7a a chamar, n=E3o sem ostenta=E7=E3o, de "pubs", e assiste =aoshow "m=EDtico", segundo as cr=F4nicas que o evocam alguns anos depois,no qual um compositor e cantor de protesto se reencontra com seusf=E3s depois de seis anos de ex=EDlio. N=E3o h=E1 muita gente, talvez =porque o"pub", categoria relativamente nova numa esfera p=FAblica ainda dominadapelo "bar" e pelo "caf=E9" e muito mais nova, para n=E3o dizer =desconcertante,para o repert=F3rio cl=E1ssico de espa=E7os de difus=E3o musical,ainda n=E3o convoca as pequenas multid=F5es a que est=E3o acostumados osteatros, talvez porque o cantor, que, rec=E9m-chegado ao pa=EDs, ainda =n=E3otem uma id=E9ia cabal da irrita=E7=E3o que seu regresso pode despertar =noscriminosos que governam, descendentes melanc=F3licos, mas diretos,dos que o obrigaram a partir, n=E3o tenha querido correr riscos e =convenceuos donos do "pub", tamb=E9m organizadores do show, a evitar as25promo=E7=F5es chamativas que sem d=FAvida merece. J=E1 de cara ele tem aimpress=E3o, n=E3o sabe se agrad=E1vel ou desagrad=E1vel, de estar =participandon=E3o de um ato ilegal, porque bem ou mal ele leu algo sobre oshow em algum jornal, e, se estivesse apoiando alguma atividade =contr=E1ria=E0 lei, o "pub" n=E3o teria as portas abertas de par em par nem esseslampi=F5es de um amarelo p=E1lido acesos na entrada, =E0 vista de todomundo, inclu=EDdas as patrulhas que de quando em quando desfilam apassos lentos por uma das avenidas mais not=F3rias do bairro de =Belgrano,mas de um acontecimento h=EDbrido, muito mais perturbador, em que o"clandestino", talvez para n=E3o assustar e n=E3o perder totalmente seuprest=EDgio, tenha aceitado confundir-se com o "exclusivo". Assim, =rec=E9m-chegado, t=E3o logo seu pai se esgueira at=E9 os fundos do bar para =cumprimentarum de seus conhecidos do mundo da noite, aquele que numdomingo, por exemplo, acetinado de bronzeador sob o sol fatal dover=E3o, qui=E7=E1 no trampolim de New Olivos e crava na =E1gua uma =bombaperfeita, ou aquele que, sentado =E0 mesa do botequim que, ao pre=E7o deocup=E1-la durante anos, tem todo o direito de chamar de sua, leva o =ma=E7ode cigarros enfiado na manga da camisa arrega=E7ada na altura do =antebra=E7oe oferece a seu pai garotas, alguma droga, uma por=E7=E3o generosade "vidrios", como a =E9poca denomina os u=EDsques, ele perambula entreas mesas indeciso e se pergunta o que fazer, com quem falar, ondesentar, e tampouco sabe como encarar o fato de que haja t=E3o poucop=FAblico, se como um motivo de gozo ou desgosto, de j=FAbilo ou =desalento.N=E3o passa de um show, mas para ele, formado, como tantos, nadial=E9tica da massa e da c=E9lula, da pra=E7a e do por=E3o, o punhado =dehomens e mulheres a que se reduz a audi=EAncia com a qual se reencontranessa noite o cantor de protesto, o mesmo que apenas sete ou oitoanos atr=E1s lota est=E1dios e cede, satisfeito, suas melodias aos =redatoresde palavras de ordem militantes, n=E3o pode n=E3o ser um sinal, e um =sinaln=E3o dos melhores, sobretudo quando a penumbra calculada do "pub",26o falso antigo de seus revestimentos de madeira, o ar radiante dessasmulheres vestidas de branco e esses homens bronzeados que seguramcopos longos na m=E3o reproduzem ao p=E9 da letra o clima, a cenografiae os protagonistas dos an=FAncios gr=E1ficos de marcas de cigarros ou deu=EDsque que ocupam as contracapas das revistas de atualidades que h=E1seis anos denunciavam o cantor de protesto como uma amea=E7a e exigiama proibi=E7=E3o de suas can=E7=F5es.[...] =C9 sexta-feira. Rompendo inesperadamente um sil=EAncio demeses, seu pai ligou para ele no =FAltimo instante, quase na hora do =show.Ele hesitou. N=E3o tem nada para fazer, pensou at=E9 em ficar em casa, =masbasta escutar o entusiasmo tingido de culpa com que lhe prop=F5em oprograma para que de repente mil outras possibilidades o deslumbremno horizonte da noite. Mente: "=C9 um pouco tarde. Eu estava saindo".De fato, =E9 tarde. Mas se o pai o chamou t=E3o em cima da hora =E9 =porqueacabou de saber do show, e n=E3o pelo jornal, como seria de se esperar,nem por terceiros, mas pela boca do pr=F3prio cantor de protesto, que,confia-lhe seu pai, "um pouco intimidado pelo evento" - acaba de chegarda Espanha com um passaporte provis=F3rio, seu advogado recomendou-lhe que ainda n=E3o desfa=E7a as malas, =E9 a primeira vez em sete anosque toca numa cidade da qual praticamente n=E3o reconhece nada -,decidiu que esta noite, a noite de sua estr=E9ia, seja uma "noite ==EDntima" es=F3 haja "rostos amigos" nas primeiras filas.Novamente, como em todas as vezes que seu pai exibe a rela=E7=E3oque o liga =E0 pessoa famosa, ele tem dificuldade em acreditar, entre-cerra os olhos em sinal de desconfian=E7a. Como se por fim se rendesse=E0s evid=EAncias de uma vida secreta, que sempre estiveram =E0 mostra, =masque ele nunca aceitou reconhecer, de repente v=EA seu pai como um dessesfan=E1ticos de cabelo tingido e olhos ansiosos que colecionam fotosautografadas, montam guarda na porta dos canais de televis=E3o paraflagrar suas estrelas favoritas e depois transformam o cumprimento,27as palavras de cortesia ou o sorriso fugaz, ligeiramente assustado, queseus =EDdolos lhes dedicam, menos para reconhec=EA-los do que para =livrar-sedeles sem despertar sua ira, em provas de uma cumplicidade ou de umafeto que n=E3o existe nem jamais existir=E1. Desconfia at=E9 mesmo nos =casosem que a rela=E7=E3o tem antecedentes que a confirmam, como ocorre como cantor de protesto, de quem recorda ter ouvido seu pai falar muitasvezes quando o cantor est=E1 no auge da fama, primeiro no momento emque desponta, impondo de um dia para o outro seu leve sotaque italiano,sua espontaneidade, a humanidade melosa de can=E7=F5es que louvam,num suave dialeto de rua de classe m=E9dia, a simplicidade e a purezade valores que, =E0 for=E7a de ficarem =E0 vista, tornaram-se =invis=EDveis,e se gabam secretamente de tudo o que nos impede de reconhec=EA-los, emesmo de tudo o que os condena a desaparecer, porque =E9 justamentea sorte tr=E1gica