Alan Chalmers - A fabricação da ciência [ed.unesp]

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A FAB DA CIl ALAN CHAUMERS "Espero que um exame detalhado da maneira como é fabricado (no sentido de 'fabricar': construir, elaborar) o legítimo conhecimento científico mostre como ele pode ser diferenciado de suas fabricações (no sentido de 'fabricar': montar)." ISBN 85-7139-059-2

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A FABDA CIlALAN CHAUMERS

"Espero que um exame detalhado da

maneira como é fabricado (no sentido

de 'fabricar': construir, elaborar) o

legítimo conhecimento científico mostre

como ele pode ser diferenciado de suas

fabricações (no sentido de 'fabricar':

montar)."

ISBN 85-7139-059-2

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Copyright © 1990 by Alan F. ChalmersTítulo original em inglês: Science and its fabrication

Copyright © 1994 da tradução brasileira:Fundação Editora da UNESP (FEU)

Av. Rio Branco, 121001206-904-São Paulo-SP

Tel./Fax: (011)223-9560

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Chalmers, Alan F., 1939 - A Fabricação da ciência/Alan Chalmers;tradução de Beatriz Sidou. - São Paulo: Fundação Editora daUNESP, 1994. - (Biblioteca básica) ,

Bibliografia.ISBN 85-7139-059-2

l. Ciência - Aspectos 2. Ciência - Filosofia 3. Ciência -História 4. Ciência - Metodologia I. Título. II. Série.

94-1012 CDD-500

índice para catálogo sistemático:

1. Ciências 500

OQACÃQBIBLIOTECA C E N T R A L

H.»

EDITORA AFILIADA

j A. F. (Alan Francis)

A fabricação da ciência

50(091)/C438f(179116/02)

Hugo: Levantei cedo esta manhã porque decidi agir.

Este é o alvorecer do inesperado. Que horas são?

Joshua: Doze em ponto, senhor Hugo.

Jean Anouilh, O and em volta da lua

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SUMÁRIO

9 Prefacio

11 Capítulo lA política da filosofia da ciência

1.1 A filosofia da ciência como questão política 1.2 A estratégiapositivista 1.3 Métodos e padrões historicamente contingentes1.4 A crítica da pseudociência

23 Capítulo 2Contra o método universal

2.1 Observações introdutórias 2.2 O recurso à natureza humana2.3 O recurso à física e sua história: positivismo e falsificacionismo2.4 Os métodos e padrões variáveis na física

39 Capítulo 3A meta da ciência

3.1 Observações introdutórias 3.2 A ciência como busca dageneralidade 3.3 As primeiras tentativas para o estabelecimentodas generalizações teóricas 3.4 A generalidade e a experimentação:Galileu 3.5 A substituição do desenvolvimento pela certeza3.6 A meta da ciência

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61 Capítulo 4A observação objetivada

4.1 As hipóteses empiristas sob ataque 4.2 A observaçãoteórico-dependente 4.3 A observação objetiva como realizaçãoprática 4.4 O significado e o caráter problemático dos dadosde Galileu sobre o telescópio 4-5 As observações de Galileudas luas de Júpiter 4.6 O tamanho dos planetas vistos pelo telescópio

85 Capítulo 5

O experimento

5.1 A produção e a rejeição dos resultados experimentais5.2 As implicações para o empirismo 5.3 As implicações paraa filosofia da ciência de Popper 5.4 A defesa do experimentocontra o ataque dos céticos 5.5 O retorno do experimentador

109 Capítulo 6

A ciência e a sociologia do conhecimento

6.1 A sociologia e o ceticismo em relação à ciência 6.2 O retratoinadequado que os sociólogos fazem de seus opositores6.3 As origens sociais do conhecimento científico 6.4 A ênfaseinadequada na crença 6.5 A explicação sociológica restrita à má ciência

129 Capítulo 7Dois estudos de caso sociológicos

7.1 A teoria estatística e os interesses sociais 7.2 A explicação socialde Freudenthal para os Principia de Newton 7.3 Observações finais

151 CapítuloSA dimensão social e política da ciência

8.1 Observações introdutórias 8.2 As oportunidades objetivase a escolha individual 8.3 A política da atividade científica8.4 Colocando-se a ciência em seu lugar

165 Apêndice

A extraordinária pré-história da lei da retração

175 Bibliografia

PREFÁCIO

Este livro é uma seqüência de What is this thing called science?.Nesse livro, submeti algumas das explicações mais comuns daciência e seus métodos a minucioso exame crítico, mas não chegueia elaborar em detalhe nenhuma alternativa p^ira elas. Convenci-mede que tal elaboração é necessária, sobretudo diante da amplitudedas críticas que, contra as minhas intenções, têm consideradominha posição radicalmente cética, negadora de qualquer estatutodistintivo, objetivo do conhecimento científico. Este livro contémuma ampliação e uma reelaboração do argumento de seu predeces-sor. Persisto em minha rejeição às concepções filosófico-ortodoxasdo chamado método científico, mas demonstro como, não obstan-te, com algumas ressalvas, é possível uma defesa da ciência comoconhecimento objetivo. Conseqüentemente, não tenho dúvidas deque receberei o desdém de muitos filósofos, à minha direita, e desociólogos da ciência, à minha esquerda.

Em muitos pontos utilizei material publicado nos seguintesartigos: "The case against a universal ahistorical scientific method"(O que há contra um método científico universal a-histórico, 1985);"A non-empiricist account of experiment" (Uma história não-empirista do experimento, 1984); "Galileo's telescopic observa-

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tions of Venus and Mars" (As observações telescópicas feitas porGalileu de Vênus e Marte, 1985); "The sociology of knowledgeand the epistemological status of science" (A sociologia do conhe-cimento e o estatuto epistemológico da ciência, 1988); "Theextraordinary prehistory of the law of refraction" (A extraordináriapré-história da lei da refração, 1975). Sou muito grato aos editores,que deram permissão para utilizar este material aqui.

Agradeço também a Patrícia Bower e Verônica Leahy, quepacientemente e com muita eficiência datilografaram o manuscrito,e a Wal Sutching, pela crítica proveitosa.

CAPÍTULO l

A POLÍTICA DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA

1.1 A filosofia da ciência como questão política

"Nos tempos modernos a ciência é muito respeitada." Esta éa sentença que abre o livro do qual este é uma seqüência (Chalmers,1982). Quinze anos dando aulas numa faculdade de artes, bemcomo a inclinação para algumas formas da filosofia e da sociologiacontemporânea, me proporcionaram uma idéia da quantidade deressalvas de que essa afirmativa necessita. A ciência geralmente éconsiderada desumanizadora, dando um tratamento insatisfatórioa povos, sociedades e natureza, nela considerados objetos. Aalegada neutralidade e isenção de valores da ciência é percebidapor muita gente como não-autêntíca, idéia estimulada pelo fenô-meno, cada vez mais comum, do desacordo entre especialistas, emlados opostos de uma discussão politicamente suscetível acerca dasubstância do fato científico. A destruição e a ameaça de eliminaçãode nosso meio ambiente resultantes de avanços tecnológicos sãoem geral consideradas algo que compromete a ciência. Existemaqueles que consideram a faculdade de artes muito deficiente edistanciada do mundo masculino e opressivo da ciência e voltam-se

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para o misticismo, as drogas ou para a filosofia francesa contem-porânea. Embora certamente reste o argumento de que um altoapreço pela ciência e uma generosa avaliação de seu campoconstituam importante componente da ideologia contemporânea,abundam as posições oponentes.

O fato das questões que dizem respeito ao estatuto da ciênciaserem politicamente importantes não escapou a muitos filósofos e,mais recentemente, a sociólogos da ciência. Foi assim que, em1973, Imre Lakatos (1978b, p. 6-7) resumiu o assunto numatransmissão radiofônica:

O problema da demarcação das fronteiras entre a ciência e a pseudo-ciência tem sérias implicações ... para a institucionalização da critica. Ateoria de Copérnico foi proibida pela Igreja católica em 1616 por serconsiderada pseudocientífica. Em 1820, foi retirada do Index, porque àquelaaltura a Igreja acreditou que os fatos a haviam comprovado e, portanto, elase tornara científica. O Comitê Central do Partido Comunista Soviético,em 1949, declarou pseudocientífica'a genética mendeliana e matou os quea defendiam em campos de concentração, como aconteceu ao acadêmicoVavilov (depois do assassinato de Vavilov, a genética mendeliana foireabilitada). Contudo, manteve-se o direito do partido decidir o que écientífico e publicável e o que é pseudocientífico e passível de punição. Onovo establishment liberal do Ocidente também exerce o direito de negar aliberdade de palavra ao que é considerado pseudocientífico, como já se viuna discussão a respeito de raça e inteligência. Todos esses julgamentosinevitavelmente baseavam-se em alguma espécie de critério de demarcação.Esta é a razão por que o problema dos limites entre a ciência e apseudociência não é um pseüdoproblema de filósofos de poltrona: ele temsérias implicações éticas e políticas.

Naturalmente, Lakatos tinha grande consideração pela ciência,como Karl Popper, cujos passos apaixonadamente seguiu. Popper(l 966, p. 369) explica como a sua defesa da racionalidade em geral,e da ciência em particular, é uma tentativa de ir contra o "relativis-mo intelectual e moral", considerado por ele a "principal doençafilosófica de nosso tempo". Não é incomum que os defensores deum elevado estatuto da ciência vejam-se como defensores daracionalidade, da liberdade e do modo de vida ocidental, já que,

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afinal de contas, "o que realmente está em jogo é nada menos queo futuro progresso de nossa civilização" (Theocharis e Psimopou-los, 1987, p. 597).

Paul Feyerabend é um dos filósofos mais lidos que se opõe ae zomba dessas venerações da ciência. Segundo algumas de suasformulações mais radicais, as atitudes atuais em relação à ciênciaeqüivalem a nada menos que uma ideologia representando umpapel afim ao que desempenhou o cristianismo na sociedadeocidental, algumas centenas de anos atrás, e da qual devemos noslivrar. Feyerabend (1975) diz que a ciência moderna não temcaracterísticas que a tornem superior e distinta do vodu ou daastrologia. Em seu livro mais recente (l 987), ele glorifica um "adeusà razão", onde "razão" deve ser lida como o modo de racionalidadeque os filósofos, que defendem para ela alguma situação privilegia-da, presumem distinguir a ciência. Nas últimas décadas, tornou-secada vez mais comum os sociólogos voltarem sua atenção para adimensão social da ciência e, em especial, para os processosimplicados na construção social do conhecimento científico. Essasinvestigações levaram a maioria deles a questionar as explicaçõesortodoxas atribuídas ao estatuto privilegiado da ciência, e algunsdeles a assumir posturas semelhantes à defendida por Feyerabend.Collins e Cox (1976), por exemplo, defendem explicitamente umponto de vista relativista intransigente, com o argumento de quenão há uma diferença intrínseca entre o método da ciência e ométodo empregado por Marian Keech e seus seguidores paraconvencer os outros da autenticidade de sua maneira de lidar comseres extraterrestres.

As páginas que seguem contêm minha tentativa de esclareceressas discussões a respeito do estatuto da ciência. Uma investigaçãodetalhada da prática científica exigirá que nos unamos a Feyer-abend e aos sociólogos contemporâneos na rejeição de boa parteda filosofia ortodoxa da ciência. Entretanto, procurarei resistir aorelativismo radical freqüentemente defendido por esses autores etentarei elaborar uma defesa restrita da ciência, interpretando o queacredito estar correto nas noções tradicionais da objetividade e

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isenção de valores da ciência. Ou melhor, espero que um examedetalhado da maneira como é fabricado (num certo sentido de"fabricar": construir, elaborar) o legítimo conhecimento científicomostre como ele pode ser diferenciado de suas fabricações (numsegundo sentido de "fabricar": montar). No capítulo final mostrareipor que não desejo que minha defesa restrita do estatuto epistemo-lógico da ciência seja equiparada à defesa do tipo de atitude queprega "manter a política longe da ciência", atitude que deixa semquestionamento o campo político, já incontestável dentro daciência.

1.2 A estratégia positivista

O principal objetivo dos positivistas lógicos, que floresceramem Viena durante as décadas de 20 e 30 e cuja significativainfluência ainda persiste, era fazer a defesa da ciência e distingui-lado discurso metafísico e religioso, que a maioria deles descartavacomo bobagem não-científica. Eles procuravam construir umadefinição ou caracterização geral da ciência, incluindo os métodosapropriados para sua construção e os critérios a que recorrer parafazer sua avaliação. Com isso em mãos, visavam defender a ciênciae criar dificuldades para a pseudociência, mostrando como aprimeira se ajusta à caracterização geral, e a última não. Os detalhesda concepção de ciência oferecidos pelos |)ositivistas foram rejeita-dos ou radicalmente alterados nas últimas décadas. Não obstante,a estratégia geral contida em sua tentativa de defender a ciênciaainda tem muitos adeptos. Ou seja, como ainda pressupõemnormalmente os filósofos, cientistas e outros, para defender aciência devemos recorrer a uma explicação geral de seus métodose padrões. Além do mais, os positivistas não foram os primeiros atentar uma caracterização geral da ciência. O Novum organum deFrancis Bacon, o Discurso sobre o método de René Descartes e aCrítica da razão pura de Immanuel Kant são notáveis precursores

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esforços dos positivistas para elaborar uma explicação geral daciência e seus métodos.

A caracterização geral da ciência buscada pelos filósofos a queme referi pretendia ser universal e a-histórica. Universal, no sentidode que se tencionava que fosse igualmente aplicada a todas as tesescientíficas. Os positivistas buscavam, por exemplo, uma "teoriaunificada da ciência" (Hanfling, 1981, capítulo 6) que pudessemempregar para a defesa da fisica e da psicologia behaviorista e paracriticar com severidade a religião e a metafísica. A explicação quese buscava para a ciência seria a-histórica no sentido de que deveriaaplicar-se tanto às teorias passadas como às contemporâneas e àsfuturas. Por conveniência, refiro-me ao objetivo de defender aciência por meio do recurso a uma explicação universal e não-histórica de seus métodos e padrões como estratégia positivista, jáque esta foi uma proeminente característica do positivismo lógico.

Imre Lakatos e Karl Popper são dois eminentes filósofos daciência dos tempos recentes que adotam a estratégia positivista,ainda que, é claro, sejam bastante críticos em relação à particularexplicação da ciência oferecida pelos positivistas. Imre Lakatos(1978, p. 168-9 e 189) acreditava que o "problema central nafilosofia da ciência" era "a questão de determinar as condiçõesuniversais sob as quais uma teoria é científica". Ele sugeria que asolução do problema "deveria oferecer-nos uma orientação a res-peito de quando a aceitação de uma teoria científica é racional equando é irracional" e esperava que isso nos ajudasse a "criar leispara lutar contra ... a poluição intelectual". Lakatos recorria a suateoria da ciência para defender os físicos contemporâneos e criticaro materialismo histórico e alguns aspectos da sociologia contem-porânea, expressando o caráter universal que atribuía à ciência,embora seu caráter a-histórico esteja evidente no uso que ele fezpara defender o caráter científico da revolução copernicana etambém da einsteiniana. Alan Musgrave (1974, p. 560) consideraa solução de Popper para o relatívismo "uma insistência empadrões objetivos absolutos". O próprio Popper (1972, p. 39;

seção 29) buscava demarcar o limite entre a ciência e a

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não-ciência em termos de um método que ele considerava caracte-rístico de todas as ciências, inclusive as sociais.

Não é incomum encontrarem-se os próprios cientistas ematividade expressando a idéia de que uma explicação universal dométodo científico poderia ou deveria ser usada para defender ouajudar a aperfeiçoar a ciência. Assim, dois físicos contemporâneos(Theocharis e Psimopoulos, 1987) insistem em que a prática e adefesa da ciência deveriam exigir uma definição mais razoável dométodo científico e deploram o quanto os cientistas em exercícioignoram essa definição. Chegam mesmo a atribuir a essa ignorân-cia o que consideram ser a doença atual da ciência. Outros cien-tistas tentaram analisar as controvérsias contemporâneas a respeitodos sistemas satisfatórios de classificação biológica voltando-se parauma "estrutura filosófica dos critérios de teorias e metodologiascientíficas" (Bock, 1973, p. 381) e considerando o problemarelativo à "natureza da ciência" (Gaffhey, 1979, p. 80).

Até que ponto é amplo e profundo o sentimento de que umadefesa da ciência deve seguir a estratégia positivista evidencia-se apartir da reação típica dos filósofos e sociólogos da ciência quenegaram a existência de algo como uma explicação universal ea-histórica do método e padrões científicos capazes de orientar otrabalho dos cientistas ou de avaliar o mérito da ciência que estesproduzem. Essa reação parece motivada pelo pressuposto de queo abandono da noção de um método ou conjunto de padrõesuniversais necessariamente encerra um ceticismo radical em rela-ção à ciência, segundo o qual nenhuma teoria científica pode serconsiderada melhor do que qualquer outra; a ciência epistemolo-gicamente eqüivale à astrologia ou ao vodu, e a avaliação das teoriascientíficas é questão de opinião ou gosto, atitude resumida peloslogan utilizado por Feyerabend (1975, p. 28) para caracterizar suateoria "anarquista" da ciência: "vale tudo". Theocharis e Psimo-poulos (1987, p. 597) estão tão convencidos de que uma defesa daciência exige recorrência a uma explicação filosófica do métodocientífico que parecem deixar implícito que deveriam ser obstadosaqueles que, como eu mesmo, insinuam outra coisa aos estudantes:

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Podemos nos perguntar como é que muitas universidades pelomundo afora proporcionam a seus estudantes de ciência cursos formaiscompulsórios sobre os rigores do método científico. Em relação às univer-sidades que proporcionam cursos optativos sobre as tendências atuais nafilosofia da ciência, será que seus corpos dirigentes têm consciência do fatode que muitos professores desses cursos inclinam-se a sabotar o métodocientífico?

No próximo capítulo, exponho meu argumento contra aestratégia positivista, que considero bastante equivocada para osque desejam defender a ciência. Em capítulos subseqüentes, mos-tro por que a rejeição do método universal não tem conseqüênciasque possam causar quaisquer preocupações aos corpos dirigentesdas universidades.

1.3 Métodos e padrões historicamente contingentes

Digo que a reação comum de horror em relação ao abandonode um método ou conjunto de padrões a-históricos, que vê amudança como um abandono total da racionalidade, resulta deuma falha na distinção entre a rejeição do método ou conjuntode padrões universais e imutáveis, por um lado, que defendo, ea rejeição de todo método e padrão, por outro, a que resisto.Como já disse em outro texto (Chalmers, 1986, p. 26): "Nãoexiste nenhum método universal. Não existe nenhum padrãouniversal. Contudo, existem padrões a-históricos contingentesimplícitos nas atividades bem-sucedidas. Isso não significa umvale tudo em questões epistemológicas". Não são apenas aquelesque adotam a estratégia positivista que deixam de fazer a distinçãoentre os métodos e padrões universais absolutos e os métodos epadrões contingentes sujeitos à mudança. Feyerabend (1975,p. 285), da mesma forma, não discrimina quando, depois deminar as explicações ortodoxas do método científico, conclui que"o restante são opiniões estéticas, opiniões de gosto, preconceitos

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metafísicos, ânsias religiosas, em resumo: o que resta são nossosanseios subjetivos".

Recorrendo-se aos padrões contingentes, idéia que defendo,será possível bloquear o caminho para um tipo de relativismo cétícoàs vezes apoiado por Feyerabend e por alguns dos sociólogos daciência, que discutiremos mais adiante neste livro? O fato de queuma resposta afirmativa não é uma resposta direta evidencia-se nareação comum desses que adotam a estratégia positivista paraposturas como a minha. Isso foi levantado, por exemplo, por BarryGower (l 98,8) em sua crítica a algumas de minhas idéias publicadasanteriormente. Se há padrões implícitos nas atividades bem-sucedidas, como sustento, como essas atividades podem seravaliadas de fora? Mais especificamente: se a física aristotélicaincorporasse padrões aristotélicos e a física de Galileu incorporassepadrões galileanos, como poderíamos estar em posição de dizerque a física de Galileu é superior à aristotélica, como desejariamos defensores da ciência? Quando se adotam padrões aristotélicos,a física de Aristóteles é superior, ao passo que, adotando-se ospadrões galileanos, o julgamento é invertido. Tout comprendre, c'esttout pardonner (Compreender tudo é tudo perdoar), resume Gower(1988, p. 59). Para dizer que a física de Galileu é um avanço emrelação à física aristotélica não precisaríamos de algum superpadrãoaplicável a ambas? Isto não nos leva de volta à necessidade de ummétodo universal? Da mesma forma, meus oponentes podemobservar que existem métodos e padrões inerentes na astrologia ouna parapsicologia e chegar à conclusão de que a minha posturanão deixa espaço para a crítica dessas atividades, já que eu me negoa recorrer aos padrões universais para avaliar os métodos e padrõesimplícitos em quaisquer atividades, por mais distanciadas queestejam de qualquer ciência ortodoxa. Acompanhando essa linhada argumentação, os defensores da estratégia positivista podemdizer que não há meio caminho como esse a que aludi para falarde padrões contingentes implícitos nas atividades bem-sucedidas.Em relação à noção de sucesso aqui mencionada, meus críticospodem insistir, como Gower, que uso essa idéia gratuitamente, a

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menos que eu tenha alguma caracterização universal do sucesso,ão há meio caminho, como aparentemente insinua essa linha de

argumentação. Ou temos padrões absolutos específicos para umaexplicação universal da ciência ou temos o relativismo cético, e aopção entre a teoria evolucionária e a ciência da criação torna-seurna questão de gosto ou de fé.

A tentativa que faço neste livro de apreender o campo entre ométodo universal e o relativismo cético continua mais ou menosda seguinte forma. De modo bastante pragmático, e de olho noque a ciência física já conseguiu realizar, tento especificar qual é ameta da ciência. A meta da física é estabelecer teorias e leisextremamente gerais e aplicáveis ao mundo. O quanto essas leis eteorias são realmente aplicáveis ao mundo deve ser determinadono confronto entre elas e o mundo, da maneira mais rigorosapossível, segundo as técnicas habituais existentes. Além do mais,compreende-se que a generalidade e o grau de aplicabilidade de leise teorias estão sujeitos a um constante aperfeiçoamento. Tendoassim especificado a meta da ciência, depois de havê-la elaboradoe ilustrado com exemplos, para torná-la um pouco menos inócua,e depois de argumentar que esta é uma meta não-utópica muitasvezes satisfeita na ciência, estou em posição de avaliar métodos epadrões com base no ponto de vista a que eles atendem. Como ameta da ciência certamente terá de ser avaliada em relação a outrosobjetivos e outros interesses, uma vez adotada essa meta, a extensãoalcançada pelos diversos métodos e padrões não é uma questão deopinião subjetiva, mas de fato objetivo a ser determinado dernaneira prática.

Os defensores da estratégia positivista normalmente se apre-sentam como defensores da ciência e da racionalidade, e seusopositores, como inimigos da ciência e da racionalidade. NestePonto, estão enganados. Ao adotar uma estratégia em defesa daciência condenada à falha, estão servindo de joguete nas mãos doMovimento contra a ciência, que tanto temem, e tornam o trabalhode Paul Feyerabend fácil demais. H. M. Collins (1983, p. 99-101),Urr* sociólogo da ciência de quem discordo em uma série de

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oportunidades neste livro, expressa de modo admirável o que tentodemonstrar:

Enquanto a autoridade científica é legitimada em relação a filosofiasinsatisfatórias da ciência, é fácil para os leigos desafiar essa autoridade. Émuito simples mostrar que a atividade científica em qualquer caso particularnão está de acordo com os cânones das filosofias que a legitimam. Estãose cumprindo os temores daqueles que fazem objeção ao relatívismo combase em suas conseqüências anárquicas, não como resultado do relativis-mo, mas como resultante de uma confiança exageradamente prolongadanas mesmas filosofias que se supõe cercarem a autoridade científica. Estacerca parece ser feita de palha. Se novas cercas tiverem de ser construídas,elas deverão ter sua base na atividade científica.

Gosto de pensar que a defesa da ciência que ofereço neste livroé superior às defesas no estilo positivista, porque é sustentável eporque deixa claro o terreno em que a ciência deve ser defendida.

1.4 A crítica da pseudociência

Neste livro procuro retratar a física como um empreendimentoobjetivo e progressivo. A maneira como elaboro minha argumen-tação exige um exame minucioso do que a física já realizou e decomo isto foi realizado. Particularmente, a minha formulação dameta da ciência chegou a uma configuração bastante pragmática,servindo aos tipos de leis e teorias estabelecidas pelo desenvolvi-mento de métodos satisfatórios na física. Como a minha argumen-tação assume essa forma, há limites necessários que determinamaté que ponto minha análise pode servir de base para criticar áreasdo conhecimento estranhas à física. Se alguma área do conheci-mento, como a psicologia freudiana ou o materialismo históricode Marx (para tomarmos dois dos alvos favoritos dos filósofos daciência), tivesse de receber uma crítica fundamentada no fato denão se ajustar à minha caracterização da física, isso implicaria quetodo conhecimento autêntico deve adaptar-se aos métodos e pa-

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drões da física. Não me sinto preparado para esta pressuposição epenso que seria muito difícil defendê-la.

À luz de minha análise, um tipo de crítica possível é contestarpretensos conhecimentos apresentados como se fossem científicos

no mesmo sentido da física, talvez porque pretendam ter sidoconstruídos de acordo com métodos similares aos da física e,conseqüentemente, apresentados como se tivessem um estatutoepistemológico semelhante ao desta ciência. Se o criacionismo, aparapsicologia, a eugenia ou o que Marian Keech diz a respeito dosseres extraterrestres (Collins e Cox, 1976) são defendidos porserem considerados científicos no mesmo sentido em que a físicaé científica, acredito que as ponderações apresentadas neste livroindiquem como se pode repudiar esse tipo de pretensão.

Quando nos voltamos para campos como o da teoria ouhistória social, dos quais plausivelmente se pode afirmar teremobjetivos um pouco diferentes e, analogamente, métodos e padrõestambém diferentes da física, minha explicação da ciência não temmuito a oferecer, nem pretende ter muito a oferecer em relação àmaneira como as teorias nesses campos poderiam ser avaliadas.No máximo, minha análise e defesa da física podem ser tomadascomo indicação do modo de proceder em outros casos, ou seja, natentativa de identificar as metas implicadas, as práticas desenvolvi-das para corresponder a essas metas e o grau de sucesso obtido.

Na penúltima seção de What is this thing called science.7, resumiminha atitude em relação a essas questões da seguinte maneira:

Como agora está claro, acredito que não existe nenhuma concepçãoatemporal e universal da ciência e do método científico que possa atenderao objetivo de avaliar todas as pretensões de conhecimento. Não temos osrecursos para chegar a isso e para defender essas idéias. Não podemosdefender ou rejeitar com legitimidade pontos do conhecimento porque elesse ajustem ou não a determinados critérios já prontos da cientifkidade. Acoisa é bem mais séria do que isso. Se, por exemplo, desejamos assumiruma postura esclarecida sobre determinada versão do marxismo, teremosde investigar quais são esses objetivos, quais os métodos empregados parachegar a eles, até que ponto eles foram atingidos e quais as forcas ou fatores

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que determinam seu desenvolvimento. Estaríamos então em posição deavaliar a versão do marxismo em termos da conveniência daquilo a quealmeja, do quanto seus métodos permitem que essas metas sejam atingidase dos interesses a que atende. (Chalmers, 1982, p. 169)

Espero que a discussão exposta nos próximos capítulos venhaa esclarecer e desenvolver mais o conteúdo dessas observações epossa mostrar por que não sinto nenhuma necessidade de voltara elas.

CAPÍTULO 2

CONTRA O MÉTODO UNIVERSAL

2.1 Observações introdutórias

Como já indiquei anteriormente, os que defendem um estatutoprivilegiado para o conhecimento científico normalmente adotamo que denominei estratégia positivista. Quer dizer: tentam definiruma certa metodologia universal a-histórica da ciência que especi-fique os padrões em relação aos quais se deva julgar as supostasciências. Popper e Lakatos, influentes filósofos da ciência, emboraantipositivistas em aspectos fundamentais, adotaram uma versãodessa estratégia. Em época mais recente, John Worrall (1988,P- 265 e 274) expressa muito enfaticamente sua fidelidade àestratégia positivista. Segundo Worrall, "estabelecer princípiosfixos para avaliação da teoria científica é a única alternativa aorelativismo", de modo que, "sem os princípios invariáveis da boaciência, toda idéia de explicar-se o desenvolvimento da ciênciacorno um processo racional é seguramente abandonada". DaJttesma forma, Barry Gower (1988, p. 59) lamenta o fato'de quea idéia de um método característico da pesquisa científica não seja

Popular", e tenta resolver o problema.

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ALAN CHALMERS

Neste capítulo, exponho resumidamente as razões pelas quaisuma tentativa de defender a ciência recorrendo-se a uma explicaçãouniversal a-histórica está condenada. Suponhamos, em nome daargumentação, que existe uma categoria excepcional chamada"ciência" e um método científico universal regendo o seu progressoe a sua avaliação. Como poderiam os filósofos da ciência estabeleceruma caracterização satisfatória desta categoria, "ciência", e seumétodo? Que recursos têm os filósofos à sua disposição paradeterminar o que a ciência é ou deveria ser? Devo examinar umasérie de respostas possíveis e sustentar que elas são insatisfatórias.

2.2 O recurso à natureza humana

As tentativas feitas por uma série de filósofos do século XVIIpara responder a minha pergunta concentravam-se na importânciada natureza humana. Colocada em termos bastante simples, suaposição pode ser caracterizada da seguinte maneira: já que são sereshumanos que produzem e que avaliam o conhecimento em gerale o conhecimento científico em particular, para compreender asdiversas maneiras pelas quais o conhecimento pode ser apropria-damente adquirido devemos levar em conta a natureza de cada serhumano que o adquire e o avalia. Devemos analisar os aspectosrelevantes da natureza humana. Esses aspectos são a capacidadeque os seres humanos têm de raciocinar e sua capacidade deobservar o mundo por meio dos sentidos. Os racionalistas clássi-cos, como Descartes, concentraram-se no primeiro aspecto. Assim,vemos que em seu Discurso sobre o método Descartes rejeitava ocostume e a autoridade como fontes satisfatórias para a fundamen-tação segura do conhecimento e decidira estudar por si mesmo,usando todas as forças de sua mente numa tentativa de livrar-sedos "muitos equívocos que possam obscurecer a luz da naturezaem nós e que nos deixam menos capazes de dar ouvidos à razão".Para ele, a natureza do conhecimento, suas origens e seus limitesdeveriam ser entendidos em termos de nossa "luz natural da razão".

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xjo terreno dos empiristas, encontramos John Locke (1967,xxxii) explicando que, diante de certas questões epistemológicas

específicas, percebera que, antes de tratar dessas questões, eranreciso "examinar nossas próprias capacidades e verificar queobjetos de nossa compreensão eram ou não próprios para tal".Entre essas capacidades, para Locke, muito importante era, natu-ralmente, a capacidade dos seres humanos observarem o mundopor meio dos sentidos. David Hume (1969, p. 42), buscando oselementos empiristas na epistemologia de Locke, deixou muitoclaro que, em sua opinião, a natureza do conhecimento deve sercompreendida por meio da investigação da natureza dos sereshumanos que o adquirem. Para citar suas próprias palavras:

É evidente que todas as ciências têm uma relação, maior ou menor,com a natureza humana; e, por mais que qualquer uma delas pareçadistanciar-se disso, continuarão voltando a ela por uma ou outra passagem.Mesmo a matemática, a filosofia natural e a religião natural dependem emcerta medida da ciência do homem, pois estão além do conhecimento doshomens e são julgadas por suas forças e suas faculdades. É impossível dizerquais mudanças e aperfeiçoamentos poderíamos fazer nessas ciências seestivéssemos inteiramente ao corrente da extensão e da força do entendi-mento humano e pudéssemos explicar a natureza das idéias que emprega-mos e das operações que realizamos em nosso raciocínio.

As teorias racionalistas e empiristas da ciência sofrem de gravesproblemas internos. Os racionalistas, quando tentavam justificarproposições advindas de um pensar claro como verdades absolutas,eram, com efeito, obrigados a adotar certas noções problemáticasevidentes por si mesmas. (Vale a pena lembrar que boa parte desua física, que Descartes tentou justificar recorrendo a seu métodoracionalista, terminou por revelar-se totalmente falsa.) Os empiris-tas estavam diante de uma série de problemas relacionados àfalibilidade e ao campo restrito dos sentidos, e do problema dejustificar as generalizações que necessariamente ultrapassam aevidência proporcionada por determinadas aplicações dos sentidos(o problema da indução - Chalmers, 1982, capítulos 2 e 3). EssesProblemas internos são graves e suficientes para desacreditar as

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tentativas filosóficas tradicionais de fundamentar uma teoria daciência com base na natureza humana. Contudo, não considero asdificuldades internas com que se depararam o racionalismo e oempirismo tradicional as principais razões para rejeitá-los comoexplicações satisfatórias da ciência. Sou da opinião de que aabordagem =geral que exige que se trace a natureza do conhecimentocientífico de acordo com a natureza dos seres humanos que oproduzem está fundamentalmente equivocada.

O ser humano é moldado pela sociedade em que vive e oproblema de definir-se alguma essência imutável atrás de diferençassociais, culturais e históricas é notoriamente difícil. Sem sombrade dúvida, um aspecto essencial dos seres humanos é sua capaci-dade de pensar e de sentir. Entretanto, provavelmente de nadaadiantará buscar a natureza da ciência em seja lá p que de universalexistir nessa capacidade, pela simples razão de que, sejam quaisforem as resistências dos homens, os processos racionais, empíri-cos e experimentais que a ciência historicamente encerra mudame evoluem. Assim, por exemplo, o cálculo infinitesimal estava àdisposição dos cientistas que vieram depois de Newton e Leibniz,mas não antes; era possível valer-se dele na sustentação de debatessobre infinitesimais, algo que não estava à disposição de Arquime-des. E, repito, depois que Galileu introduziu a técnica de teste dasleis científicas sob as condições artificiais de um experimentocontrolado, podia-se justificar a ordem física por trás do mundodesordenado da experiência comum de um modo antes impossível.Quando Galileu surgiu com o telescópio, abriu-se um novo campode dados para a ciência, que tornou redundante boa parte dosdados anteriores obtidos a olho nu. * Os fatos relativos a variaçõesnos procedimentos racionais e empíricos empregados na ciêncianão têm muito a ver com a natureza humana. As diferenças entreos métodos de Arquimedes e Newton, Aristóteles e Galileu nãodevem ser compreendidas em termos de suas respectivas naturezas,

Esses aspectos da flsica de Galileu são discutidos mais detalhadamente em outroscapítulos.

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as em termos dos cenários epistemológicos em que estavam•mersos. A natureza do conhecimento científico, a maneira comoela deve ser justificada com recurso à razão e à observação, mudahistoricamente. Para compreendê-la e identificá-la, devemos anali-sar os instrumentos intelectuais e práticos que um cientista tinhaà mão em determinado contexto histórico. Tentar classificar ométodo científico pela análise da natureza humana é examinarprecisamente o lugar errado.

2.3 O recurso à física e sua história:positivismo e falsificacionismo

Embora a abordagem tradicional da compreensão do conheci-mento e da ciência, centrada nas faculdades humanas, ainda tenhahoje uma grande influência na filosofia ortodoxa da ciência, umasérie de filósofos da ciência contemporâneos procura justificar suasexplicações da ciência e do método científico de maneiras bastantediferentes. Esses filósofos aceitam o que foi dito acima a propósitoda natureza humana e chegam à conclusão de que, se quisermoscompreender a ciência e seus métodos, devemos nos concentrarna própria ciência e nos métodos que ela incorpora, mais do quenos cientistas e em sua natureza. Os filósofos que adotam essaabordagem normalmente tomam a física e sua história como umdos melhores exemplos do que seja a ciência. Assim, o desenvol-vimento de uma teoria científica satisfatória e de seus métodos é odesenvolvimento da teoria que melhor corresponda à exemplarfísica. Uma explicação do método científico deve ser testada emrelação à história da fisica. Thomas Kuhn, Imre Lakatos e PaulFeyerabend são filósofos contemporâneos que dão uma atençãodetalhada à história da ciência inerente a essa abordagem. Eu diriaque, desse modo, as tentativas de justificar uma caracterizaçãouniversal da ciência e seu método enfrentam sérias dificuldadesque abalam esse projeto.