que esses valores perdidos assumem o que confere =E0scan=E7=F5es o eco melanc=F3lico que lhes permitir=E1 comover, extorquir, =continuarcolhendo adeptos; segundo, quando mais tarde, em harmoniacom a =E9poca, o cantor decide revestir a humanidade de suas can=E7=F5es =coma camada da agressividade, da crispa=E7=E3o e da den=FAncia que se exigepara passar sem problemas da ind=FAstria do sens=EDvel ao mercado do =pol=EDtico,e instiga a que se deite abaixo o arame que cerca as terras ou a quese exproprie os meios de produ=E7=E3o com o mesmo tom pr=F3ximo, =c=FAmplice,confidencial, com que at=E9 ent=E3o celebra o milagre cotidiano de umaguaceiro, convida para ir ao bar a garota que v=EA todos os dias no =pontodo =F4nibus ou contempla seu pai envelhecer num devaneio piedoso.Nessa mesma noite, para n=E3o ir muito longe, enquanto se dirigem ao"pub", ele, em parte para p=F4-lo =E0 prova, em parte porque fica =indignadoquando depara com um aspecto de seu pai que sempre se empenha emtentar esquecer, pergunta-lhe como =E9 que o cantor em pessoa o convidoupara o show, por qu=EA, na qualidade de qu=EA. E s=F3 lhe perguntaisso porque =E9 mais forte que ele, porque na verdade n=E3o consegue =evitar.28Se pudesse, como o evitaria! Porque assim que faz a perguntareconhece no rosto de seu pai o ar de satisfa=E7=E3o e, ao mesmo tempo,de mist=E9rio, que ele daria tudo, tudo o que tem, para n=E3o ter de =encarar.Mais uma vez, ele mordeu a isca. E enquanto se debate com o anzolincrustado no c=E9u da boca, amaldi=E7oando-se diversas vezes por terca=EDdo na armadilha, e n=E3o por imprevid=EAncia, porque sempre a =detectaa l=E9guas, mas por fraqueza, por curiosidade, at=E9 mesmo por inveja, =seupai solta um longo suspiro e ele entende exatamente o que =E9 precisoentender: que se trata de uma "longa hist=F3ria", "complicada", ="imposs=EDvelde resumir", por=E9m uma hist=F3ria que nos minutos seguintes seupai, com uma arte que ele nunca deixar=E1 de admirar, a tal ponto ela =lheparece espec=EDfica, d=E1 um jeito de fazer aflorar, em meio a um relato =quemultiplica os rodeios, as marchas e contramarchas, as retic=EAncias, umas=E9rie de termos inquietantes, "aparelho", "linha clandestina de =telefone","passaporte falso", "Ezeiza", que ficam flutuando nele comob=F3ias fosforescentes, vest=EDgios de um incalcul=E1vel mundo submersoque j=E1 n=E3o consegue tirar da cabe=E7a. Se ao menos ele falasse com =clareza.[...] =C9 justamente o car=E1ter vago de seu relato, a imprecis=E3o emque deixa se dilu=EDrem as datas e os fatos, as zonas confusas que n=E3o =s=F3n=E3o parece evitar como at=E9 fomenta, =E9 tudo isso, que ele nunca =sabe sedeve atribuir a uma mem=F3ria despreocupada, que desdenha os pormenores,ou simplesmente ao c=E1lculo, o que lhe d=E1 o que pensar. Ser=E1 queele fala assim, migalha a migalha, com a dupla inten=E7=E3o de =satisfazersua curiosidade e ao mesmo tempo de n=E3o compromet=EA-lo? Talvez afrivolidade disso que v=EA como uma rela=E7=E3o de rever=EAncia servil, =e quemerece dele uma condena=E7=E3o inapel=E1vel, sem nuances, n=E3o importa =seo personagem not=F3rio em quest=E3o =E9 admir=E1vel ou indigno, uma =emin=EAnciaou o =FAltimo zero =E0 esquerda, um g=EAnio ou um idiota, porqueentende que situa seu pai num posto particularmente baixo da escalahumana, n=E3o passe de uma cortina de fuma=E7a, de uma tela destinada29a disfar=E7ar um la=E7o mais estreito, e tamb=E9m mais perigoso, que =instantaneamenteporia em risco quem a ele tivesse acesso.Mas nessa noite v=EA o cantor de protesto aparecer no palco do "pub",v=EA seu vulto vindo dos fundos avan=E7ar, alto e desalinhado, salpicado =deaplausos e gritos mordidos, tanto que de repente fica dif=EDcil definir =se oest=E3o animando ou amea=E7ando, e acomodar-se com seu viol=E3ozinho nabanqueta alta que instalaram no prosc=EAnio, v=EA como um facho luminosodisparado do teto o envolve de brilho e recorta sua cabe=E7a cacheadae o contorno de seus =F3culos de m=EDope, os dois achados mais =persistentesde sua iconografia pessoal - al=E9m, =E9 claro, de seu eterno sorriso,t=E3o insepar=E1vel de seu rosto que mais de uma vez o atribu=EDram a =umaforma benigna de atrofia muscular -, intactos, todos, apesar dos seteanos de ex=EDlio, e de algum modo ressaltados pelo macac=E3o branco queveste, um desses "carpinteiros" abotoados na altura do peito e que n=E3os=E3o usados pelos carpinteiros, pois um assim nunca se viu mais gordo,e sim por mulheres gr=E1vidas, professoras de jardim-de-inf=E2ncia e =atoresque, fartos de tentar a sorte em audi=E7=F5es multitudin=E1rias e de =seremrecusados, acabam por se asilar no mundo do teatro infantil ou no dascom=E9dias musicais, a =FAnica inova=E7=E3o, ali=E1s, que parece ter =trazido domoinho sem luz ou =E1gua pot=E1vel em que dizem ter morado nos arredoresde Madri, isso, o macac=E3o branco, e uma can=E7=E3o que nessa noite =n=E3odemora a cantar, novidade para todos e revela=E7=E3o total para ele, que =aoouvi-la sente estar compreendendo algo decisivo para sua vida - poisessa noite ele o v=EA, v=EA aquele que s=F3 conhece por capas de discos, =fotosde revistas, apresenta=E7=F5es de programas de televis=E3o, e se =pergunta,perplexo, quem poderia ter tido a id=E9ia de que ele fosse t=E3o =perigoso quevalesse a pena persegui-lo, tornar sua vida imposs=EDvel, for=E7=E1-lo a =deixaro pa=EDs, apagar do mapa suas can=E7=F5es.Entretanto, se tivesse de escolher nesse momento algo no mundoque fale dele, algo que o nomeie e que ele n=E3o possa evitar por mais =quequeira,30porque o que nomeia =E9 uma esp=E9cie de n=FAcleo idiota que nemele mesmo se atreveu ainda a nomear, escolheria tr=EAs versos da =can=E7=E3oque o cantor de protesto estr=E9ia nessa noite, tr=EAs versos que, maisdo que afet=E1-lo, o que implicaria que saem da boca do cantor e viajampelo ar e agem sobre ele, parecem, na verdade, sair dele mesmo, sairsem viajar, porque ele, ao que se saiba, n=E3o abriu a boca, e tornar-seaud=EDveis na boca do cantor, segundo esse milagre do credo populistaque reza que o autor