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Essa é uma grande dificuldade. Se exigimos que uma teoriasatisfatória da ciência e seus métodos seja compatível com a históriae a prática contemporânea da física, então não temos nenhuma anosso dispor. Os melhores candidatos para uma explicação dométodo universal não passam no teste. Essa é a questão maisimportante que Feyerabend levanta em seu livro Contra o métodoe é também uma das principais conclusões a que fui levado emmeu livro anterior. Tento aqui resumir a argumentação essencialdesse livro e de outros textos. Alguns- pormenores e acréscimosmais recentes a esses argumentos estão nos capítulos subseqüentes.

Os positivistas visavam mostrar que a ciência autêntica é"verificada" e mostra ser verdadeira ou provavelmente verdadeiraem relação a "sentenças protocolares" - fatos revelados a observa-dores cuidadosos por meio de seus sentidos. Contudo, relatóriosde observação são públicos, passíveis de teste e de revisão, além debastante diferentes da concepção que tinham os positivistas sobreverdades indiscutíveis diretamente reveladas aos observadores pormeio dos sentidos (Chalmers, 1982, capítulo 3). A afirmação deque "a Terra é estática" foi aceita como fato observável por milharesde anos antes que as novas teorias do movimento levassem à suarejeição e substituição durante a revolução científica. Se nosvoltamos para o experimento e seu papel na física contraposto àsimples observação, o problema para a idéia dos positivistas de quea ciência se baseia em fundamentos seguros fornecidos pelossentidos torna-se ainda maior, como veremos no capítulo 5.

Mesmo se admitirmos que os positivistas tiveram alguma baseobservacional segura para a ciência, a sua exigência de que as teoriascientíficas fossem verificadas em relação a essa base não pode serrespondida. Inevitavelmente há uma lacuna lógica entre a provafinita seletiva disponível como suporte de exigências científicas e ageneralidade dessas mesmas exigências. Descobriu-se que os aspec-tos lógicos desse argumento são ampliados pela observação histó-rica de que muitas teorias científicas do passado (inclusive asgrandemente apreciadas, como a mecânica newtoniana), ainda quebem apoiadas por diversas evidências, são deficientes e foram

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superadas (I^ikatos, 1968). As exigências utópicas dos positivistastêm como conseqüência o fato de que as nossas mais respeitadasteorias científicas não são científicas por seus critérios, e reduzem-sea bobagens para os positivistas, que sustentam o ponto de vista deque proposições não-verificáveis são realmente bobagens.

A rival mais importante do positivismo é a explicação falsifica-cionista da ciência, de Popper, aceita por muitos cientistas efilósofos em atividade. Acho que não há objeções a fazer a algunsdos aspectos mais gerais da posição de Popper. As teorias científicassão falíveis e permanecem sujeitas a um aperfeiçoamento ousubstituição. Na medida em que as teorias dizem algo sobre omundo, elas devem ser aferidas em confronto com ele. Na prática,a história da ciência pode ser compreendida como a sobrevivênciada teoria mais apta em condições rigorosas de teste. No entanto,essas concessões a Popper não chegam ao ponto de admitir queele tenha seguido com êxito a estratégia positivista e conseguidoformular uma explicação universal e a-histórica da metodologiacientífica. Se tentarmos extrair dos textos de Popper os critériosfalsificacionistas visando aceitar ou rejeitar teorias em uma ciênciaou designar áreas inteiras como científicas ou não-dentíficas,recairemos em problemas semelhantes àqueles a que - o próprioPopper mostrou - o positivismo estava sujeito. Ou seja, se formosrigorosos demais em relação a nossos critérios falsificacionistas,muitas de nossas mais admiradas teorias na física não poderão serconsideradas boa ciência, ao passo que, se os atenuarmos, poucasáreas deixarão de assim qualificar-se.

Por exemplo, suponhamos que o falsificacionismo exija arejeição das teorias falsificadas. Neste caso, a menos que este"falsificada" seja interpretado de maneira tão branda a ponto deser ineficaz, teorias científicas exemplares deixarão de corresponderà exigência. Por exemplo ainda, por toda sua história impressio-nantemente bem-sucedida, a astronomia de Newton enfrentouobservações incompatíveis com ela - que iam desde observaçõessobre a órbita da Lua às da órbita do planeta Mercúrio. Natural-mente, há pontos lógicos que tornam a falha dos cientistas em

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acompanhar nossa estrita regra falsificacionista perfeitamente com-preensível e razoável. As situações realistas de teste na ciência sãomuito complexas; não apenas contêm a teoria que está sendotestada, mas uma série de outras pressuposições secundárias,condições iniciais e afins. Para ser comprovada, a teoria de Newtonsobre a órbita da Lua exigiu pressuposições sobre a forma da Luae seus movimentos internos, bem como sobre os da Terra,correções nas leituras do telescópio para permitir verificar-se arefração na atmosfera da Terra - e assim por diante. Mais tarde,foi possível poupar a teoria de Newton, localizando a causa dasaparentes falsificações em outros pontos do labirinto teórico.Transpirou depois que os problemas colocados pela órbita deMercúrio não poderiam ser eliminados dessa maneira. Contudo,seria muito implausível esperar que alguma regra felsificacionistaestivesse à altura de indicar previamente aos cientistas que resulta-do esperar. É uma felicidade que os físicos do século XIX nãofossem felsificacionistas, como definido pela estrita regra conside-rada, e que eles tenham continuado a desenvolver a teoria newto-niana, apesar do problema não-resolvido da órbita de Mercúrio.Não seremos, assim, também forçados a fazer concessões, porexemplo, em relação aos criacionistas ou "cientistas da criação",por terem fechado os olhos para os aspectos problemáticos dosregistros fósseis?

O próprio Popper não defende a regra felsificacionista rigorosadiscutida acima. Ele reconhece que se deve dar uma chance paraque as teorias mostrem seu mérito e que elas não deveriam serdescartadas aos primeiros sinais de dificuldades. Como ele mesmodiz (1974, p. 55): "Sempre sublinhei a necessidade de um certodogmatísmo - o cientista dogmático tem um papel importante adesempenhar. Se nos entregamos à crítica muito facilmente, jamaisdescobriremos onde está a verdadeira força de nossas teorias". Ocritério da demarcação usado por Popper para distinguir a ciênciada não-ciência pode ser dividido entre o que se poderia chamaruma parte "lógica" e uma parte "metodológica". A parte lógicaadmite que, se uma teoria tiver de fezer alguma declaração mais

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substantiva sobre como é o mundo, é porque deve haver maneiraspelas quais se pode reconhecer que ela tem algum problema. Ouseja, devem existir maneiras possíveis de admitir que o mundo édiferente do que diz a teoria. Essa é uma exigência razoável,proveniente de uma concepção muito geral do que entendemospor conhecimento do mundo. No entanto, o problema de Popperé que ele se satisfaz com esse leque amplo de teorias. Esse problematinha sido resolvido pela física de Aristóteles, para a qual omovimento de um projétil impunha um problema. Fora resolvidopela astrologia, quando uma previsão nela baseada deixava deocorrer, e foi resolvido pela teoria de Freud, já que sua afirmaçãode que os sonhos são a realização de desejos é ameaçada pelaexistência dos pesadelos e dos sonhos cheios de ansiedade, parausar um exemplo a que o próprio Popper se referiu (1983, seção18). A simples exigência de falsificabilidade, compreendida mera-mente como possibilidade de um conflito entre as previsões deuma teoria e algum resultado observável, embora suficiente paraeliminar afirmações como "está chovendo" ou "não está chovendo"ou alguma paródia mais radical da teoria freudiana ou da astrologia,admite bem mais do que os defensores da estratégia positivistagostariam de admitir como ciência autêntica.

O segundo aspecto metodológico do critério da demarcação dePopper foi projetado para responder à dificuldade esboçada acimae diz respeito ao caráter da estratégia apropriada a adotar diante defalsificações aparentes. As teorias deveriam ser expostas a críticase não deveriam ser modificadas de maneira ad hoc com a introduçãode acréscimos impossíveis de testar para resolver evidências pro-blemáticas. Poderíamos argumentar que foi dessa maneira nadacientífica que os aristotélicos eliminaram o problema imposto pelomovimento do projétil, introduzindo hipóteses impossíveis detestar sobre a força motriz do ar pelo qual aquele se movimentava,enquanto (pelo menos, segundo Popper) a resposta de Freud para0 problema dos pesadelos foi igualmente insatisfatória.

O problema é que, se esse aspecto do critério de marcação delimites de Popper é formulado com vigor suficiente para ter alguma

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força, a física deixa de ser uma ciência. Nossas mais prezadas teoriasna física enfrentam e sempre invariavelmente enfrentaram proble-mas para os quais os físicos ou fecham os olhos ou respondem demaneira provisória. Por exemplo, no primeiríssimo documento emque apresentava os fundamentos de sua teoria cinética dos gases,em 1859, Maxwell (1965, p. 409) observava que "possivelmente ateoria não satisfazia a conhecida relação entre os dois caloresespecíficos de todos os gases". Todos os consideráveis êxitos dateoria cinética ocorreram depois que a dificuldade da teoria foiavaliada. Ela não foi eliminada até o advento da mecânica quântica.Os problemas que ocorrem na física atômica e nuclear contempo-rânea são eliminados com o uso de diversas técnicas de "renorma-lização", que em geral se admite serem ad hoc. Por que uma teoriamuito boa, com um potencial não-detectado, seria rejeitada porenfrentar dificuldades que, segundo todas as aparências, só podemser resolvidas de maneira arbitrária? Que alternativas têm os físicosmodernos, senão dar prosseguimento ao desenvolvimento dosaspectos promissores da mecânica quântica, apesar de qualquermal-estar que sintam a respeito da renormalização? Se o critériofalsificacíonista de Popper receber uma formulação precisa para terforça normatizadora, terá conseqüências indesejáveis para a ciência.

As dificuldades para o critério de demarcação de Popper quediscuti são precisamente aquelas apontadas por Lakatos. A suametodologia para os programas de pesquisa científica foi criadacom uma alteração do falsificacionismo de Popper, de modo acorresponder a essas dificuldades. A metodologia de Lakatoscontém uma liberalização do critério falsificacionista de Popper.Um bom programa de pesquisa invariavelmente depara com certasdificuldades, alguns fenômenos recalcitrantes, mas não precisa serabandonado por conta disso. As evidências conflitantes com asafirmações centrais de um programa tornam-se antes anomalias, enão falsificações. Um programa é científico se apresenta perspecti-vas para a pesquisa, e se essa pesquisa leva (pelo menos às vezes)a êxitos na forma de novas previsões. As anomalias tornam-sefalsificações de um programa apenas quando este é substituído por

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outro que as explique melhor; por exemplo, podemos dizer, combase em uma perspectiva pós-einsteiniana, que a órbita de Mercú-rio falsifica a teoria newtoniana, enquanto no século XIX era apenasurna anomalia.

Um problema no critério de demarcação de Lakatos é aausência de força normativa. Nenhum programa de pesquisa podeser rejeitado por falsificação porque seu sucesso pode estar logo aliadiante, de modo que "podemos racionalmente apegar-nos a umprograma degenerescente até este ser superado por um rival emesmo depois" (Lakatos, 1978, p. 117). Quem diria que os grandesêxitos, na forma de previsões confirmadas de modo impressionan-te, estão à espera de programas dentro do marxismo ou dasociologia contemporânea, para citar-se duas áreas de que Lakatosnão gosta...? Como instrumento para combater a pseudociência, ametodologia de Lakatos é realmente muito rudimentar.

Uma segunda enorme dificuldade em sua metodologia provémdo quanto Lakatos a adaptou para que ela correspondesse à físicacontemporânea (Feyerabend, 1976). Ele defende sua metodologiatestando-a em relação a episódios da história da física dos últimosduzentos anos, mais ou menos, geralmente aceitos como grandesrealizações científicas (Lakatos, 1978, p. 124). Dado esse fato, nãobasta presumir que o critério implícito para demarcação nessametodologia aplica-se a outras áreas que não a física. Mais uma vez,verifica-se que a metodologia de Lakatos é um instrumento ineficazpara combater a pseudociência.

A dificuldade acima enfrenta todas as explicações da ciência eseus métodos e padrões implícitos na estratégia de tentar justificarteorias gerais da ciência recorrendo-se à física e sua história.Quando se presume que os métodos e padrões a que se chega dessamaneira sejam em geral aplicáveis à biologia, à psicologia, à teoriasocial e afins, tacitamente pressupõe-se que a física constitui oparadigma da boa ciência, a que todas as outras ciências devemaspirar. À primeira vista existem razões amplamente reconhecidaspara rejeitar-se essa pressuposição. Os povos, as sociedades e ossistemas ecológicos não são objetos inanimados a serem manipu-

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lados da mesma maneira que os objetos da física. Os experimentosartificiais e o papel que estes desempenham na física previsivelmen-te não são os meios, próprios ou possíveis, suficientes para suacompreensão. Enquanto as teorias sociais ou algumas das teoriaspsicológicas influenciam a disposição ou as ações das pessoas, elastêm um efeito sobre os sistemas a que supostamente se aplicam deuma forma que as ciências físicas não têm. Há um sentido real emque, no desenvolvimento das ciências humanas e sociais, visamosantes mudar do que simplesmente interpretar o mundo. Em todocaso, este não é o lugar em que se vai discutir os problemas especiaisde que se ocupam a teoria social, a ecologia e afins. Basta observarque Lakatos e os que seguem estratégia semelhante pressupõemque todo conhecimento científico autêntico deveria compartilharos métodos e padrões da física, posição essa difícil de defender epara a qual Lakatos não oferece nenhuma defesa.

2.4 Os métodos e padrões variáveis na física

Surge mais uma dificuldade para os que defendem os métodose padrões universais no momento em que se admite que osmétodos e padrões da física estão sujeitos à mudança e que estãosujeitos a essas mudanças precisamente nas ocasiões em que a físicafaz mais um avanço impressionante. Os cientistas alteram seusmétodos e padrões quando aprendem, na prática, o que se ganharácom essa mudança. Ironicamente, um excelente exemplo históricodesta minha argumentação está narrado num ensaio de Lakatospublicado postumamente (1978a). O argumento deste ensaioimpõe uma séria dificuldade para a estratégia positivista contraria-mente defendida por Lakatos.

A distinção entre a ciência e a não-ciência em geral aceita naépoca de Newton era uma versão da distinção que havia naAntigüidade entre episteme e doxa - entre o conhecimento genuínoe a mera opinião. Sustentava-se que o conhecimento científicogenuíno deveria consistir ou basear-se em verdades necessárias

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estabelecidas pela razão, enquanto muitos acrescentavam estaexigência "essencialista" de que estas fossem verdades fundamen-tais, ou seja, verdades que não necessitavam de uma explicação. Ageometria euclidiana era muitas vezes tomada como ciência exem-plar, de acordo com esse ideal. A teoria do conhecimento deDescartes, muito influente na época de Newton e considerada pelopróprio Newton a principal explicação da ciência a levar-se emconta para sua avaliação, deu expressão a uma idéia da ciênciabaseada em princípios evidentes e muito claros a priori. A teoriade Newton entrava em conflito com essa concepção de ciência ecom os padrões científicos da época. Sua física, especialmente suaexplicação da gravidade, não podia ser comprovada por meio deprincípios evidentes. Sua concepção da ação gravitacional à distân-cia, longe de ser evidente, era em geral considerada ininteligível -em certo sentido, essa era uma opinião aceita pelo próprio Newton,que admitia que, embora pudesse descrever a ação da gravidade,não poderia explicá-la. A teoria de Newton não proporcioríou asexplicações fundamentais.

Apesar de conflitante com os cânones aceitos da ciência, ateoria de Newton funcionou muitíssimo bem na astronomia e nafísica terrestre. Estava claro que, colhidos os frutos dessa teoria, ospadrões teriam de ser mudados para incorporá-la. Foi precisamenteó que aconteceu. Os cartesianos "foram obrigados, quase contra avontade, a opor a tirania do evidente aos primeiros princípiosfundamentais e, assim, a mudar os padrões da crítica e da demons-tração científica e até o próprio conceito de conhecimento" (Laka-tos, 1978a, p. 207).

Um trecho do ensaio de Lakatos (1978a, p. 201) resume asituação: "As grandes obras de arte podem mudar os padrõesestéticos e as grandes realizações científicas podem mudar ospadrões científicos. A história dos padrões é a história da interaçãodecisiva - e nem tão decisiva assim - entre os padrões e asrealizações". Desde que não se force demais a analogia com a arte,lfiso serve para resumir sucintamente a minha posição, poisexpressa o fato de que os padrões estão sujeitos à mudança diante

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das realizações práticas. A minha análise da introdução do telescó-pio na astronomia que está no capítulo 4 é mais um exemplo.

O reconhecimento de que os padrões estão sujeitos à mudançadiante da prática poderia ser indicativo de que a busca por umametodologia universal a-histórica substantiva é fútil. É o querealmente penso. Como poderia Lakatos então conciliar sua expli-cação da grande transformação que Newton levou aos padrõescientíficos com sua defesa da estratégia positivista? Creio que aseguinte citação servirá de pista para qual teria sido a resposta deLakatos:

Newton desencadeou o primeiro grande programa de pesquisa cientí-fica da história dos homens; ele e seus brilhantes seguidores estabeleceramna prática as configurações básicas da metodologia científica. Nesse sentido,podemos dizer que o método de Newton criou a ciência moderna. (1978a,p. 220)

A mudança nos métodos e padrões descrita por Lakatos éinterpretada por ele como, na prática, a descoberta dos métodos epadrões corretos que presumivelmente seriam e são empregados daíem diante de forma imutável para "ajudar-nos a criar leis para deter... a poluição intelectual" (Lakatos, 1974, p. 89).

Há duas razões pelas quais considero insustentável essa posiçãoque aqui atribuo a Lakatos. Em primeiro lugar, depois de haverconcordado que é perfeitamente inteligível dizer que os métodos epadrões mudam diante da prática, como faz Lakatos em seu estudoda física de Newton, não é razoável pressupor que semelhantesmudanças não ocorram em outras ocasiões subseqüentes. Emsegundo lugar, é possível apresentar exemplos de mudanças nospadrões da física depois de Newton. Por exemplo, um padrãoimplícito na física do século XIX tratava de seu caráter determinista.Dadas as condições iniciais bem-definidas de um sistema, seudesenvolvimento posterior é determinado pelas leis da física.Sabe-se muito bem que o abandono do determinismo restrito namecânica quântica desconcertou Einstein e outros. Entretanto, sedesejamos aceitar e explorar as possibilidades práticas para o

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avanço que a mecânica quântica permitiu, devemos nos adaptar àsmudanças nos padrões que ela encerra. O advento da radioastro-nomia deu origem a discussões a respeito do que deve ser consi-derado evidência relevante na astronomia (Edge e Mulkay, 1976),análogas às que surgiram quando Galileu apareceu com o telescó-pio. Em cada um desses casos, o resultado foi uma mudançaprogressiva e significativa em alguns dos padrões implícitos naastronomia experimental. Darei um terceiro exemplo hipotético,mas instrutivo. Suponhamos, como algumas pessoas já acreditam,que o raciocínio dentro da mecânica quântica encerra uma nova"lógica quântica" que viola certos princípios clássicos da lógica.Nessa circunstância, o sucesso prático da mecânica quântica cons-tituiria uma boa razão para mudar nossos padrões lógicos nessecontexto. Nem mesmo nossos mais reverenciados padrões lógicossão dados universalmente.

Outra conclusão a extrair da ponderação que apresento a seguirreforça um argumento apresentado no final da seção 2.3. Seadmitimos o quanto os métodos e padrões da física são moldadospela prática, podemos reconhecer o quanto é precário transferiresses métodos e padrões para outras áreas como a sociologia ou ahistória. Ainda assim, deve-se fazer precisamente isso, se tivermosde empregar a estratégia positivista para deter a "poluição intelec-tual", como visava Lakatos, por exemplo.

Neste capítulo, refleti sobre duas possíveis respostas para aquestão dos recursos que os filósofos têm à disposição paraestabelecer uma explicação a-histórica universal do método cientí-fico. Levei em consideração a natureza humana e também recorrià física e a sua história e afirmei que a questão não pode serrespondida de modo satisfatório lançando-se mão desses recursos,ttá uma outra possibilidade a ser aventada, que recorre ao objetivoda ciência: talvez seja possível estabelecer uma determinada meto-dologia, de forma que ela seja a mais apropriada para contribuirPara a meta uma vez adotada para a ciência. Reflito sobre essa táticae dela extraio o que penso ter algum valor no capítulo seguinte.

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CAPÍTULO 3

A META DA CIÊNCIA

3.1 Observações introdutórias

Embora seja necessário falar muito mais sobre o que exporeiresumidamente, a meta da ciência pode ser entendida como aprodução do conhecimento do mundo, ao passo que o objetivodas ciências físicas, com as quais me preocupo neste livro, podeser entendido como a produção do conhecimento do mundo físico,em oposição ao mundo social. Falando superficial e rapidamente,pode-se no mínimo avaliar a distinção que existe entre o objetivoou o interesse na produção do conhecimento e outros objetivos,como atender a interesses econômicos ou políticos de indivíduos,grupos ou classes específicos.* Eu diria, contra os céticos (entre osquais se pode incluir uma série de sociólogos contemporâneos),que nas ciências físicas foram desenvolvidas técnicas devidamente

A idéia desenvolvida aqui tem certa afinidade com a compreensão de Althusser(1966, capítulo 6 e p. 231) da produção do conhecimento, que ele consideravaanáloga à produção material. Essa visão althusseriana está claramente articulada eampliada em Sutching (1983).

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interpretadas para a produção do conhecimento que correspondeà meta da ciência. A seguir apresentarei um esboço caracterizadorda meta da ciência que, por alto, serve para distingui-la de outrasformas do conhecimento; depois, atendendo à história e à práticada física, ofereço uma caracterização mais detalhada das metasimplícitas na ciência contemporânea. Pode-se defender métodos epadrões do ponto de vista do quanto estes atendam à versão práticapossível da meta da ciência. *

Muitos filósofos tradicionais abordam o problema da análiseda ciência procurando elaborar uma caracterização geral do conhe-cimento genuíno para só então entender a ciência como um casoespecial dessa caracterização (ou, como interpretam os positivistaslógicos, como o caso único). No capítulo anterior, já me referi àstentativas dos gregos antigos de extrair uma distinção geral entre oconhecimento autêntico e a simples opinião. Logo no início da erada ciência moderna, encontramos John Locke (1967, capítulo l,seção 2) descrevendo seu propósito: "... investigar a origem, acerteza e a extensão do conhecimento humano, junto com as basese o grau de crença, opinião e concordância". David Armstrong(1973) estabelece uma versão especialmente clara das tentativas defilósofos analíticos modernos de proporcionar uma caracterizaçãogeral do conhecimento como algo justificado, verdadeira crença oucoisa do gênero.

Não seguirei nenhuma abordagem geral desse tipo em minhatentativa de caracterizar a meta da ciência. Como já mostrei nadiscussão dos capítulos anteriores, não acredito que os filósofosdisponham de recursos que lhes permitam formular uma explica-ção geral do conhecimento e suas metas, sem um exame detalhadode alguns exemplos reais do que é considerado conhecimento.Feito isso, creio que se torna bastante clara a existência dessadiversidade de tipos de conhecimento e que o esforço de encontrar

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 41

* Outros (Popper, 1979, p. 191-205; Watkins, 1985; Laudan, 1984) recorreram à metada aencm para justificar suas metodologias, embora não da mesma maneira ou coma mesma concepção de meta para a ciência que elaboro aqui.

.„ caracterização do conhecimento que apreenda os aspectosrlistintivos de todos eles não está destinado a obter resultado.Assim, além do que é normalmente considerado conhecimentocientífico, temos o conhecimento do cotidiano, que é o bom senso,

conhecimento que possuem os artesãos habilidosos ou ospolíticos espertos, o conhecimento contido nas enciclopédias ouarmazenado na mente de um especialista em programas de audi-tório - e assim por diante. Além de deixar de apreender os aspectosdistintivos de alguns ou de todos esses tipos variados de conheci-mento, as explicações mais tradicionais falham no momento emque passam a ser utópicas, pois especificam critérios para oconhecimento genuíno que não podem ser satisfeitos. Esse é odestino em que recaem as diversas tentativas para a distinção entreo conhecimento e a mera opinião que recorrem às idéias do que énecessário ou verdade essencial, características do conhecimentogenuíno.

Os comentários do parágrafo anterior mostram como defendouma abordagem pragmática para a especificação e adoção de metas.Para serem úteis, e não fúteis, as metas não podem ser utópicas.Devem ser tais que se possa constatar um avanço em sua realização.E há mais: saber se a meta é ou não utópica é algo que só se aprendena prática. Nossas metas podem e devem ser modificadas diantedo que aprendemos sobre o que é possível realizar.

3.2 A ciência como busca da generalidade

Um aspecto do conhecimento científico que desejo esclareceré sua generalidade. Se tomamos exemplos incontestáveis do conhe-cimento científico (digamos, a geometria euclidiana e a lei dareflexão da luz conhecida pelos antigos, ou a mecânica newtonianae a teoria da relatividade de Einstein, de épocas mais modernas),não é difícil avaliar a generalidade das afirmações ali contidas. Osteoremas da geometria aplicam-se igualmente aos domínios dacarpintaria, à topografia e à astronomia, enquanto a mecânica

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newtoniana tanto se aplica aos movimentos dos cometas quanto àoscilação de um pêndulo.

A importância da generalidade, de um ponto de vista pragmá-tico, está muito bem ilustrada pelo exemplo de Randall Albury(1983, p. 44-5) da bomba da espinha dorsal do dragão. Era umabomba usada na sociedade chinesa tradicional para irrigar osarrorais. A água era carregada em paletes, que eram elevados emângulo reto por um mecanismo de bicicleta. Os detalhes dodesenho dessa bomba chinesa tradicional, especialmente .a formados paletes, variava de uma circunstância para outra, presumivel-mente como resultado da experiência prática dos que a utilizavam.A bomba foi introduzida no Ocidente durante o século XVII e erausada em projetos hidráulicos e pelos bombeiros. No século XVIII,em sua Arquitetura hidráulica, De Belidor submeteu essa bomba auma análise geométrica e mecânica e apresentou uma explicaçãogeral de seu funcionamento. Com auxílio da análise de De Belidor,é possível especificar-se a forma ideal do palete para uma determi-nada circunstância. Enquanto os chineses tradicionais possuíam oconhecimento artesanal baseado na experiência prática, o trata-mento de De Belidor constituía um conhecimento científico. Ageometria e a teoria das máquinas que ele usou eram gerais, nosentido de que se aplicavam a qualquer situação mecânica; aresultante teoria da bomba da espinha dorsal do dragão poderiaser empregada para projetar bombas destinadas tanto a circunstân-cias novas como às já conhecidas.

O exemplo anterior serve para expor a ligação que existe entrea generalidade e a utilidade. Embora a importância da ciência comorecurso para oferecer um controle aperfeiçoado e amplo sobre anatureza tenha aumentado firmemente desde o momento darevolução científica, muitos desejariam resistir a uma identificaçãoestreita entre a ciência e sua aplicação prática. Diz-se que a ciênciabusca a compreensão: o aperfeiçoamento da tecnologia é umsubproduto desta compreensão aperfeiçoada. Essa idéia certamentesatisfazia aos gregos antigos e aos filósofos medievais, muitos dosquais procuravam entender o mundo - a "realidade por trás das

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arências" - sem nenhuma preocupação especial com as aplica-"es práticas. Talvez se possa dizer o mesmo dos cosmologistas

modernos, por exemplo. Os antigos buscavam o conhecimentoperal que explicasse o mundo cotidiano das aparências. Por exem-nlo, tomando como certas as mudanças observáveis que ocorremno mundo cotidiano, como o crescimento e a decadência, ocongelamento e a ebulição, as mudanças das estações e assim pordiante, eles buscavam uma explicação do mundo que esclarecessecomo, em geral, é possível a mudança. Esse problema levou algunsdeles a propor uma teoria atômica, pela qual se explicaria aidentidade através da mudança em termos da persistência dosátomos antes e depois da mudança, ao passo que um novo arranjodesses átomos seria responsável pela mudança ern si. Demócritodizia que "na verdade só existem os átomos e o vazio". Se existealgo mais geral do que isso, talvez seja a teoria geral da relatividade,essencial para a cosmologia moderna. Quer consideremos a ciênciaem termos do controle material, quer em termos da compreensãoque ela permite, a generalidade é uma das características que adistinguem.

Devo limitar a ênfase na generalidade. As características impor-tantes da ciência, mesmo da ciência contemporânea "pura", seperdem, se nos fixamos demais num quadro da ciência como buscade generalidades teóricas. lan Hacking (1983) ilustrou muito bemcomo às vezes o experimento "tem vida própria" - o que éimportante. Por exemplo, ele descreve a maneira como DavidBrewster, personagem importante na ótica experimental na primei-ra metade do século XIX, descobriu muitas propriedades da luz,Proporcionando assim material que seria*mais tarde incorporadoà teoria ondulatória da luz. "Brewster não estava testando ouComparando nenhuma teoria", observa Hacking (1983, p. 157),

ete tentava descobrir como a luz se comporta." Para dar umexemplo mais atual, Envin Hiebert (1988) descreveu como ostísicos que faziam experimentos nucleares foram levados pelaPrática a uma "onda de novas descobertas experimentais iniciada

. Pela descoberta do nêutron, inclusive a fissão nuclear e as reações

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em cadeia auto-sustentadas", que pouco deviam aos desenvolvi-mentos da teoria nuclear.

Thomas Kuhn (1977) faz uma esclarecedora distinção entre oque chama de matemático e experimental ou ciência baconiana noséculo XVII. A matemática, assim como a mecânica newtoniana,encerrava leis matemáticas com elevado grau de generalização,enquanto a ciência baconiana trazia implícito o conhecimentoprático, baseado na experimentação do tipo tentativa e acerto. Estaúltima exigia uma investigação intencional do comportamento damatéria em situações novas - "torcer o rabo do leão", como colocouBacon. Grande parte da ótica dos séculos XVII e XVIII entra nestacategoria, assim como a linha de pesquisa que levou à máquina avapor e à Revolução Industrial. Nenhuma parte dessa pesquisaeficaz é entendida como busca da generalidade teórica. Ela poucodeveu à teoria explicitamente formulada. A ciência baconiana,como prática sistemática e disseminada, era uma novidade históricano século XVII, e a eficácia da estratégia foi uma descobertahistórica, que permanece um componente vital da atividade cien-tífica. Parte importante da meta da verdadeira ciência é a ampliaçãodos meios de, na prática, intervir no mundo físico e controlá-lo,sistematicamente torcendo o rabo do leão...

Acredito que existam duas razões para a existência e importân-cia da ciência baconiana não tornar a minha ênfase na generalidadeum aspecto distintivo do conhecimento científico insatisfatório. Aprimeira exige considerações semelhantes às ilustradas pela históriada bomba da espinha dorsal do dragão. Como e até onde os efeitospráticos criados e percebidos em específicas situações experimen-tais podem ser explorados fora delas? Uma boa resposta para essaquestão num caso determinado requer uma boa compreensãoteórica da situação, o que é comprovado pelos exemplos da ciênciabaconiana citados acima. Aperfeiçoamentos drásticos no projetodas máquinas tornaram-se possíveis com a teoria geral da termodi-nâmica que evoluiu no século XIX, o controle da fissão nuclearavançou muito depois que as energias de ligação e similares foramcompreendidas, e a teoria ondulatória da luz, de Fresnel, abriu o

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campo para possibilidades práticas que iam muito além do quegrewster foi capaz de realizar. Sem desejar negar a amplitude eimportância da ciência baconiana contemporânea, suas generaliza-ções teóricas é que tornam a ciência diferente e mais poderosa quea tecnologia medieval.

Uma segunda razão para meu enfoque das generalizaçõesteóricas da ciência é que este aspecto da ciência tem sido o principalalvo dos ataques dos céticos ou dos relativistas intransigentes, maisdo que sua eficácia prática. Afinal de contas, no mundo contem-porâneo de computadores, transplantes cardíacos e energia nu-clear, é muito difícil negar a afirmação de que a ciência nos tenhalevado a meios aperfeiçoados para um controle prático do mundomaterial. Estou preocupado em defender os aspectos teóricos daciência da crítica cética equivocada, criando com isso espaço parauma crítica da ciência mais eficaz, como a praticada na ciênciacontemporânea. Onde são levantadas dúvidas céticas a respeito dosaspectos mais práticos da ciência, como a objetividade da experi-mentação, eu a defenderei.

Se adotamos o ponto de vista de que a meta da ciência é oestabelecimento de generalizações que governem o comportamentodo mundo, é possível calcular que há nisso um problema funda-mental a ser resolvido. Como se poderá fundamentar esse tipo degeneralização? Há realmente um problema a ser resolvido, algo quevem da reflexão de que o mundo à nossa volta é complexo edesordenado e por isso não é possível distinguir as regularidadesque poderiam constituir as generalizações científicas aplicáveis aele. Fora de algumas áreas da astronomia e da ótica não existemregularidades sem exceções a observar. Mesmo os prováveis opo-sitores que buscam regularidades com leis do tipo "objetos pesadoscaem direto no chão" ou "nascem bolotas no tronco dos carvalhos"são contrariados muitas vezes em seu próprio jardim: primeiro,Pela queda das folhas no outono, e depois, pelas bolotas que caemem chão pedregoso ou são estragadas por geadas e passarinhos.Na seção 3.3 tentarei esclarecer a natureza do problema de comoas generalizações científicas devem ser fundamentadas pelo exame

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seletivo da história da ciência e da filosofia, para distinguir algumasdas soluções que têm sido oferecidas. Estaremos depois em melhorposição para avaliar essas soluções implícitas na ciência moderna.

3.3 As primeiras tentativas para o estabelecimentodas generalizações teóricas

Como se podem fundamentar as generalidades científicas semexceções, dada a natureza desordenada do mundo observável? Nafilosofia de Platão e Aristóteles há respostas para esse problema. Ainterpretação habitual da solução de Platão era pressupor que asexigências de conhecimento aplicam-se com certeza apenas a ummundo ideal, distinto do mundo natural em que vivemos, de modoque, por exemplo, a geometria constitui um conhecimento genuínode um mundo de cubos e triângulos ideais e assim por diante - aque, na melhor das hipóteses, os objetos circulares e triangularesdo mundo real correspondem de maneira muito rudimentar. Essamudança esquiva-se do problema que apresentei a respeito dorelacionamento entre as generalizações abstratas que ocorrem noconhecimento científico e nos eventos desordenados do mundoreal, pois estes são irrelevantes para o conhecimento platônico. Oposicionamento de Platão não constitui exatamente a solução denosso problema para aqueles que buscam o conhecimento domundo real, por mais plausível que seja a matemática. A respostade Aristóteles para o problema é mais interessante. Ao admitir aocasional e até freqüente disparidade entre as exigências fundamen-tais de suas teorias da natureza e as observações comuns, Aristótelesqualificava afirmações como "objetos pesados caem na direção docentro da Terra" e "sementes de oliveiras nascem em oliveiras'com expressões do tipo "na maioria dos casos" ou "via de regra'(Barnes, 1975). Em segundo lugar, Aristóteles distinguia o com-portamento e as propriedades essenciais dos acidentais, de modoque, por exemplo, a queda de uma folha é essencial, ao passo que

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sell vôo tremulante na brisa é acidental. O conhecimento só épossível quando diz respeito ao essencial.

Qualificar as generalizações com expressões como "na maioriados casos" é uma splução insatisfatória para nosso problema.Embora seja um expediente que funciona razoavelmente bem nabiologia sob circunstâncias normais, já que, por exemplo, namaioria dos casos as sementes de oliveira crescem em oliveiras,existem impressionantes exemplos contrários em outras áreas.Tendo em mente o comportamento usual das folhas de outono,de penas em queda (e assim por diante), pode muito bem acontecerque o número de objetos em queda que descem verticalmente emdireção ao centro da Terra esteja em minoria. A questão foiretomada por muitos autores medievais, especialmente influencia-dos por Tomás de Aquino (Wallace, 1981, p. 132-5). Seu trata-mento continha uma assimetria entre a elucidação e a previsão.Não é possível prever, por exemplo, que uma determinada sementecrescerá numa oliveira ou que uma pedra jogada descerá na vertical.As ocorrências acidentais, como a intervenção dos pássaros ou dosventos, podem impedir que as coisas tomem seu rumo natural.Entretanto, conforme a argumentação de muitos peripatéticosmedievais, se uma semente nasce numa oliveira ou uma pedra caiverticalmente, isto pode ser explicado mediante referência a suaessência e às causas naturais atuantes. Essa forma de análise erachamada de raciocínio ex supositione. Ela se estendia à explicaçãodos fenômenos naturais que só têm ocorrência rara, como aseclipses lunares e o arco-íris (Wallace, 1974). Não se pode preverquando ocorrerá um arco-íris, mas, quando ele aparece, sua causaPode ser atribuída à refração e dispersão da luz do Sol pelas gotasda chuva.