de tudo, inclu=EDdos, naturalmente, os tr=EAs =versos-estr=E9ia nos quais nessa noite ele, como os moribundos, v=EA desfilar =todasua vida, =E9 o povo, ou seja, o p=FAblico, sendo os artistas, no =m=E1ximo,meros m=E9diuns, porta-vozes orgulhosos da mensagem que o povo oselege para transmitir - mas para quem? Transmitir para quem, se eless=E3o ao mesmo tempo os emissores e o p=FAblico, e se al=E9m deles n=E3o =h=E1mais ningu=E9m, ningu=E9m digno, ao menos, de ouvir essa mensagem?N=E3o que n=E3o se fa=E7a essa pergunta. Ele a faz, mas =E9 mais forte e =maiso arrasta o outro, o modo com que os tr=EAs versos da can=E7=E3o, que =cantapela primeira vez em sua cidade, em seu pa=EDs, nos quais, como confessaantes de execut=E1-la, n=E3o deixou de pensar enquanto a compunha,acendem a verdade que ele guardava secretamente gravada. Hayque sacarlo todo afuera / Como la primavera / Nadie quiere que adentro =algo semuera. Ouve esses versos e descobre qual =E9 a sua causa, a causa pelaqual milita desde que faz uso da raz=E3o, desde essa idade em que ascrian=E7as ficam desesperadas para falar e ele, por sua vez, para =escutar,e a descoberta o inunda de uma esp=E9cie de terror maravilhado, t=E3odesconcertante e novo, por outro lado, que perde o resto da estrofe, es=F3 presta aten=E7=E3o nela quando o cantor, totalmente fiel =E0 forma =can=E7=E3o,repete-a logo depois com uma ou duas medidas a mais de brio,encorajado pelo eco favor=E1vel que viu ter colhido da primeira vez,e pelas palmas que antes, embora entusiasmadas, s=F3 irrompiam nofinal de cada can=E7=E3o, no m=E1ximo mordendo seus =FAltimos acordes,31e que agora se atrevem a acompanh=E1-la. Vamos, contame, decime / Todo =lo quea vos te est=E1 pasando ahora / Porque si no, cuando est=E1 tu alma =sola,llora / Hayque sacarlo todo afuera / Como la primavera / Nadie quiere que adentroalgo semuera / Hablar mir=E1ndose a los ojos / Sacar lo que se puede afuera / =Para queadentro nazcan cosas / Nuevas, nuevas, nuevas, nuevas, nuevas.Entende tudo. Talvez seja o grande acontecimento pol=EDtico de suavida: isso que lhe revela a verdade da causa pela qual sempre militou ==E9ao mesmo tempo e para sempre o que mais lhe revira o est=F4mago. Da=EDem diante passa a cham=E1-lo de n=E1usea. Da=ED em diante n=E3o pode vernem ouvir nem se inteirar de nada relativo ao cantor de protesto, que,diga-se de passagem, aproveita a mudan=E7a de ar geral, vende seu famosomoinho e volta a se fixar no pa=EDs e com o tempo larga o viol=E3ozinho =e omacac=E3o branco para se dedicar =E0 caridade pol=EDtica, sem jamais =abandonaro sorriso, nem os =F3culos de m=EDope, nem o tom de cumplicidadesimplista, sem rodeios, t=E3o de "vamos tomar um caf=E9", t=E3o de ="vamosbater um papo", com que costumava entoar suas can=E7=F5es, sem sentir oimpulso de queimar o jornal que publica a foto de seu rosto, de reduzira p=F3 o televisor que o mostra cantando num teatro de Cali ou numapra=E7a de touros em Quito, =FAnicos cen=E1rios, ao que parece, onde =continuasendo c=F4modo para o "povo" pronunciar-se por seu interm=E9dio,ou de moer de pancada a pessoa que acaba de proferir seu nome, n=E3onecessariamente para elogi=E1-lo, no meio da conversa. Da=ED em diante,tudo o que cerca o cantor de protesto, n=E3o s=F3 seu letrista e seus =amigospr=F3ximos como seus contempor=E2neos, seus coet=E2neos, seus, como sedizia na =E9poca, "companheiros de estrada", e tamb=E9m a =E9poca que ocoroa, os valores que defende, a roupa que veste, tudo lhe parece =ran=E7oso,viciado na pestil=EAncia singular, t=E3o t=F3xica, dessas iguarias quedepois de certo limiar de tempo, quando se decomp=F5em, irradiam umafetidez bestial, dif=EDcil de imaginar mesmo nas coisas em que a =putrefa=E7=E3o=E9 o =FAnico estado de exist=EAncia poss=EDvel. Naturalmente, seu pai =logo32embarcou na viagem - seu pai, a quem de repente escaneia de tr=E1s parafrente, submetendo-o =E0 varredura implac=E1vel de sua descoberta e de =suaira, a pior, ira de usado, de correspondente de guerra involunt=E1rio, =deenviado especial =E0 morte, como muito rapidamente come=E7a a pensar.Em todos e em cada um dos dias de sua vida foi enviado ao mundo dasensibilidade, ao campo de batalha da sensibilidade, onde tudo =E9 ="proximidade","pele", "emo=E7=E3o", "compartilhar", "pranto", e em todose em cada um de seus dias, soldadinho obediente, ele regressou, e aalgaravia com que seu pai o recebeu a cada vez, algaravia dupla se o viuvoltar sem uma perna, tripla se voltou sem um olho e uma m=E3o a menos,foi menos um pr=EAmio do que um incentivo, o suborno necess=E1riopara garantir que no dia seguinte acordar=E1 cedo, vestir=E1 o uniforme,partir=E1 outra vez. Embarcam na viagem seu pai e, sobretudo, o v=E9u=FAmido que lhe emba=E7a os olhos toda vez que o v=EA voltar, com butim =ousem ele, do campo de batalha da sensibilidade, que parece adensar-senos cantos dos olhos e quando est=E1 para se coagular, quando est=E1prestes a tornar-se l=E1grima, z=E1s, evapora -o mesmo v=E9u de umidade,ali=E1s, que seu pai, com o passar do tempo, faz brilhar como num passede m=E1gica em seus olhos, toda vez que ele est=E1 prestes a fazer =algumaobje=E7=E3o, ir a fundo num problema que prefere esquecer, p=F4r em =evid=EAnciao que sua estupidez o impede de ver, e que de repente emba=E7aseus olhos - "emba=E7a", palavra que passa a detestar, ligada que est=E1ao "caf=E9", ao "calor" de um caf=E9 no inverno, aos "apaixonados" que"desenham" um "cora=E7=E3o" no "vidro emba=E7ado" do "caf=E9", ou seja,=E0 repulsiva gal=E1xia onde continua reinando o cantor de protesto - e,al=E9m de proteg=EA-los, amansando-a, desativa no ato a ofensiva queo amea=E7a. Vamos, contame, decime. Mas vamos para onde? Conte-me oqu=EA? Me diga, quem?Tarde demais. A n=E1usea, ele pode detest=E1-la quanto quiser: isso =n=E3oimpedir=E1 que o trabalhe, que continue a trabalh=E1-lo como sempre otrabalhou,33com paci=EAncia, serenidade, confian=E7a cega no futuro, coma certeza, de que o tempo est=E1 a seu lado, ao lado da n=E1usea, como o=F3xido trabalha