Esse é portanto um desenvolvimento medieval de uma dasrespostas de Aristóteles ao que coloquei como problema da típicaralta de consenso que existe entre as nossas teorias e os aconteci-Itlentos imediatamente observáveis. Diante disso, o raciocínio ex.*uí>ositione evita o problema. Entretanto, permanece uma dificul-te básica, referente ao método pelo qual se chega a explicações

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causais dos fatos que, segundo esse modo de raciocínio, presume-se, tenham ocorrido. Essa dificuldade está associada muito de pertoà segunda resposta de Aristóteles ao problema anteriormentemencionado. Como se podem conhecer as generalizações queregem o comportamento da luz encerradas na explicação doarco-íris? Que técnicas precisamente Aristóteles oferecia para dis-tinguir o essencial do acidental? Nem Aristóteles nem seus suces-sores medievais tinham alguma resposta satisfatória para esse tipode questão. Por exemplo, na física aristotélica, a distinção entre omovimento essencial e o acidental recai na noção de um cosmosordenado, esférico e centrado na Terra, sendo movimentos essen-ciais aqueles que servem para manter esta ordem (Clavelin, 1974,p. 12-21). Não é oferecido nenhum método sistemático para seestabelecer a existência e o caráter desta ordem. Em geral, ela sebaseava nos pressupostos comuns da época, como a imobilidadeda Terra e a distinção entre o reino terrestre e o celestial. S.Gaukroger (1978, p. 124) diz que "a estrutura explanatória queAristóteles propõe que utilizemos é incoerente, pelo feto de que asexplicações do gênero requerido em princípio não podem ser dadas".Aristóteles era um empirista que acreditava que "a experiência deveproporcionar os princípios de qualquer assunto" (Primeiros Analíti-cos, l, 30, 46a), mas a experiência não leva ao conhecimento dascausas necessárias, nem permite distinguir o essencial do acidental.

Não obstante, voltando-nos para filósofos antigos e medievaistalvez estejamos procurando uma resposta para o nosso problemano lugar errado. Afinal de contas, a nossa discussão do capítuloanterior indicava que os filósofos ainda estão lutando para encon-trar uma boa explicação da ciência, e este livro seria muitoredundante se isso já tivesse acontecido. Entremos na própriaciência do passado, em vez de na filosofia passada, para ver se nelaexistem meios satisfatórios para dar fundamentos às generalidades.

Os candidatos mais evidentes para o conhecimento científicosatisfatório estabelecido pelos gregos antigos são a geometria deEuclides e a estática de Arquimedes. Esta última consiste na teoriado equilíbrio, dos centros de gravidade e dos corpos flutuantes.

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Nessas ciências, as proposições aplicáveis ao mundo eram deduzi-das logicamente do que, na época, poderia ser plausivelmenteinterpretado como princípios evidentes por si mesmos, ou axiomas.IsJão preciso estender-me sobre esse ponto em relação à geometriaeuclidiana. A teoria do equilíbrio e dos centros de gravidade deArquimedes tratava os objetos como formas geométricas dotadasde peso. Esses objetos poderiam ser suspensos por fios sem pesoem braços rígidos apoiados por um eixo sem fricção. Os princípiosda teoria traziam implícita a geometria euclidiana, o pressupostode que os corpos tendem a se mover para baixo em virtude de seupeso e ponderações sobre a simetria, considerada evidente. (Porexemplo, pressupunha-se que, se dois pesos iguais fossem suspen-sos em braços iguais de uma balança, haveria equilíbrio por causada simetria da situação.) Nenhuma situação física real correspon-derá com precisão às descrições da geometria euclidiana ou daestática de Arquimedes. No entanto, quando as situações físicasmais ou menos se ajustam às descrições de Euclides ou Arquime-des, presume-se que essas teorias da geometria e da estáticacontenham prescrições mais ou menos aplicáveis a tais situações.Quando se adota esse ponto de vista, tanto adianta testar a estáticade Arquimedes com a observação do comportamento de balançasreais quanto a geometria euclidiana, com a medição e a soma dosângulos de um triângulo material. Temos então alguma explicaçãopara a relação entre a teoria e a experiência que prova ser satisfatóriapara uma boa diversidade de situações físicas estáticas.

Embora a ciência de Euclides e Arquimedes se baseasse emprincípios inicialmente evidentes, uma via de orientação maisempírica para a generalidade está implícita na antiga astronomia.A cuidadosa observação dos céus trouxe um conhecimento geralna forma de uma especificação das órbitas observadas do Sol, daLua e dos planetas, conhecimento suficiente para a previsão doseclipses e das conjunções e para servir de base a calendáriospráticos. A lei da reflexão da luz é mais um exemplo do conheci-mento geral estabelecido pelos antigos. Enquanto alguns, comoEuclides, tentavam argumentar em sua defesa recorrendo ao que

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consideravam princípios evidentes, Ptolomeu acreditava ser neces-sário testar a lei por meio da experimentação. Ptolomeu suspeitavatambém que houvesse uma lei regendo a refração e descreveuexperimentos projetados para determiná-la, ainda que nisso nãotenha tido muito sucesso. (Veja a minha avaliação um tantonegativa dos experimentos de Ptolomeu em Chalmers, 1975, queé o Anexo deste volume.)

A promessa oferecida por esses primeiros sucessos dos antigosnão teve confirmação. Não foram realizados grandes avanços emsua contribuição para a busca do conhecimento científico aplicávelde maneira geral até a revolução científica. Retrospectivamente,podemos verificar por que isso teria acontecido. As técnicasintroduzidas pelos antigos para o estabelecimento das generalida-des aplicáveis aos fenômenos complexos e desordenados do mun-do real eram satisfatórias apenas em uma série muito restrita decircunstâncias. A busca pelos princípios físicos evidentes teve umsucesso limitado apenas em áreas onde o mundo cotidiano daexperiência comum oferecia uma boa base para a abstração deprincípios que poderiam ser interpretados como evidentes. Ocampo limitado e a confiabilidade desse procedimento tornam-seevidentes assim que o domínio da experiência é transcendido. Hojesabemos, por exemplo, que a geometria euclidiana é violada naescala astronômica, enquanto a estática de Arquimedes seria inútilpara prever o comportamento de uma balança numa nave espacial.A avaliação dessas limitações só apareceu nos tempos modernos,naturalmente. Mais significativo para a nossa apresentação histó-rica é o fato de que, em muitas áreas, estavam totalmente ausentesos princípios que poderiam ser plausivelmente considerados evi-dentes por si. Foi exatamente esse o problema que surgiu quandoGalileu tentou levar as técnicas de Arquimedes da estática para oscorpos em movimento. O bom senso ou o mundo da experiênciacotidiana não nos propiciam princípios evidentes, capazes de nosproporcionar uma lei da queda, por exemplo.

Compreendemos hoje que os sucessos de orientação maisempírica dos antigos dependiam de certos aspectos muito impre-

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visíveis de nosso mundo físico. Como, por acaso, nosso sistemasolar consiste em um Sol de grande massa acompanhado por meiadúzia de planetas de massa relativamente menor que não interagemde modo significativo, os movimentos da Terra e dos planetas sãosuficientemente regulares para que as regularidades com algumsignificado sejam discernidas pela observação empírica. De umaperspectiva moderna, podemos dizer que o sistema solar é umexemplo muito raro de uma instalação experimental convenienteque por acaso ocorreu naturalmente. O comportamento regulardos raios da luz sob uma ampla diversidade de circunstânciascomuns também pode ser atribuído a configurações acidentais denosso mundo. A interação entre a luz e os campos gravitacionaisé muito pequena e o comprimento de onda da luz visível ésuficientemente pequeno para minimizar os efeitos da difração nonível macroscópico.

Dadas as técnicas criadas pelos antigos, seu sucesso na deter-minação do conhecimento científico geral inevitavelmente limitou-se a uma série restrita de casos especiais.

3.4 A generalidade e a experimentação: Galileu

Na física de Galileu encontramos uma solução inovadora parao problema de como devem ser autenticadas as generalizaçõescientíficas. Como indicado na seção anterior, pode-se dizer que oprincipal objetivo da física de Galileu era uma extensão das técnicasque Arquimedes havia empregado em sua estática para tratar doscorpos em movimento (Clavelin, 1974; Shea, 1972). Vejamoscomo isso levou Galileu a adotar um novo papel para a experimen-tação na ciência.

Em seus primeiros trabalhos sobre o movimento, encontramosGalileu tratando de situações idealizadas: balanças com eixos semfricção, esferas perfeitas rolando sobre planos inclinados perfeita-mente retos e coisas afins. Nesses trabalhos, Galileu indicava terconsciência do problema de como o tratamento dessas situações

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idealizadas se relaciona com os sistemas no mundo real e advertiaque "quem faz uma experiência sobre essa matéria não devesurpreender-se se ela falhar" (Galileu, 1960, p. 68). Contudo, issosignifica que a teoria de Galileu não pode ser legitimada pelorecurso à experiência. Uma vez que também se reconheça querecorrer à evidência também é insatisfatório para nossos objetivos,podemos ver como, nessa fase, Galileu não conseguiu resolver onosso problema.

A física experimentada de Galileu continha uma soluçãoqualitativa. Sua ciência do movimento encerrava a tese de que todosos corpos têm propensão natural a mover-se para baixo com umaaceleração uniforme e que o movimento horizontal é preservado.Essas hipóteses combinadas produziram uma trajetória parabólicapara os projéteis. Galileu (1974, p. 223) sabia que em geral essasafirmações não eram provenientes da experiência.

As conclusões abstratamente demonstradas são alteradas no concretoe são tão falsificadas que nem o movimento horizontal é igual, nem aaceleração natural ocorre exatamente na proporção pressuposta, nem alinha do projétil é parabólica - e assim por diante.

Uma razão fundamental pela qual os movimentos reais emgeral não correspondem aos descritos na teoria de Galileu é aexistência de uma série de obstáculos de atrito ao movimento.

Considerando-se apenas o obstáculo que o ar impõe aos movimentosem questão aqui, descobre-se que ele os perturba a todos numa infinitudede maneiras, segundo as infinitamente inúmeras maneiras que variam asformas, os pesos e as velocidades das coisas móveis.

Devido a problemas desse tipo, as bases da teoria de Galileusó poderiam ser testadas em situações experimentais criadas espe-cialmente para isso. As mais famosas eram as experiências complanos inclinados. Galileu testou suas afirmações sobre a inércia ea queda livre rolando bolas de bronze "bem redondas e polidas"por um canal num cilindro que era o mais reto possível. Pararestringir a fricção a um mínimo, "dentro do canal foi colado um

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pedaço de pergaminho, o mais macio e limpo possível" (Galileu,1974, p-169). Os movimentos que serviram como exemplificaçõese testes da teoria de Galileu não são do tipo que surge espontanea-mente. Por exemplo, uma importante seqüência de movimentosinvestigada por Galileu tratava de uma bola que descia um planoinclinado, era desviada para um plano horizontal e saía deste parauma queda livre (Drake, 1973). Foi necessário que Galileu criassesituações artificiais especialmente planejadas com o objetivo detestar sua teoria, reduzindo a um mínimo os efeitos indesejáveis.Ele introduziu uma série de técnicas para reduzir os obstáculos epara tratar dos que restavam, e desde então elas se tornaram padrãoda atividade experimental (Koertge, 1977).

O quadro da ciência que melhor atende a teoria do movimentode Galileu pode ser resumido da maneira seguinte: as teorias e asleis científicas descrevem as tendências que têm os sistemas decomportar-se de determinadas maneiras. Nas situações físicas reais,essas tendências se combinarão de maneiras complexas, de modoque poucas regularidades aparecerão no nível dos eventos obser-váveis. Fazendo uma intervenção experimental, podemos tentarisolar e investigar as tendências individuais e discernir as leis queas regem. Pressupõe-se então que essas leis, cuja demonstração écomprovada aqui e ali por meio de intervenções experimentais,aplicam-se tanto ao mundo exterior quanto ao mundo interno dassituações experimentais (Bhaskar, 1978). Essa é a solução queGalileu deu ao problema da generalização e que se tornou lugar-comum na física.

E preciso impor algumas reservas ao caráter dessa "solução".Não existe nenhuma garantia a priori de que as leis identificadasna atividade experimental continuem a ser aplicadas fora dassituações experimentais. O que se pode obter, pressupondo queisso aconteça, é algo que terá de ser aprendido na prática. O sucessoque a física goza desde Galileu é suficiente para confundir o céticointransigente quanto a esse aspecto, e não pode ser superestimado.Embora a física tenha provado ser eficientíssima para tratar desituações tecnológicas maquinadas artificialmente, sua capacidade

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para tratar do mundo natural é limitada fora de determinadosaspectos da astronomia. Isso é exemplificado pela notória feita deconfiabilidade das previsões meteorológicas ou, mais grave, pelaprecariedade de nossas avaliações do impacto ambiental das inter-venções tecnológicas no mundo natural.

Uma segunda ressalva necessária diz respeito à limitada ampli-tude que se pode dizer que Galileu tinha com relação à consciênciadas implicações de sua atividade experimental. Em minha interpre-tação, Galileu transformou a problemática meta da generalidadena ciência em uma forma que era viável em praticamente qualquergrau: "Identifique as generalidades em situações simples e, senecessário, artificialmente maquinadas, e pressuponha que essasgeneralidades continuem a aplicar-se a todas as situações, nãoimporta sua complexidade". Desnecessário dizer que-Galileu nãointerpretou dessa maneira suas inovações. Ele continuou atraídopelo ideal euclidiano ou arquimediano e muitas vezes tentouapresentar sua teoria do movimento como derivada dos princípiosevidentes, reivindicação que não poderia ser sustentada complausibilidade e que era incompatível com sua experimentação(Wisan, 1978, p. 3-4).

Deve-se acrescentar ainda uma terceira ressalva: o método deGalileu de dividir os experimentos certamente não resulta nummétodo de estabelecer as generalidades com certeza. As implicaçõesepistemológicas da experimentação de Galileu são discutidas nocapítulo 5.

3.5 A substituição do desenvolvimento pek certeza

Já vimos antes como, a física de Galileu foi realmente um pontode partida para a idéia de que a ciência deveria basear-se emverdades evidentes por si mesmas, ao passo que no capítulo 2vimos como a física de Newton, da mesma forma, foi um pontode partida para a concepção das leis científicas como verdades

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fundamentais estabelecidas com certeza. Essas mudanças, quecolocaram a física em seu caminho moderno, podem ser resumidaspela afirmação de que a ciência moderna substituiu a meta utópicapela certeza mediante a exigência de um aperfeiçoamento ou desen-volvimento constante. Essa exigência de desenvolvimento implicaque uma boa teoria deve nos contar alguma coisa que não sabíamosantes. O quanto uma teoria leva à boa previsão dos fenômenosqualitativamente novos torna-se especialmente significativo. (Aênfase no desenvolvimento e nas novas previsões é uma dascaracterísticas das filosofias da ciência de Popper e Lakatos.)

A importância dos tipos de consideração mencionados acimaaparece como significativa no conflito entre cartesianos e newto-nianos no final do século XVII e no início do século XVIII. Osnewtonianos, com certa justificativa, argumentavam que a físicacartesiana podia explicar apenas os fenômenos já conhecidos, eque mesmo isso só era obtido por meio de mecanismos necessárioscriados artificialmente com essa finalidade. Assim, foram imagina-dos vórtices etéreos para explicar os movimentos conhecidos dosplanetas; foram postuladas correntes de partículas em duas viasemitidas pelos ímãs e fluindo ou caindo em sorvedouros de duasvias em materiais magnéticos para explicar os fenômenos magné-ticos. Em compensação, os newtonianos diziam, mais uma vezjustificadamente, até certo ponto, que a mecânica newtoniana nãoapenas explicava de maneira não-artificial os fenômenos conheci-dos, como os movimentos planetários, mas também podia preverfenômenos anteriormente desconhecidos, como a não-esfericidadeda Terra, a maneira exata como varia a aceleração da gravidade emrelação à distância do centro da Terra e, mais tarde, espetacular-mente, o retorno do cometa de Halley. O reconhecimento de queum dos méritos da teoria de Newton era a amplitude de novasdescobertas que ela propiciava foi enfatizado, por exemplo, em1728, em Uma visão da filosofia de sir haac Newton, obra em queH. Pemberton observava como ela "levou ao conhecimento decoisas tais que, antes de sua descoberta, qualquer um consideraria

menos que loucura até mesmo a simples conjetura de que

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nossas faculdades algum dia chegassem tão longe" (Worrall eCurrie, 1978, p. 212-3). De um ponto de vista contemporâneoprivilegiado, podemos acrescentar muitos exemplos espetacularesde novas previsões acertadas que a física possibilitou - um são asondas de rádio previstas pela teoria de Maxwell e produzidas porHertz, outro é a curvatura dos raios de luz nos campos gravitacio-nais, prevista na teoria da relatividade geral de Einstein e detectadapor Eddington.

A propriedade da ênfase no desenvolvimento e aperfeiçoamen-to do conhecimento e o significado especial das novas previsõestêm apoio nas considerações gerais que apresentarei a seguir.Como já sublinhei, as pessoas não constróem o conhecimentosozinhas e a partir do nada. Nascemos todos em um cenárioepistemológico onde já existe muito conhecimento e variadosmétodos para sua produção, ampliação e aperfeiçoamento. Nãocoloco isso como uma verdade a priori. É concebível que osempiristas radicais estivessem corretos ao afirmar que as pessoasacumulam em mentes vazias o conhecimento a partir do que lhesé fornecido pelos sentidos; Descartes poderia estar certo ao dizerque as pessoas são capazes de estabelecer as verdades necessáriaspor meio da luz natural de sua razão. Entretanto, existem muitís-simas evidências que dizem respeito à natureza da percepção, dalinguagem, do aprendizado dos seres humanos, da história doconhecimento em geral, e da história da ciência em particular, queindicam que eles não estavam certos. Não existe nenhum argumen-to de Arquimedes a partir do qual se possa construir e avaliar oconhecimento. Não temos outra alternativa senão começar noponto em que ele estiver e tentar acrescentar ou aperfeiçoar oconhecimento existente com a utilização ou o aperfeiçoamento dosmétodos que temos à mão. As novas exigências de conhecimentodeverão ser avaliadas em relação ao que já é conhecido ou aceito.Ou seja, elas serão julgadas pela extensão em que forem umaperfeiçoamento daquilo que veio antes. A capacidade de prevercorretamente novos fenômenos é, com certeza, importante sinalde tal aperfeiçoamento.

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onde a ciência moderna encerra uma substituição dohietivo da certeza pela meta do aperfeiçoamento ou desenvolvi-

mento, aí ela representa uma redução dos padrões que os antigossforcaram-se por superar. Representa a substituição de um objeti-

vo realizável por um utópico. Contudo, a discussão acima mostraum sentido em que as exigências colocadas na ciência modernasão maiores do que as dos antigos. A exigência de um desenvolvi-mento contínuo e especialmente da novidade qualitativa não éapenas uma exigência radical, mas algo que os antigos poderiamde maneira muito razoável considerar utópico. A extensão e asformas com que a moderna ciência tem sido capaz de se desenvol-ver e desvendar novos fenômenos é uma descoberta ou percepçãode ordem prática, que não poderia ter sido prevista.

3.6 A meta da ciência

Diante do que foi dito até aqui neste capítulo, iremos ponderare resumir o que pode ser dito sobre a meta da ciência.

A física encerra o objetivo de estabelecer generalizações aplicá-veis ao mundo físico. É necessário haver meios de fundamentaressas generalizações. Pelo menos desde a época da revoluçãocientífica estamos em posição de saber que essas generalizações (leise teorias) científicas não podem ser estabelecidas a priori; temostambém boa base para aceitar que a exigência de certeza é utopia.Contudo, a exigência de que nosso conhecimento esteja sempresendo transformado, aperfeiçoado e ampliado não é utopia.

Até que ponto essa concepção da meta da ciência serve desubstituto para o método universal rejeitado no capítulo anterior,evitando que se caia em algum "vale tudo" radical? Se estamos atrásda meta da ciência, algumas recomendações muito gerais sobreMétodos e padrões podem ser defendidas por referência a minhacaracterização dela. Podemos pedir, por exemplo, que as candidatasa leis e teorias científicas sejam justificadas pelo confronto rigorosodelas com o mundo, de modo a tentar estabelecer sua superioridade

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em relação a outras concorrentes. Podemos acrescentar que, nafísica, um teste tão severo (para usar a terminologia apropriada dePopper) normalmente tem implícita a experimentação artificial e ofato de que o resultado positivo da previsão de novos fenômenosterá significado especial. Quaisquer métodos ou padrões maisfundamentados do que essas afirmações bastante moderadas terãode ser produzidos na prática dentro das próprias ciências.

As afirmações acima, que vão pouco além de pautas esquemá-ticas muito mal-acabadas ou de uma orientação particular, emboracaindo um pouco aquém da metodologia fundamentada a quemuitos filósofos dedicaram longos textos, bastam para ajudar acombater as formas mais radicais do relativismo e do ceticismo.Em especial, as mudanças nos métodos, padrões e, se for o caso,paradigmas fundamentados podem ser avaliadas do ponto de vistada amplitude em que estendem a meta da produção do conheci-mento aperfeiçoado e mais abrangente. Afirmo que isso pode serfeito; a ciência pode e freqüentemente tem sido praticada de umaforma que atende predominantemente aos interesses da produçãodo conhecimento, mais do que é subserviente a outros interessesde classes, ideológicos ou pessoais. Um dos objetivos do restante'deste livro é fundamentar isso em relação ao anarquismo deFeyerabend e ao relativismo de alguns sociólogos contemporâneosdo conhecimento. Entretanto, no capítulo final, afirmo que issonão chega a ser uma assepsia da ciência, que a imunize contra umacrítica social e política. Em vez disso, espero que minha análiselimpe o caminho para essa crítica.

A tentativa que fiz de especificar a meta da ciência deve conteralgumas ressalvas para eliminar alguns possíveis equívocos daminha posição. Embora eu acredite que uma boa concepção dasmetas da ciência possa vir a ser empregada para defender a ciênciado ceticismo radical e possibilite avaliações de exigências de conhe-cimento que têm pouca força normativa em relação a essa meta,não desejo ser interpretado como alguém que considera a meta daciência um bem absoluto que necessariamente deve ser colocado

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tina de outras metas. Poder-se-ia muito bem dizer que o problema, utilizar eqüitativamente o conhecimento científico que temos ém problema de urgência maior do que a produção de maisonhecimento científico na sociedade contemporânea.

Uma segunda ressalva é a admissão de que a atividade científica

e a busca de suas metas na nossa ou em qualquer outra sociedadeestão inevitavelmente entrelaçadas com outras atividades que têmmetas diferentes. Afirmar, como o faço, que é possível distinguir oobjetivo da ciência de outros objetivos não é o mesmo queexpressar a tese de que as diversas atividades podem ser separadas.Falarei um pouco mais sobre essas ressalvas no capítulo 8.

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CAPITULO 4

A OBSERVAÇÃO OBJETIVADA

4.1 As hipóteses empiristas sob ataque

Muitos dos que preferem a estratégia positivista e buscam umacaracterização geral da ciência e seu método consideram essencialque estes estejam baseados em fundamentos seguros. Em geral,pressupõem que são os nossos sentidos que proporcionam essesfundamentos e acreditam que a ciência se baseia em fatos "objeti-vos" determinados pelo uso cuidadoso dos sentidos.

A hipótese empirista relativa ao quanto uma observação obje-tiva para a ciência está a nosso dispor tem sido duramente criticadapelos filósofos da ciência nas últimas décadas. Eles sublinharam ocaráter não-determinado, passível de revisão e de falha, "teórico-dependente" da observação e suas afirmações. Eu mesmo adoteiessa linha de raciocínio no capítulo 3 de What is this thing calledscience.7. Embora continue pensando que muita coisa está corretanessa crítica das hipóteses empiristas sobre as bases do conheci-mento, desejo opor resistência a uma conclusão que muitas vezesdela é extraída e que, por exemplo, meus alunos repetidamentefazem: a de que a observação é necessariamente "subjetiva", de

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modo que os "fatos" observáveis são relativos aos observadores edependem de sua psicologia, história e cultura.

Neste capítulo desejo resistir à reação subjetivista e relativistaà crítica do empirismo, pela qual, parece, sou parcialmente respon-sável. Explorarei o sentido em que a observação, do modo comoestá infiltrada na ciência, é objetiva, especialmente quando ossentidos recebem o auxílio dos instrumentos apropriados. Contu-do, a minha defesa da observação não servirá para socorrer oempirista que procura a observação para fornecer bases seguraspara o conhecimento. Contra esse empirista, direi, por exemplo,que, quando Galileu introduziu o telescópio na astronomia, houveuma alteração nos padrões que regiam o que deveria ser conside-rado um fato observável - embora eu também diga, contra orelativista fanático, que a mudança de Galileu constituiu umprogresso, do ponto de vista da meta da ciência. Consideroinoportunas as tentativas de enfraquecer as explicações empiristasmediante o recurso aos aspectos subjetivos da observação. Nocapítulo 5 oferecerei o que acredito ser um argumento bem maisvigoroso contra a idéia empirista de que os sentidos podemproporcionar bases seguras para a ciência - argumento que nãoleva em conta os aspectos problemáticos da percepção.

4.2 A observação teórico-dependente

Uma linha de argumentação mais comum usada para contestara reivindicação empirista de que os fatos objetivos são "dados" aobservadores cautelosos pelos sentidos é enfatizar até que ponto asexperiências perceptivas das pessoas não são determinadas demaneira objetiva unicamente pelos aspectos físicos do que estásendo observado, mas influenciadas pelas expectativas e pelo con-texto, inclusive o teórico, do observador. Assim, um leigo diantede um raio X do peito de alguém poderá ver apenas costelasrodeadas de manchas, enquanto um radiologista verá cicatrizes e

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utros indícios de infecção e doença; um microscopista experienteverá células dividindo-se, onde James Thurber (l 933) vê apenasurna "substância leitosa um tanto nebulosa". Um exemplo maisespecífico vem da história da geologia, a respeito das formaçõeshorizontais que parecem estradas nas encostas das montanhas deGlen Roy, na Escócia. Os fatos observáveis diferiam uns dos outrossegundo os diferentes geólogos, aparentemente dependendo de suabase teórica e de sua experiência passada. "As diferentes teoriaslevavam a expectativas diferentes sobre a extensão e posição dasestradas; diferentes observadores apresentaram descobertas dife-rentes e adequadas" (Bloor, 1976, p. 21).

Essas reflexões perfeitamente legítimas sobre importantes as-pectos da percepção humana têm sido usadas pelos filósofos daciência para enfraquecer as hipóteses características dos empiristasrelativas ao papel da observação na ciência (Hanson, 1958; Kuhn,1970). Não é difícil ver como essa linha de raciocínio pode levar auma posição totalmente relativista. O argumento continua mais oumenos assim: os empiristas estabelecem que a percepção humananos fornece fatos objetivos sobre o mundo, que constituem osfundamentos da ciência. Contudo, as percepções dos seres huma-nos não são objetivas, mas grandemente influenciadas e moldadaspela subjetividade dos observadores, por sua base teórica, seuhistórico cultural e suas expectativas e pontos de vista. A capacidadede discernir o que são os fatos observáveis em determinada situaçãoirá variar de pessoa a pessoa, de cultura a cultura e de escola teóricaa escola teórica. Dada esta relatividade dos fatos observáveis, aciência neles baseada é igualmente relativa a pessoas, culturas ouescolas teóricas.

As reflexões do tipo acima são hoje comuns na filosofia daciência; muitas vezes ocorrem sob o título de "observações teórico-dependentes". Embora eu endosse muitos pontos dessas discus-sões, considero a ênfase nos aspectos subjetivos ou psicológicos dapercepção de cada observador inoportuna e benéfica para osrelativistas intransigentes, por razões que em breve mostrarei. Oseguinte exemplo, exagerado, serve como ilustração disso.

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Em seu estudo da ciência de Galileu, feito para dar apoio a suaargumentação contra o método, Feyerabend (1975) diz que aaceitação da teoria de Copérnico defendida por Galileu não apenasencerrava uma mudança na teoria, mas também no que eramconsiderados fatos empíricos. Antes da revolução de Copérnico aciência continha fatos como "a Terra é estacionaria" e "o movimen-to de uma pedra que cai é reto", ao passo que, depois dela,aceitou-se que a Terra gira em torno de seu eixo e fisicamente semovimenta em torno do Sol, enquanto o componente direto domovimento de uma pedra que cai se superpõe ao movimento daTerra, de modo que este movimento é na verdade "um misto dereto e circular". Assim, Feyerabend (1975, p. 89 e 187) diz que oargumento desenvolvido por Galileu em defesa da teoria deCopérnico continha uma "mudança de experiência" e uma "revi-são parcial de nossa linguagem de observação" contrárias aospressupostos dos empiristas ortodoxos.

Se examinamos os detalhes da concepção de Feyerabend arespeito dessa mudança na base observacional da ciência, desco-brimos que ela é atribuída a uma mudança subjetiva ou psicológicanos observadores. Ele argumenta que, quando levamos em contaa descrição de uma situação feita por um observador, podemosabstratamente fazer uma distinção entre as sensações implícitas -ou seja, as experiências mentais por que passa um observadordiante da situação - e a descrição verbal da situação que oobservador adota, à luz dessas sensações. Feyerabend insiste que,embora para o propósito da análise possamos distinguir entre asensação e a descrição verbal, na prática essas duas etapas sãoinseparáveis. Podemos dizer que um observador não tem primeirouma sensação diante de uma pedra que cai, e depois interpreta essasensação como indicadora de uma pedra que cai verticalmente. Emvez disso, ele simplesmente vê a pedra caindo e depois sente-sedisposto a aceitar a afirmação de que "a pedra caiu". Feyerabendadmite que dividir os dois aspectos da observação, mesmo visandouma análise, é uma simplificação que tem suas limitações, já queas nossas sensações podem ser influenciadas pelo nosso modo de

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expressá-las lingüisticamente. Pondo-se de lado essa ressalva, po-demos manter a distinção e reivindicar que, quando um observa-Jor está diante de uma situação e a descreve, automaticamente fazurna associação entre a sensação e a descrição, entre a experiênciamental e a verbal aceita com base na sensação. Feyerabend (1975,p. 73) chama de "interpretações naturais" as "operações mentaisque seguem muito de perto os sentidos" e constituem a ligaçãoentre o ter-se uma sensação e aceitar-se uma descrição. As interpre-tações naturais são inculcadas em nós desde o nascimento. Nós asadquirimos durante o processo de aprendizado de uma linguagem,pois elas nos capacitam a associar a língua às situações observáveis.E mais: as interpretações naturais incorporadas a uma língua e auma cultura em algum momento se integram, de modo típico, aelas e se tornam parte do processo de observação de várias gerações.Conseqüentemente, sua natureza, e mesmo o fato de que estãopresentes, não é, para o indivíduo, prontamente manifesta.

Segundo Feyerabend, as observações de uma pedra que cai con-tinham uma interpretação natural, que era parte importante dosenso comum no início do século XVII, a qual Galileu precisoucontestar. Esse senso comum trazia implícita a idéia de um espaçoabsoluto essencialmente definido pelo sistema planetário e estelar,com uma Terra estacionaria em seu centro. Essa interpretação contémainda a noção do movimento absoluto nesse espaço. Pressupõe-se queo movimento absoluto tenha efeitos observáveis e, de maneira geral,os sentidos registram fielmente os movimentos reais. Um observadorimbuído dessas interpretações naturais automaticamente assume queo movimento observado da pedra em queda é um movimento "real"no espaço absoluto. A observação dessa queda linear entra em conflitocom o resultado da teoria de Copérnico, que diz que o movimentodeve ser "um misto de reto e circular". A teoria, de Copérnico é refutadado ponto de vista do senso comum no início do século XVII e das in-terpretações naturais empregadas automática e inconscientemen-te pelos que a intemalizaram. Afinal de contas, "como se poderia nãoter a consciência do fato de que a pedra caindo traça uma traje-tória bastante ampliada pelo espaço!" (Feyerabend, 1975, p. 75).

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Os detalhes da explicação de Feyerabend de como Galileuproduziu a mudança necessária nos fundamentos da observaçãoda ciência, de que já discordei em outro texto (Chalmers, 1986),não precisam nos ocupar aqui. Desejo enfatizar o quanto Feyer-abend interpreta essa mudança como uma mudança nas experiên-cias subjetivas dos observadores, que ele considera como substitui-ção de um conjunto de interpretações naturais por outro. Galileu"insiste numa discussão crítica para decidir quais interpretaçõesnaturais podem ser mantidas e quais devem ser substituídas"(Feyerabend, 1975, p. 73). "O primeiro passo de Galileu, nesseexame conjunto da doutrina copernicana e de uma interpretaçãonatural conhecida, mas impenetrável, consiste portanto em substi-tuir a úítima por uma interpretação diferente. Em outras palavras: eleapresenta uma nova linguagem para a observação" (Feyerabend,1975, p. 78-9). Desse modo, ele "faz voltar os sentidos a sua posiçãode instrumentos de sondagem" (Feyerabend, 1975, p. 78). Doponto de vista de Feyerabend, portanto, o campo de teste para asteorias continuam sendo as observações feitas por cada observador.Tendo-se em mente que, para ele, as interpretações naturais são"operações mentais que seguem muito de perto os sentidos" e que"estão tão firmemente ligadas a suas reações que é difícil fazer umaseparação", a substituição de um conjunto de interpretações natu-rais por outro tem implícita a substituição de um conjunto deoperações mentais por outro. Assim, antes de Galileu, devido aseu contexto histórico-cultural, a linguagem e outras experiênciasdo cotidiano do observador normal são programadas de uma formaque leva a um determinado conjunto de experiências de observaçãoe a uma correspondente linguagem de observação, enquanto oobservador que se submeteu ao remédio do Diálogo de Galileu ficaprogramado de uma maneira nova, que leva a um novo conjuntode experiências de observação e a uma nova linguagem de obser-vação. A mudança na linguagem da observação está localizada emcada observador. Basicamente, é uma mudança psicológica.

Não acho muito convincente o argumento de Feyerabendcontra o empirismo. Tenho a impressão de que as experiências

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por que passam os observadores do século XX ao observar as pedrascaírem, o Sol levantar e a Terra estacionaria pouco diferem do quesentiam os observadores do século XVII. Contudo, a relevância eo significado que um físico moderno atribuiria a essas experiênciassão muito diferentes dos que lhes eram atribuídos pelos que seopunham à teoria de Copérnico no século XVII. Dá-se por certoque Galileu tenha transformado as bases de observação da ciência.Ele o fez introduzindo instrumentos, como o telescópio, que serádiscutido mais adiante neste capítulo, e o experimento controla-do, que já foi mencionado no capítulo anterior e cujas implica-ções serão detalhadas no próximo. Entretanto, essas mudançastêm pouco a ver com as interpretações naturais que constituema estrutura psicológica das pessoas. Feyerabend equivocadamentecoloca a mudança da observação na ciência implícita na física deGalileu e, como veremos, subestima sua amplitude e seu signifi-cado.