at=E9 corroer aquilo que trabalha, com meticulosidadechinesa. Porque o que merece explica=E7=E3o n=E3o =E9 a repulsa que o =cantorlhe inspira nessa noite - nem nessa, diga-se de passagem, nem emnenhuma outra, nem em nada que tenha a ver com a repulsa em geral,grande buraco negro que n=E3o p=E1ra de sorver, de engolir um caudal depensamento que seria providencial, at=E9 mesmo salvador, se fosse =aplicadoapenas aos objetos adequados. N=E3o. =C9 a atra=E7=E3o, o magnetismodo cantor de protesto, quase irresist=EDvel, j=E1, para qualquer um, =como oprovam os milhares e milhares de imbecis que ao longo dos anos cantamem coro seu nome, alimentam-se de suas declara=E7=F5es =E0 imprensa,entoam suas can=E7=F5es, compram seus discos e esgotam as entradas deseus concertos, mas muito mais irresist=EDvel para ele, ide=F3logo =confessod'O Pr=F3ximo. Quer ele reconhe=E7a ou n=E3o, o pr=F3prio cantor deprotesto =E9 aquele que mais tarde, terminado o show, quando no "pub"s=F3 permanecem "os amigos", seu pai entre eles, naturalmente, e ele,=E0 guisa de sidecar, com seu pai, e seu pai o leva para conhec=EA-lo =-=E9ele, o imundo, com suas lentes redondas, seus cachinhos encaracolados,seu ar de quarent=E3o que se recusa a jogar a toalha, quem lhe d=E1 achave do fen=F4meno. "Meu filho", anuncia seu pai quando chegam at=E9ele, que, sentado na borda do palco, d=E1 uns aut=F3grafos. O cantor =devolveuma esferogr=E1fica, achinesa os olhos e o olha maravilhado, comose ele fosse o qu=EA?, um morno p=E3o sovado rec=E9m-sa=EDdo do forno?, =umcrep=FAsculo?, uma arma carregada de futuro? "Seu filho!", exclamacom suavidade, e nessa mistura perfeitamente dosada de viol=EAnciae de ternura - "ternura", outra palavra que ele j=E1 n=E3o consegue =pronunciarsem sentir que est=E1 se envenenando - ele acredita reconhecera f=F3rmula secreta de uma cumplicidade fundada naquilo que mais oaborrece no mundo: imprecis=E3o, superficialidade, autocomplac=EAncia,34e quando ele estende timidamente a m=E3o, o bra=E7o r=EDgido, como o deum rob=F4, para n=E3o deixar seu pai numa saia justa, mas tentando =manteralguma dist=E2ncia, o cantor de protesto o segura pelos antebra=E7ose, puxando-o de imprevisto, de modo que ele, pego de surpresa, n=E3opossa resistir, abra=E7a-o demoradamente enquanto apoia o queixosobre seu ombro e murmura: "Mas que lindo. Mas que filho sensacionalvoc=EA tem. Mas que filho impressionante" - e diz isso n=E3o paraseu pai ou para ele, naturalmente, por interm=E9dio de seu pai, nem paraningu=E9m em particular, e sim para esse todo mundo em particularpara quem d=E1 aut=F3grafos e canta coisas como Fui ni=F1o, cuna, teta, =pecho,manta / M=E1s miedo, cuco, grito, llanto, raza / Despu=E9s cambiaron las =palabras/ Y se escapaban las miradas / Algo pas=F3 / No entend=ED nada. "E se =n=E3o entendeunada", pensa ele, "por que n=E3o se cala? Por que n=E3o guarda seuviol=E3ozinho no saco? Por que n=E3o ficou em seu moinho de merda?"Eenquanto ele se deixa apertar por esses bra=E7os, magros demais para asmangas da camiseta que veste, tamb=E9m branca e com um sorridentesol bordado em destaque no peitilho do macac=E3o, compreende at=E9que ponto o sujeito =E9 mesmo um artista, se =E9 l=EDcito associar a =palavraartista a algu=E9m que ao longo de duas horas e meia brilhou por doismotivos, primeiro, por entoar com um sorriso perp=E9tuo, o sorriso "decantar", "de estar vivo", "de estar juntos", um repert=F3rio de =can=E7=F5es aque faria obje=E7=F5es, indignado, o elenco mais d=E9bil de d=E9beis =mentais,segundo, por citar com seu melhor tom de argentino reabilitado, quepor fim deixa para tr=E1s uma penosa abstin=EAncia idiom=E1tica, =palavrascomo joder, vale, camarero, gilipollas* e outras que aprendeu durante =seuex=EDlio espanhol, que na =E9poca o ampararam e das quais agora, no =c=EDrculo=EDntimo do "pub", em Buenos Aires, d=E1-se ao luxo de esquivar-se* "Porra!", "t=E1 bem", "gar=E7om", "babaca". [N. T.]35- compreende que o cantor de protesto =E9 exatamente isso, um artistaconsumado da proximidade, algu=E9m que n=E3o conhece nada melhor doque o valor, o sentido, a efic=E1cia da proximidade e seus matizes, e =compreendeao mesmo tempo a ambival=EAncia verdadeiramente genial desseabra=E7o intempestivo que dois ou tr=EAs minutos mais tarde, se o cantorde protesto n=E3o mantivesse sobre ele o firme controle que mant=E9m,come=E7aria a incomod=E1-lo, porque se, por um lado, parece limitar-se atraduzir, a atualizar um la=E7o emocional que j=E1 existia antes entre =eles,tivessem-no percebido ou n=E3o, e que por isso, modesto e rec=EDproco,representa a quintess=EAncia do "intimista", por outro, =E9 um presente, =umdom, algo que existe e tem algum vi=E9s de realidade unicamente pelavontade do cantor de protesto, porque o cantor de protesto, como umsacerdote que n=E3o respondesse a Deus e sim a seu pr=F3prio arb=EDtrio, =decideconced=EA-lo, e nesse sentido, miraculoso e contingente, =E9 um =privil=E9gio.=C9 uma sorte que Bondade Humana, como a partir de ent=E3o ele passaa chamar, em seu =EDntimo, o cantor de protesto, tenha algo para fazernessa noite, ir jantar com "os amigos", um "bom churrasco" com um"bom tinto", por exemplo, ou qualquer um dos programas de reeduca=E7=E3oa que optam por submeter-se os argentinos que voltam do ex=EDlio,geralmente t=E3o concentrados e intensivos, na verdade, que os =pr=F3priosargentinos n=E3o os ag=FCentam, e interrompa, desse modo, a intimidadeque inaugurou com o abra=E7o inesperado. Porque se ficasse com eles,com seu pai e com ele, que, por mais amigos do cantor que fossem, nahora da verdade, depois de algum conluio que n=E3o leva a um grandemas produz certa v=E9spera de desconforto, s=E3o exclu=EDdos do grupo =duro,aquele que em breve seguir=E1 a pista do "bom fil=E9" e "do tinto", =aqueleque afunda seu pai nessa amargura cujos sintomas ele detecta no modocom que de repente tudo troca de sinal, de maneira que o que antesfoi excita=E7=E3o, entusiasmo, admira=E7=E3o, gratid=E3o, agora =E9 =decep=E7=E3o, avers=E3o,desprezo, e o pr=F3prio cantor de protesto que duas horas e meia =atr=E1s,36ou mesmo durante o show, enquanto cantava Soy el que est=E1 porac=E1 / No quiero m=E1s de lo que quieres dar / Hoy se te da y hoy se te =quita /Igualque con las margaritas / Igual el mar / Igual la vida, la vida, la vida,la vida, era"valioso", tinha sua "autenticidade" e sua "gra=E7a", e at=E9 sabia =plasmarcerta "bonomia argentina", agora =E9 um "desastre", "mente at=E9 quandoafina o viol=E3o" e entoa can=E7=F5es que "j=E1 nos anos setenta nem os =surdosteriam suportado" - se ficasse com eles, se aceitasse ir jantar com eles =eseu pai e em algum momento se levantasse da mesa e os deixasse sozinhos,Bondade Humana, talvez amodorrado pelo "bom fil=E9" e "pelotinto" do qual, mesmo longe do grupo duro, n=E3o se privou, n=E3o =conseguiriaevitar e come=E7aria a falar pelos cotovelos, a confessar, a verter noouvido dele seu veneno doce e exclusivo, os segredos que nunca contoua ningu=E9m, os mais rec=F4nditos e os mais miser=E1veis, os que nem elemesmo sabe que guarda.=C9 isso, de fato, o que faz com ele um dos melhores amigos de seupai na tarde em que voltam juntos de uma ch=E1cara ao norte da =prov=EDnciade Buenos Aires. Rodam num BMW =FAltimo tipo. Na altura da avenidaLugones com a Dorrego, com o veloc=EDmetro cravado em 175, quandoa conversa parece mais que satisfeita com o tem=E1rio sobre o qualborboleteia desde que sa=EDram da avenida M=E1rquez, as semifinais deWimbledon, o inesperado fracasso de bilheteria de um filme policialargentino, a escalada do d=F3lar, o efeito distrativo dos cartazes de =propagandaexpostos dos lados da Lugones, o sujeito, com seu bigodedenso e seus Ray-Ban impenetr=E1veis, um profissional da =dissimula=E7=E3o,abre-lhe repentinamente seu cora=E7=E3o e lhe conta, tr=EAmulo, com =palavrasque =E9 evidente que usa pela primeira vez, tal a dificuldade que tempara pronunci=E1-las, "amor", "solid=E3o", "tristeza", provavelmente asmesmas que Bondade Humana embaralha ao sentar-se para comporsuas can=E7=F5es, que sua mulher o largou, que v=EA sua escova de dentesno banheiro e chora, que n=E3o dorme mais, que j=E1 n=E3o =E9 capaz de =fazer37o n=F3 da gravata sem ajuda. E =E9 isso que faz aos seis, sete anos, =v=E1-sesaber, num anoitecer de domingo, quando, no vesti=E1rio de Paradiseou de West Olivos, j=E1 de banho tomado e vestido, vai at=E9 o =cub=EDculo dorespons=E1vel pelo vesti=E1rio para devolver sua toalha e o homem, queo conhece, que j=E1 recebeu dele milhares de toalhas, com cujos filhos,dois, ele costuma brincar quando os encontra na piscina, mas com oqual nunca trocou mais palavras que as de praxe, prorrompe numa =esp=E9ciede solu=E7o l=EDquido e lhe conta que foi ao m=E9dico, que est=E1 =doente,que lhe restam no m=E1ximo seis meses de vida.Vinte anos mais tarde, numa noite em que, euf=F3rico pelo amor que domodo mais inesperado entrou outra vez em sua vida e o virou do avessocomo uma luva, aceita o convite para a festa que uma velha amiga, paracomemorar seu regresso ao pa=EDs depois de vinte anos no exterior, d=E1 =nacasa que lhe emprestaram at=E9 que consiga instalar-se por conta =pr=F3pria,e pouco depois de jantar, enquanto monopoliza a sobremesa com umarroubo de loquacidade, numa dessas efus=F5es verbais cuja exalta=E7=E3o =s=F3se justifica por esse brio t=EDpico das venturas rec=E9m-estreadas, e =sem d=FAvidapelo anseio de exibi-las diante de quem as provoca, em seu caso essecorpo que, mais do que deix=E1-lo apaixonado, ele sente que lhe devolveu =avida e ao qual nessa noite e nos tr=EAs anos seguintes est=E3o dedicadas =todase cada uma das coisas que pensa, diz e faz, um homem de barba, len=E7ono pesco=E7o, palet=F3 de tweed e botas de montaria de couro de =ant=EDlope,sentado at=E9 ent=E3o na mesa diante dele, ou seja, tamb=E9m diante =daquelaque faz apenas duas semanas ele, corando, chama de minha mulher,levanta-se de chofre e desaparece de seu campo visual, e s=F3 reaparecealguns segundos depois, a seu lado, agora n=E3o como imagem e sim comovoz - primeira vez que o ouve durante toda a noite, como percebe justono momento em que o outro se inclina sobre seu ombro e come=E7a e =entornar-lhe sua coisa infecta no ouvido: Isso porque uoc=EA nunca esteve =amarradoa um estrado de metal enquanto dois sujeitos davam choques no seu saco.38N=E3o reage. =C9 incapaz de se mover. Depois, nessa mesma noite,enquanto serpenteia entre os len=E7=F3is para beijar o sexo da mulher =queliteralmente acaba de ressuscit=E1-lo e se lambuza com o esperma quenele acabou de derramar, ocorre-lhe que o que mais o deixou pasmono epis=F3dio do oligarca torturado, como de imediato passa a =cham=E1-lo,a tal ponto o estilo de seu vestu=E1rio, seus modos, o porte r=EDgido e =adic=E7=E3o escorregadia, como a de um b=EAbado, e por fim o sobrenome - =aque tem acesso, sem dizer por que lhe importa tanto sab=EA-lo, enquantose abrigam na porta e se despedem da dona da casa que os beija,agradece que tenham vindo e lamenta novamente, com o tom exageradocom que costuma lamentar que n=E3o tenha acontecido algo quejamais teve a menor possibilidade de acontecer, que o "Gato" n=E3otenha estado ali para lhe dar raz=E3o, para corroborar que o que ela lheconta, em particular, no meio da festa, que seu amigo dos anos sessenta,o famoso saxofonista Gato Barbieri, aos quarenta anos deidade, insiste em dizer =F3nigo em vez de =F4nibus, =E9 rigorosamente =verdadeiro-, a tal ponto tudo isso o faz lembrar os vaqueiros, os fazendeirose os produtores agropecu=E1rios que viu quando era menino, anoap=F3s ano, na exposi=E7=E3o rural de Buenos Aires, excurs=E3o =obrigat=F3ria detodo estabelecimento escolar argentino - no epis=F3dio do oligarca =torturado,pensa, o que mais o deixa pasmo =E9 o isso com que inicia a frasede veneno que verte no oco de sua orelha. Isso, pensa. Isso, o qu=EA?O que =E9 isso? O que designa? Tudo o que ele esteve dizendo nos ==FAltimosquarenta minutos da festa? O que esteve dizendo mais a felicidadecom que o disse? Tudo isto mais ele, ele todo, inteiro, com seurosto e