4.3 A observação objetiva como realização prática

O fato de ter a percepção elementos subjetivos e culturalmenterelativos não escapou aos cientistas. Apenas devido a essa percep-ção evidente é que a necessidade de trocar a simples observaçãopela observação efetuada em circunstâncias padronizadas, seguin-do procedimentos rotineiros, é valorizada. A simples observação étrocada pelo experimento medido e controlado. Dessa maneira,muitas das idiossincrasias da percepção humana podem ser supe-radas. Francis Bacon compreendeu essa questão já no século XVII,ao escrever:

sempre que passo a um novo experimenta de qualquer sutileza (emboraem minha opinião esteja oorreto e eu o aprove), acrescento uma explicaçãoclara sobre como eu o realizei; pois os homens, sabendo exatamente comocada argumento foi construído, poderão ver se há algum erro ligado a elee empenhar-se em criar provas mais confiáveis e mais requintadas, se tais

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provas puderem ser encontradas. Finalmente, interponho por toda parteadmoestações, escrúpulos e cautelas a serem tomadas, com um religiosocuidado em eliminar, reprimir e até exorcizar todos os tipos de fantasmas.(Burtt, 1967, p. 21)

Presumo que aqui o argumento usado por Bacon, e por mimendossado, pode ser ilustrado pelo exemplo que darei a seguir. Achamada "ilusão da Lua" é um fenômeno bastante comum. A Luaparece ter um diâmetro muito maior quando está próxima aohorizonte do que quando está alta no céu. A percepção normal, setomada como guia confiável para o tamanho da Lua, é ilusória.Contudo, podemos fazer coisa melhor, em vez de confiarmos nossentidos sem ajuda nenhuma. Podemos, por exemplo, montar umtubo de observação com arames cruzados numa extremidade, detal maneira que sua orientação poderá ser lida numa escala. Oângulo subtendido pela Lua no ponto de observação pode serdeterminado alinhando-se os arames a cada lado da Lua de cadavez e observando a diferença nas leituras correspondentes da escala.Isso pode ser feito quando a Lua está alta e pode ser repetidoquando ela está próxima ao horizonte. A identidade aproximadado resultado nos dois casos indica que o tamanho da Lua perma-nece imutável. A percepção normal, nesse caso, é realmenteilusória.

Aqueles que desejarem enfatizar a observação "teórico-depen-dente" rapidamente apontarão a "teoria" encerrada em meu méto-do para observar o tamanho da Lua. Terão podido notar, muitocorretamente, que o significado atribuído ao alinhamento do tubode observação encerra uma hipótese que vagamente pode serafirmada como "a luz viaja em linhas retas", e que a competênciada observação do tamanho da Lua feita pelo meu método baseia-senesta e em outras hipóteses subjacentes. Seu argumento pode aindaser reforçado observando-se que, se um tubo de observação do tipoque descrevo fosse usado para determinar a direção em que estáuma estrela alinhada próxima ao Sol, ele daria um resultadoincorreto porque, nessa circunstância, a luz da estrela é desviadapelo campo gravitacional do Sol.

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Não tenho questionamentos a fazer em relação a observaçõescomo essa. Não desejo negar que a suficiência e o significado dosrelatos de observação dependem das hipóteses teóricas de váriostipos e, conseqüentemente, são passíveis de falha e revisão. Desejoapenas ilustrar com meu exemplo a questão de que a ausência deuma base segura para a observação não se deve primordialmenteàs vicissitudes da percepção. A ciência desenvolveu técnicas pode-rosas para contornar esses problemas. Até onde se pode dar umjeito de testar as teorias científicas por meio de procedimentospadronizados que encerram a observação de coisas como a leiturade ponteiros e dados de computador, ou a contagem dos cliquesde um contador, os problemas que brotam do caráter subjetivo dapercepção humana podem ser minimizados. As observações rele-vantes são objetivadas. É melhor deixar para os filósofos fanáticosa tarefa de argumentar que uma afirmação como "o ponteiro estáentre o dois e o três da escala" baseia-se na teoria e é passível defalha. As razões para se rejeitar a afirmação de que a ciência temuma base segura para a observação estão em outro canto.

Um aspecto da percepção que os empiristas costumam deixarde lado e que os cientistas exploram é até que ponto nela estáimplícito um envolvimento e não uma passiva contemplação domundo. Até mesmo na percepção comum, cotidiana, podemosverificar a realidade de um objeto avistado - por exemplo, tocandonele ou movimentando a cabeça para ver se a imagem respondeda maneira adequada. Popper (l 972, capítulo 5) notou esse aspectoda percepção e mostrou que o não-problemático nas descrições domundo comum não é que sua verdade seja revelada a observadoressem preconceito por intermédio dos sentidos, mas que ela é capazde resistir a uma porção de testes simples. Um microscopistaobserva uma célula vermelha do sangue num microscópio eletrô-nico e vê uma configuração de corpos densos. Será que elescorrespondem a estruturas na célula ou são artefatos do microscó-pio? A célula está montada numa grade microscópica, cujosquadrados estão rotulados. Vistos por meio do microscópio eletrô-nico, os corpos densos são percebidos e sua localização na grade é

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anotada. A mesma amostra da célula na grade é então observadanum microscópio fluorescente que tem princípios físicos totalmen-te diferentes do microscópio eletrônico. O mesmo arranjo decorpos densos é observado nas mesmas localizações na grade.Poderá haver alguma dúvida mais séria de que as estruturasobservadas (quaisquer que sejam) estejam realmente presentes nacélula (Hacking, 1983, capítulo 11)? São os resultados de nossasintervenções práticas que emprestam objetividade e credibilidadea relatórios de observação.

Uma idéia que tem apoio entre os filósofos da ciência, mas querejeito, retrata os fatos objetivos em que se baseia a ciência comoesses registros de observação com que prontamente concordam osobservadores normais diante da evidência trazida por seus senti-dos. Essa visão de consenso das afirmações da observação deixa delado a importância da habilidade e do conhecimento necessáriospara a observação científica. Um bom radiologista consegue versinais de infecção num raio X, e um bom microscopista conseguever as células se dividindo, quando a maioria dos observadores semum conhecimento mínimo não consegue. Se pensarmos que osregistros de observação (provisoriamente) aceitáveis são aquelesque passaram pelos testes mais rigorosos, uma forma de testar comrigor uma afirmação sobre o que deverá ser observado num micros-cópio é pedir a um bom microscopista para dar uma olhada, emvez de procurar a opinião de James Thurber. A aceitabilidade deum relato de observação também não pode ser atribuída ao simplesfato de que os especialistas concordam com ele. O fundamental éo quanto a afirmação suporta os testes objetivos. Os diagnósticosdos radiologistas especializados podem estar equivocados e podemser testados de maneiras independentes - por exemplo, buscando-se outros sinais para uma alegada infecção ou examinando-sediretamente a área infectada por meio de uma cirurgia.

Os relatos de observação aceitáveis podem ser compreendidoscomo os que descrevem situações observáveis capazes de sobrevivera testes que envolvem o uso especializado dos sentidos. Calculoque as análises sobre o significado e o rigor dos testes, além da

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quantidade de testes disponíveis, serão teórico-dependentes emdiversos aspectos, de modo que os registros de observação terãofalhas em graus variados. (Podemos imaginar Ptolomeu testando efundamentando rigorosamente sua declaração de que a Terra éestacionaria pulando no ar para ver se ela se mexia embaixo.) Emtodo caso, não estou questionando a objetividade da observaçãona ciência por sua infalibilidade.

Minha insistência na ciência física exige que a observaçãoobjetiva conforme a minha caracterização esteja sujeita a umaimportante ressalva: a objetividade é uma realização prática. Emboraeu afirme que ela pode e é freqüentemente obtida, na física não hágarantia nenhuma de que isso se mostrará possível em todos oscasos. Blondlot, físico francês, dizia haver descoberto um novo tipode radiação (os raios N) e publicou instruções detalhadas sobrecomo ela deveria ser produzida e observada. Ele e os colegasassociados diziam ver as variações na luminosidade numa tela, oque para eles constituía uma prova. Contudo, pesquisadores defora do laboratório foram incapazes de ver o que Blondlot insistiapoder ver. Blondlot alegava que seus críticos não tinham suficientecapacitação. Ou seja: as afirmações de Blondlot não passaram nostestes independentes. Por exemplo, quando o físico norte-americanoR. B. Wood eliminou o prisma que se supunha influenciar naprodução dos raios N, Blondlot, sem saber o que Wood fizera,continuou observando sinais dos raios N na tela. Mary Tiles (l 984,p. 60) resumiu admiravelmente a situação:

Insistir em que a observação experimental exige o desenvolvimento dehabilidades especiais na observação, que nem todos são capazes de obter,é algo que, em si, é incorreto. Os problemas só ocorrem quando [comoaconteceu no caso de Blondlot] falham todas as tentativas na confirmaçãoinstrumental indireta, de modo que a única evidência é perceptiva e porisso muito dependente da "sensibilidade" de cada observador. Nessasituação, o fenômeno torna-se irremediavelmente subjetivo.

A objetividade é uma realização prática, uma realização quemuitas vezes, ainda que não sem dificuldade, é obtida na física. Euacrescentaria que o quanto minha explicação da objetividade se

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aplica em outras áreas é algo que deixo inteiramente aberto. Nãoestou absolutamente certo se, como e até que ponto os antropólo-gos ocidentais conseguem objetividade ao investigar uma tribo depovos estranhos. Não tenho nenhuma competência especial paratratar dessas questões, difíceis mas importantes.

No restante deste capítulo, ilustro e desenvolvo minhas idéiassobre a observação na ciência por meio de um exemplo detalhadodo uso que Galileu fez do telescópio.

4.4 O significado e o caráter problemáticodos dados de Galileu sobre o telescópio

Interpreto a história da introdução dos dados telescópicos naastronomia como uma história da luta bem-sucedida de Galileupara objetivar e justificar esses dados. A minha versão pode ser ins-trutivamente comparada à de Feyerabend, por ele usada paraemprestar apoio à sua explicação anárquica da ciência. SegundoFeyerabend, a confiabilidade das observações telescópicas de Gali-leu e a teoria de Copérnico que lhe serviram de base foram refu-tadas pela experiência; o primeiro explorou a harmonia entre essasduas idéias refutadas para obter apoio para ambas. Assim, ele pro-moveu a causa copernicana "por meio de hipóteses que eram expe-dientes e técnicas engenhosas de persuasão" (Feyerabend, 1975,p. 143). Embora eu afirme que esses exageros de Feyerabendpossam e devam ser evitados, veremos entretanto que a mudançade Galileu encerrava uma transformação na observação astronômi-ca e nos padrões que regiam o que deve ser considerado evidênciasatisfatória para a ciência.

Num período de três meses, de dezembro de 1609 a fevereirode 1610, Galileu voltou o telescópio que havia construído para océu. O que viu teve impressionantes implicações na astronomia e,em especial, na defesa da teoria de Copérnico. Ele se apressou empublicar O mensageiro das estrelas (Galileu, 1957, p. 27-58), onde

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apresentava essas primeiras descobertas; tornou-se então umacelebridade internacional.

À primeira vista, essas revelações iniciais do telescópio ajuda-riam a causa de Copérnico, embora não na extensão que Galileudava a entender. Por exemplo, a aparência terrestre das montanhase crateras da Lua impunha um problema para a distinção aristoté-lica entre a região celeste, etérea e incorruptível, que presumivel-mente incluía a Lua, e a região terrestre, mutável e corruptível. Asluas de Júpiter serviram para difundir uma objeção aristotélica àteoria de Copérnico, segundo a qual o movimento conjunto emtorno do Sol atribuído à Terra por Copérnico tornava inexplicávelo fato da Lua permanecer junto com a Terra/Como os aristotélicosaceitavam a idéia do movimento de Júpiter, suas luas impunhampara eles um problema semelhante. Nos anos seguintes a essasobservações iniciais, Galileu fez outras, ainda mais significativas.Ele descobriu que os tamanhos aparentes de Marte e Vênus, vistospelo telescópio, variavam segundo as previsões da teoria de Copér-nico, ao contrário das observações a olho nu, que mostravam poucamudança no tamanho aparente. Nessas observações concentrava-se a acusação de Feyerabend, que dizia que os dados telescópicosde Galileu eram defendidos por meio de expedientes, comoveremos. O telescópio de Galileu revelou as fases de Vênus emostrou que elas aumentavam e diminuíam, conforme previraCopérnico.

Não obstante, o emprego de dados telescópicos para darsuporte à teoria de Copérnico levanta a questão de por quedeveriam ser preferencialmente aceitos os dados do telescópio emvez dos dados correspondentes da observação a olho nu. Feyer-abend está certo em insistir na importância fundamental dessaquestão. Por que a evidência revelada pelas observações feitas pelotubo de Galileu, equipado com lentes côncavas e convexas, deveriaser preferida às evidências obtidas diretamente pelo olho?

Junto com Feyerabend, notamos em primeiro lugar que Galileunão estava de posse de uma teoria do telescópio e que, quandoquestionado, sua tentativa de oferecer uma era estrondosamente

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insatisfatória (Galileu, 1957, p. 245-6). Essa circunstância nãoimpôs nenhum problema muito sério para Galileu. O fato de queas lentes refletem a luz e de que cada lente pode ampliar era muitoconhecido e havia sido explorado desde o final do século XIII paraa fabricação de óculos. Não era preciso muito para presumir-se quea combinação de duas lentes fizesse melhor trabalho. Em segundolugar, a necessidade de dar apoio às observações recorrendoexplicitamente à teoria podia ser questionada - seria possível dizerque a confiança nos dados a olho nu não resulta do recurso a umateoria do funcionamento do olho. Passemos então às possíveisjustificativas da prática.

A veracidade das observações telescópicas de objetos terrestrespode ser demonstrada de maneira razoavelmente direta pelo fatode que os dados telescópicos podem ser verificados pela observaçãopróxima, a olho nu, do objeto visto. Além do mais, a familiaridadeque temos com os cenários terrestres nos permite utilizar, cons-ciente ou inconscientemente, uma série de pistas ou deixas visuaisquando vemos um determinado cenário. Assim, por exemplo, asuperposição nos proporciona uma orientação para a estimativa dadistância e tamanho relativos, em comparação com objetos detamanho conhecido. Quando lembramos que os telescópios deGalileu eram protótipos feitos por tentativa e erro usando lentespolidas à mão, podemos avaliar quantas aberrações elas devem terproduzido. Quando os objetos vistos são conhecidos, é fácil parao observador destacá-los dos acessórios enevoados que apareciamno telescópio ou, por exemplo, deixar de lado a curvatura e ocolorido vermelho e azul exibido na imagem do mastro de umnavio distante.

Quando o telescópio era voltado para os céus relativamentedesconhecidos, em geral faltavam esses amparos à percepção. Essadificuldade pode ser constatada nos relatórios do próprio Galileu.A maior das crateras mostrada no desenho que Galileu fez da Luanão pode ser avistada com um telescópio moderno, nem pode servista se a pessoa for até lá. Talvez o telescópio de Galileu seja oresponsável por esta cratera, como diz Feyerabend. Galileu admitia

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que seu telescópio ampliava as estrelas muito menos do que osplanetas, mas não conseguiu explicar esta incongruência. Galileutinha diante de si problemas reais quanto à veracidade de seusdados telescópicos.

Um outro obstáculo no caminho da aceitação dos dadostelescópicos era uma idéia filosófica da percepção dos sentidos, queprovinha de Aristóteles e era aceita por muitos opositores deGalileu. Segundo essa idéia, os sentidos necessariamente produ-ziam informação confiável sobre o mundo, quando usados comcuidado e sob condições normais. Ludovico Geymonat (1965,p. 45), biógrafo de Galileu, refere-se à crença "compartilhada pormuitos estudiosos da época" de que "somente a visão direta podiaapreender a realidade", e Scipio Chiaramonti, um dos opositoresde Galileu, referia-se à idéia de que "os sentidos e a experiênciadevem ser nossos guias quando filosofamos" e "servir de critériopara a própria ciência" (Galileu, 1957, p. 248). Maurice Clavelin(1974, p. 384), num contexto em que faz a comparação entre aciência aristotélica e a de Galileu, diz que "a principal máxima dafisica peripatética era jamais fazer oposição à evidência dos senti-dos". Em contexto semelhante, Stephen Gaukroger (1978, p. 92)fala de "uma confiança fundamental e exclusiva na percepção dossentidos na obra de Aristóteles".

Era comum a defesa teleológica da confiabilidade dos sentidos.Entendia-se como sua função proporcionar-nos informação sobreo mundo. Assim, embora os sentidos possam nos enganar emcircunstâncias anormais (por exemplo, no meio da neblina ouquando o observador está bêbado ou doente), não faz sentidopressupor que sejam sistematicamente enganadores quando estãocumprindo a missão para a qual foram feitos. Irving Block (1961,p. 9), num artigo esclarecedor sobre a teoria da percepção dossentidos, de Aristóteles, caracteriza a visão deste filósofo destamaneira:

A Natureza fez tudo com uma finalidade, e a finalidade do Homem écompreender a Natureza através da ciência. Desse modo, seria uma

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contradição da Natureza ter moldado o Homem e seus órgãos de tal maneiraque todo o conhecimento e a ciência fossem a priori falsos.

A idéia de Aristóteles teve eco em Tomás de Aquino, séculosdepois:

a percepção do sentido é sempre verdadeira em relação a seus própriosobjetos ... pois, como regra geral, as forcas naturais não falham ematividades próprias delas e, quando falham, isso se deve a alguma anomalia.Assim, apenas em uma minoria de casos os sentidos analisam comimprecisão seus próprios objetos e, mesmo então, somente por algumdefeito orgânico - por exemplo, quando as pessoas doentes e febris sentemamargo o paladar das coisas doces, porque sua língua está indisposta.(Block, 1961, p. 7)

A introdução do telescópio na ciência foi contra a confiançana percepção nua dos sentidos, e sua escora teleológica; os contem-porâneos de Galileu poderiam muito bem ter reagido a issodizendo, como Kuhn (1959, p. 226): "Se Deus quisesse que ohomem utilizasse essa invenção para adquirir conhecimento, eleteria dotado os homens de olhos telescópicos". Para que Galileuobtivesse a aceitação de seus dados telescópicos, foi preciso que eleviolasse e alterasse "o próprio critério da ciência". Vejamos comoele conseguiu fazer isso.

4.5 As observações de Galileu das luas de Júpiter

Na seção 4.3 eu disse que a reação científica habitual àsvicissitudes da percepção é tentar substituir a simples observaçãopela medição, dentro de procedimentos de rotina e sob condiçõespadronizadas. A observação de Galileu das luas de Júpiter é umexcelente exemplo dessa mudança.

Galileu em pouco tempo avaliou a necessidade de fixar otelescópio em um suporte estável. Ele também descobriu que asimagens eram mais claras se a luz que entrava no telescópio pelalente convexa fosse restringida ao centro dessa lente por meio de

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uma tampa (Drake, 1978, p. 147). Quando Galileu, em janeiro de1610, avistou pela primeira vez as "estrelinhas" que acompanha-vam Júpiter pelo céu, os aspectos qualitativos de suas posições emnoites sucessivas levaram-no a acreditar que fossem satélites desteplaneta. No espaço de dois anos, Galileu criou um procedimentoobjetivo para medir a separação dos satélites de Júpiter, o que lhepermitiu montar um longuíssimo argumento para a veracidade dasobservações telescópicas dos satélites e para as órbitas que lhesatribuía. Vale a pena descrever com algum detalhe o procedimentode Galileu (Drake, 1983, p. 128 ss).

Uma escala foi anexada ao telescópio por meio de um anel, demaneira tal que o plano da escala estivesse perpendicular emrelação ao eixo do aparelho e pudesse deslizar para cima e parabaixo ao longo de seu comprimento. O observador, espiando pelotelescópio com um olho, podia ver a escala com o outro. Parafacilitar a leitura, a escala recebia iluminação de uma pequenalamparina. Com o telescópio voltado para Júpiter, a escala eraempurrada ao longo do tubo até que a imagem do planeta, vistocom um olho, ficasse entre duas marcas centrais na escala, vistascom o outro olho. Feito isso, a posição de um satélite visto pelotelescópio podia ser lida na escala e a leitura correspondia a suadistância de Júpiter em múltiplos do diâmetro do planeta. Essediâmetro era uma unidade conveniente, pois empregá-lo comopadrão automaticamente resolvia o problema de sua aparentevariação, conforme o planeta se aproxima e se afasta da Terra.Onde necessário, Galileu podia transformar essa medida relativaem medidas absolutas do ângulo subtendido ao olho, dividindoos ângulos subtendidos pelas imagens na escala pela ampliação dotelescópio. Galileu criara um método para medir a ampliação deseus telescópios pouco depois de começar a utilizá-los; esse métodofoi descrito em O mensageiro das estrelas.

Usando os procedimentos acima descritos, Galileu pôde regis-trar o histórico diário das quatro "estrelinhas" que acompanhavamJúpiter. Ele conseguiu mostrar que os dados estavam de acordocom o pressuposto de que as estrelinhas eram na verdade satélites

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em órbita ao redor de Júpiter, com períodos constantes. O pressu-posto não partiu apenas de avaliações quantitativas, mas tambémda observação mais qualitativa de que as "estrelinhas" às vezesdesapareciam da vista, conforme passavam pela frente ou por trásdo planeta.

Galileu estava em boa posição para defender a veracidade desuas observações das luas de Júpiter, apesar de serem elas invisíveisa olho nu. Com isso, obteve argumentos contra a insinuação deque elas eram uma ilusão produzida pelo telescópio, mostrandoque essa idéia tornava difícil explicar por que os satélites sóapareciam próximo a Júpiter e não em outros lugares. Galileutambém poderia ter invocado a coerência e repetibilidade de suasmedições, além de serem estas compatíveis com a hipótese de queos satélites faziam a órbita ao redor de Júpiter com periodicidadeconstante. Os dados quantitativos de Galileu foram verificados porobservadores independentes, entre os quais alguns no ColégioRomano e na Corte Papal, em Roma. Galileu previu ainda outrasposições dos satélites e a ocorrência de trânsitos e eclipses, quetambém foram confirmadas por ele mesmo e pelos observadoresindependentes (Drake, 1978, p. 175-6 e 236-7).

A veracidade do que foi visto no telescópio foi logo aceita pelosobservadores competentes contemporâneos de Galileu, mesmopelos que inicialmente se opuseram a ele. É fato que alguns dessesobservadores jamais tenham conseguido discernir os satélites, masacredito que isso não tem maior significado do que a experiênciabastante comum de James Thurber, que não conseguiu distinguira estrutura da célula de plantas no microscópio. A força doargumento de Galileu para a veracidade de suas observaçõestelescópicas das luas de Júpiter origina-se na amplitude de testespráticos e objetivos pelos quais suas asserções passaram, comsucesso. Embora esse argumento ainda não fosse lá muito conclu-sivo, era incomparavelmente mais forte do" que qualquer outro emdefesa da idéia contrária de que os objetos avistados fossem ilusõesou artefatos produzidos pelo telescópio.

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4.6 O tamanho dos planetas vistos pelo telescópio

Segundo a teoria de Copérnico, a distância de um planeta daTerra deveria variar bastante durante o curso das viagens de cadaum deles em torno do Sol. Quando um planeta está do mesmolado do Sol que a Terra, ele estará relativamente próximo, ao passoque, do outro lado do Sol, estará relativamente distante. A distânciade Marte em relação à Terra varia por um fator da ordem de oitoe, no caso de Vênus, por um fator da ordem de mais ou menosseis. Conseqüentemente, os diâmetros dos planetas vistos da Terravariam em fatores semelhantes. Entretanto, quando visto a olhonu, Marte parece mudar de tamanho por um fator não muito maiorque dois, enquanto a aparente mudança no tamanho de Vênus éinsignificante. Por essa razão, Galileu (1967, p. 334) em suadescrição de Marte dizia que este planeta era um "feroz ataque" aosistema de Copérnico e que Vênus apresentava uma "dificuldadeainda maior". Quando os dois planetas são observados no telescó-pio, a dificuldade é eliminada. As mudanças no tamanho estão deacordo com as previsões da teoria de Copérnico.

Os tamanhos dos planetas vistos a olho nu entram em conflitocom a teoria de Copérnico; os dados correspondentes do telescópioa confirmam. Qual desses conjuntos de dados deve ser aceito? Aocontrário de Feyerabend, direi que Galileu obteve uma boa argu-mentação a favor dos dados telescópicos independente da compa-tibilidade desses dados em relação à teoria de Copérnico.

Galileu recorria ao fenômeno da radiação para ajudar a desa-creditar a observação dos planetas a olho nu e dizia que essefenômeno proporcionava fundamentações para que se preferisse aobservação ao telescópio. A hipótese dele era que o olho "apresentauma dificuldade própria" quando vê pequenas fontes de luzdistantes e brilhantes. Por causa disso, os objetos parecem "orna-dos com estranhos raios acidentais" (Galileu, 1967, p. 333). Assim,se as estrelas "são observadas com a visão natural, sem ajudanenhuma, elas se apresentam a nós não em seu tamanho simples(ou, digamos, físico), mas como irradiadas de um certo fulgor e

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com uma franja de raios cintilantes" (Galileu, 1957, p. 46). Airradiação dos planetas é eliminada pelo telescópio.

Já que a hipótese de Galileu contém implícita a afirmação deque a irradiação é conseqüência da luminosidade, da pequenez eda distância da fonte avistada, ela pode ser testada alterando-seesses três fatores de várias maneiras, muitas das quais não exigemo uso do telescópio e algumas claramente mencionadas por Gali-leu. A luminosidade de estrelas e planetas pode ser reduzidaquando eles são vistos através de uma nuvem, um véu negro, umvidro colorido, um tubo, um intervalo entre os dedos ou um buracode alfinete feito num cartão (Galileu, 1957, p. 46). A irradiação éeliminada dos planetas com essas técnicas, de modo que eles"mostram seus globos perfeitamente redondos e bem-definidos",ao passo que, no caso das estrelas, ela jamais é totalmente elimi-nada, de modo que "jamais é vista a borda de sua periferia circular,mas elas têm antes a aparência de brasas cujos raios vibram emtorno e cintilam bastante" (Galileu, 1957, p. 47). No que dizrespeito à dependência da irradiação no tamanho aparente dasfontes de luz observadas, a hipótese de Galileu é confirmada pelofato de que a Lua e o Sol não estão sujeitos à irradiação (Galileu,1967, p. 338). Esse aspecto da hipótese de Galileu e a dependência,a ela associada, que tem a irradiação da distância da fonte podemser submetidas a um teste terrestre direto. Uma lanterna acesa podeser vista de perto ou de longe, de dia ou de noite. Quando vista ànoite e à distância, luminosa em relação ao que a rodeia, ela parecemaior do que seu verdadeiro tamanho. Vista de dia ou de perto,na mão, o tamanho aparente corresponde ao tamanho real dalanterna. Galileu lembra isso para dizer que seus predecessores,entre eles Tycho Brahe e Clavius, deveriam ter procedido commaior cautela ao calcular o tamanho das estrelas.

Não acreditarei que eles pensassem que o verdadeiro disco de umalanterna seria como parece na escuridão profunda, e não da maneira cornoé percebido em ambientes iluminados - pois as nossas luzes vistas de longeà noite parecem grandes, mas bem de perto vê-se que suas chamas reaissão pequenas e estão circunscritas. (Galileu, 1967, p. 361)

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A dependência da irradiação da luminosidade de uma fonterelacionada a seu ambiente é mais uma vez confirmada pelasestrelas no crepúsculo, quando parecem muito menores do que ànoite, e por Vênus, quando visto em plena luz do dia, parecendo"tão pequeno, que é preciso uma visão aguçada para vê-lo, emborana noite seguinte pareça uma enorme lanterna" (Galileu, 1967,p. 361).

Esse último efeito nos oferece uma maneira aproximada paratestar a compatibilidade entre a teoria de Copérnico (e outras) e ostamanhos observados de Vênus, sem necessidade de evidênciatelescópica. O teste pode ser feito a olho nu, desde que asobservações sejam feitas ao crepúsculo. Há duas razões que tornamesse teste difícil e não inteiramente satisfatório.

A primeira é que, sob essas condições, Vênus parece tãopequeno que torna difíceis estimativas precisas de seu tamanhoaparente. A segunda é que é impossível fazer esse teste quandoVênus está perto de seus tamanhos máximo e mínimo aparentes,porque nesses momentos ele parece estar muito perto do Sol.Conseqüentemente, Vênus não pode ser observado à luz do diapor causa do brilho do Sol, mas apenas depois que o Sol desaparecee ele está perto da Terra em seu maior tamanho, ou antes do Solsubir, quando o planeta está mais distante da Terra, em seu menortamanho. Contudo, pelo menos segundo Galileu, embora asmudanças no tamanho de Vênus só possam ser observadas comprecisão ao telescópio, elas são "bastante perceptíveis a olho nu"(Drake, 1957, p. 131).

Assim, por uma razão prática muito clara, Galileu conseguiumostrar que o olho nu produz informações contraditórias quandose observa pequenas fontes de luz brilhantes e luminosas emrelação a seu ambiente, no domínio terrestre ou celeste. O fenô-meno da irradiação, para o qual Galileu dava uma série de provase do qual fazia uma demonstração mais direta com a lamparina,mostra que as observações a olho nu de pequenas fontes de luzbrilhantes não são confiáveis. Entre outras coisas, isso implica queas observações a olho nu de Vênus são preferíveis quando feitas à

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luz do dia, e não à noite, quando Vênus é brilhante em relação aseu ambiente. O primeiro tipo de observação, ao contrário desteúltimo, demonstra que o tamanho aparente de Vênus varia no cor-rer do ano. Tudo isso pode ser dito sem qualquer referência aotelescópio. Agora percebemos que o telescópio elimina a radiaçãose usado para observar os planetas e que, o mais importante, as varia-ções no tamanho aparente assim reveladas são compatíveis com asvariações observáveis a olho nu e à luz do dia - e assim começa a emer-gir um forte argumento a favor dos dados obtidos pelo telescópio.

A nossa discussão do método de Galileu para medição dosmovimentos das luas de Júpiter na seção 4.5 mostra como eleconseguiu objetivar e quantificar sua avaliação telescópica dodiâmetro de um planeta no correr do ano. As variações observadasestavam precisamente de acordo com as previsões da teoria deCopérnico. Isso não era justificado. Não se questionavam asobservações telescópicas do tamanho aparente dos planetas queserviam de base para a teoria de Copérnico, em relação aos sistemasde Ptolomeu e Tycho Brahe, porque estes previam exatamente asmesmas variações de tamanho previstas por Copérnico. As varia-ções nas distâncias da Terra, que levam às mudanças previstas notamanho aparente, surgem no sistema ptolomaico porque osplanetas se movimentam mais perto e depois mais longe da Terra,conforme vão atravessando os epiciclos sobrepostos aos deferentes,,que posteriormente definem as rotas eqüidistantes da Terra. Elasocorrem no sistema de Tycho Brahe pela mesma razão que nosistema de Copérnico, já que os dois sistemas são geometricamenteequivalentes. Derek J. de S. Price (1969) demonstrou de maneirabastante geral que deve ser assim, uma vez que os epiciclos dossistemas são ajustados para serem compatíveis com as posiçõesangulares observadas dos planetas e do. Sol. Osiander, em suaintrodução a Revoluções das esferas celestes de Copérnico, admiteque os tamanhos aparentes dos planetas era um problema nasgrandes teorias astronômicas desde a Antigüidade.

Portanto, as observações telescópicas das mudanças no tama-nho aparente dos planetas não poderiam ser justificadamente

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utilizadas como evidência a favor da teoria de Copérnico, contraas outras teorias. Contudo, essas observações propiciaram umarazão para que os dados telescópicos fossem aceitos no campo daastronomia, além dos dados relacionados ao fenômeno da irradia-ção. Ao contrário de muitas observações a olho nu, as estimativastelescópicas dos tamanhos dos planetas eram compatíveis comtodas as teorias astronômicas da época de Galileu; sua aceitaçãoeliminava um problema que estivera presente na astronomia desdea Antigüidade.

A discussão acima sobre a introdução do telescópio na astro-nomia nos permite colocar em perspectiva o que veio a serconhecido como "observação teórico-dependente" e ilustra por queuma leitura subjetiva dessa tese deve ser rejeitada. Se a nossainterpretação de "objetivo" significa algo como "passível de testepor meio de procedimentos de rotina" e admitimos que os proce-dimentos satisfatórios muitas vezes exigirão habilidades que pou-cos possuem, Galileu podia objetivar suas observações telescópicas.O mais importante é que elas conseguiram passar por uma sériede testes, como já vimos. O correto na tese da "observaçãoteórico-dependente" não é que a ciência seja desprovida de objeti-vidade, mas que a competência e a pertinência dos relatórios deobservação na ciência estão sujeitas a revisão. A observação naciência pode ser objetivada, mas nem por isso temos acesso afundamentações garantidas para a ciência. Na época em que asinovadoras observações telescópicas foram aceitas por terem pas-sado em testes objetivos, muitos relatórios de observação baseadosno olho nu e anteriormente aceitáveis tornaram-se inaceitáveis porsua incapacidade de sobreviver aos testes que as inovações deGalileu tornaram possíveis.

Um outro exemplo tirado da ciência de Galileu reforçará aminha distinção entre a observação objetiva, que acredito serviável,e a possibilidade'de uma base empírica segura e irretocável para aciência, que acredito ser um mito empirista. Em seu Diálogo arespeito dos dois principais sistemas do mundo, Galileu (1967,p. 361-3) descreveu um método "objetivo" para medir o diâmetro

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de uma estrela. Ele passava um cordão entre ele mesmo e a estrelainvestigada e o movimentava para frente e para trás, até que ocordão estivesse bloqueando o Sol. Galileu dizia que o ângulosubtendido ao olho pelo cordão era igual ao ângulo subtendido aoolho pela estrela. Hoje sabemos que os resultados de Galileu eramum tanto quanto enganadores. O tamanho aparente de umaestrela, percebido por nós, deve-se inteiramente aos efeitos atmos-féricos e a outros efeitos de ruídos e não tem nenhuma relaçãodeterminada com o tamanho físico da estrela. As medidas deGalileu do tamanho das estrelas baseavam-se na teoria, eram falhase hoje são rejeitadas. Contudo, essa rejeição nada tem a ver comos aspectos subjetivos da percepção. As observações de Galileueram objetivas, no sentido de que encerravam procedimentos derotina que, se hoje repetidos, dariam mais ou menos os mesmosresultados obtidos por ele. No próximo capítulo, reforçarei aquestão de que a ausência de bases seguras para a ciência não sedeve aos aspectos subjetivos problemáticos da percepção humana;farei uma reflexão sobre certas características da experimentação naciência.

CAPÍTULO 5

O EXPERIMENTO

5.1 A produção e a rejeiçãode resultados experimentais

Se existem fundamentos seguros para o conhecimento cientí-fico moderno, como pressupõem os filósofos ortodoxos, então,provavelmente, é o experimento que os fornece, e não a simplesobservação. Entretanto, alguns aspectos gerais da experimentaçãotêm tal configuração que os resultados experimentais são bastanteimpróprios para constituir a base segura que esses "fundamenta-listas" procuram. Os resultados experimentais são constantementerejeitados, revisados, colocados de outra maneira ou consideradosirrelevantes por uma série de razões bastante sérias do ponto devista da atividade científica. O quanto a base experimental da ciên-cia é constantemente atualizada e transformada nada tem a ver comproblemas associados à observação ou à percepção humana. Mes-mo que os sentidos nos proporcionem determinados fatos sobreo mundo observável, continuamos sem fundamentos seguros paraa ciência. Esses aspectos são óbvios e não apresentam problemas,uma vez que se considere o ponto de vista da atividade científica

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rotineira oposto ao da filosofia da ciência empirista, como osexemplos seguintes mostrarão.

Meu primeiro exemplo diz respeito à série de experimentos deHeinrich Hertz, num período de dois anos, indo de 1886 a 1888e culminando na primeira produção controlada de ondas de rádio(Hertz, 1962). Além de revelar um novo fenômeno a ser exploradoe desenvolvido experimentalmente, os resultados de Hertz tiveramgrande significado teórico. Eles trouxeram fortes evidências paraos aspectos fundamentais da teoria do campo eletromagnético deMaxwell, contrária às teorias da "ação à distância" em voga nocontinente europeu. Era uma conseqüência da teoria de Maxwellque as correntes oscilatórias se propagassem, embora o próprioMaxwell não houvesse avaliado isso (Chalmers, 1973). De modogeral, os resultados de Hertz e o significado que ele lhes atribuíacontinuaram aceitáveis de um ponto de vista moderno. Entretanto,alguns de seus dados experimentais tiveram de ser substituídos euma de suas principais interpretações, rejeitada. Esses dois casosajudam a ilustrar o meu argumento contra os fundamentalistas.