seu nome e o que faz e seu modo de falar e a idade que tem?Tudo isto, ele inteiro, dos p=E9s =E0 cabe=E7a, e pouco importa, =evidentemente,que seja a primeira vez que o oligarca torturado cruza com eleem sua vida, mais ela, a mulher em cujos bra=E7os volta a dormir e =gostariade morrer agora, neste instante, antes que amanhe=E7a? E n=E3o s=F339o que designa, mas o que conecta com o qu=EA, como "soluciona" oucomo e com que perf=EDdia fabrica a estranha continuidade entre a =efus=E3otransbordante que o arrasta, apaixonado recente, pav=E3o cujos surtosde extrovers=E3o, caso fossem intoler=E1veis, seria f=E1cil moderar comhumor, frear mudando o assunto da conversa ou at=E9 mesmo ignorar,deixando-o falar sozinho, no vazio, como j=E1 fizeram sem maldade =v=E1riasdas pessoas que dividem a mesa, convencidas de que o caldo deamor no qual flutua =E9 t=E3o pleno e excludente que o fato de se =descobrirflutuando nele sozinho n=E3o s=F3 n=E3o diminuir=E1 em nada seu =contentamentocomo talvez o incremente - como liga sua felicidade, numapalavra, =E0s cicatrizes que o oligarca torturado esconde sob o =algod=E3ode suas cuecas de grife, rastros de um pesadelo indiz=EDvel que, se =aindan=E3o terminou, como =E9 evidente, n=E3o =E9 apenas pela alta =probabilidadede que aquele agente de pol=EDcia que o seq=FCestrou ande solto pela =rua,aquele que o obrigou a ficar nu n=E3o tenha mais contas a acertar com alei a n=E3o ser uma velha multa por estacionar mal, aquele que o amarrouao estrado compre o vinho de caixinha com o qual se embebedano mesmo supermercado que ele, aquele que o torturou entre e saiado pa=EDs na maior e todos se re=FAnam, duas vezes por m=EAs, para =evocar osbons e velhos tempos no bar da esquina, sem temer outras repres=E1liassen=E3o as que podem infligir-lhes uma por=E7=E3o estragada de torta deacelga, um refrigerante sem g=E1s ou uma conta que lhes cobra mais doque gastaram, mas tamb=E9m porque ainda restam no mundo pessoascomo ele, desconhecidas, que irrompem numa festa e atravessam anoite fulgurantes como cometas, acesos pela mulher que t=EAm a seulado, que n=E3o fala e da qual n=E3o podem separar-se, porque, caso o =fizessem,como aconteceria com a Terra se o Sol deixasse de brilhar derepente, toda a luz que os envolve, e que s=F3 por uma ilus=E3o de ==F3ticaparecem irradiar, iria se apagar, e que s=F3 parecem existir para jogarna cara do mundo a evid=EAncia descarada de sua felicidade.40O epis=F3dio o persegue por algum tempo. Ao tormento de reviv=EA-lo emtodos os detalhes, exatamente como aconteceu, soma-se outro, talvezmais doloroso, sem d=FAvida mais cruel, o de ter agora, quando j=E1 =E9 =tardedemais, na ponta da l=EDngua, prontas para entrar em a=E7=E3o e =pulverizaro oligarca torturado, todas as respostas que naquele momento n=E3olhe ocorreram. Mas com os anos, expulsa das coordenadas de tempoe de lugar em que se passou, a cena perde vitalidade, desidrata-se econtrai-se, como o =F3rg=E3o extirpado resseca se n=E3o =E9 logo =acolhido pelotecido plet=F3rico de sangue e nervos de um novo organismo, at=E9 =transformar-se numa mol=E9stia =EDnfima, que quase n=E3o ocupa espa=E7o nem =E9preciso dissipar, tanto se enfraqueceu sua energia hostil, ainda que naprimeira oportunidade, assim que entra na =F3rbita de uma ofusca=E7=E3omaior ou mais atual, convocado por um desses signos que, de imprevisto,sem prop=F3sito, fazem com que o presente mais banal rime comuma por=E7=E3o de passado atroz, o len=E7o de seda que algu=E9m leva =atadoao pesco=E7o, um sobrenome de estirpe, as botas de montaria =perfeitamentealinhadas que a vitrine de uma loja de artigos de selaria oferece,irrita-se de repente, milagrosamente, e volta a fustig=E1-lo comofez nessa noite, na seguinte, em muitas das que vieram depois. E pormais que odeie o oligarca torturado com todas as suas for=E7as, por maisque dez anos depois, com o frenesi um pouco clownesco que trazemconsigo as vingan=E7as p=F3stumas, que tentam reparar, multiplicando irae encarni=E7amento, a =FAnica trag=E9dia verdadeiramente irrepar=E1vel, =n=E3oter estado =E0 altura da oportunidade, ainda acorde no meio da noite,espica=E7ado pela f=FAria, e do repert=F3rio de vingan=E7as que se =ajuntamcomo moscas ao seu redor, uma das quais, nascida provavelmentede uma p=E1gina do humorista Quino, uma charge t=E3o antiga e talvezt=E3o influente para ele quanto a da fieira de fofoqueiras de NormanRockwell, insta-o a averiguar onde vive e quais s=E3o seus hor=E1rios deentrada e de sa=EDda, a tocar sua campainha do nada e surpreend=EA-lo,41no exato momento em que ele abre a porta, com uma porrada que lhe quebraos dentes, correndo o risco, como acontece na anedota de Quino,de que, ao abrir a porta, considerando os anos que transcorreram desdeo incidente, a v=EDtima que naquela festa foi o seu carrasco tenha =voltado,por essas reviravoltas da vida, a ser v=EDtima e agora esteja de lutopela morte de um ente querido, ou doente, ou sumida numa depress=E3oterminal, ou desesperada de todas essas vingan=E7as por mais que termineescolhendo uma, sempre a mesma, aquela que na lucidez dessavig=EDlia indesejada lhe parece a mais brutal: jogar-lhe na cara, =diversasvezes, em sua imagina=E7=E3o desenfreada, a beleza insultante da mulherque tinha ent=E3o a seu lado, verdadeira e =FAnica raz=E3o, em seu =entender,do ataque furioso do outro, compreende finalmente a maldade que fazse for considerar esse cretino, que verte em seu ouvido os vest=EDgiosp=FAtridos de seu supl=EDcio, um artista do ressentimento, um =chantagistasem escr=FApulos ou um psicopata profissional, a cegueira em que est=E1se ele, que sempre se gabou de restituir =E0 felicidade a dor que lhe =fazfalta, n=E3o percebe que o oligarca torturado =E9, no fim das contas, =seupar perfeito, algu=E9m que lhe paga na mesma moeda e a seu modo lhepergunta: O que h=E1? Quando afelicidade =E9 sua n=E3o h=E1 suspeita? =Quando a dor=E9 de outro voc=EA n=E3o a exuma? Quando afelicidade =E9 sua e a dor ==E9 de outro n=E3o harela=E7=E3o entre felicidade e dor?Quem diz dor diz segredo, diz vida dupla. O perfume de morte destiladopor esse prod=EDgio de vitalidade que o respons=E1vel pelo vesti=E1riodo clube foi, =E9 e continuar=E1 sendo =E9 um signo t=E3o obscuro e =vertiginoso,abre de par em par tantas portas desconhecidas quanto os suspirosque um amor dif=EDcil p=F5e na boca de um homem que at=E9 o dia de ontems=F3 perde a cabe=E7a por um novo modelo de Ray-Ban e a calma quandoseu personal trainer n=E3o comparece =E0 aula, e entra em p=E2nico se a =mulherna qual acaba de ejacular continua a seu lado cinco segundos depois det=EA-lo satisfeito e ainda por cima pretende conversar, ou quanto a =id=E9ia42de uma ponta de metal eletrificada, originalmente desenhada, diga-sede passagem, com um prop=F3sito agropecu=E1rio como o de facilitar otanger das vacas rumo ao curral, que estremece os test=EDculos de umhomem at=E9 h=E1 muito pouco tempo ocupado basicamente com leil=F5esde gado, viagens, excurs=F5es de veleiro pelo Rio da Prata com garotasde biqu=EDni no conv=E9s. [...] Gosta de ser o =FAnico que conhece esses =compartimentossecretos. Poder=E1 virar a mesa e renunciar a seu talento deescutar t=E3o logo comece a exerc=EA-lo, livrar-se, como se diz, desse =papelconfidencial que, se ele se descuidar, em breve ir=E1 se tornar um =destinopara ele, mas ningu=E9m poder=E1 roubar-lhe o prazer que o estremececada vez que algu=E9m se vira do avesso como uma luva, tentado peladisponibilidade de sua orelha, que n=E3o somente est=E1 ali, ao alcanceda m=E3o, como parece falar, falar uma l=EDngua pr=F3pria e silenciosa, =echam=E1-lo: Vamos, contame, decime.Por que n=E3o vira padre? Por que n=E3o psicanalista, motorista, =mich=EA,recepcionista de um desses servi=E7os de assist=EAncia ao suicida que =nosfilmes dissuadem de se atirar no vazio com um punhado de frasesoportunas os desesperados que falam pelo telefone enquanto se equilibramnuma cornija? Hay que sacarlo todo ajuera / Como la primavera. N=E3o,n=E3o pensa cuidadosamente em lucrar com esse talento que o entediaassim que o descobre. J=E1 a can=E7=E3o, ele guarda como uma esp=E9cie =dehino inconfess=E1vel. A n=E1usea. Quando quer cair em si, j=E1 era, =n=E3o temmais jeito de voltar atr=E1s: entende que sua can=E7=E3o, essa =can=E7=E3o que,sens=EDvel como um macio bloco de cera, deixa-se imprimir por tudoaquilo que a rodeou ou esteve em contato com ela e ao conserv=E1-loflecha e marca em brasa e passa a encarnar verdade e beleza ao mesmotempo, em seu caso =E9 uma aberra=E7=E3o sem nome, atroz, abomin=E1vel,que n=E3o se atreve a trautear em p=FAblico, mas que ouve, incessante, =emalgum lugar de seu cora=E7=E3o, de onde lhe diz diversas vezes quem =E9, =doque =E9 feito, o que pode esperar. Padre n=E3o, nem pensar -a menos que43por padre se entenda o p=E1roco que Nanni Moretti interpreta em La messa=E8finita, v=EDtima, m=E1rtir, justamente, da aura de compreens=E3o, =toler=E2ncia etamb=E9m sagacidade que o envolve, que de algum modo lhe permite"ascender", posto que =E9 esse dom, raro mesmo entre os padres, quedeveria vir de f=E1brica com ele, que faz com que seus superiores =decidamtransferi-lo e da obscura par=F3quia que dirige numa ilha do marTirreno o destinem a uma obscura par=F3quia dos sub=FArbios de Roma, eque parece convidar seus pais, sua irm=E3, o c=EDrculo de amigos com osquais se reencontra depois de anos, todos debilitados pelo tempo, pelafrustra=E7=E3o, pela doen=E7a, pela amargura sexual, pela ru=EDna dos =ideais, eum deles, ex-brigadista vermelho, pela pris=E3o, a chorar diante delev=E1rias vezes, a pedir-lhe consolo a qualquer hora do dia e da noite, asepult=E1-lo com lamentos, incertezas, s=FAplicas de uma salva=E7=E3o =quenem ele nem ningu=E9m jamais estar=E1 em condi=E7=F5es de conceder. Emesmo quando comemora, alvoro=E7ado, as cenas culminantes em queo padre, at=E9 o pesco=E7o dessa chuva de rogos que o encharca dia =ap=F3sdia, baratinado, como se diz agora, perde completamente as estribeirase esbofeteia a irm=E3 que pretende fazer um aborto, repreende aosgritos o amigo que leva uma surra por chupar picas sem rosto na =escurid=E3odos cinemas, salpica de maldi=E7=F5es aquele que, abandonado pelamulher, resolve se trancar no apartamento e privar o mundo de suapessoa para sempre, mesmo quando goza como nunca quando emmeio ao transe, sozinho, Moretti se pergunta em voz alta o que essebando de imbecis pensa que ele =E9 para despejar em cima dele seus =problemasde quinta categoria, tamb=E9m se pergunta com esc=E2ndalo como=E9 que n=E3o fez isso antes, por que demorou tanto para estourar. Mas=E9 ele quem pergunta, ele que sequer estourou, nem mais cedo nemmais tarde, nunca, e que tampouco ir=E1 estourar.Na verdade, de ser padre o separa algo "visceral" - um adjetivo quen=E3o emprega, absolutamente, em nenhum outro caso e do qual,44como ocorre com "entranh=E1vel", ele se protege com todo o cuidado, comoSuper-Homem devia se proteger das duas kriptonitas se os quadrinhos,privados ent=E3o de seu mal motriz, n=E3o corressem o risco denaufragar na atonia: uma irremedi=E1vel avers=E3o ao h=E1bito, derivada,sem d=FAvida, da que costumam inspirar-lhe os uniformes. N=E3o =E9 tantoo lado comunista, de igualdade e reconhecimento, =E0 vista desarmada,da igualdade, que esse at=E9 lhe agrada e gostaria, mesmo, de v=EA-lo =utilizadomais ami=FAde na vida cotidiana, mas justamente o lado disfarce,o lado m=E1scara, a promessa, ou melhor, a evid=EAncia de vida dupla queencerram, sejam eles uniformes de padres, policiais militares, caixasde supermercado, alunos de escola. Desenham-nos para que eles =signifiquemsem mal-entendidos, para que a mensagem que comunicamseja simples, direta, un=EDvoca - mas isso n=E3o impede que para elesejam sin=F4nimo de duplicidade, isca, ceva de arapuca. Em todo =uniformizadon=E3o v=EA uma pessoa, mas duas, pelo menos duas e que seop=F5em, uma que promete seguran=E7a e outra que rouba e violenta =E0m=E3o armada, uma que vigia as fronteiras da p=E1tria e outra que =saqueiae extermina com o distintivo no peito, uma que