Hertz conseguiu usar seu método experimental para medir avelocidade das ondas de rádio que havia produzido. Seus resultadosmostravam que as ondas mais longas viajavam no ar a umavelocidade maior do que em fios, e mais depressa que a luz,enquanto a teoria de Maxwell previa que elas deveriam viajar à ve-locidade da luz tanto pelo ar como pelos fios do aparelho de Hertz.Esses resultados eram insatisfatórios por razões das quais Hertz jásuspeitava. As ondas que se refletiam das paredes do laboratóriono aparelho causavam interferências indesejadas. Os comentáriosdo próprio Hertz (1962, p. H) sobre esses resultados problemáti-cos foram os seguintes:

O leitor talvez pergunte por que não me esforcei para resolver eumesmo a questão duvidosa, repetindo os experimentos. Na verdade, eu osrepeti, porém apenas descobri, como seria de esperar, que uma simplesrepetição sob as mesmas condições não pode eliminar a dúvida, mas antesa aumenta. Só se pode chegar a uma decisão definitiva mediante experi-mentos realizados sob condições mais favoráveis. Essas condições mais

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favoráveis significam salas maiores, que não estavam a meu dispor. Maisuma vez enfatizo a afirmação de que o cuidado nas observações não podecompensar a falta de espaço. Se não é possível desenvolver ondas longas,é evidente que elas não podem ser observadas.

Os resultados experimentais de Hertz eram deficientes porquesua maneira de experimentar não servia para a tarefa. O compri-mento das ondas investigadas deveria ser pequeno em relação àsdimensões do laboratório, para eliminar a interferência indesejável.Como sabemos, em poucos anos os experimentos passaram a serrealizados "sob condições mais favoráveis" e produziram velocida-des de acordo com as previsões teóricas.

Um ponto a ser enfatizado aqui é que os resultados experimen-tais são exigidos não apenas por serem satisfatórios, no sentido deconstituírem registros precisos de eventos experimentais, mas porserem também apropriados ou significativos. Eles devem ser pla-nejados para lançar luz sobre alguma questão significativa expostaà natureza. Discernir o que é uma questão significativa, e se algumexperimento específico é uma forma satisfatória de respondê-la,dependerá muito de como são compreendidas a situação prática ea teórica. Foi a existência de outras teorias sobre o eletromagnetis-mo e o fato de que um dos grandes contendores previu que asondas de rádio viajavam no ar com a velocidade da luz que tornoubastante significativa a tentativa de Hertz de medir a velocidadedessas ondas, embora fosse uma compreensão das propriedadesde reflexão das ondas que tivesse levado à avaliação de que o aparatoexperimental de Hertz era insatisfatório. Esses resultados experi-mentais práticos foram rejeitados e logo substituídos, por razõesclaras e nada misteriosas para a física.

Assim como ilustra a questão de que os experimentos devemser apropriados ou significativos e de que os resultados experimen-tais são rejeitados ou substituídos quando deixam de ser experi-mentais, esse episódio na pesquisa de Hertz e em suas própriasreflexões sobre ele evidentemente mostra que a rejeição de suasmedidas da velocidade da luz nada tem a ver com problemas dapercepção humana. Não há razão alguma para duvidarmos de que

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Hertz tenha observado cuidadosamente seu aparelho, medindodistâncias, observando a presença ou ausência de faíscas naslacunas em seus detectores e registrando as leituras dos instrumen-tos. Pode-se pressupor que seus resultados eram objetivos, nosentido de que qualquer pessoa que repetisse essas experiênciaspoderia obter resultados semelhantes. O próprio Hertz sublinhavaesse ponto. O problema com seus resultados experimentais nãoadvinha de insuncências em suas observações, mas antes damaneira imprópria como ele realizava os experimentos. Hertz disseque "o cuidado nas observações não pode compensar a falta deespaço". Mesmo se concordamos com os empiristas, acreditandoque Hertz tenha sido capaz de estabelecer fatos seguros por meiode observação cuidadosa, vemos que em si isso não bastava paraproduzir resultados experimentais satisfatórios para a tarefa cientí-fica em questão.

A discussão acima pode ser compreendida como ilustração decomo a aceitabilidade dos resultados experimentais é teórico-depen-dente e como os julgamentos sobre ela estão sujeitos à mudançadurante o desenvolvimento da nossa compreensão científica. Emum nível mais geral, isso é ilustrado pela maneira como o signifi-cado da produção de ondas de rádio de Hertz mudou desde o seutempo. Na época em que Hertz as analisou, a teoria de Maxwell -que dizia que os fenômenos eletromagnéticos eram a manifestaçãodos estados mecânicos de um éter mecânico - previa as ondas derádio de uma forma que as teorias opostas de ação à distância nãopreviam. Conseqüentemente, Hertz e seus contemporâneos pude-ram analisar a produção de ondas de rádio, entre outras coisas,como sendo a confirmação da existência do éter eletromagnético. Maisou menos duas décadas depois, a situação do problema teórico eramuito diferente. A teoria eletromagnética de Maxwell, devidamentemodificada para incorporar o elétron, eliminou as rivais da ação àdistância, mas foi dificultada pela versão relativizada de Einstein,que descartava a teoria do éter mecânico de Maxwell. Tanto a teoriade Einstein como a de Maxwell previam que as ondas de luzviajavam na velocidade da luz. Portanto, nesse contexto, quando

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Hertz produziu essas ondas, não houve distinção entre as duasteorias, e assim isso não poderia ser considerado uma evidênciapara a existência do éter mecânico. Os resultados experimentais deHertz ainda são aceitos em geral, mas o significado a eles atribuídotransformou-se.

Um segundo exemplo, que diz respeito a medições do pesomolecular feitas no século XIX, ilustra ainda mais a maneira comoa pertinência e a interpretação dos resultados experimentais depen-dem do contexto teórico. As medições dos pesos moleculares deelementos e componentes de ocorrência natural eram consideradasde primordial importância por muitos químicos no século XIX,especialmente pelos que preferiam a hipótese de Prout, de que oátomo de hidrogênio é um bloco fundamental de construção deque se compõem os outros elementos. Este último esperava queos pesos moleculares relativos ao hidrogênio fossem próximos anúmeros inteiros. As complicadas medições dos pesos molecularesefetuadas por importantes químicos experimentais no século XIXtornaram-se muito pouco importantes do ponto de vista da químicateórica, uma vez que se percebeu que os elementos de ocorrêncianatural contêm uma mistura de isótopos em proporções que nãotinham nenhum significado teórico. Essa situação levou o químicoF. Soddy a comentar seus resultados (Lakatos e Musgrave, 1974,p. 140) da seguinte maneira:

Há algo certamente aparentado, se não transcendendo a tragédia, nodestino que superou a obra de toda a vida desta galáxia de químicos doséculo XIX, com razão reverenciados por seus contemporâneos comorepresentantes do auge e perfeição da medida científica precisa. Seusresultados duramente conquistados, pelo menos até o momento, parecemter pouco interesse e significado, como a determinação do peso médio deuma coleção de garrafas, estando algumas cheias e outras mais ou menosvazias.

Mais uma vez observamos que os antigos resultados experi-mentais eram rejeitados como desimportantes e por razões que não

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partem dos aspectos problemáticos da observação humana. Essesquímicos do século XIX eram "reverenciados por seus contempo-râneos como representantes do auge e perfeição da medida cientí-fica precisa", e não temos razão para duvidar da competência desuas observações e medições. Também não precisamos duvidar desua objetividade. Não tenho dúvida nenhuma de que, se as suasexperiências fossem repetidas por alguns químicos contemporâ-neos que possuem as qualificações apropriadas, obter-se-iam resul-tados semelhantes. Serem bem-efetuadas é uma condição necessá-ria, mas insuficiente para a aceitabilidade dos resultados experi-mentais. Elas também devem ser significativas ou importantes paraalgum problema.

Os argumentos que uso com o auxílio de exemplos podemser resumidos de uma forma que acredito não ser contrária aoponto de vista das atividades da fisica e da química. A quantidadede resultados experimentais considerados como teste satisfatóriopara a teoria contemporânea tem sido devidamente atualizada.Os velhos resultados experimentais são rejeitados como insufi-cientes por muitas e claras razões. Eles podem ser rejeitadosporque a experimentação não continha precauções satisfatóriascontra possíveis fontes de interferência, devido ao emprego deformas de avaliação insensíveis e a métodos ultrapassados dedetecção, porque os experimentos acabaram sendo consideradosincapazes de resolver o problema ou porque a questão para a qualforam projetados não era mais reconhecida. Embora essas obser-vações possam ser consideradas comentários bastante óbviossobre a atividade científica rotineira, elas contudo apresentamsérias implicações para boa parte da filosofia mais ortodoxa daciência, pois abalam a noção geral de que a ciência repousa sobrebases muito seguras. Os resultados experimentais constituemprovas empíricas de nossas teorias enquanto forem sendo cons-tantemente revisados e atualizados. A ciência não tem, nem deveter, bases seguras. Mais importante: as razões para isso não têmmuito a ver com os aspectos problemáticos da percepção dos sereshumanos.

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5.2 As implicações para o empirismo

Uma das implicações de minhas reflexões sobre certos aspectosmais comuns do experimento na ciência foi suficientemente enfa-tizada na parte anterior: sua incompatibilidade com as pressuposi-ções empiristas de que são os sentidos que fornecem as basesseguras para a ciência. Por mais seguras que sejam consideradas asobservações dos sentidos, sozinhas elas não servem para fornecerdados experimentais significativos para a ciência.

Roy Bhaskar (1978) persuasivamente disse que a experimenta-ção é incompatível com muitas concepções empiristas das leis cien-tíficas, segundo as quais estas são interpretadas como constantesassociações de fenômenos, à moda de Hume. Segundo essasformulações, as leis científicas funcionam pelo esquema "sempreque um evento do tipo A ocorre, segue-se um evento do tipo B",ou, mais de acordo com o empirismo radical, "sempre que seobserva acontecer um fenômeno do tipo A, observa-se a seguir umfenômeno do tipo B". Um problema para essa idéia deriva do quediscuti no capítulo 3 sobre a situação que circundava Galileu,depois que ele introduziu o experimento na fisica. Existem poucasregularidades observáveis a discernir no mundo observável à nossavolta, de modo que, por exemplo, os que defendem generalizaçõescomo "objetos mais densos que a água afundam" são rebatidos poragulhas que flutuam e insetos de água. O mundo natural não secomporta de maneira suficientemente regular, de modo a permitirdiscernir regularidades sem exceções, embora o sistema solar quasesirva como uma exceção. Como demonstrou a nossa discussãosobre as inovações de Galileu, em certo sentido a experimentaçãoproporciona a resposta para esse problema. Podemos construirartificialmente situações físicas em que as regularidades do tipohumeniano obtêm, por exemplo, que uma determinada mudançana força da corrente exposta por um amperímetro seja sempreseguida pelo mesmo deslocamento de um ponto numa tela fluo-rescente. Contudo, se essas regularidades, que em geral só se obtêm

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em situações experimentais artificiais, se identificam com as leiscientíficas, ficamos sem saber o que rege o comportamento domundo fora das situações experimentais. A idéia da associaçãoconstante talvez seja até compatível com os aspectos mais ordena-dos dos experimentos de Hertz, mas não permite que se invoquemleis para explicar como um sinal de rádio de força flutuante chegaa Sydney, na Austrália, desde o meio do Pacífico. Se as leiscientíficas são identificadas com regularidades, na forma de asso-ciações constantes, é porque as situações irregulares não podemser consideradas sujeitas a leis. Isso entra em conflito com asuposição da ciência natural, que diz que os sinais de ondas curtasirregulares de rádio são regidos pelas equações de Maxwell tantoquanto o foram as ondas de rádio de Hertz.

A discussão acima esclarece um problema de uma concepçãoempirista das leis científicas. Entretanto, pelo menos desde a épocade Galileu, não é um problema para a ciência. As provas que dãoapoio às leis científicas são obtidas em situações experimentaisartificiais, mas pressupõe-se que as leis assim identificadas apli-quem-se também fora de tais situações, embora aqui sua situaçãose sobreponha a outras leis, levando a um comportamento irregularno nível das ocorrências. Do ponto de vista da física, não temosproblema para compreender que a tensão da superfície intervémpara impedir que a agulha afunde na água ou que diversas per-turbações atmosféricas e outras levam a irregularidades na força deum sinal de rádio. Na atividade científica moderna está implícitoo pressuposto de que os fenômenos naturais são regidos por leis,mas, no mundo natural, esses fenômenos se justapõem de formasmuito complexas. Por essa razão, a intervenção dos experimentosé necessária para desenterrar informações epistemologicamenteimportantes. E isso é incompatível com a interpretação das leiscomo regularidades empíricas e também indica por que as descri-ções da situação observável em geral não servem para constituir osblocos com que se constrói o conhecimento científico, segundomuitos empiristas (cf. Feyerabend, 1981). Em geral, os eventosobserváveis são resultado de uma complexa combinação de diver-

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sós processos sem nenhum significado epistemológico necessário.h ciência exige a produção e observação dos eventos importantes,eéo que o experimento procura facilitar.

5.3 As implicações para a filosofiada ciência de Popper

Um elemento essencial na construção do falsificacionismo dePopper é a idéia do conteúdo empírico de uma teoria. SegundoPopper, na ciência buscamos teorias de grande conteúdo empírico;determinada mudança de teoria estará em andamento se a novateoria aceita tiver conteúdo empírico maior do que o de suapredecessora. A base que apoia essa concepção da meta da ciênciaé bastante clara: se pensamos no conteúdo empírico de uma teoriacomo medida de suas afirmações para justificar o comportamentodo mundo, a preferência por teorias de grande conteúdo empíricosignifica apenas uma preferência pelas teorias que nos digammuita coisa sobre o mundo. Além disso, quanto mais amplas asexigências da teoria, mais aberta ela estará a uma possível falsifica-ção. Dadas duas teorias opostas, a opção pela que tiver maiorconteúdo empírico eqüivale à opção pela mais falsificável (Popper,1972, p. 112-3). Exposta nesses termos gerais, a tese de Popperparece muito plausível. Entretanto, quando examinamos emdetalhe a maneira como ele a desenvolve, descobrimos problemasgraves, provenientes do papel da experimentação, que discutimosacima.

Popper (1972, p. 120) define o conteúdo empírico de umateoria como a classe de seus falsificadores potenciais. Um falsifica-dor potencial é uma combinação de afirmações sobre a observação(que Popper chama de "afirmações básicas") que entra em conflitocom a teoria. Assim, por exemplo, a combinação de cinco posiçõesplanetárias observadas que não estão numa elipse seria um falsifi-cador potencial da lei que diz que "os planetas se movimentam em

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elipse em torno do Sol". Normalmente, os falsificadores potenciaisencerram a especificação de um arranjo experimental planejadopara testar uma teoria junto com a descrição de um resultadoharmônico em relação ao que ela previa. Por exemplo, um falsifi-cador potencial para a lei da queda (de Galileu) seria uma descriçãodo aparato experimental envolvido em sua experiência com o planoinclinado, junto com os registros dos tempos da descida pordiversos comprimentos do plano incompatíveis com uma acelera-ção constante. Em compensação, uma descrição da caprichosadescida de uma folha não constitui um falsificador potencial paraa teoria de Galileu. A introdução da resistência do ar ou do ventotorna a queda tortuosa compatível com as afirmações de Galileusobre a queda desimpedida. Os falsificadores potenciais de umateoria são aqueles resultados experimentais que, ocorrendo, arefutariam. O conteúdo empírico de uma teoria se identifica como conjunto de eventos que ela rege. As leis científicas são decretosproibitivos. Popper (l 972, p. 113) afirma claramente que as teoriasnada nos dizem sobre os eventos compatíveis com elas.

A identificação que Popper faz do conteúdo de uma teoria coma categoria de seus falsificadores potenciais tem uma conseqüênciaindesejável. Segundo ele (1972, p. 113), é a classe de seus falsifi-cadores potenciais que determina o que uma teoria "diz" sobre omundo e representa "a informação empírica transmitida por umateoria". Não obstante, como já vimos, a não ser em circunstânciasexcepcionais, como as que prevalecem no sistema solar, é somentepor meio de um experimento controlado que uma teoria poderáser falsificada, de modo que a classe dos falsificadores potenciaisconstituir-se-á da especificação dos experimentos e de seus resulta-dos. A tese de Popper implica que o conteúdo de uma teoriaconsiste nos resultados experimentais que ela proíbe e, assim, nãodiz nada sobre o comportamento do mundo fora das situaçõesexperimentais. A especificação da queda de uma ponte não seriaum falsificador potencial da mecânica newtoniana. Essa quedaseria atribuída à fadiga do material, aos ventos fortes e coisas dogênero. No entanto, seus projetistas pressupõem que a mecânica

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newtoniana se aplique à ponte - e com boas razões. Da mesmaforma) a descrição da queda irregular de uma folha na brisa deoutono não constituiria um falsificador potencial da teoria gravita-cional de Newton; mesmo assim, continuamos pressupondo quea gravidade atue sobre a folha durante sua queda segundo essateoria e atribuímos à ação da gravidade o fato de que as folhas deoutono normalmente caem no chão.

Ao identificar o conteúdo de uma teoria com a classe de seusfalsificadores potenciais, Popper na verdade identifica o domínioda aplicabilidade da teoria com o domínio de suas situaçõessatisfatórias de teste. Em outro texto, Popper (1961, p. 117) ex-pressa uma concepção mais plausível. O trecho que importa diz oseguinte:

O ponto crucial é este: embora se pressuponha que qualquer sucessãoreal de fenômenos ocorra segundo as leis da natureza, é importantepercebermos que praticamente nenhuma seqüência de, digamos, três oumais fatos concretos causalmente associados ocorre segundo uma determi-nada lei da natureza. Se o vento balança uma árvore e a maçã de Newtoncai no chão, ninguém negará que esses fatos podem ser descritos em termosde leis causais. Mas não existe uma única lei, como a da gravidade, nemmesmo um único conjunto de leis que sirva para descrever a sucessão realou concreta de fatos causalmente associados; além da gravidade, teríamosde levar em conta as leis que explicam a pressão do vento, os movimentosbruscos do galho, a tensão no pedúnculo da maçã, o machucado sofridopela maçã com o impacto - e tudo isso é sucedido pelos processos químicosresultantes do machucado etc. A idéia de que qualquer seqüência ousucessão de fatos concretos (além de exemplos como o do movimento deum pêndulo ou o de um sistema solar) pode ser descrita ou explicada porqualquer outra lei está simplesmente equivocada.

Aqui Popper admite que a maçã em queda é regida por leiscausais, como a da gravidade, mas reconhece também que aseqüência observada de fatos não pode ser descrita por qualquerlei, por qualquer "conjunto definido de leis". Esta última observa-ção implica que as descrições da seqüência de fatos ocorridosnaquele breve período da história da maçã não constituem umfalsificador potencial de nenhuma lei causai. Popper (1972) chega

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pelas teorias que informam seu projeto ou interpretação, ou pelacrença do experimentador nessas teorias. Embora os detalhes deum arranjo experimental, assim como o significado associado aosresultados, dependam do julgamento do experimentador orientadopela teoria, uma vez ativada a aparelhagem, é a natureza do mundoque determina o posicionamento de um ponteiro numa escala, oscliques do contador geiger, os relâmpagos numa tela e assim pordiante. Foi porque o mundo físico é como é que um experimentorealizado por Hertz em 1883 não apresentou nenhuma evidênciadetectável para o efeito eletromagnético dos raios catódicos; exata-mente porque o mundo é como é que a aparelhagem mais adequadade J. J. Thompson produziu evidência detectável duas décadas maistarde (Hon, 1987). Foram as diferenças materiais dos arranjosexperimentais dos dois físicos que levaram a resultados diferentes -e não as diferenças nas teorias sustentadas pelos dois.

O fato de serem os resultados experimentais determinados pelamaneira como o mundo funciona e não pelos pontos de vistateóricos dos experimentadores é que proporciona a possibilidadede testar-se a teoria em relação ao mundo. Isso não quer dizer quese obtenha com facilidade resultados significativos, também não éuma negação de que o significado dos resultados experimentaisseja às vezes ambíguo e nem uma exigência de que os resultadosexperimentais e as conclusões deles extraídas sejam infalíveis.Estou argumentando contra o relativismo cético, não contra ofalibilismo. A meta de produzir resultados experimentais objetivos,significativos e sem ambigüidade é um problema bastante sério.Embora a priori não existam garantias de que essa dificuldadevenha a ser resolvida, a história e a prática da ciência mostram queisso geralmente é possível.

5.5 O retorno do experimentador

Nesses últimos anos os sociólogos têm lançado a dúvida céticasobre o papel do experimento na ciência. Admitindo o quanto a

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suficiência e o significado a serem atribuídos aos resultados expe-rimentais baseiam-se na reflexão teórica e em refinadas análisespráticas, eles concluem que há uma circularidade quando seconsideram os experimentos base satisfatória de teste para asteorias científicas. Alguém se referiu a esse problema como "oretorno do experimentador". Andrew Pickering (1981, p. 229),numa análise dos experimentos criados para detectar os quarks,escreveu o seguinte:

não se pode separar a avaliação de estar ou não suficientemente fechadoum sistema experimental da avaliação dos fenômenos que ele contém: sealguém acredita em quarks livres, o experimento de Stanford [no qual seusrealizadores julgaram ter detectado os quarks livres) está suficientementefechado; se não acredita, ele não está.

Collins (l 985, p. 84) faz observação semelhante com referênciaa experimentos criados para detectar as ondas gravitacionais degrande fluxo:

O que é resultado correto depende das ondas gravitacionais atingiremou não a Terra em fluxos detectáveis. Para verificar isso, devemos construirum bom detector de ondas gravitacionais e fazer um exame. Contudo, nãosaberemos se construímos um bom detector até que o tenhamos experi-mentado e obtido o resultado correto! E não sabemos qual é o resultadocorreto até que ... e assim por diante, ad in/initum.

Diante da existência desse círculo, que ele chama de "retornodo experimentador", Collins chega à conclusão de que as contro-vérsias na ciência não podem ser resolvidas com experimentosfeitos de maneira objetiva e científica. "Algumas táticas 'não-cien-tíficas' devem ser empregadas porque somente os recursos doexperimento são insuficientes" (Collins, 1985, p. 143). Por isso,abdicar das ondas gravitacionais de grande fluxo foi "um processosocial (e político)" (Collins, 1981, p. 54). Nem mesmo os experi-mentos paranormais apresentados como reveladores da vida emo-cional das plantas podem ser considerados não-científicos. Se você

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acredita na paranormalidade, os experimentos são adequados, masse não acredita, eles não são.

Embora eu acredite que os estudos de Collins e sociólogos desemelhante mentalidade lancem uma luz interessante sobre anatureza e a complexidade do trabalho experimental, não pensoque suas conclusões radicais sejam garantidas - eles nem sãocorroborados por seus próprios estudos. Para simplificar e esclare-cer a dicussão, eu me concentro em um dos estudos mais impor-tantes que Collins usa para sustentar sua tese: as investigaçõessobre a discussão relativa aos experimentos criados para detectaras ondas gravitacionais, desde o momento em que Joseph Weberdeclarou havê-las detectado em 1969 até quando a discussão foiencerrada e o que Weber reivindicava foi desacreditado, mais oumenos em 1975 (Collins, 1985, capítulo 3).

Os experimentos foram criados para identificar os sinaisdevidos à suposta interação das ondas gravitacionais com umdetector e para distingui-los dos ruídos térmicos e outros. A forcado sinal que Weber dizia ter detectado era tal que entrava emconflito com diversas ordens de magnitude que se deveriamesperar, segundo a teoria aceita na época, inclusive a da relatividadede Einstein. Os experimentos de Weber foram tratados com ce-ticismo, especialmente enquanto funcionavam próximos dos limi-tes do que poderia ser considerado estatisticamente significativo.A questão nem era tanto a existência das ondas gravitacionais, asquais eram comumente previstas depois da teoria de Einstein, masa existência das ondas gravitacionais de grande fluxo, que Weberdizia ter detectado.

No início dos anos 70 foram feitas tentativas de repetir oexperimento de Weber, mas elas deixavam de detectar sinaisestatisticamente significativos. Weber seguia duas linhas de inves-tigação que prometiam reforçar a sua tese. Em primeiro lugar, eledizia que havia correlações significativas entre sinais captados pordetectores situados a milhares de quilômetros de distância; emsegundo lugar, uma periodicidade de aproximadamente vinte equatro horas, o que sugeria uma correlação entre os sinais detec-

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tados e a orientação da Terra em relação às estrelas. Essas duascorrelações reforçaram a reivindicação de que os sinais captadospor Weber eram causados por um fluxo de ondas gravitacionaisque atingiam a Terra vindos de uma determinada direção doespaço. Não obstante, o argumento de Weber a favor da correlaçãoentre detectores separados foi seriamente enfraquecido pela desco-berta de um erro em seu programa de computador e pelo fato deque alguns dos sinais dos detectores distantes que ele haviacomparado com o seu, os quais pressupunha terem sido gravadossimultaneamente, foram na verdade gravados com quatro horas dediferença. As tentativas de Weber de embasar a correlação sideralnão tiveram êxito e esta acabou desaparecendo.

Um outro fator na discussão entre Weber e seus críticos diziarespeito ao tipo de sistema, incluindo circuitos e programas decomputador, usado para processar o sinal bruto que vinha dodetector. Esses críticos sabiam inferir do conhecimento geralmenteaceito o suficiente para mostrar que, para inúmeros tipos de sinais,um sistema linear seria mais satisfatório do que o sistema não-linearutilizado por Weber. Weber não conseguiu resultados estatistica-mente significativos usando um sistema linear. Ele concluiu entãoque os impulsos que presumia serem causados pela absorção dagravidade têm um perfil incomum. Mais ou menos em 1975, atese de Weber deixou de convencer a comunidade científica, aexistência das ondas gravitacionais de grande fluxo foi negada eaquela linha de pesquisa foi abandonada.

Collins usa esse e outros estudos do gênero para contestar oestatuto epistemológico distintivo habitualmente atribuído ao co-nhecimento científico, e chega à conclusão de que as discussõescomplexas na ciência não podem ser resolvidas com recurso aoexperimento, por meios normalmente considerados "científicos".Elas são antes resolvidas como resultado de outras pressões sociaise políticas. Levando em consideração sua análise da controvérsiaacerca das ondas gravitacionais, ele conclui que não há "nenhumc°njunto de critérios 'científicos' que possa determinar a validadedas descobertas nesse campo. O retorno do experimentador leva

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os cientistas a buscar outros critérios de qualidade" (Collins, 1985,p. 88), de modo que "deve-se empregar alguma tática 'não-científi-ca'" (Collins, 1985, p. 143). Ele mostra que há maneiras possíveisde interpretar o argumento contra Weber, "observando falhas taisem cada tendência que uma rejeição absoluta da tese do grandefluxo não seria a inferência necessária" (Collins, 1985, p. 91).Como o "retorno do experimentador impede uma solução 'objeti-va'" (Collins, 1985, p. 151), são os interesses sociais e políticos dacomunidade científica que dão a preferência a um e não a outroresultado igualmente aceitável. "Não é a regularidade do mundoque se impõe a nossos sentidos, mas a regularidade de nossa crençainstitucionalizada que se impõe ao mundo" (Collins, 1985, p. 148).

As idéias de Collins são erradas e com certeza não têm apoioem suas investigações. Sobretudo o retorno do experimentador,como o interpretam ele e outros, como Pickering, baseia-se numacompreensão insuficiente da natureza e papel do experimento.

Um ponto que deveria ser enfatizado como contrário às reaçõesfanáticas e sem garantia ao peso da teoria do experimento é asensação de que os resultados experimentais são determinadosmais pela natureza do mundo físico do que pelas teorias aceitas oucogitadas pelos experimentadores ou intérpretes, como já salienta-do na seção 5.4. Weber teria realmente adorado que os sinais quesurgiam de seu aparato experimental apresentassem uma periodi-cidade de vinte e quatro horas, mas o mundo não cooperou.

Como Collins e sociólogos de mesma orientação, podemosaceitar que a competência e o significado de um resultado experi-mental sejam sensíveis em relação a suposições antecedentes. Oretorno do experimentador, da maneira formulada por Collins,que ameaça a idéia de que os testes experimentais possam ofereceruma base objetiva para a avaliação da teoria, só tem força se asasserções em teste - por exemplo, que existem ondas gravitacionaisde grande fluxo ou quarks livres - formam parte das suposiçõesantecedentes que informam os experimentos planejados para testarexatamente essas asserções. Se a suficiência dos experimentoscriados para testar a existência das ondas gravitacionais de grande

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fluxo só pode ser julgada uma vez que se tenha uma posição sobreessa existência, então o tipo de circularidade invocada por Collinse Pickering é realmente conseqüente. Contudo, essa não é asituação que normalmente os cientistas experimentais enfrentam,nem corresponde à que Weber e seus críticos enfrentaram.

Instalada uma certa polêmica na ciência, a questão é chegar aresultados experimentais definitivos, que não contenham umjulgamento prévio do caso. Esses resultados experimentais depen-derão das suposições antecedentes e estas estarão sujeitas a ques-tionamento. Se qualquer uma delas for questionada sem funda-mentação ou de maneira superficial, o questionamento deve seracompanhado por uma estratégia que possibilite a discriminaçãoentre a suposição questionada e a alternativa proposta. Isso corres-ponde à meta geral da ciência caracterizada no capítulo 3, segundoa qual a suficiência de nossas teses sobre o mundo deveria seravaliada em confronto com o mundo, de alguma maneira prática.Sem grande esforço, os experimentos realizados por Weber e seuscríticos podem ser assim interpretados. Críticas à adequação dosdiversos resultados exigidos encerram uma série de pressupostos,mas não são do tipo que produz a circularidade invocada porCollins. Alguns resultados de Weber foram claramente desacredi-tados com base, por exemplo, em certas suposições compartilhadasa respeito do que constitui um programa de computador confiável.Outras críticas eram mais sutis. Observamos atrás que Weber foicriticado por ampliar seus sinais utilizando um sistema não-linear,quando em geral se reconhecia que os sistemas lineares eram maissensíveis, de acordo com certas suposições um tanto frágeis refe-rentes à forma dos impulsos. Weber aceitava que o conhecimentopassado fosse a base dessa crítica e concluiu que os impulsos queemanavam de seu detector deveriam ter um perfil incomum. Seuscríticos estavam corretos ao insistir no caráter ad hoc dessa resposta.Para reforçar a tese de Weber seria preciso haver alguma evidênciaauto-suficiente desse perfil comum. Era concebível que tal evidênciaaparecesse. Um sistema de circuitos elétricos mais sensível poderiapermitir o diagnóstico da forma do impulso, por exemplo. Não

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obstante, Weber e os que o apoiavam não apresentaram esse tipode evidência auto-suficiente. Existem razões científicas objetivasmuito boas para rejeitar as ondas gravitacionais de grande fluxocom base nas evidências que atualmente possuímos.

A maior parte das provas apresentadas por Collins para adefesa da importância dos fatores "não-científicos" na controvérsiasobre as ondas gravitacionais de grande fluxo originou-se dosresultados de entrevistas com os participantes. Collins (1985,p. 87) mostra que, entre as razões dadas pelos cientistas para aaceitação e rejeição dos resultados experimentais, entravam fatorescomo a personalidade ou nacionalidade dos experimentadores,tamanho e prestígio da universidade de origem, o fato dos cientistastrabalharem na indústria privada ou na academia, o estilo daapresentação dos resultados, e assim por diante. Entretanto, essasobservações não trazem nenhuma preocupação, sequer para asmais ortodoxas concepções da racionalidade científica. As decisõesrotineiras tomadas pelos cientistas a respeito das linhas de pesquisaa seguir e das estratégias a serem adotadas, em que experimentosconfiar e quais os que devem ser questionados, e assim por diante,naturalmente serão influenciadas por uma série de fatores subjeti-vos, como os indicados por Collins. Contudo, tais fatores nãopoderiam determinar a aceitabilidade de exigências científicas; nadiscussão sobre as ondas gravitacionais, realmente não determina-ram.

Outro aspecto que Collins esclarece usando seu material deentrevistas é a natureza variável e muitas vezes contraditória dascrenças e julgamentos dos cientistas. Assim, por exemplo, umcientista considerava um ponto a favor o fato de ter sido feita numcomputador a análise estatística do experimento de Weber, en-quanto outro considerava isso um motivo de preocupação; algunsconsideravam as coincidências entre detectores separados muitosignificativas, outros discordavam; alguns achavam convincentesas provas da existência das ondas gravitacionais, outros não.Collins analisa essas provas de uma forma que dá suporte a suaidéia de que não existe uma única resposta científica correta para

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esse tipo de questão, de modo que o fato de uma resposta triunfarsobre a outra deve ser explicado pelos fatores não-científicos. Aceitoe não me surpreendo com a variabilidade das opiniões e crençasdos cientistas, observada por Collins. Entretanto, transferir essadiversidade para o próprio conhecimento científico é algo que nãose justifica e me parece resultante de uma identificação muitopróxima do conhecimento científico com as crenças e opiniões doscientistas. Basicamente, o que torna uma hipótese científica aceitá-vel ou utilizável é a quantidade de oportunidades objetivas que elaoferece para a pesquisa futura ou a aplicação prática, ou seja: aquantidade de vias que se apresentam para investigação ou explo-ração futura, dados os recursos teóricos e tecnológicos existentes(Chalmers, 1982, capítulo 11). A socióloga Karin Knorr-Cetina(1981, p. 8) expõe um ponto de vista semelhante:

Onde encontramos o processo de validação em qualquer grau signifi-cativo, senão no próprio laboratório? ... O que é o processo de aceitação,senão um processo de incorporação seletiva dos resultados anteriores noprocesso constante da produção da pesquisa? Chamá-lo de processo deformação de opinião parece provocar uma série de conotações errôneas. ...O que temos, portanto, não é um processo de formação de opinião, masum processo em que determinados resultados são solidificados pela incor-poração contínua à pesquisa em andamento.

Depois de 1975, Weber e os que o apoiavam talvez tenhamcontinuado a acreditar intensamente nas ondas gravitacionais degrande fluxo, e seus oponentes, da mesma forma, em sua inexis-tência, mas isso tem muito pouco a ver com o destino da hipótesede Weber. O importante é que por volta de 1975 pouco havia afazer com essa hipótese. Uma vez que as tentativas para consubs-tanciar a correlação entre detectores separados e a correlação sideralhaviam falhado, e uma vez que Weber fora obrigado a lançar mãode suposições impossíveis de testar sobre o perfil dos impulsos,não havia mais lugar para onde ele e os que o apoiavam pudessemse voltar, não havia nenhuma oportunidade objetiva a aproveitar,

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nenhuma forma de consolidar sua hipótese integrando-a às pesqui-sas em andamento. Essa explicação "científica" da perda de inte-resse nas ondas gravitacionais de grande fluxo não recorre e nãoprecisa recorrer a interesses sociais e políticos extracientíficos.

Há duas ressalvas a fazer com relação a essa resposta um tantoconservadora ao .questionamento de Collins. Em primeiro lugar,a ciência é passível de falhas e de revisão, e está aberta. Pode-seprever maneiras de ressuscitar as hipóteses de Weber. Certo avançona microeletrônica poderia tornar possível a identificação dosperfis incomuns dos impulsos postulados por Weber, abrindouma série de oportunidades para a pesquisa prática. Por sua vez,isso poderia desdobrar oportunidades para os teóricos procura-rem explicação para as ondas detectadas ou para os astrônomosbuscarem evidências auto-suficientes de sua origem. Até, ou amenos que algo assim aconteça, as hipóteses de Weber perma-necerão na geladeira da ciência. Em segundo lugar, deve-se admitirque poderia muito bem haver episódios na ciência cujos resultadosfossem determinados por fatores sociais e políticos que não fun-cionam no interesse da ciência, embora eu tenha argumentado,contra Collins, que o episódio envolvendo Weber e as ondasgravitacionais de grande fluxo não é um desses. Muitas dasquestões levantadas aqui, típicas nos debates dos sociólogos daciência contemporâneos, serão discutidas mais extensamente noscapítulos seguintes.

O estudo de Collins sobre a tentativa de Weber para detectaras ondas gravitacionais ilustra o fato de que a produção de dadosexperimentais pertinentes na ciência certamente não é uma questãomuito clara. Não obstante, também já argumentei, contra Collins,que problemas implícitos nem sempre são insuperáveis e que épossível obter resultados experimentais objetivos que tenham umarelação decisiva com a nossa avaliação de pretensos conhecimentoscientíficos. Hertz apresentou boas provas da existência das ondasde rádio, enquanto Blondlot não conseguiu apresentar evidênciassuficientes para a existência dos raios N, e Weber deixou deapresentar evidências satisfatórias para a existência das ondas

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gravitacionais de grande fluxo. Sustento que esses incidentespodem ser compreendidos satisfatoriamente em termos da metada produção do conhecimento científico e que não é necessáriorecorrer a nenhuma espécie de fator extracientífico social oupolítico para avaliar a epistemologia dessas situações. Isso não querdizer que a meta da ciência possa ser atingida isolada de outrasmetas e atividades, nem que a meta da ciência prevaleça ou devaprevalecer sempre sobre outras metas. Questões como essa sãoabordadas nos capítulos restantes deste livro.