aben=E7oa e reconfortae outra que se faz masturbar por coroinhas no confession=E1rio, umaque sorri e opera a caixa registradora com profissionalismo e outraque soma produtos que ningu=E9m comprou, e dessas duas h=E1 uma, asecreta, a que se oculta atr=E1s do verde-oliva, da ins=EDgnia de grau, =docabe=E7=E3o sacerdotal, at=E9 mesmo do len=E7o e do palet=F3 de tweed e =dasbotas de montaria do oligarca torturado, que, provavelmente ausentesde um cat=E1logo oficial de uniformes, ocupariam p=E1gina dupla centralem qualquer um dedicado aos usos e costumes da classe altaargentina, que =E9 a pessoa que ele teme, n=E3o tanto pelo que lhe possafazer, porque, j=E1 alertado pelo signo do uniforme, sabe de antem=E3o o=E1s trapaceiro que esconde na manga e como evit=E1-lo, quanto porqueem algum momento, mais cedo ou mais tarde, esse duplo clandestino45ir=E1 v=EA-lo, reconhec=EA-lo, toc=E1-lo no ombro, e confiar=E1 a ele, =s=F3 a ele,o que lhe arde no peito.[...] Por mais ir=F4nico que soe, enquanto arrebenta, vestido deSuper-Homem, o vidro da janela francesa que d=E1 para a sacada doquarto andar da Ortega y Gasset, l=E1 embaixo, na rua, que com o tempocome=E7a a recordar em preto-e-branco, com =E1rvores sem folhas cujostroncos pintados com cal, como os de um povoado devastado por umapeste, balizam regularmente a cal=E7ada, as poucas pessoas que se v=EAemcaminhando, subindo ou descendo de autom=F3veis ou entrando ousaindo de edif=EDcios que, a n=E3o ser por detalhes menores, =reconhec=EDveisapenas para os que h=E1 anos vivem no bairro, s=E3o praticamente =id=EAnticos,est=E3o uniformizadas. Natural: s=E3o militares, como s=E3o militares obairro, o engenheiro que desenhou os edif=EDcios, a maioria dos nomesdas ruas, o hospital encarapitado no alto de uma ribanceira na qual, dequando em quando, em meio a um estrondo que ele, apesar de n=E3o sera primeira vez que o ouve e de saber por sua m=E3e o que o causa, numprimeiro momento sempre se empenha em atribuir a alguma esp=E9ciede cat=E1strofe natural que n=E3o deixar=E1 sobreviventes, aterrissam =helic=F3pterosque imagina cheios de soldados sangrando - como s=E3o militaresos jeeps, os caminh=F5es, at=E9 mesmo os carros particulares, =reconhec=EDveispor esse caracter=EDstico esbanjamento de ins=EDgnias patri=F3ticas,que muito de vez em quando aparecem na rua, e o ex-dono do apartamentoem que vive, um piloto da For=E7a A=E9rea que seu av=F4 conhecenuma lua-de-mel grupal, um recurso que a =E9poca, meados dos anostrinta, p=F5e em pr=E1tica para dissimular, ao menos durante as =primeirassemanas seguintes ao casamento, o c=E2ncer que vinha impl=EDcito emtodo contrato matrimonial: o t=E9dio, do qual n=E3o tarda a tornar-seamigo, tirando-o do apuro em que o afunda um v=EDcio nunca totalmenteesclarecido, jogo, mulheres, neg=F3cios sujos, e que, por fim, quando ==E9evidente que n=E3o poder=E1 devolver o empr=E9stimo como o recebeu,46em dinheiro, porque o jogo, as mulheres, os neg=F3cios sujos ou o que =querque seja que o fez cair t=E3o baixo continuam a consumi-lo, ele o paga =deuma =FAnica vez com esse apartamento de tr=EAs c=F4modos que a For=E7a,como ele a chama, vendeu-lhe em condi=E7=F5es muito favor=E1veis quandose casou e que, apertado demais para suas pretens=F5es, altas demais,como cabe a um aviador, nunca chegou a usar - como =E9 tamb=E9m militar,parece, o vizinho de bigode fininho e cabelo =E0 escovinha que, alertadopelo estrondo do janel=E3o que se estilha=E7a e pelos gritos de sua =m=E3ee de seus av=F3s, que j=E1 imaginam o pequeno Super-Homem desfigurado,apressa-se em tocar a campainha e quando sua av=F3 lhe abre a porta,ainda estremecida pela risada hist=E9rica que a assalta ao comprovar quepor um milagre n=E3o aconteceu nada, entra, d=E1 sem pedir licen=E7a =tr=EAspernadas =E1geis e se planta no extremo da sala de estar do apartamento,em parte para, como ele mesmo anuncia, oferecer ajuda, em parte paraverificar em primeira m=E3o que tipo de incidente conseguiu arranc=E1-loda sesta, como o provam a regata branca e a camisa verde aberta porcima, as cal=E7as abotoadas =E0s pressas e os p=E9s descal=E7os, =pequen=EDssimos.Assim como mais tarde, transcorridos os anos que as ru=EDnas dopassado demandam para escorar uma fic=E7=E3o que sempre fala de outro,ele v=EA as fotos dessa tarde, que seu av=F4 tirou para testar a =c=E2mara rec=E9m-comprada, e as imperfei=E7=F5es flagrantes da roupa do Super-Homem lhearrancam gargalhadas, n=E3o s=F3 as que traz de f=E1brica, a barra =descosturadaque ele arrasta ao caminhar e =E0s vezes esmaga com o calcanhardescal=E7o, os bot=F5es vis=EDveis demais, as costuras abertas nas =axilas, otecido que sobra e pende do peito, mas tamb=E9m as que ele mesmo lheinferiu nos vinte minutos que se passam desde que a desembrulha, =enganchandouma manga num dos =E2ngulos da caixa e salpicando comum espirro de leite achocolatado o "S" mal desenhado, por outro lado,que deveria estourar de tens=E3o em seus peitorais, assim, mas ao =contr=E1rio,toda vez que desce para patrulhar a rua com seu triciclo e cruza47com alguns militares, no m=EDnimo dois, porque alguma lei que ele ignoraparece proibir que os militares caminhem sozinhos, o que o deixapasmo =E9 o aspecto absolutamente impec=E1vel que esses uniformes exibemde frente, quando avan=E7am em sua dire=E7=E3o, e de costas, quandoele p=E1ra de pedalar e vira a cabe=E7a para olh=E1-los, passados, =limpos, decor homog=EAnea, perfeitamente na medida, tinindo, como se acabassemde sair n=E3o de uma tinturaria, que bem ou mal teria deixado neles =algumsinal, mas sim dos pr=F3prios ateli=EAs onde s=E3o confeccionados. Bempenteados, com o quepe no lugar certo, os sapatos engraxados, a malaescura na altura adequada e o passo sempre sincronizado, tudo condenaos militares =E0 par=F3dia, ao marzip=E3, =E0 ingenuidade dos bonecos debiscoito. Mas ele os v=EA, ele os v=EA de dois em dois, muito juntos, ao =mesmotempo =FAnicos, porque os civis brilham por sua aus=EAncia no bairro, eralos demais, como se, exemplares de uma esp=E9ci