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CAPÍTULO 6

A CIÊNCIA E A SOCIOLOGIADO CONHECIMENTO

6.1 A sociologia e o ceticismo em relação à ciência

Uma idéia tradicional da objetividade na ciência diz que osméritos de uma teoria científica independem da classe, raça, sexoe outras características das pessoas ou grupos que a abraçam. Se asinfluências provenientes dessas características dos indivíduos egrupos são chamadas de influências "sociais", pode-se dizer que,segundo essa idéia tradicional, o desenvolvimento e a avaliação daciência não estão sujeitos a uma explicação social. Muitos sociólo-gos contemporâneos negam que a ciência esteja imune à explicaçãosocial; seus pontos de vista constituem um ataque cético à objeti-vidade e ao estatuto epistemológico distintivo normalmente atri-buídos ao conhecimento científico. O que exporei a seguir fornecealguns dos muitos possíveis exemplos desse tipo de ceticismo.

Segundo David Bloor (1982, p. 283), as leis científicas sãoProtegidas e tornam-se estáveis não por razões internas da ciência,ftias "devido a sua pressuposta utilidade para os propósitos deJustificação, legitimação e persuasão social". David Tunrbull (l 984,P- 58) recorre aos estudos sociológicos para defender sua idéia de

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que não há nada distintivo no conhecimento científico, sustentan-do que ele está "sujeito aos mesmos determinantes e influênciasque as outras formas de conhecimento". O detalhado estudo dotrabalho em laboratório de B. Latour e S. Woolgar (1979, p. 237)levou-os a negar qualquer distinção interessante entre a ciência e apolítica, enquanto H. M. Collins e G. Cox (1976) defendemclaramente uma idéia relativista intransigente da ciência, segundoa qual as estratégias de Marion Keech para convencer os outros darealidade de sua comunicação com os seres extraterrestres nãodifere muito das empregadas na ciência.

Uma refutação a afirmações céticas como essas exigirá umacuidadosa ponderação dos sentidos em que se pode dizer que aciência esteja sujeita a uma explicação social. Nesse contexto,muitas vezes se recorre a uma distinção entre o que se pode chamaraspectos "cognitivos" e "não-cognitivos" da ciência. Nos últimosestão implícitas coisas como a organização social da ciência, ainfluência da ciência sobre outros aspectos da sociedade e as in-fluências contrárias, que resultam no fato de que determinadosramos da ciência tenham mais suporte do que outros. Larry Laudan(1977, p. 197), um dos opositores às atuais tendências na sociolo-gia do conhecimento, recorre a essa distinção. Como exemplo dequestões que exigem uma resposta sociológica, ele cita: "Por queforam fundadas determinadas instituições ou sociedades científi-cas, por que a reputação de um cientista decaiu, por que determi-nado laboratório foi criado, quando e onde, ou por que o númerode cientistas alemães aumentou de modo impressionante entre1820 e 1860?". Nem mesmo os mais ortodoxos defensores daautonomia e da racionalidade da ciência negariam que a sociologiatem um papel na resposta a essas perguntas. A existência de umaautêntica sociologia não-cognitiva da ciência não é contestada,embora se deva dizer que esse campo abrange questões bem maisinquietantes do que as trazidas à tona por Laudan. Se entre elascolocamos problemas como a influência da ciência sobre o meioambiente, o potencial da engenharia genética, o abismo crescenteentre as sociedades tecnologicamente avançadas e as tecnologica-

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mente subdesenvolvidas e o efeito da informática em nossas vidas,a sociologia não-cognitiva da ciência abrange os problemas sociais,políticos e morais mais inquietantes de nosso tempo.

Embora sua importância seja patente, um domínio legítimopara a sociologia não-cognitiva da ciência não está em discussão.Quando nos voltamos para os aspectos cognitivos da ciência é quechegamos ao âmago da discussão entre os defensores tradicionaisda autonomia e racionalidade da ciência e alguns sociólogoscontemporâneos. David Bloor abre seu livro Knowledge and socialimagery (O conhecimento e a representação social, 1976, p. 1) com apergunta: "A sociologia do conhecimento pode investigar e explicaro próprio conteúdo e a natureza do conhecimento científico?" - eprossegue, esboçando seu "vigoroso programa da sociologia doconhecimento" planejado para dar uma resposta certa à pergunta.Ele acha que os sociólogos que se detiveram antes de dar umaexplicação social ao conteúdo da ciência sofrem de covardia. Bloore uma série de outros sociólogos de mentalidade semelhantetiveram a coragem de tomar o conteúdo cognitivo da ciência comoobjeto de suas explicações sociológicas; os tradicionalistas normal-mente interpretam seus esforços como ameaça ao estatuto epistemo-lógico da ciência (veja também Mulkay, 1979, p. 60-2; Mackenzie,1981, p. 2-4).

É necessário, ainda, fazer mais uma distinção, antes de poder-mos identificar com precisão o terreno da disputa. Falando poralto, essa é uma distinção entre a boa e a má ciência. Emboranegando a competência de uma explicação social do conteúdocognitivo da boa ciência, os opositores tradicionais da sociologiado conhecimento mostram-se prontos a considerar as causassociais invocadas quando se tem de explicar a má ciência ou aciência fora dos padrões. Assim, os tradicionalistas estão sempremais do que propensos a invocar as causas sociais para explicar ocaso Lisenko na Rússia ou a degeneração da física na Alemanhanazista, mas não consideram apropriado, por exemplo, buscar umaAplicação social para a substituição da mecânica clássica pelaquântica. A presteza dos tradicionalistas em aceitar uma explicação

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social da má ciência é evidenciada pelo quanto eles se sentem àvontade com as explicações dos antropólogos para os estranhossistemas de conhecimento de tribos alienígenas, como a crença nafeitiçaria dos Azende, que lembram aspectos da vida social dessepovo.

Os sociólogos tradicionais do conhecimento e seus contempo-râneos mais radicais estão divididos na questão de estar ou não oconteúdo cognitivo de nossa melhor ciência sujeito a uma explica-ção social. No restante deste capítulo, procuro examinar analitica-mente a essência da discussão.

6.2 O retrato inadequado que os sociólogosfazem de seus opositores

A argumentação usada por sociólogos em defesa da necessi-dade de uma explicação sociológica do conteúdo cognitivo daciência, procurando assim enfraquecer as idéias mais tradicionaisa respeito de seu estatuto epistemológico distintivo, muitas vezes éarruinada por um retrato inadequado e ultrapassado, de inspiraçãopositivista, do que significam essas idéias tradicionais. Mulkay(l 979) prepara o caminho para essa versão da sociologia da ciência,rejeitando aquilo a que se refere como "idéia clássica" da ciência;David Bloor (1976) apresenta sua opinião como alternativa paraalgumas outras versões bastante radicalizadas do racionalismo eempirismo; e Barry Barnes (1977) elabora sua tese em oposição à"explicação contemplativa", que encerra uma versão radical dateoria da correspondência da verdade baseada numa analogia coma pintura. Certamente me sinto contente em juntar-me aos soció-logos na rejeição desse tipo de idéias. Contudo, também assim sesentiria, por exemplo, Karl Popper, que os mencionados estudio-sos dificilmente aceitariam como colega na sociologia do conheci-mento. Há outras tentativas bem mais sofisticadas para defender

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o estatuto distintivo da ciência, além das que os sociólogos normal-mente consideram ser a oposição.

Um exemplo que ilustra a minha opinião é a maneira comoMulkay (1979) organiza seu programa, criticando a explicação"clássica". Os elementos dessa visão clássica identificada porMulkay são os seguintes. A ciência pode estabelecer verdades sobreo mundo natural na forma de leis universais da natureza; essas leissão confirmadas lançando-se mão de afirmações factuais determi-nadas por meio de uma observação cuidadosa e isenta de precon-ceitos. Embora certos componentes teóricos da ciência possam iralém do que a observação pode determinar, pode-se fazer umadistinção entre os níveis teórico e de observação. Neste último, aciência apresenta um crescimento cumulativo. Os critérios pelosquais as exigências de conhecimento devem ser analisadas sãouniversais e a-históricos. As conclusões da ciência são determina-das pelo mundo físico e não pelo mundo social.

Mulkay dedica o segundo capítulo de seu livro à rejeição dessaidéia já clássica. Ele recorre a um argumento usado por Hanson(1969) para insistir em que não se pode demonstrar que o mundofísico é regido por leis universais e que os argumentos normalmen-te apresentados para isso são circulares. Ele enumera as diversasformas em que a tradicional distinção entre observação e teoria éprecária, e ilustra a possibilidade de revisão da evidência empírica.Ele insiste ainda em que os critérios para analisar os méritos dasteorias não são universais, mas se baseiam no contexto e. estãosujeitos à mudança. Na medida em que esses critérios foremprodutos sociais, as conclusões da ciência não serão simplesmentedeterminadas pela natureza do mundo físico.

Seguramente Mulkay está correto ao rejeitar o que chama deidéia "clássica", mas ele se equivoca ao descrevê-la como clássica,já que apenas a minoria dos filósofos da ciência contemporâneosdesejosos de defender o estatuto epistemológico da ciência discor-daria dele. Por exemplo, a maior parte do que Mulkay rejeita nãoapenas é compatível com a filosofia da ciência de Popper, masc°nstitui ainda seu aspecto mais distintivo. O fato de Popper negar

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que as teorias científicas possam ser provadas e insistir em seupermanente caráter hipotético não precisa de muita documentação.Além do mais, ele rejeita a idéia de uma base segura para a ciência,e insiste em que as afirmações provenientes da observação estãosobrecarregadas de teorias e são passíveis de revisão (Popper, 1972,capítulo 5). Ele sublinha que a observação e o experimento sãodevidamente concebidos como intervenções ativas mais do que per-cepções passivas da natureza (Popper, 1979, Apêndice 1), e destaca,também, a importância das decisões que dependem do contextona aceitação ou rejeição de resultados de observações e experimen-tos (Popper, 1972, p. 104-6). Ele observa que o conhecimento éum produto social, resultante da modificação do conhecimentoanterior, e, ainda, que não é estabelecido diretamente por meio deum embate com o mundo físico (Popper, 1979, p. 71). Talvez sepossa dizer que Popper atém-se à idéia "clássica" da ciência até ondeconcorda com uma análoga teoria da verdade; mas, se considera-mos que seu critério da falsificabilidade especifica uma demarcaçãoabsoluta das fronteiras entre as ciências e as não-ciências ou aspseudociências, ele poderia ser interpretado como negador dadependência do contexto de alguns padrões científicos. Entretanto,temos apenas de nos voltar para Imre Lakatos, outro filósofo quetem antipatia pela sociologia do conhecimento e que se via comoelaborador das idéias de Popper, para encontrar alguém quedescarta uma teoria de correspondência da verdade (Hacking,1983, capítulo 8) e que explorou as maneiras como foram histori-camente alterados os padrões científicos (Lakatos, 1978a). Poppere Lakatos são representantes exemplares de uma série de filósofoscontemporâneos que rejeitam a idéia clássica de Mulkay e tentamdefender mais satisfatoriamente o estatuto epistemológico da ciên-cia. Conseqüentemente, ir contra esse estatuto epistemológicoexigirá muito mais do que a refutação de idéias tradicionaisdesacreditadas.

Outro argumento que se destaca nos textos dos sociólogos daciência e que trai sua caracterização precária da oposição é o queexporei a seguir (veja, por exemplo, Barnes e Bloor, 1982, p. 23;

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Bloor, 1982). As teorias científicas são indeterminadas pela evidên-cia. Portanto, fatores sociais extracientíficos entram nos processosque levam à seleção de uma entre as talvez inúmeras possíveisteorias compatíveis com a evidência. Um exemplo especialmenteclaro dessa linha de argumentação encontra-se num interessantedocumento em que David Bloor (l 982) procura recuperar e aplicarà ciência a tese de Durkheim e Mauss, de que "a classificação dascoisas reproduz a classificação do homem". Bloor emprega omodelo da rede de Mary Hesse para ilustrar a complexidade comque se relacionam entre si as afirmações cientificas. Hesse usa aexpressão "condições de correspondência", para se referir às for-mas como as comunicações científicas são limitadas pela evidênciaempírica, e a expressão "condições de coerência", para se referir aoutras restrições. Bloor (1982, p. 283) insiste em que é emcondições de coerência que devemos situar a entrada das relaçõessociais na ciência. Ele utiliza temas encontrados no trabalho daantropóloga Mary Douglas para dizer que "certas leis são protegidase se tornam estáveis devido à sua pressuposta utilidade para finsde justificação, legitimação e controle".

Esta mudança - a passagem da indeterminação das teorias pelaevidência para a presença de influências outras, além do conheci-mento, que têm influência na ciência - é rápida demais e faz muitasconcessões às explicações tradicionais da ciência a que se opõemos sociólogos. O aspecto lógico segundo o qual há uma infinida-de de afirmações universais compatíveis com um dado conjuntofinito de relatórios de observação leva os filósofos empiristastradicionais da ciência à conclusão de que há uma infinidade deteorias científicas compatíveis com a evidência oferecida. Natural-mente, isso contraria totalmente as situações com que se deparana ciência real, onde os cientistas muitas vezes lutam para descobrirqualquer teoria viável compatível com alguma evidência problemá-tica. O argumento da indeterminação dá uma atenção insuficienteao desenvolvimento da ciência. O conhecimento novo surge comoresposta a problemas que emergem com o conhecimento anterior.Se as teorias inovadoras devem ser inteligíveis, não há outra opção

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senão usar, modificar ou ampliar os conceitos existentes r>oanalogias com outros conceitos existentes, ao mesmo tempo emque, se eles tiverem alguma utilidade, devem ao menos oferecer apromessa de alguma possível linha viável de investigação. Astentativas de analisar essas idéias em termos de simplicidade(Popper, 1972, capítulo 7), coerência e progressividade (Lakatos1974) ou grau de fertilidade (Chalmers, 1982, capítulo 11) servemcomo indicadores do fato de não ser possível pressupor que aindeterminação necessariamente leve à introdução de fatores so-ciais extracientíficos na ciência.

A posição que defendi nos capítulos anteriores deste livrocontém uma visão da ciência que oferece aspectos fundamentaisde sua prática social. Os relatórios de observação e os resultadosdo experimento são produtos sociais e humanos que surgem emconseqüência da discussão e das experiências. Contudo, de manei-ra geral, sua aceitação e, sempre que necessário, sua rejeição ou suatransformação podem ser compreendidas em termos da meta daciência, sem que se tenha de recorrer a fatores sociais mais amplos.No capítulo anterior procurei mostrar que essa era a questão nacontrovérsia em torno das tentativas de detectar as ondas gravita-cionais, e por isso ia contra a concepção sociológica mais radicalde Collins daquele episódio. Embora os resultados da ciência nãosejam "determinados pelo mundo físico" em conseqüência dealgum confronto direto, como diria o empirista radical, os experi-mentos são planejados para que o mundo físico desempenhe umpapel decisivo na aceitação ou rejeição dos resultados. Eu já disse,especialmente no capítulo 2, que os métodos e padrões da ciênciasão, historicamente, produtos sociais imprevisíveis e sujeitos àmudança, mas procuro compensar o que se poderia entender comoas conseqüências relativistas radicais, indicando de que maneiraessas mudanças podem ser compreendidas em termos da meta daciência, ponto que ilustrei em minha narrativa sobre como Galileuintroduziu o telescópio na astronomia. Se os sociólogos da ciênciapretendem defender a tese social do conteúdo cognitivo da ciênciade forma a oferecer base para um ceticismo em relação à objetivi-

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Jade e ao estatuto epistemológico distintivo normalmente atribuí-do a ela> devem fazer mais do que combater filosofias da ciênciaradicais e bastante ultrapassadas.

6.3 As origens sociais do conhecimento científico

Se avaliamos as declarações para sujeitar conteúdo e naturezado conhecimento científico à explicação sociológica, temos de serclaros a respeito do que deve ser explicado e do que significa umaexplicação. Uma forma de construir o argumento é compreendera explicação de algum fato de conhecimento científico que encerrea história de como esse conhecimento foi elaborado. Se entende-mos dessa maneira os argumentos dos sociólogos, estarei prepara-do para admitir que o conteúdo do conhecimento científico estásujeito a uma explicação sociológica. Freqüentemente, os conceitose métodos empregados para o bem da ciência têm suas origens nomundo social fora da atividade científica numa concepção maisrestrita. Uma explicação sociológica das origens do conhecimentocientífico muitas vezes está correta.

O caminho que levou Darwin à teoria da evolução é um bomexemplo. A visão darwiniana da seleção natural foi bastante in-fluenciada pela idéia de Malthus de que o tamanho das populaçõeshumanas tem um limite natural, porque um aumento ilimitado aslevaria a esgotar o suprimento alimentar. Sua tese foi uma contri-buição para as discussões sociais da época, que, entre outras coisas,estavam ligadas ao problema da pobreza. Os argumentos deDarwin para a transformação das espécies e para a maneira comoocorria essa transmutação eram influenciados pelo conhecimentodas técnicas dos criadores profissionais. Não há dúvida de que umaexplicação correta do surgimento da teoria da evolução até amaturidade e além da teoria de Darwin nos leva a ultrapassar asfronteiras do discurso científico, abrangendo fatores sociais maisamplos (Young, 1969, 1971).

A

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Voltando à física, um segundo exemplo vem da teoria cinéticados gases, apresentada por James Clerk Maxwell no século XIX.As técnicas estatísticas que Maxwell empregou para deduzir aspropriedades macroscópicas dos gases dos movimentos aleatóriosdas moléculas constituintes valiam-se de técnicas criadas por teóri-cos sociais para tratar das regularidades em fenômenos sociais,como as taxas de natalidade ou as de crime (Porter, 1981).

Se interpretar um componente do conhecimento científico édar uma explicação plenamente satisfatória de como ele surgiu,podemos desde já admitir que muitos fatores normalmente trata-dos por sociólogos serão pertinentes - e nesse caso, tambémpodemos dizer que existe realmente um papel para uma sociologiado conhecimento científico. Entretanto, há um outro gênero de"explicação" do conhecimento científico. Podemos procurar expli-car e avaliar como e até que ponto um exemplo de conhecimentocientífico funciona como tal. Pode-se levar em conta até que pontoele realmente contribui para a meta da ciência. Assim, voltando aoexemplo de Darwin, podemos procurar identificar a descrição deseleção e evolução presente nos textos do cientista. Podemoslevantar questões sobre sua coerência interna e seus relacionamen-tos com as evidências, e compará-las com as teorias rivais nesseaspecto. Tais questões, além de legítimas, são precisamente assignificativas quando estamos interessados no estatuto epistemoló-gico da teoria de Darwin. Mais do que isso, as respostas para elasindependem de reflexões sobre as origens sociais das idéias deDarwin. A própria teoria darwiniana não está acima da crítica, deum ponto de vista epistemológico. Em especial, os próprios textosde Darwin não deixam suficientemente claro o que é exatamenteo mecanismo da seleção e como este mecanismo postulado foiestabelecido. Esse é um ponto especialmente importante, porquena época de Darwin em geral aceitou-se ó fato de que a evoluçãoocorre e ocorreu. O que se discutia era a explicação correta domecanismo da evolução (Young, 1971).

No capítulo 3 tentei fazer uma cautelosa articulação da metada ciência moderna. Meu argumento é que tem cabimento inter-

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pretar e avaliar a teoria de Darwin desse ponto de vista, mas, alémdisso, essa meta era na realidade adotada e defendida no métodousado pela biologia na época. A meta dos teóricos evolucionistasda época era apresentar uma explicação satisfatória do mecanismoda evolução, embora eles também participassem de outras ativida-des com metas diferentes, como a religião e a política. As questõessobre o que há de satisfatório na teoria de Darwin como explicaçãodo mecanismo da evolução distinguem-se das questões sobre suaorigem ou os diversos usos ideológicos feitos dela. Se os sociólogosdo conhecimento preferem argumentar que uma explicação decomo a teoria funciona enquanto conhecimento e como elacontribui para a meta da ciência encerra outros fatores sociais alémdos internos da própria ciência, tenho de discordar deles.

A posição que adoto aqui pode ser tratada como uma versãoda distinção tradicional entre o chamado modo de descoberta e omodo de justificação. Segundo essa distinção, a maneira como umateoria vem a ser proposta é um tipo de questão, que exige umaresposta histórica, ao passo que a forma pela qual ela é justificadacomo conhecimento satisfatório é outra espécie de questão, queexige uma resposta epistemológica. Não tenho nenhuma objeçãoa fazer se minha posição for assim caracterizada, desde que seadmita uma série de ressalvas. Em primeiro lugar, o método dejustificação é para mim delimitado em termos de uma explicaçãoda meta da ciência, e não por referência a uma definição específicado método ou racionalidade científica. Em segundo lugar, háalgumas questões históricas pertinentes ao método de justificação,como Lakatos e seus seguidores já enfatizaram (Musgrave, 1974a;Nickles, 1987). A necessidade de uma teoria constituir um avançoem relação à teoria questionada, e a importância de previsõesinovadoras nesse contexto, introduz um elemento histórico nodomínio da justificação. Em terceiro lugar, não se deve considerarque meu argumento de que a meta da ciência e as correspondentesquestões epistemológicas podem ser claramente distinguidas deoutras metas e outros gêneros implique que a produção doconhecimento científico possa ser isolada de outras atividades, algo

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que retomarei no capítulo 8. Em quarto lugar, a distinção entre asquestões da origem e as questões do mérito científico não deve serconsiderada algo que desvalorize as investigações da primeira. Ainovação científica e o avanço de uma ciência especializada podemacontecer por meio de alguma informação ou fato de fora da es-pecialidade, que tenha importantes implicações, por exemplo, paraa organização institucional da ciência e para a educação científica.

6.4 A ênfase inadequada na crença

A discussão entre os sociólogos do conhecimento científico eseus oponentes freqüentemente parte do pressuposto de que sãoas crenças dos cientistas que devem ser explicadas. Laudan (1981,p. 173) diz, por exemplo, que os sociólogos a que se opõe afirmampoder proporcionar "uma explicação sociológica da razão por queos cientistas adotam praticamente todas as crenças sobre o mundoque eles mesmos criam".

Em outro texto já apontei (Chalmers, 1982, capítulos 10 e 11)por que me coloco ao lado de Popper, e considero também oenfoque nas crenças e convicções pessoais algo bastante insatisfa-tório para compreender a natureza da ciência e seu progresso.Raramente estamos em posição de saber alguma coisa sobre o graude convicção que um cientista tem da teoria em que trabalha, nemprecisamos conhecê-lo, quando estamos preocupados em caracte-rizar ou avaliar o caráter científico de seu trabalho. Não tenhonenhuma idéia do quanto a convicção de Weber a respeito dasondas gravitacionais de grande fluxo foi influenciada pela pesquisadescrita no capítulo anterior. Minha caracterização e avaliação da-quele episódio baseiam-se ou recaem sobre as ponderações feitas,os argumentos oferecidos e os experimentos realizados, mais doque em ponderações sobre a crença dos cientistas envolvidos. Nãoé incomum os cientistas trabalharem em cima de teorias de quenão estão plenamente convencidos para rejeitá-las com fundamen-tação e, com isso, às vezes contribuírem para seu desenvolvimento.

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Um exemplo é a base que Poisson inadvertidamente proporcionouà teoria ondulatória da luz, de Fresnel, no século XIX. A tentativade Poisson de desacreditar a teoria, demonstrando que ela teria a"absurda" conseqüência de que um ponto brilhante deveria serobservado no centro do lado sombrio de um disco opaco devida-mente iluminado, deu para trás, quando o ponto brilhante foiobservado no experimento. Dados alguns dos aspectos problemá-ticos da mecânica quântica contemporânea, não estou muito certodo que significaria uma crença a respeito dela, mas tenho umarazoável idéia do que significa desenvolvê-la, compará-la com amecânica clássica em diversos aspectos e testar experimentalmentesuas conseqüências.

A insuficiência de uma atenção dada às crenças dos cientistasquando se tenta caracterizar a ciência tem recebido muito apoio deuma socióloga contemporânea da ciência. Karin Knorr-Cetina(1981, p. 8), com base em seus estudos sobre o trabalho emlaboratório, insiste em que é muito insatisfatório pensar no desen-volvimento da ciência em termos de formação das crenças ouconvicções dos cientistas. Diz ela que um resultado científico éaceito não porque os cientistas preferem acreditar nele, mas emfunção de haver sido incorporado ao "processo constante deprodução da pesquisa", de modo que "chamá-lo de processo deformação de opinião parece provocar uma série de conotaçõesequivocadas".

Enquanto continuarmos identificando o conhecimento cientí-fico com as crenças dos cientistas, inevitavelmente estaremosforçados a adotar uma versão da discussão tradicional sobre oquanto se deve atribuir essas crenças a razões ou causas. Segundoo ponto de vista tradicional, as crenças são racionais até onde sãoconstituídas à luz de boas razões, e irracionais enquanto são produ-zidas por causas psicológicas e sociológicas. Laudan (1977, p. 198)adere a uma determinada versão desta distinção em sua crítica àsociologia da ciência:

O intelectual historiador do conhecimento procurará explicar por quealguém acreditaria em alguma teoria conversando sobre os argumentos e

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evidências a favor ou contra ela e as oponentes. O sociólogo cognitivo, por

outro lado, geralmente tentará explicar por que se deveria acreditar numateoria em função das circunstâncias sociais, econômicas, psicológicas einstitucionais em que se encontrava o agente. Ambos tentam resolver omesmo problema (ou seja: a convicção de algum agente histórico), aindaque seus métodos para solucioná-lo sejam tão diferentes quanto são quaseincomensuráveis.

A visão de Laudan é que o conhecimento cognitivo da boaciência deveria ser explicado recorrendo-se a razões e que as causassociológicas só têm de ser lembradas quando a ciência se extravia.A história social ou "externa" da ciência é subserviente em relaçãoà história intelectual e "interna" da ciência (Laudan, 1977, p. 208).

Parece-me que, ao identificar uma teoria científica com a crençaou convicção de algum agente histórico, Laudan escolheu umterreno muito impróprio para defender seu ponto de vista. Comojá mostrei acima, raramente estamos em posição de avaliar o quesão realmente as convicções dos cientistas e, sejam lá quais foremelas, estou certo de que essas convicções e sua intensidade serãoinfluenciadas por uma enorme série de fatores psicológicos esociológicos, além de argumentos e razões. Num dos principaisexemplos de Laudan para uma convicção racional (2 + 2 = 4), essacrença será influenciada até pela maneira como foi aprendida epela ironia a qualquer tentativa de negá-la. Acho muitíssimoimplausível a idéia, sugerida por Laudan, de que William Charle-ton talvez tivesse aceitado a filosofia mecânica por motivos pura-mente racionais.

Há bastante campo para um estudo sociológico das crenças doscientistas e sua ligação com coisas tais como a classe de origem.Não obstante, tendo em mente a distinção entre o conhecimentocientífico e a convicção pessoal, tais estudos em si não constituemuma explicação sociológica do conteúdo cognitivo da ciência. Restaaí o problema do relacionamento entre as crenças dos cientistas eo conteúdo cognitivo do conhecimento científico que eles produ-zem e desenvolvem. Mais uma vez, minha posição tem o apoio deKnorr-Cetina (l 983, p. 116):

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mesmo quando aprendemos de maneira convincente que cada pessoa ougrupo de pessoas acredita em um conjunto de proposições, não temos umaresposta para a pergunta se e como essas proposições compreendem fatoressociais, nem se ou como os fatores sociais influenciam a sobrevivência eaceitação das afirmações de conhecimento. Em outras palavras, a questãoepistemológica de como se constitui e é aceito isto a que chamamosconhecimento não está resolvida ...

Até agora, a discussão nos levou a reconhecer que há campopara uma análise sociológica das origens do conhecimento cientí-fico, das convicções dos cientistas e dos aspectos "não-cognitivos"da ciência. São análises sérias, que podem ser importantes. Con-tudo, elas não chegam a oferecer uma explicação sociológica doconteúdo cognitivo da ciência, no sentido de demonstrar comocertos exemplos de conhecimento científico funcionam comoconhecimento. Resta fazermos uma avaliação da posição tradicio-nal que permite uma explicação sociológica da má ciência, mas nãoda boa.

6.5 A explicação sociológica restrita à má ciência

É comum dizer que uma explicação sociológica do conteúdocognitivo da ciência só tem cabimento nos casos em que a ciênciase extraviou. Segundo essa visão, quando a ciência avança, seuprogresso é explicável em termos de uma dinâmica "racional"própria, de modo que é desnecessário haver uma explicação socio-lógica que recorra a influências externas. Recentemente, Laudan eLakatos nos deram versões diferentes dessa afirmação. Segundo oprimeiro, "a sociologia do conhecimento poderá intervir paraexplicar as convicções apenas e unicamente se essas convicções nãopuderem ser explicadas em termos de seus méritos racionais", demodo que "a aplicação da sociologia cognitiva a questões históricasdeve aguardar os resultados preliminares da aplicação dos métodosda história intelectual a essas questões" (Laudan, 1977, p. 202 e208). O segundo diz que "o aspecto racional do desenvolvimento

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científico é plenamente explicado pela lógica pessoal da descobertacientífica", que talvez tenha de ser complementada por explicaçãoexterna apenas para esclarecer "os fatores residuais não-racionais"(Lakatos, 1978, p. 118).

David Bloor é apenas um entre muitos sociólogos contempo-râneos que veementemente discordam do que ele considera umatentativa injustificada de restringir o campo da explicação socioló-gica. Bloor (1976, p. 6-7) caracteriza a atitude a que se opõe comproposições do tipo "nada obriga as pessoas a fazerem coisas certas,mas algo faz com que se equivoquem", de onde "os aspectosracionais da ciência se sustentam porque são autônomos e seexplicam por si. As explicações empíricas ou sociológicas limitam-se ao irracional". Acho inútil a discussão de Bloor, porque é radical,pouco indulgente e bastante injustificada a maneira como apresen-ta a postura de seus oponentes. A seguir, exponho a defesa de umaversão da concepção tradicional, que diz que certos gêneros deexplicação sociológica do conteúdo cognitivo da ciência não têmcabimento. Não obstante, a minha tese certamente não tem seme-lhança com os exageros de Bloor, nem é idêntica às defendidas porLaudan e Lakatos.

A analogia seguinte ajudará a ilustrar a minha posição. Supo-nhamos que está havendo uma partida de futebol; imaginemos quea bola aterrissa aos pés de um jogador que está bem na frente darede do campo oposto, e o goleiro não está ali. Nesse contexto,não consideraríamos necessária uma explicação para a ação dojogador, que chuta a bola para dentro da rede - ou melhor,consideraríamos óbvia uma explicação "interna", dadas as regrasdo futebol. Por outro lado, se o jogador, em vez de chutar a bola efazer um gol, tirasse do bolso uma faca e um garfo e tentassecomê-la, ele estaria fazendo algo desprovido de sentido no contextodo jogo. Seria necessário uma explicação externa, talvez recorren-do-se a informações sobre a saúde mental do jogador. Naturalmen-te, esse é um exemplo radical, mas ele ilustra a maneira por ondese pode extrair uma verdadeira distinção entre a explicação internae a externa. Num contexto em que os atores se empenham numa

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atividade com metas específicas, quando suas ações contribuempara essa meta, não é preciso haver nenhuma explicação queexamine mais do que a natureza da atividade. Isso não quer dizerque o futebol seja alguma atividade de essência divina, não-sujeitaa qualquer tipo de explicação. Pode-se levantar uma série de outrosquestionamentos sobre as origens do jogo, as funções psicológicase sociais a que ele atende, a economia de sua profissionalização -e assim por diante. Certamente há contextos em que é preciso umaexplicação sociológica do futebol. No entanto, num contexto ondeestão implícitos o jogo e suas regras, as ações dos jogadores sãocompreendidas internamente de modo bastante satisfatório, amenos que não estejam de acordo com os objetivos do jogo.

Pode-se usar uma semelhante argumentação com respeito àsatitudes radicais visadas por Bloor em sua defesa de uma aborda-gem simétrica em sua sociologia do conhecimento. Algumasopiniões expressas por W. Hamlyn contêm a assimetria a queBloor tem aversão. Segundo Hamlyn, "as maneiras como podemosperceber alguma coisa podem ser divididas em duas classes: ascertas e as erradas. Uma forma de perceber algo - a maneira certa- pode ser distinguida de todas as outras". A maneira certa "nãodeixa espaço para a explicação científica, já que não é exigidanenhuma". Se duas linhas de igual comprimento são vistas comolinhas de igual comprimento, "nada faz com que elas pareçam terigual comprimento", porque elas "são assim mesmo" (Bloor, 1981,p. 205). Posso concordar quando Bloor rejeita essas afirmações deHamlyn até o ponto em que elas negam que a percepção humanadeva ter alguma explicação. É perfeitamente legítimo perguntarcomo funciona a percepção dos seres humanos, tanto quando elafunciona bem, quanto quando nos ilude. Contudo, não é muitodifícil modificar a posição de Hamlyn de maneira a preservar umacerta assimetria e ao mesmo tempo evitar a idéia de que, de certamaneira, a percepção correta é sua própria explicação. Numcontexto em que tacitamente se concorda com o funcionamentodo mecanismo da percepção, não será preciso recorrer a nenhumaexplicação especial para esclarecer por que as pessoas vêem o que

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estão vendo. Nesse contexto, se Macbeth diz que vê um punhal àsua frente, não é preciso nenhuma explicação quando há umpunhal, mas é necessário haver uma explicação "externa" - talvezalgo sobre seu estado psicológico - se não houver nenhum punhalali. Com certeza há aqui uma assimetria, embora Hamlyn não atenha caracterizado devidamente.

Embora as analogias entre a ciência, por um lado, e o futebole a percepção humana, por outro, tenham seus limites, elas servempara ilustrar a maneira como se deve entender e explicar interna-mente a ciência competente, em relação à meta e à característica daatividade. Questões como por que a teoria ondulatória da luzsuperou a teoria das partículas, por que a tese de Blondlot sobreos raios N e a de Weber sobre as ondas gravitacionais de grandefluxo foram rejeitadas pela comunidade científica e como e por queos resultados da pesquisa de Hertz sobre a eletricidade foramincorporados tão rapidamente à física, são respondidas de modomais satisfatório internamente em relação à meta da ciência, que éproduzir conhecimento geral capaz de tratar da natureza do mundode maneira superior, mais competente e mais ampla do que oconhecimento anterior. Buscar uma resposta externa para essasquestões na classe social, na nacionalidade de origem e outrascaracterísticas dos cientistas é algo tão inadequado quanto procuraruma explicação semelhante para o motivo pelo qual um jogadorse aproveita do descuido do goleiro. Os tradicionalistas estãobastante corretos ao insistir em que os méritos de uma teoria devamser avaliados independentemente da psicologia, da classe social ede outras características dos que a propõem.

Quando reivindico um domínio legítimo para a história inter-na da ciência e para a explicação e avaliação interna e não-socioló-gica, não estou obrigado a negar qualquer outra explicação para aciência, nem a considerar a ciência sua própria explicação, queavança segundo um modo de racionalidade divino e eterno. Aexistência e a extensão da atividade científica em nossa sociedadee seus inter-relacionamentos com outras atividades sociais, políticase econômicas são questões que exigem análise e explicação. Como

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já mencionei, e isso será mais detalhado no capítulo 8, longe deinsignificantes, essas questões encerram os problemas sociais epolíticos mais urgentes de nossa época. Os métodos e os padrõesimplícitos na. atividade científica estão sujeitos à mudança, equalquer mudança exige explicação. Entretanto, num contextoonde a meta da ciência é adotada, essas explicações podem antesser explicadas internamente em relação às descobertas e desenvol-vimentos teóricos e práticos, e não externamente, em relação ainteresses de classe e afins. Naturalmente, se qualquer pressupostoque permita mudança em métodos e padrões e negue uma racio-nalidade universal e eterna é considerado uma proposição socioló-gica, devo considerar-me um sociólogo da ciência. Nessa circuns-tância, o que me distingue dos sociólogos mais radicais é o quantoinsisto em que a ciência, seus métodos e técnicas de progressopodem e devem ser compreendidos internamente em função desua meta geral de produzir conhecimento, mais do que em funçãode outras finalidades ou interesses. Isso não significa adotar oponto de vista ingênuo de que a ciência pode ser uma atividadepraticada isoladamente em relação a outros interesses, nem queesses outros interesses jamais devem ou deveriam ser obstáculospara que se atinja o objetivo da ciência. Apenas insisto em que épossível e importante fazer a distinção entre a meta de produzir oconhecimento científico e outras metas, e que essa distinção éessencial para uma explicação e uma avaliação satisfatória daciência.

No próximo capítulo tentarei tornar um pouco mais concretasas reflexões acima, um tanto quanto abstratas, mediante um examecuidadoso de dois estudos detalhados em que se tenta explicarsociologicamente o conteúdo cognitivo da ciência.

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CAPÍTULO 7

DOIS ESTUDOS DE CASO SOCIOLÓGICOS

7.1 A teoria estatística e os interesses sociais

O primeiro aspecto que analiso é a investigação sobre ainfluência dos interesses sociais sobre o desenvolvimento da teoriaestatística no final do século XIX, um estudo de Donald Mackenzie(1978 e 1981), citado freqüentemente como exemplar (Barnes eMackenzie, 1979; Shapin, 1982). Mackenzie defende uma versãomuito forte da sociologia do conhecimento, observando que "nin-guém duvida que haja algum relacionamento entre a ciência e ocontexto social em que ela se desenvolve" (1981, p. 2). Depois, elefaz a distinção entre uma versão forte e uma versão frágil desserelacionamento. Segundo a primeira, as influências sociais podeminfluenciar coisas como o ritmo do progresso da ciência e a direçãoem que o apoio social é canalizado. No que se refere à influênciano conteúdo da ciência, segundo a versão fraca da sociologia daciência, as influências sociais só distorcem a ciência, desviando-ade seu caminho. Onde as influências sociais interpenetram seuconteúdo, o resultado é a má ciência. Segundo a versão forte dasociologia da ciência, as influências sociais podem afetar o conteú-

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do da boa ciência. Mackenzie esforça-se para exemplificar a versãoforte mostrando como os interesses sociais afetaram o conteúdo daestatística matemática na Inglaterra, na virada do século.

Os interesses sociais de que fala Mackenzie em sua explicaçãosociológica são os de profissionais da classe média na época.Embora Mackenzie não afirme utilizar a idéia de classe em sentidotécnico marxista ou qualquer outro, a natureza e a participação daclasse média profissional é razoavelmente clara. Ela consiste empessoas que trabalham por um salário, e não nas que vivem docapital, mas se distinguem do proletariado porque seu trabalho éuma atividade mental e não manual. A entrada nessa classe se dápor meio da educação e da instrução, e não pelo nascimento,riqueza ou posição aristocrática recebidas por herança. Esses pro-fissionais eram os guardiães de áreas de conhecimento e especiali-zação e seu poder derivava de acordo com a importância do papelsocial que esse conhecimento e especialização desempenhavam.Era de interesse da classe média profissionalizada maximizar aimportância desse papel, mantendo ao mesmo tempo rigorosocontrole sobre seus participantes.

A eugenia, desenvolvida na virada do século na Inglaterra, foiutilizada para atender aos interesses da classe profissional. Segundoessa teoria social, o "mérito civil", exatamente como a "habilidademental", era uma característica inata, fixa, herdada de cada pessoa.Somente os que possuíam essa característica inata em alto grauconseguiam passar pelas exigências de um aprendizado profissio-nal. Desse modo, a classe profissionalizada podia ser consideradanaturalmente superior, não apenas em relação à classe operária, quepoderia ser vista como trabalhadora manual, devido à ausência dehabilidade mental de seus membros, mas também em relação àclasse aristocrática e às comunidades empresariais, já que a aquisi-ção de riqueza ou herança de uma linhagem aristocrática não eranenhuma garantia de habilidade mental. Interpretava-se uma hie-rarquia social com os profissionais mais hábeis no topo como umahierarquia natural, do ponto de vista da eugenia.

As teses substantivas da eugenia a respeito da hereditariedadee do mérito social eram normalmente ampliadas por um programasocial planejado para melhorar a composição genética da raçahumana. Por exemplo, foram propostas diversas medidas paradesestimular ou evitar a natalidade entre os paupérrimos, oscriminosos e os deficientes mentais, e foram propostos prêmiospara estimular uma elevada taxa de natalidade na classe profissio-nal. O programa da eugenia servia para melhorar a força dosprofissionais que possuíam o conhecimento dos processos consi-derados naturais que estavam subordinados aos processos sociais.

Vamos admitir que, sujeita às ressalvas sobre as quais o próprioMackenzie chama a atenção (1981, p. 46-50), a eugenia proporcio-nasse uma oportunidade para a classe média profissionalizadaaperfeiçoar seus interesses. O próximo passo na argumentação deMackenzie é a ligação que há entre a eugenia e o desenvolvimentoda estatística. A articulação e a documentação da herança pressu-posta na eugenia exigia o desenvolvimento de boas técnicas esta-tísticas. É pela análise desses fatos em poder dos que propunhama eugenia, como Francis Galton e Karl Pearson, que Mackenzievisa oferecer uma tese forte para a determinação social da ciência.Seu estudo pretende mostrar como os interesses da classe médiaprofissionalizada entraram no próprio conteúdo da estatísticamatemática. Vejamos até onde ele consegue isso, concentrando-nos na obra de Galton e Pearson.

Francis Galton passou a vida entre a elite inglesa. Ele mesmoconta que suas primeiras reflexões sobre a hereditariedade foraminfluenciadas pelos elos de parentesco que havia notado entre osintelectuais em Cambridge. Convenceu-se de que os laços de pa-rentesco entre os que tinham excepcional habilidade mental erammais amplos do que seria de esperar se a habilidade mentalestivesse distribuída de maneira mais aleatória. As primeiras idéiasde Galton sobre a hereditariedade com toda certeza originaram-seem certos aspectos de sua experiência social. O contexto teóricoem que ele desenvolveu suas teorias sobre a hereditariedade era odo naturalismo, uma visão que florescera depois de Darwin e que

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era uma área cuja influência os cientistas profissionais lutavam pararetirar da autoridade religiosa. Em seus textos, Galton claramenteexpressou a necessidade de substituir a autoridade religiosa por um"sacerdócio científico" (Mackenzie, 1981, p. 55).

Galton pôde extrair do erro existente a teoria para as técnicasestatísticas necessárias para suas preocupações eugênicas. Com-preendia-se que os erros numa medição flutuassem estatisticamenteem torno de um valor mediano, de acordo com o que hojechamaríamos de distribuição normal. Galton adaptou essas técni-cas para tratar da variabilidade de características dos seres huma-nos, como a altura, entre os membros de uma população. Noentanto, mais do que simplesmente ajustar a teoria do erro, Galtonteve de ampliá-la; nisso ele deu contribuições fundamentais para aestatística quantitativa. Para a explicação quantitativa da descendên-cia que buscava, Galton teve de aprender a tratar das variáveisdependentes da estatística. Ele precisava especialmente tratar dorelacionamento que havia entre a distribuição de uma variável(como a altura) em gerações sucessivas. Foi nesse contexto queGalton desenvolveu os conceitos que hoje chamamos de regressãoe correlação em distribuições normais de duas variáveis.

A eugenia de Galton e sua estatística foram retomadas edesenvolvidas por Pearson. Este último era realmente um membroda classe média intelectual profissionalizada. Ele abraçava um tipode socialismo semelhante ao dos fabianos, que visava reformas, emque o poder baseado na riqueza da burguesia seria substituído pelopoder baseado no conhecimento e nas habilidades mentais. Aeugenia cabia muito bem nesse programa, como já vimos, ePearson considerava eugenia e socialismo inseparáveis. Comoprofessor de matemática aplicada no University College de Lon-dres, em colaboração com W. F. R. Weldon, professor de zoologia,Pearson procurou uma sólida base matemática para a teoriaevolucionária de Darwin. Foi instalado um laboratório biométricoe um de eugenia, e lançada uma revista especializada, a Biometrika-Mais tarde, Pearson herdou de Galton a cátedra de professor deeugenia, financiada por dinheiro legado por este.

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Pearson deu grande contribuição à estatística quantitativa - elerefinou as técnicas de Galton e estendeu-as às distribuições multí-variadas. Mackenzie (1981, capítulo 7; 1978) ilustra o quanto aspreocupações de Pearson com a eugenia e os interesses sociais aque ela servia penetraram no âmago de sua obra sobre a técnicaestatística, pela análise de uma discussão entre Pearson e um deseus antigos discípulos, Gill Yule. Era uma discussão sobre amaneira correta de medir as associações entre os dados relaciona-dos ao mundo biológico, especialmente as características dos sereshumanos. Para as variáveis contínuas, mensuráveis e normalmentedistribuídas, como a altura, podiam-se construir coeficientes decorrelação de um modo que na época era uma via direta eindiscutível. O problema estava nos dados relacionados a fenôme-nos que não eram mensuráveis numa escala contínua, como a cordos olhos e a inteligência. Pearson desenvolveu medidas paraassociação entre esses dados, com base na hipótese de que houvessealguns fatores variáveis subjacentes, distribuídos de maneira nor-mal ou um tanto regular. Yule considerava insegura essa hipótesee absurda a hipótese de Pearson relativa à série de variáveis isoladasem que estava particularmente interessado (por exemplo, mortoou vivo, inoculado ou não-inoculado). Yule criou então medidaspragmáticas de associação para duas variáveis arranjadas lado alado em dois quadros (por exemplo, vacinado ou não, vivo ou não)que se ajustavam a suas necessidades práticas. Pearson consideravaas medidas de Yule teoricamente insignificantes e mostrou que asmedidas reais do grau de associação variavam, conforme o númerode medidas diferentes empregadas. Yule respondeu que, se depa-rasse com a mesma medida no decorrer de uma determinadainvestigação, suas medidas correspondiam às necessidades práticaspara que haviam sido planejadas e não deixavam contradições.Mackenzie explica essa divergência de pontos de vista em termosdos interesses em jogo. O empenho de Pearson em suas medidasé atribuído aos tipos de correlações encerradas em suas hipóteseseugênicas, ao passo que o de Yule é atribuído a seus interesses maispragmáticos relativos à melhoria dos problemas sociais entre ospobres. Mackenzie não procura explicar o ponto de vista de Yuleern termos de interesses sociais mais amplos, mas insinua que aPreocupação com a eliminação das causas de inquietação entre os

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pobres correspondia aos interesses de uma classe em decadência aque a família de Yule pertencia, de maneira que temos "a possibi-lidade de que interesses sociais específicos sustentassem a estatísticanão-eugênica de Yule e dos que o apoiavam" (Mackenzie, 1981.p. 182).

O parágrafo acima ilustra o tipo de argumento encontrado nostextos de Mackenzie, embora naturalmente eu reconheça ter omi-tido muitos detalhes interessantes. Acredito que a explicação deMackenzie para a entrada dos interesses sociais na atividadecientífica exemplifica uma versão fraca da explicação sociológica, enão uma versão forte, que ele visa consolidar. Em especial,Mackenzie não mostra que os interesses sociais penetram noconteúdo da estatística matemática com força suficiente para darapoio a sua argumentação (veja Yearley, 1982; Woolgar, 1981).

Embora seja verdade que as contribuições de Galton e Pearsonpara a estatística tenham aparecido no contexto de investigaçõessobre a hereditariedade com implicações na eugenia, esses avançostiveram uma aplicação bastante generalizada. O próprio Galtonrealizou pesquisas estatísticas sobre o peso das sementes de ervilhae a estatura dos seres humanos, por exemplo, nenhuma das quaistinha pertinência direta para a eugenia. Em relação a algumas dasinovações de Pearson, Mackenzie (1981, p. 90) observa que suasdefinições "eram na verdade gerais, mas está claro que o homemera o organismo a que elas basicamente tencionavam aplicar-se".Isso implica que os interesses sociais estariam presentes nasintenções de Pearson, mais do que a própria estatística. Mackenzieadmite que muitos foram trabalhar com Pearson para aprendercoisas que poderiam aplicar em áreas distantes da eugenia. W. S.Gosset, por exemplo, aplicou os métodos de correlação parcial emúltipla desenvolvidos na escola de Pearson para melhorar astécnicas da fabricação da cerveja, aumentando assim a fortuna daArthur Guinness and Son, para quem trabalhava (Mackenzie,1981, p. 111-3). O fato de ter a estatística utilidade para a eugeniae por isso atender aos interesses da classe média profissionalizada,podendo também atender aos interesses da burguesia, não é

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compatível com a tese de que a estatística incorporasse interessesde classes profissionais num sentido mais rigoroso.

Se passamos da estatística matemática para a eugenia, para cujodesenvolvimento foi utilizada, é possível identificar a presença deinteresses sociais no conteúdo desta última. Muitos dos pressupos-tos essenciais da eugenia tinham pouca justificação quando avalia-dos do ponto de vista da produção de conhecimento, mesmoquando eram vistos no contexto mais restrito da teoria da heredi-tariedade e não no contexto mais amplo de um programa social.A idéia de que os seres humanos possuíssem uma inerentecaracterística de "mérito cívico" e que essa característica fossedistribuída normal ou regularmente de alguma forma era simples-mente pressuposta e não questionada. As evidências a que serecorreu para dar apoio aos pressupostos da eugenia - como aobservação de que em geral os filhos da elite intelectual tendiampor sua vez a ser membros desta elite - poderiam estar diretamentesujeitas a uma explicação do meio social. Contudo, houve poucaou nenhuma pesquisa para fazer a discriminação entre essasexplicações conflitantes. Não tenho a menor dúvida de que grandeparte do conteúdo da eugenia deve ser explicado com relação aosinteresses sociais a que atendia, em oposição ao quanto funcionavacomo conhecimento. Não obstante, essa é uma explicação socialda "má ciência" - que corresponde à explicação sociológica fraca,oposta à forte.

Mesmo que eu esteja correto ao negar que o conteúdo daestatística matemática não está suficientemente explicado recorren-do-se aos interesses sociais mais amplos, há muito nessa atividadeque justifica uma explicação sociológica; Mackenzie proporcionavaliosas contribuições nessa direção. Certamente é correto dizerque uma explicação das causas dos avanços na estatística nomomento em que estes aconteceram e do quanto essa atividadeobteve apoio social e base institucional está muito associada àeugenia e ao quanto esta serviu aos interesses da classe médiaprofissionalizada da época. Não é fácil especificar a forma precisaque as explicações sociológicas assumiriam e não acho que Mac-

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kenzie tenha conseguido esclarecer essa questão. Ele rejeita muitoclaramente a idéia de que as suas explicações sociológicas tencio-nam explicar a psicologia ou as motivações das pessoas e rejeitauma visão determinista, segundo a qual as idéias de uma pessoasão causadas por seu histórico social (Mackenzie, 1981, p. 92).Mackenzie nesse ponto discorda da caracterização da explicaçãosociológica utilizada por Laudan em sua crítica da sociologia doconhecimento, onde ele diz:

qualquer explicação da sociologia cognitiva deve, no mínimo, afirmar umrelacionamento causai entre uma certa convicção x de algum pensador y ea situação social z de y. Ela estará fazendo isso (se é que as explicações dasociologia são "científicas" em algum sentido) ao recorrer a uma lei geralque diz que todos (ou a maioria dos) que acreditam na situação do tipo zadotam as convicções do tipo x. (Laudan, 1977, p. 217)

As explicações que se adaptam a esse padrão não apenasinexistem na sociologia, como em geral também inexistem emqualquer outra ciência. (Se as folhas de outono caem no chão,podemos recorrer à gravidade para explicar por quê. Contudo, nemtodas as folhas caem no chão. Muitas das folhas das árvores domeu jardim são levadas para o telhado e entopem as minhascalhas.) E tem mais: a discussão no capítulo anterior mostra porque considero insatisfatória a atenção que Laudan dá às convicçõespessoais, ponto com o qual Mackenzie parece às vezes concordar,mas sem nenhuma congruência.

Mackenzie deixa de apresentar uma caracterização geral satis-fatória da forma de sua explicação sociológica. Ele nos diz que suaanálise social indica uma "correspondência" entre convicções einteresses sociais (Mackenzie, 1981, p. 92). Ele declara, ainda, que"nós podemos ... algumas vezes discutir, proveitosamente, covic-ções individuais com perspectivas sociais (Mackenzie, 1981, p. 73).Contudo, essas observações podem ser interpretadas no sentidofraco e não são boas caracterizações de um programa forte nasociologia do conhecimento. Em outro texto, que encerra uma

análise da institucionalização da ciência, a análise de Mackenziecorresponde melhor a suas afirmações não-individualistas.

Acredito que a análise que Mackenzie faz dos interesses sociaisligados ao desenvolvimento da estatística na Inglaterra entre 1865e 1930 estaria melhor se colocada da maneira que exponho aseguir. Em primeiro lugar, a nossa análise sociológica deveriaprocurar entender a situação social de maneira tal que se identifi-cassem os diversos grupos ou classes sociais e seus interesses. Nesseponto, não tenho nada de especial a discutir sobre a maneira comoMackenzie identifica a classe média profissionalizada e seus inte-resses. Feito isso, pode-se identificar as maneiras como a eugeniaproporcionou oportunidades que poderiam ser exploradas nointeresse dessa classe. Uma vez que também se admite que odesenvolvimento da eugenia exigiu o desenvolvimento da estatísti-ca matemática, estamos em posição de compreender como odesenvolvimento desta última proporcionou oportunidades parapromover os interesses sociais da classe média profissionalizada.Acho que isso é o máximo a que uma análise geral pode chegar.Dentro desse quadro, teses como "a estatística se desenvolveu naInglaterra na virada do século porque proporcionava oportunida-des para atender aos interesses da classe média profissionalizada"têm força explicativa enquanto não estiverem exigindo que asconvicções e os motivos particulares das pessoas sejam identifica-dos e deduzidos de sua posição social.

O quanto foram aproveitadas as diversas oportunidades, porquem e de que maneira, é uma questão acidental que só poderáser resolvida como resultado de uma pesquisa histórica e que nãoestá sujeita a uma explicação sociológica geral. A análise deMackenzie resolve esse tipo de contingência de muitas maneiras.Por exemplo, sua história de como Pearson nasceu numa classemédia em ascensão, como ele reagia à pobreza e à miséria daInglaterra vitoriana e à "superficialidade complacente" (Mackenzie,1981, p. 75) da Universidade de Cambridge, como ele veio aconhecer os diversos tipos de socialismo durante uma visita àAlemanha, e assim por diante, é algo que mostra como Pearson

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chegou a uma boa posição para promover os interesses de sua classemediante o desenvolvimento da estatística matemática. Traduzindoisso nos termos empregados por Mackenzie, podemos compreen-der que a "correspondência" entre a eugenia e os interesses daclasse média profissionalizada fosse uma oportunidade para apromoção de tais interesses, que Pearson, dada a natureza de seuconhecimento da matemática, estava em boa posição de aproveitar,e que realmente aproveitou.

Resumindo: concordo com Mackenzie que há espaço para umaanálise social da estatística matemática na Inglaterra durante operíodo em .questão e concordo que ele traz boas contribuiçõespara esse tipo de análise, embora também haja espaço paraesclarecimentos a respeito da forma precisa que assumem essasexplicações sociais. Isso é suficiente para contrabalançar uma visãopurista e conservadora de que a busca do conhecimento nasinstituições acadêmicas prossegue segundo sua própria dinâmica,sem nenhuma ligação com interesses políticos ou sociais maisamplos. O apoio material para o desenvolvimento da estatística noUniversity College de Londres estava estreitamente associado aomovimento pela eugenia, como Mackenzie mostra. Além disso, asteorias da eugenia, em oposição à estatística matemática, atendiamaos interesses da classe média profissionalizada em grau bem maiordo que atendiam à meta da produção de conhecimento. Não obs-tante, seja qual for a importância atribuída à análise de Mackenzie,nego que ele tenha oferecido uma explicação social do conteúdoda estatística matemática suficiente para fundamentar sua tesesobre a determinação social da boa ciência.

7.2 A explicação social de Freudenthalpara os Principia de Newton

Como já vimos, um ponto fraco na tentativa de Mackenziepara explicar socialmente a estatística matemática é o fato de que

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ele deixa de esclarecer exatamente a forma que deve assumir a suaexplicação social do conhecimento cognitivo. Ele não dá umaresposta satisfatória à indagação de Knorr-Cetina sobre como asproposições teóricas em si incorporam fatores sociais (Knorr-Cetina, 1983, p. 116). O mesmo não se pode dizer da elaboraçãode Gideon Freudenthal (1986) sobre uma explicação sociológicade determinados aspectos da física de Newton. Freudenthal não sesatisfaz em apontar paralelos ou correspondências entre as teoriascientíficas, por um lado, e as relações ou concepções sociais, poroutro. Ele antes se esforça por traçar o caminho preciso por ondeas relações sociais entram no conteúdo da física de Newton.Vejamos até que ponto ele consegue fazer isso.

Freudenthal não procura dar uma origem social a todo oconteúdo dos Principia. Ele não busca uma explicação social paraas leis do movimento e a lei da gravidade. No entanto, Freudenthalprocura demonstrar como outros pressupostos significativos nosPrincipia têm origem e sustentação nas relações sociais. Apresentoa seguir um esbo"ço da via que ele traça a partir das relações sociais,levando ao conteúdo cognitivo da ciência de Newton. A mudançasocial do feudalismo para as formas primitivas do capitalismo gerauma concepção de sociedade em que esta deve ser compreendidaem termos dos bens essenciais das pessoas que a compõem. Essaforma de explicação transforma-se num princípio filosófico geral,em que os bens dos conjuntos explicam-se em termos dos bensessenciais de suas partes. Quando aplicado ao contexto da físicanewtoniana, esse princípio tem efeitos determinados em certaporção de seu conteúdo. Como Freudenthal, levo em conta algumdetalhamento do processo de entrada das relações sociais na físicana ordem oposta em que se alega que isso tenha ocorrido,começando pela identificação dos aspectos dos Principia que devemser explicados socialmente.

O primeiro alvo de Freudenthal para uma explicação social éa concepção de Newton do espaço absoluto, cuja defesa está nosPrincipia - a famosa experiência do balde, relacionada com arotação de duas partículas ligadas por uma mola. A deformação da

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superfície da água no balde em rotação e a extensão da mola unindoas partículas foram tomadas por Newton para indicar a presençade uma rotação relativa a um espaço absoluto que existe indepen-dente da matéria. O segundo dentre os alvos de Freudenthal é adistinção que Newton faz entre as propriedades essenciais euniversais da matéria. Contudo, do ponto de vista de Newton,aparentemente há uma exigência mais forte para que um atributoseja considerado universal. Por exemplo, Newton deixa bem claroque a extensão é uma qualidade universal e também essencial doscorpos, embora a gravidade, sendo um atributo universal, não sejaum atributo essencial. Em terceiro lugar, Newton definia "quanti-dade de matéria" como produto da densidade e do volume,enquanto em outro ponto dos Principia densidade é definida comoa massa por volume unitário. Aqui há uma aparente circularidade,se fazemos a verdadeira identificação de "massa" com "quantidadede matéria". O quarto alvo para a explicação social de Freudenthalque levo em consideração é o argumento de Newton que parte dofato de que os materiais diferem em densidade para chegar à con-clusão de que eles devem conter espaços vazios em graus variados.

Todas as asserções dos Principia observadas no parágrafoanterior são problemáticas. Os experimentos com um balde emrotação ou com um par de partículas poderiam ser interpretadoscomo indicadores de movimento em relação às estrelas, porexemplo, ao passo que se acompanhamos Newton e pressupomosque o movimento absoluto foi determinado, isso continua insatis-fatório para estabelecera conclusão a que-ele chegou, de^que omovimento ocorre num espaço independente da matéria. Comrespeito à distinção entre as qualidades universais e as essenciais,é difícil ver que conseqüências poderiam advir da hipótese de queuma qualidade é essencial, além de estar presente em todos oscorpos observados ou em que foram feitas experiências. A circula-ridade aparente encerrada na discussão de Newton sobre a densi-dade é evidentemente um problema, embora existam muitasexplicações alternativas imediatas para as densidades diferenciadasem relação à que ele considera necessária.

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Freudenthal diz que há um pressuposto nos Principia que, seadmitido, elimina essas dificuldades. É a hipótese de que o mundomaterial se compõe de partículas iguais, cada uma destas possuindoas mesmas qualidades essenciais, qualidades que uma partículacontinuaria a possuir mesmo estando sozinha no espaço vazio. Porconveniência, passarei a referir-me a isso como a "hipótese dapartícula elementar". Para compreender a argumentação de Newtonpara a rotação absoluta, pressuponha que é significativo conceber obalde rodando num espaço preexistente, que estaria vazio, nãofosse pela sua presença. À luz da hipótese da partícula elementar,podemos compreender por que Newton nega o estatuto de quali-dade essencial à gravidade, mesmo estando ela presente em todosos corpos encontrados no mundo. Segundo Newton, uma partículasozinha no espaço vazio, embora continue possuindo a extensão, porexemplo, não possuiria gravidade. Se entendemos como "quanti-dade de matéria" um "número de partículas elementares", então aquantidade de matéria é realmente o volume multiplicado peladensidade das partículas. Contudo, já que as partículas não podemser diretamente observadas e contadas, a quantidade de matéria e,por isso, a densidade não podem ser medidas, neste sentido.Entretanto, como se pode medir - ou comparar - massas e volumes,podemos dar uma definição operacional da densidade como massadividida pelo volume. Não há circularidade, porque há duas concep-ções de densidade implícitas, uma das quais apenas é mensurável. E,por fim, uma vez pressuposto que diferentes materiais são consti-tuídos de partículas elementares iguais, então as diferentes densidadesnão exigem a existência de graus variados de espaço entre as partículas,conforme a conclusão de Newton.

Uma forma vigorosa da hipótese da partícula elementar não éexplicitada por Newton nos Principia, embora haja evidênciasindiretas de que ele a adotou aqui e ali em seus textos. Uma versãomais frágil formulada com clareza por Newton é a seguinte:

A extensão, dureza, impenetrabilidade, mobilidade e força de inérciado todo resultam da extensão, dureza, impenetrabilidade, mobilidade e forçade inércia das partes; dal concluirmos que as menores partículas de todos

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os corpos sejam também extensas, duras e impenetráveis, e móveis, edotadas de suas próprias forcas de inércia. E esse é o fundamento de todaa filosofia.* (Freudenthal, 1986, p. 22)

Como Freudenthal, percebemos que Newton não defende essaafirmação. Ele a expressa como se fosse evidente. Em relação àposição mais forte, explicitada por Freudenthal na forma da"hipótese da partícula elementar", o principal argumento queNewton realmente coloca é que, uma vez admitidos, os argumentose hipóteses dos Principia, que de outro modo seriam problemáticos,fazem sentido. Uma explicação plausível da razão por que elejamais explicitou todos os componentes da hipótese da partículaelementar, e por que não se encontra nenhum argumento a favordeles nos textos de Newton, é que este os considerava evidentes.Ou seja, ele os aceitava como reais sem necessidade de maioresgarantias.

Se aceitamos a reconstrução de Freudenthal da hipótese dapartícula elementar, seu papel e seu estatuto, estaremos em posiçãode avaliar o que ele visava em sua explicação social para os Principia.A hipótese de que o mundo material deve ser explicado em termosdas propriedades ou qualidades essenciais que o constituem - ondepropriedade essencial se compreende como uma propriedade (ouqualidade, ou atributo) que uma partícula possuiria se estivessesozinha no espaço - funciona como um princípio evidente nosPrincipia, e, embora não tivesse,.nenhuma influência no conteúdoda física que era passível de comprovação empírica na época, oprincípio tinha efeitos determinados nas hipóteses substantivasexpostas. Como se explica essa situação? Como a hipótese da

* Discordo de Freudenthal em um pequeno detalhe. Os argumentos de Newton, queFreudenthal procura tornar convincentes com a introdução da tese da partículaelementar, requerem apenas que as partículas tenham a mesma densidade e não,como ele insiste, que sejam também do mesmo tamanho. Além do mais, o uso doplural - "forças de inércia" - por Newton, associado às partículas, é uma indicaçãode que ele não pressupõe que sejam todas do mesmo tamanho. Corrigir Freudenthalnesse pequeno detalhe não dá maior impulso para descartar seu argumento - razãopor que restrinjo minha critica a uma nota de rodapé.

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partícula elementar veio a ser considerada evidente? Essas são asquestões referentes às relações sociais que Freudenthal se dispôs aresponder.

Freudenthal traça as origens do percurso da hipótese deNewton, chegando às concepções individualistas da sociedade queapareceram no século XVII, quando a sociedade feudal deu lugaràs primeiras formas do capitalismo e o mercado passou a desem-penhar um papel cada vez mais fundamental. Começamos com ofato de que a sociedade feudal tornava-se cada vez mais inviávelcom o crescimento das cidades e a interdependência cada vez maiorde cidades e países. O aumento da importância do mercado, queveio logo depois de um aumento na complexidade e interdepen-dência, fez com que os comerciantes pudessem acumular riquezae poder, não apenas por direito de nascimento, mas aproveitandoas oportunidades proporcionadas por esse mercado - e, ao mesmotempo, cada vez mais os camponeses tinham possibilidade deabandonar a terra e a jurisdição do senhor feudal para tornarem-setrabalhadores assalariados nas cidades. As sociedades capitalistasque iam surgindo precisavam ser compreendidas e justificadas.Uma alternativa para a concepção da sociedade evidentementehierarquizada, segundo a clássica formulação de Tomás de Aquino,tornava-se uma necessidade teórica e política. Thomas Hobbesreagiu a esse questionamento no início do século XVII, especial-mente em seu Leviatã, e mais tarde, nesse mesmo século, segui-ram-se outras propostas, inclusive a notavelmente formulada pelocontemporâneo de Newton, John Locke. Freudenthal chama aatenção para o fato hoje muito bem compreendido de que, emboraas diversas concepções da sociedade formuladas por diversosteóricos diferissem em aspectos fundamentais, elas tinham algo emcomum: todas procuravam explicar a sociedade referindo-se àsqualidades essenciais das pessoas que a integravam, qualidades quese considerava possuírem independentemente de sua existência nasociedade.

Até aqui a análise aponta para um paralelo impressionanteentre o relacionamento entre indivíduo e sistema, segundo cons-

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tavam na física de Newton, por um lado, e as concepções dasociedade que surgiam e eram aceitas no século XVII, por outro.Contudo, Freudenthal deixa claro que não se satisfaz com esseparalelo, no sentido de que significasse uma explicação. Depois deobservar o aparecimento de uma concepção individualista dasociedade como reação a mudanças sociais, ele deseja traçar ocaminho preciso pelo qual uma versão desse individualismo entrouna física newtoniana. Segundo Freudenthal, esse caminho passapela filosofia, e ele procura mostrar como Newton seguiu Hobbes,ao extrair da teoria social uma concepção filosófica geral dorelacionamento entre elemento e sistema, que veio a considerarevidente e depois aplicou em sua física.

Freudenthal enfatiza o quanto a teorização de Hobbes poderiaser considerada um programa político planejado para combater asrelações sociais feudais e a concepção hierárquica da sociedade queera usada para justificá-la e para favorecer o surgimento da novaforma da sociedade. Devemos rejeitar a visão de que as idéias deHobbes eram um reflexo inconsciente das relações contratuaisevidentes no mercado, já que, em sua época, as relações feudaisainda persistiam e foram sentidas por ele, embora como algo a quese opor e a ser substituído. Ele aproveitou as relações contratuaisque existiam entre proprietários independentes no mercado eafirmou que elas seriam a própria base para uma análise dasociedade, aventurando-se então num projeto para fundamentarsuas teorias. Esse projeto tinha implicações políticas nas etapasrelativas à substituição das relações sociais feudais pelas relaçõesbaseadas em contratos entre indivíduos livres e autônomos.

Nos séculos XVII e XVIII, era comum a distinção de três ramosda filosofia: a filosofia social, a filosofia natural e a philosophia prima(metafísica ou filosofia primeira). Esta última era considerada umcorpo de generalizações abstratas aplicáveis tanto à filosofia socialquanto à natural. Freudenthal observa que a tese de Hobbes deque a sociedade poderia ser compreendida em termos das qualida-des essenciais dos indivíduos de que se compunha tornou-se umprincípio filosófico geral em seus textos - ou seja: esse pressuposto

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tornou-se parte da filosofia primeira. Hobbes a aplicava ao mundofísico, por exemplo, quando pensava nas qualidades que um corpoteria se fosse outra vez criado no Vácuo, concluindo que teria apenasa qualidade da extensão. A generalização da hipótese que relacio-nava elemento e sistema à filosofia primeira e daí à filosofia naturaltambém ajudou o programa político de Hobbes, porquanto esteservia para enfraquecer a idéia da relação entre elemento e sistemaque permeava a filosofia medieval, a teoria social e a ciência natural,onde os sistemas eram teoricamente anteriores a seus elementos,A teoria de Hobbes era um ataque à idéia de uma hierarquiacentralizada em três frentes nas relações da sociedade feudal: afilosofia primeira, a filosofia social e a filosofia natural.

O programa político de Hobbes teve êxito na medida em queforam aceitas as idéias do relacionamento entre elemento e sistemaque ele introduziu em sua teoria social, passando daí à filosofiaprimeira e à filosofia social. Freudenthal documenta isso nãoapenas com relação a Newton, mas também em relação a outros,como Jean-Jacques Rousseau e Adam Smith. Talvez seja possívelresumir a explicação social de Freudenthal para a aceitação doprincípio de que o todo deve ser entendido em função dasqualidades essenciais de suas partes, da maneira que exporei aseguir. Esse princípio fora aceito porque atendia aos interesses dosque o adotavam e propagavam e porque podia ser pronta econvincentemente exemplificado recorrendo-se ao caráter das rela-ções de troca no mercado, cada vez mais importante, e tambémrecorrendo-se a analogias mecânicas, como a explicação das pro-priedades de um relógio em função das propriedades de suas partes.

Até aqui a história de Freudenthal é satisfatória; chegamosagora a um ponto em que podemos entender como Newton veioa adotar e a considerar evidente a idéia de que se deve compreenderum sistema em função das qualidades ou propriedades essenciaisde suas partes. Freudenthal leva a análise ainda mais longe, paramostrar como alguns pormenores eram formulados na primeirafilosofia de Newton e como, àquela altura, forjou-se uma ligaçãoentre a ciência e a concepção individualista da sociedade. Em sua

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filosofia, Newton dizia que a nossa experiência de movimentarvoluntariamente uma perna ou um braço estabelece como óbvio ofato de que nós, como seres humanos, temos o livre-arbítrio e deque a matéria que resolvemos movimentar é passiva. O argumentode Newton visa determinar ao mesmo tempo o conceito deliberdade como qualidade essencial dos indivíduos e a passividade,como propriedade essencial da matéria.

São traçados outros pormenores da análise social, chegando atéa situação social específica que estava diante de Newton. Nãoapareceria uma sociedade de proprietários independentes previstapor Hobbes. Ao contrário, surgiu uma sociedade capitalista, com amaior parte da terra e outros meios de produção nas mãos depoucos. Isso não aconteceu sem uma luta política, onde houve aeliminação dos Niveladores, luta em que Newton tomou partido eque na Inglaterra culminou com uma solução conciliatória com orei. Um poder limitado que permaneceria com este justificava-se porser necessário para a manutenção de uma ordem social que de outromodo não aconteceria. Na verdade, o sistema nessa sociedade nãopode ser considerado totalmente recorrendo-se às qualidades essen-ciais de suas partes: é preciso uma intervenção externa. Descobri-mos precisamente o mesmo gênero de situação retratada na física deNewton: as propriedades físicas do sistema do mundo não podemser atribuídas às propriedades físicas dos corpúsculos que o consti-tuem. Devido à falta de elasticidade das colisões entre os corpúsculose devido ao movimento introduzido no mundo por meio de nossasações voluntárias, a quantidade total do movimento não será auto-maticamente conservada. Como já percebemos, a gravidade tam-bém não pode ser explicada pelas propriedades essenciais doscorpos. Nesses dois casos, encontramos Newton e os que o apoiavamrecorrendo à intervenção divina. Deus é o administrador do relógiodo mundo, assim como o rei é o administrador da sociedade.

Posso aceitar a linha geral da explicação de Freudenthal, quediz como as teorias individualistas da sociedade surgiram comoreação à mudança social e como elas foram transformadas pormuitos em um princípio filosófico geral, em que o todo deve ser

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explicado em função das propriedades de suas partes. Entretanto,como está claro na explicação de Freudenthal, isso se aplica tantoa Hobbes como a Newton. Como a física de Hobbes era bastantediferente da física de Newton (por exemplo, Hobbes achava quesuas partículas possuíam apenas a propriedade essencial da exten-são), deve-se acrescentar algo ao simples individualismo ou atomis-mo para Freudenthal poder completar sua explicação social. Comojá vimos, Freudenthal acrescentou alguns detalhes à concepçãofilosófica de Newton do livre-arbítrio e de sua idéia de Deus comoadministrador do mundo; essas duas visões são retraçadas atéaspectos da postura política de Newton a respeito de questõessociais de sua época. Essas idéias de Newton eram de fato ampla-mente aceitas e exploradas pelos anglicanos ortodoxos e pelospolíticos do Whig, que ocupavam posições sociais semelhantes ouque adotavam posturas políticas iguais às de Newton (Jacob, 1976).Contudo, essas idéias não eram adotadas universalmente. Acreditoque elas poderiam ser antes consideradas extensões ideológicas dafísica de Newton, em vez de partes dela. Esse ponto é reforçadopelo fato de que outros físicos puderam interpretar a física newto-niana de maneiras que radicalmente diferem dos aspectos dainterpretação do próprio Newton que Freudenthal explica emtermos sociais. Por exemplo, Clerk Maxwell afastou-se radicalmen-te da hipótese da partícula fundamental ao utilizar a mecânicanewtoniana para desenvolver sua teoria do campo eletromagnético,em que os fenômenos localizados são entendidos em função damecânica de um meio material contínuo que tudo permeia, aopasso que Thomson e Tait (1879, p. 222) partiram da concepçãoda matéria passiva de Newton, porque ela teria "um poder inatode resistir à influência exterior".

A análise de Freudenthal não pode ser tomada como explicaçãodo conteúdo cognitivo da boa ciência. Aliás, Freudenthal tambémnão a apresenta dessa maneira - mas faz claramente a distinçãoentre os aspectos dos Principia que têm justificação científica (como,Por exemplo, as leis do movimento) e os que não têm. Precisamenteestes últimos ele procura explicar socialmente. Aqui se pode objetar

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que estou usando o benefício da perspectiva do tempo paradistinguir as partes boas e ruins da física de Newton. Em nome daargumentação, imaginemos que as hipóteses socialmente explica-das por Freudenthal acabaram sendo justificadas. Imaginemos quea ciência contemporânea possibilite a medição dos movimentosrelativos ao espaço absoluto e a detecção e contagem dos corpús-culos de Newton. Eu diria que uma boa resposta seria que,enquanto certas hipóteses tiveram origem nas mudanças e teoriassociais do século XVII, elas apenas receberam interpretação ejustificação científicas satisfatórias séculos depois. Estaríamos emsituação semelhante à das inovações de Darwin em relação aostextos de Malthus e ao contexto social que os inspirou.

A análise que Freudenthal faz dos Principia de Newton (queescolhi como exemplo porque era a melhor, mais detalhada e maiscuidadosa explicação social da ciência que pude encontrar) nãopode ser considerada uma boa explicação social para o conteúdocognitivo da boa ciência. Entretanto, isso não diminui de modoalgum a importância e o interesse de seu estudo e de outros dogênero. A melhor parte de sua análise mostra como as hipótesesque têm origens sociais e políticas e atendem a interesses sociais epolíticos podem facilmente penetrar na ciência mascaradas de boaciência. Nem mesmo os Principia de Newton, que se poderiaesperar servirem de excelente exemplo da ciência pura, estavamlivres desse tipo de incursões. Não se pode aceitar sem questiona-mento que tudo o que se propõe em nome da ciência, ostensiva-mente justificado como seus interesses e metas, atenda realmentea esses interesses e contribua para essas metas. Isso é tão verdadeirohoje quanto o foi na época de Newton.

7.3 Observações finais

A essa altura é bom que eu faça algumas observações geraispara resumir o resultado de minha crítica da sociologia da ciêncianeste capítulo e no precedente.

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O mundo natural não se comporta de um modo para oscapitalistas e de outro para os socialistas, de um modo para asculturas ocidentais e de outro para as culturas orientais. Umaguerra nuclear em grande escala, que a ciência tornou possível, nosdestruiria a todos, seja qual for a classe, o sexo ou a cultura. Noentanto, de lugares-comuns como esse não se poderia dizer que,estando implícito na ciência a elaboração de generalizações quecaracterizem de modo satisfatório o mundo natural, a suficiênciadessa caracterização não tem nada a ver com as predisposições ouinteresses dos indivíduos ou grupos que a elaboram e adotam?

Os sociólogos radicais que defendem uma visão cética daciência poderiam responder assim a essas observações: o conceitodas generalizações sobre o mundo, cuja suficiência é avaliadaindependente de características sociológicas dos indivíduos oucomunidades que as elaboram e defendem, é, na melhor dashipóteses, um ideal irrealizável e, na pior das hipóteses, não temsentido. As pretensões de conhecimento e as evidências apresen-tadas, os critérios por que são avaliadas, são produtos sociais ecomo tais inevitavelmente moldados por interesses sociais. Devidoao tipo de seres sociais que somos e aos modos de elaborar e testaro conhecimento disponível, é inevitável que interesses, como osde classe, acabem entrando na ciência.

Assim expostas, as hipóteses dos sociólogos podem ser inter-pretadas como hipóteses empíricas. Como tais, eu as considerofalsas. Afirmo que a comunidade científica tem sido capaz dedesenvolver métodos e técnicas para elaborar e testar as pretensõesde conhecimento que podem e muitas vezes realmente contribuemobjetivamente para a meta da ciência. A minha discussão sobre aobservação e o experimento nos capítulos 4 e 5 foi planejada paramostrar como na prática é possível criar testes objetivos paraverificar a suficiência das teses, e eu mostrei que esse é o caso emsituações escolhidas pelos próprios céticos como favoráveis a seuposicionamento. Mostrei, por exemplo, como as transformaçõesde fatos e padrões realizadas por Galileu e usadas por Feyerabendcomo base para um ceticismo radical podem ser compreendidas

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como um passo objetivo à frente, do ponto de vista da meta daciência. Também demonstrei que a rejeição das hipóteses experi-mentais de Weber com respeito às ondas gravitacionais, usadaspor Collins para ilustrar a maneira como interesses sociais epolíticos externos entram na ciência, pode ser compreendida emfunção de haver falhado ern testes objetivos e não ter se dado bemna crítica autêntica. Weber ficou sem ter para onde ir. O avançoobjetivo na direção da meta da ciência pode e tem sido feito, o quenão significa que se mostrará possível em todos os casos, nem queseja realizado segundo métodos inalteráveis ou em relação apadrões imutáveis.

Os estudos sociológicos, como os que descrevi neste capítulo,mostram como interesses outros podem influenciar a atividadecientífica. Não há base para presumir complacentemente que aatividade científica prossiga de maneira determinada, única ou atéprincipalmente, pela meta da produção de um conhecimentocientífico adequado. A atividade científica inevitavelmente estáinterligada a outras, com outros objetivos e que atendem a outrosinteresses. Entretanto, a meu ver, em nada ajuda uma boa com-preensão dessa situação deixar de lado ou contestar o que acreditoser uma distinção muito clara entre a meta de produzir umconhecimento científico adequado e outros objetivos.

CAPÍTULO 8

A DIMENSÃO SOCIAL E POLÍTICA DA CIÊNCIA

8.1 Observações introdutórias

O ponto essencial de meu exemplo referente às concepçõesradicais relativistas ou céticas da ciência pode ser assim resumido:a meta das ciências naturais é ampliar e aperfeiçoar nosso conhe-cimento geral do funcionamento do mundo natural. A competên-cia de nossas tentativas relacionadas a isso pode ser avaliadacomparando nossas hipóteses de conhecimento com o mundo,por intermédio dos mais rigorosos testes experimentais e deobservação existentes. Embora não exista nenhum método ouconjunto de padrões universais para dirigir essa busca do conheci-mento, e embora sempre esteja presente a possibilidade de que oobjetivo seja distorcido pela entrada subreptícia de outros interessescom objetivos diferentes, a meta pode ser, e em geral é, atingida.O mundo natural é corno é, independentemente de classes, raçaou sexo dos que tentam conhecê-lo; o mérito científico das teoriasque constituem nossa tentativa de caracterizá-lo deveria ser igual-mente independente desses fatores. Apesar do caráter social detoda atividade científica, os métodos e as estratégias para construir

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um conhecimento objetivo, ainda que passível de falha e imprová-vel, do mundo natural foram desenvolvidos na prática e tiveramsucesso.

Deixando-se de lado a negação do método universal e oreconhecimento de que a ciência é falha e sua atividade inerente-mente social, as observações anteriores podem ser entendidas demaneira indiscutivelmente conservadora. Com elas se poderiaconcluir que não considero uma análise política e social da ati-vidade científica apropriada em qualquer sentido mais forte, epode-se supor que acredito que tudo esteja muito bem na ciênciacontemporânea e assim continuará sendo enquanto ela permane-cer autônoma e ao abrigo das influências políticas e sociais. Issoestá longe de ser o que penso. Este capítulo final é a tentativa dedeixar clara a minha visão.

8.2 As oportunidades objetivase a escolha individual

Em poucas palavras, meu principal argumento é este: emboraa meta da ciência possa ser diferenciada de outras metas e avaliaçõesepistemológicas distintas de outras avaliações, a atividade científicaencerrada na busca dessa meta não pode estar separada de outrasatividades que servem a outros objetivos. Passo agora para a ela-boração desse ponto a partir do que pode parecer uma direçãoimprovável - ou seja, uma crítica do papel fundamental normal-mente atribuído à escolha do indivíduo na atividade e no progressoda ciência. Começarei com uma historinha autobiográfica.

Num sábado, pouco antes do Natal, meu pai foi enviado emuma expedição de compras natalinas, e eu, com uns cinco anos deidade, deveria acompanhá-lo. Na hora, meu pai não gostou muitoda idéia e das responsabilidades dessas compras, e por isso o climaestava tenso. Um de seus deveres era comprar um presente paramim, e ele orquestrou esta compra da seguinte maneira: levou-me

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até um determinado balcão de brinquedos na Woolworth, ondeestava exposta uma meia dúzia de artigos, todos com preço de doisxelins, e me convidou a escolher. Com certa consternação, vi-mediante daquelas opções sem graça até que, pressionado para tomaruma decisão, acabei escolhendo um trenzinho de brinquedo meiobobo. Voltamos para casa, cumprida a missão de meu pai eradicalmente revisadas as minhas estimativas sobre os méritosdaquela festiva ocasião. Uma das diversas perguntas levantadas porminha mãe a respeito da sensatez das diversas compras concentra-va-se na satisfação que eu teria com meu presente. "Foi ele queescolheu", respondeu prontamente meu pai. Minhas faculdadesracionais não estavam suficientemente desenvolvidas para que eupudesse articular a maneira como havia sido logrado, mas é claroque sabia que realmente isso acontecera. Talvez naquele momentotenha entrado em jogo algum impulso edipiano que me empurrouna direção de uma carreira na filosofia. De qualquer maneira, eugostaria de apresentar a moral que tirei da história: quando aspessoas têm de fazer escolhas, todos os determinantes mais impor-tantes já ocorreram.

Considero relevante na filosofia ortodoxa da ciência umaênfase insatisfatória na escolha da teoria. Normalmente se pressu-põe que a questão do por que uma teoria suplanta a outra deve serexplicada em termos das opções racionais dos cientistas. A mudan-ça da teoria é identificada com a escolha da teoria. Considero essauma identificação enganadora e insatisfatória. Certamente existemproblemas quando se deve formular quais são os critérios para aescolha da teoria* - os filósofos que já tentaram discutir a questãonão chegaram a nenhum consenso. Os próprios cientistas têm emgeral uma certa dificuldade para compreender a natureza doproblema, não falando da capacidade de apresentarem uma solu-ção. Acredito que o fenômeno de cientistas escolhendo entre

Thomas Kuhn (1977a) identifica alguns dos problemas associados às tentativas deconstruir o progresso científico em função de escolhas feitas segundo critérios raci-onais, embora sua resposta para o problema seja muito diferente da minha.

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teorias opostas usando critérios racionais é mais uma invenção daimaginação do filósofo analítico. Os cientistas fazem experimenta-ções, deduzem as conseqüências das teorias, comparam-nas comas outras, modificam-nas diante dos problemas e assim por diante.Num outro texto escrevi:

Muitos cientistas contribuem de modo independente com suas habi-lidades independentes para o desenvolvimento e articulação da física,exatamente como muitos trabalhadores juntam seus esforços na construçãode uma catedral. E exatamente como um operário especialista ern chaminéspode estar muito feliz e inconsciente da implicação que há em algumadescoberta sinistra dos trabalhadores que estão cavando próximo aosalicerces, um teórico ilustre pode muito bem desconhecer a importância dealguma nova descoberta experimental para a teoria em que trabalha.(Chalmers, 1982, p. 116)

Como é que a teoria muda e o progresso científico resulta dessaatividade? Em outros textos (Chalmers, 1979, 1980) apresentei aidéia do "grau de fertilidade" de uma teoria para ajudar a responderà pergunta. Uso a expressão para me referir à amplitude de opor-tunidades para desenvolvimento que a teoria oferece num determi-nado contexto prático ou teórico, amplitude de linhas de desenvol-vimento que são possibilidades reais que uma teoria desdobra,dados os recursos teóricos e experimentais disponíveis. Armadoscom essa concepção, podemos caracterizar a mudança da teoriacomo algo mais ou menos de acordo com o que exponho a seguir.

Suponhamos que a teoria A tem dificuldades criadas pela teoriaB. Suponhamos ainda que existe uma porção de cientistas com ascapacidades, recursos e estruturas mentais apropriadas para traba-lhar sobre teorias opostas. Nesse tipo de circunstância, é bastanteprovável que as oportunidades de desenvolvimento que de fatoexistem mais cedo ou mais tarde acabarão sendo aproveitadas.Conseqüentemente, se a teoria B realmente proporciona maiorespossibilidades de desenvolvimento que a teoria A, e desde quealgumas das oportunidades de produzir resultados sejam aprovei-

tadas, o efeito é que a teoria B avança enquanto a teoria A ficaestagnada. Essa concepção da atividade científica não é muitodiferente de uma explicação do desenvolvimento econômico emuma (hipotética) sociedade capitalista livre. Nesse caso, embora odesenvolvimento não seja controlado por nenhum plano racionaldobal, ele é compreensível e explicável em função das oportunida-des objetivas de obter lucros e das maneiras como são aproveitadasessas oportunidades. Examinando a mudança da teoria do modoque defendo, podemos por exemplo entender por que a versão deFresnel da teoria ondulatória da luz suplantou a teoria das partícu-las de luz no início da década de 30 do século passado, uma vezque a versão de Young para a teoria ondulatória não obtiverasucesso trinta anos antes. Os desenvolvimentos das técnicas damatemática para tratar de ondas num meio elástico, nas primeirasdécadas do século XIX, tiveram como conseqüência o fato de queas oportunidades para o desenvolvimento da teoria ondulatóriaestavam disponíveis para Fresnel, mas não para Young. Paraexplicar a vitória da teoria ondulatória sobre a das partículas nãoprecisamos evocar a idéia de cientistas, armados com critériosracionais para a escolha de sua teoria, optando racionalmente porpermanecer com a teoria das partículas no início do século, masoptando pela teoria ondulatória por volta de 1830 (Worrall, 1976).

Encontrei ressonâncias dessas minhas idéias largamente negli-genciadas sobre a mudança da teoria num lugar inesperado; suaexploração nos dará uma entrada instrutiva na dimensão social epolítica da atividade científica. A passagem seguinte, parte da qualutilizei no capítulo 6, foi tirada de um livro interessante e informa-tivo, The manufacture of knoivkdge (A fabricação do conhecimento),da socióloga Karin Knorr-Cetina:

Já escutamos dizer que, na prática, a validação ou aceitação sãoconsideradas parte do processo de formação do consenso, qualificado como"racional" por alguns filósofos e "social" por alguns sociólogos da ciência.Entretanto, racional ou social, é aparentemente um processo de formaçãode opinião e, como tal, localizado em algum outro ponto que não a própria

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investigação científica ... Contudo, onde encontramos o processo devalidação, em qualquer grau mais significativo, senão no próprio laboratório?Senão no processo de tomada de decisões de laboratório, pelo qual urnresultado, método ou interpretação proposta anteriormente vem a serpreferido sobre outros e incorporado aos novos resultados? O que é oprocesso de aceitação, senão a incorporação seletiva de resultados anterioresao constante processo de produção da pesquisa? Chamá-lo de processo deformação de opinião parece provocar uma série de conotações equivocadas.Ainda não temos tribunais de ciência para a formação oficial da opiniãocom poder legislativo na condução da pesquisa futura. Considerar oconsenso um agregado das opiniões científicas pessoais é enganador, pois:(a) por falta de votação regular das opiniões, não temos acesso às opiniõespredominantes, gerais ou medianas dos cientistas importantes, e (b) élugar-comum na sociologia o fato de as opiniões terem um relacionamentocomplexo e amplamente desconhecido com a ação. Assim, mesmo quandosabemos qual é a opinião dos cientistas, não saberíamos que resultadosseriam coerentemente preferidos na pesquisa real. Não temos aí um pro-cesso de formação de opinião, mas um processo em que certos resultadossão consolidados pela constante integração à pesquisa em andamento. Issosignifica que o locus da consolidação é o processo da investigação cientifica... as seleções pelas quais os resultados da pesquisa são construídos nolaboratório, (l 981, p. 8)

Se nivelamos o uso da expressão "formação de opinião", deKnorr-Cetina, com o meu uso da "escolha racional da teoria", há,eu diria, uma acentuada semelhança em nossos pontos de vista.Onde quero dizer que uma teoria prospera quando as oportunida-des objetivas que ela oferece para a pesquisa são aproveitadas,Knorr-Cetina diz que um resultado se consolida até onde é in-tegrado à pesquisa em andamento. Entretanto, as maneiras comoelaboramos nossas posições são bastante diferentes, e é acompa-nhando Knorr-Cetina que obtemos uma boa visão da dimensãosocial da atividade cientifica.

Uma diferença em nossas respectivas abordagens é que, en-quanto estive preocupado com questões macroteóricas, como asubstituição da teoria das partículas pela teoria ondulatóría da luz,Knorr-Cetina se concentra nos microestudos do trabalho de labo-ratório. Uma segunda diferença é o fato de que Knorr-Cetina não

aceita sem questionamento o que pressupõe ser a minha explicaçãoda teoria da mudança: sempre haverá cientistas com as capacidadese os recursos apropriados para aproveitar as oportunidades para apesquisa. As linhas de pesquisa na prática possíveis para umcientista ou um grupo de cientistas dependem de uma série deimprevistos, como a disponibilidade do equipamento, matérias-primas, literatura, assistência técnica e financiamento necessários.Prosseguindo na questão de como as condições materiais e sociaisnecessárias para a pesquisa são correspondidas, em situaçõesespecíficas ou de modo mais geral, logo temos revelado até queponto a prática científica encerra e não pode ser separada de ques-tões sociais e políticas mais amplas.

8.3 A política da atividade científica

Os fatores que se ocultam por trás da satisfação das condiçõesmateriais necessárias para o trabalho científico envolvem umaampla série de interesses outros que não a produção do conheci-mento científico. Esse ponto é grafkamente ilustrado por BrunoLatour (1987, p. 153-7) num trecho impressionante, em que elecompara a atividade cotidiana de uma cientista nurn importantelaboratório californiano com o diretor do laboratório, a quem serefere como "o chefe". A cientista se considera interessada nodesenvolvimento da ciência pura e desinteressada das questõespolíticas ou sociais. Procura distanciar-se do governo e do setorprivado, para concentrar-se em sua pesquisa pura. Em compen-sação, o chefe está sempre envolvido em atividades políticas emtodos os níveis, o que muitas vezes lhe vale a zombaria dacientista.

O exemplo de Latour trata da pesquisa de uma nova substância,o pandorin, que promete ter grande significado na fisiologia. Nalista das atividades em que o chefe se envolve numa semanacomum, estão as seguintes, entre outras: negociações com as

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grandes companhias farmacêuticas a respeito do possível patentea-mento do pandorin; um encontro com o ministro da Saúdefrancês, onde será discutida a possibilidade de abertura de um novolaboratório na França; uma reunião na Academia Nacional deCiência, em que o chefe defende a necessidade de mais umsubdepartamento; reunião da diretoria da revista médica Endocri-nology, onde pede mais espaço para sua área e reclama de conse-lheiros que pouco sabem sobre a disciplina; uma visita ao mata-douro local, em que discute a possibilidade de decapitar ovelhasde modo a causar menos danos ao hipotáíamo; reunião nauniversidade, onde propõe um novo programa de curso contendomais biologia nuclear e informática; discussão com um cientistasueco sobre os instrumentos recentemente criados por ele paradetectar peptídeos e possíveis estratégias para desenvolvê-los; ediscurso na Associação dos Diabéticos.

Continuemos acompanhando Latour, voltando nossa atençãopara o trabalho da cientista no laboratório pouco depois. Desco-brimos que ela conseguiu empregar um novo técnico, o que foipossível graças a uma bolsa recebida da Associação dos Diabéticos;há também dois novos estudantes já formados que entraram nocampo através dos novos cursos criados pelo chefe. Sua pesquisabeneficiou-se com amostras mais limpas de hipotáíamo, que sãoagora recebidas do matadouro, e com um novo instrumento degrande sensibilidade, recentemente adquirido da Suécia, que au-menta sua capacidade de detectar traços insignificantes de pando-rin no cérebro. Os resultados preliminares de sua pesquisa serãopublicados numa nova seção de Endocrinology. Ela está refletindosobre um novo cargo que lhe foi oferecido pelo governo francês,para a implantação de um laboratório na França.

Se a cientista da história muito realista de Latour considera-seenvolvida na ciência pura, que não é perturbada por questões po-líticas e sociais mais amplas, ela está muito enganada. A satisfaçãodas condições materiais, que é um pré-requisito para a realizaçãode sua pesquisa, só pode ser obtida como resultado da atividadepolítica, que encerra uma série de interesses sociais, como ilustram

as atividades do chefe. Se, por exemplo, investigamos o suficientea respeito da origem dos fundos para qualquer área de pesquisa nafísica, nos Estados Unidos, quase sempre damos de frente com osinteresses dos militares e do Departamento de Defesa no desen-volvimento dos modernos sistemas armamentistas. E. L. Woollett(l 980, p. 109) expõe a situação, num artigo revelador: "... qualquerpessoa com o diploma de física que leia o Relatório Anual daSecretaria da Defesa admitirá a maneira essencial como o progressoda ciência está hoje associado ao 'progresso' nos modernos siste-mas armamentistas". Minha insistência em fazer uma distinçãoentre a ciência e outras atividades com metas diferentes deixa poucomais que farelos para a análise do sociólogo.

O simples fato de que a atividade científica não pode serseparada das outras que atendem a outros interesses não implicaem si que o objetivo da ciência esteja subvertido. A análise umtanto conservadora e funcionalista da organização institucional daciência de Robert Merton (1973) mostra isso muito bem. Mertonacredita que a ciência é governada por normas que definem ocódigo apropriado de comportamento dos cientistas, normas deuniversalismo, desinteresse, comunismo e ceticismo organizado.Presume-se que a fidelidade a essas normas leve adiante a meta daciência. Contudo, cada cientista tem suas próprias normas einteresses, como a aquisição de riqueza, fama e poder, por exemplo.Merton diz que a meta da ciência se concilia com os interesses doscientistas por meio do sistema institucionalizado de recompensase penalizações. Dessa maneira, os cientistas são coagidos a agir demodo a atender os interesses da ciência, porque é exatamente estaforma de agir que resulta nas recompensas que atendem a seuspróprios interesses. Naturalmente, há outros interesses em jogo naatividade científica, como os monopólios profissionais, governa-mentais e dos setores privados; o descuido em relação a estes éuma das falhas da análise de Merton. Entretanto, ela serve paramostrar que a ciência não é automaticamente subvertida quandohá outros interesses envolvidos. Podemos ilustrar mais esse ponto,observando que foi uma feliz coincidência entre alguns aspectos

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dos interesses da ciência e os da burguesia que permitiu que aciência prosperasse na maré da revolução científica (veja tambémBartels e Johnston, 1984).

8.4 Colocando-se a ciência em seu lugar

Neste livro estive preocupado em identificar e caracterizar ameta da ciência, distinguindo-a de outras atividades com diferentesobjetivos. Disso não se deve concluir que eu considere a meta daciência algum bem absoluto e sem restrições, necessariamentesuperior a outras metas. Um exemplo ajudará a colocar a glorifica-ção irrestrita da ciência dentro de uma perspectiva mais realista.

Humphrey Davy inventou em 1815 a chamada lâmpada desegurança dos mineiros. Não há nenhuma dúvida de que issotenha sido uma bem-lograda conseqüência de uma pesquisa cien-tífica pura (possivelmente realizada por Faraday), que envolvia adeterminação da temperatura de ignição do metano e a eficácia deum véu de arame atuando como barreira para a temperatura. J. A.Paris, um dos biógrafos de Davy, referiu-se a essa pesquisa bem-sucedída como "orgulho da ciência, triunfo da humanidade e glóriada época em que vivemos" (Albury e Schwartz, 1982, p. 13), e,mais recentemente, a Union Carbide Chemicals and Plasticsexaltou as virtudes da pesquisa de Davy e comparou suas contri-buições para a humanidade às da Union Carbide. "Afinal decontas, Humphrey Davy acendeu uma lâmpada para benefício dahumanidade e não desejamos que ela se apague" (Aíbury eSchwartz, 1982, p. 13). Isso não é muito incomum em relação àmaneira como o valor intrínseco da ciência é retratado e glorifícado.

No entanto, como Albury e Schwartz (1982) mostram, umexame mais circunspecto da história real desse episódio nos leva auma avaliação bem mais moderada. Um efeito imediato da intro-dução da lâmpada de Davy nas minas de carvão foi um aumentoacentuado no número de explosões e fatalidades. Não é difícil

discernir a razão para isso. Do ponto de vista dos proprietários dasminas, o problema que pressionava não era tanto a segurança damina, mas o fato de que as operações em minas ricas de carvão setornavam inacessíveis por causa da acumulação do metano. Oproblema deles, que era o que expuseram a Davy, era saber comofazer os mineiros entrarem nas minas perigosas, cheias do gásvenenoso. A pesquisa de Davy proporcionava uma resposta, mas,naturalmente, sua lâmpada estava longe de ser perfeita. O véupoderia soltar-se, as correntes de ar poderiam soprar a chama parafora e as partículas de carvão que se grudavam em seu exterior setornariam vermelhas com o calor. Os mineiros admitiam que oproblema mais sério nas minas era uma ventilação precária. Elespercebiam que as principais fatalidades depois de uma explosãoocorriam por sufocação pelo monóxido e dióxido de carbono, emconseqüência da explosão. Eles propunham medidas como oaprofundamento de mais poços, mas essas sugestões foram emgeral deixadas de lado, presumivelmente devido aos custos queencerravam. Os mineiros poderiam ser perdoados pelo ceticismoa respeito de qualquer afirmação de que o progresso da ciência éum bem sem reservas.

Existem hoje situações comparáveis a essa. Diante dos efeitosadversos que a ciência possibilita, como a aniquilação nuclear oudanos menos adversos ao meio ambiente, é razoável ern muitoscontextos reivindicar que um uso socialmente mais eqüitatívo doconhecimento científico que temos é um problema de maior ur-gência do que a produção de mais conhecimento científico. Mesmoquando basta atribuir grande prioridade à aquisição do conheci-mento científico, resta a questão de qual das muitas linhas possíveisde pesquisa científica deveria ser seguida. Resta então a questão:que espécie de ciência desejamos? É inquestionável que umagrande força por trás da direção do desenvolvimento da ciênciaocidental é proveniente dos interesses militares e econômicos dasagências governamentais e dos interesses aliados das corporaçõesmultinacionais. Muitos de nós desejariam que as coisas fossemdiferentes e que a ciência se tivesse desenvolvido em direções mais

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162 ALAN CHALMERS

de acordo com os interesses e as necessidades das pessoas comuns.De qualquer maneira, a ciência tem de ser avaliada e articuladasegundo outros interesses e valores. As avaliações e as lutas políticasaí encerradas não são por si só receptivas às soluções científicas.

Essa última observação mostra a necessidade de controle doslimites e finalidade do conhecimento científico. A explicação dasciências que defendi os interpreta com métodos e padrões especí-ficos, desenvolvidos na prática, para corresponder a metas especí-ficas. Uma vez compreendidas dessa maneira, pode-se perceber quemuitos problemas caem fora de seu campo. Mesmo se restringimosa discussão ao comportamento do mundo físico, quando lembra-mos até que ponto as teorias científicas se apoiam nas evidênciasproduzidas sob condições artificiais de uma experimentação con-trolada, podemos avaliar que as situações complexas no mundo realestão além do controle de uma análise cientifica completa. Porexemplo, embora a ciência contemporânea seja muito capaz deproduzir respostas precisas para as questões que dizem respeito àmeia-vida de diversos componentes do lixo radioativo ou ao quantoo vidro de borossilicato se desintegra quando exposto a determinadosgraus de umidade, as precisas conseqüências a longo prazo doprovável resultado das diversas técnicas de dispor o lixo nuclear nãopodem ser determinadas cientificamente porque nosso conhecimen-to científico não é gerado para tratar da complexidade de situaçõesna vida real, como a que se obtém quando o lixo nuclear é encerradoem vidro de borossilicato e enterrado em buracos profundos oulançado em órbita planetária! Embora seja importante admitir queo conhecimento científico é um poderoso auxílio para nossasintervenções tecnológicas, mecânicas e ambientais no mundo epara nossa compreensão de seus possíveis efeitos, reconhecer aslimitações da ciência em relação a isso é um corretivo necessáriopara as mistificações e exageros que normalmente acompanham asreivindicações dos tecnocratas (veja, por exemplo, Lowe, 1987)-

Ultrapassamos o legítimo domínio da ciência quando introdu-zimos questões a respeito da conveniência e segurança das diversasintervenções tecnológicas no mundo. Nesse ponto, é importante

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 163

evitar a conversa obscurantista sobre os interesses da humanidadeem geral, que esteve em evidência em nosso exemplo sobre asexageradas glorificações da ciência de Davy, para admitir a varieda-de de interesses associados a diversas pessoas, grupos e classes epara admitir que esses interesses freqüentemente entram emconflito. Quando a segurança de uma usina de energia nuclear estáem questão, por exemplo, isso faz enorme diferença do ponto devista daqueles cuja segurança será avaliada, sejam proprietários dausina, trabalhadores ou habitantes das redondezas, sejam os indus-triais que poderão comprar energia abundante a um preço baixo.Os esforços para transformar a análise do risco em uma ciência,de modo a que a segurança de uma usina de energia se expresseem alguma medida objetiva, obscurecem os conflitos políticosimplícitos e proporcionam uma impressão ilusória da precisão comque essas projeções são possíveis.

Bastante influente, mas sem muita base, a ideologia de nossaépoca envolve uma extensão da ciência bem além de seus limitesverdadeiros, de modo que os problemas sociais e políticos sãoconstruídos como se fossem científicos e as "soluções" oferecidasde maneira a obscurecer as questões sociais e políticas em jogo.Por exemplo, temos extensões ilegítimas da biologia e da teoriaevolucionária na forma do darwinísmo social e da sociobiologiacolocadas como explicações dos fenômenos sociais, disfarçandoassim as realidades políticas e servindo para justificar os diversosgêneros de opressão, como a dos pobres, das mulheres ou dasminorias raciais; em época mais recente testemunhamos umatendência crescente para reduzir as questões sociais a questõeseconômicas, tratadas por uma (pseudo)ciência da economia. Estámuito além do escopo deste livro explorar questões dessa impor-tância. Contudo, uma compreensão correta da natureza da ciência,dos tipos de realização de que é capaz e também de suas limitaçõesé pré-requisito para tratá-la de maneira satisfatória.

Não estou absolutamente sozinho ao refletir sobre as tendên-cias sociais no mundo contemporâneo com desânimo e susto. Ogolfo entre ricos e pobres e entre os países desenvolvidos e os países

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164 ALAN CHALMERS

subdesenvolvidos se amplia, o ambiente está sendo destruído epaira a ameaça da eliminação da vida. Os problemas sociais epolíticos que estão a nossa frente são urgentes e vitais. Não pensoque esta causa seja auxiliada por concepções da ciência comoconspiração capitalista masculina ou como algo impossível dedistinguir da magia negra ou do vudu.

E agora o meu nariz começou a sangrar...

APÊNDICE

A EXTRAORDINÁRIA PRÉ-HISTÓRIADA LEI DA REFRAÇÃO

Esta lei diz que, quando um raio de luz passa de um meio aoutro, a proporção do seno do ângulo de incidência para o senodo ângulo de refração é uma característica constante do par demeios. A lei foi descoberta experimentalmente por Marriott, teori-camente resolvida de maneira independente por Descartes e cha-mada de lei de Snell.

Os estudos teóricos e experimentais da reflexão datam daAntigüidade. Euclides certamente já conhecia a lei da reflexão lápelo ano 300 a. C. e, no início do século II d. C., Ptolomeu realizouexperiências para fundamentá-la. Ptolomeu também realizou o queparece ter sido o primeiro estudo detalhado da lei da refração.Ocuparemos-nos aqui da história, começando pela obra de Ptolo-meu.

O primeiro aspecto interessante da notável série de eventosque levaram à descoberta da lei de Snell está no fato de Ptolomeuhaver subrepticiamente adaptado suas descobertas experimentaisde modo a que se conformassem a uma idéia preconcebida. Aseguir, depois da queda do Império Romano, cientistas árabestomaram para si a tarefa de aperfeiçoar os resultados obtidos porPtolomeu. Eles adotaram métodos mais sofisticados para o ajuste

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166 ALAN CHALMERS

dos resultados experimentais. Enquanto isso, na Europa ocidental,foram perpetradas outras fraudes com mentalidade menos mate-mática. Essa história extraordinária aproxima-se do fim quando asduas tradições convergem em Kepler, que quase conseguiu desco-brir a lei da refração.

A Ótica de Ptolomeu já não existe mais. Uma versão árabe dooriginal grego também se perdeu. No entanto, foi feita umatradução latina da versão árabe em meados do século XII, que aindaexiste. Há uma tradução para o inglês de trechos pertinentes aonosso tema em Cohen e Drabkin (1985, p. 271-81). Para afinalidade deste texto, presuma-se que essa versão inglesa da tra-dução latina da interpretação do original grego corresponde ao quePtolomeu realmente tenha escrito.

Os experimentos de Ptoíomeu com a refração diferem muitopouco daqueles com que nos aborrecemos na escola. Para investi-gações numa interface ar-água a experiência é feita da maneira queexporei a seguir. Um disco circular de cobre, com a circunferênciamarcada por intervalos de um grau, era apoiado a um plano verticalcom um diâmetro coincidindo com uma superfície de água. Ummarcador colorido era fixado ao centro do disco, na interfacear-água. Um segundo marcador era fixado à circunferência acimada água, de modo a que a linha de união dos dois marcadoresdefinia um raio de incidência. Um terceiro marcador podia sermovimentado em torno da circunferência do disco abaixo dasuperfície da água até que, visto de cima, estivesse alinhado comos dois marcadores já mencionados. A linha que unia esse terceiromarcador ao centro do disco correspondia então ao raio refratado.Dessa maneira, Ptolomeu registrava os ângulos de refração, r, quecorrespondiam a ângulos de incidência, i, que iam de l O a 80 graus,a intervalos de 10 graus. Ele realizou investigações semelhantessobre a refração em interfaces ar-vidro e água-vidro empregandoum semicilíndro de vidro.

Ptolomeu fez comentários qualitativos sobre os resultados. Porexemplo, ele observou: (1) que o raio de incidência e os raiosretratados ficam num plano perpendicular em relação à superfície

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 167

de refração; (2) que os raios normais para a superfície não sãorefratados; e (3) que a quantidade da refração depende da densida-de dos meios. Apresentou também algumas desigualdades. Porexemplo, mostrou que se it e i2 são dois ângulos de incidência ese ^ e r2 são os ângulos de refração correspondentes, e se i2 > ii,então t2 / t'i > fi/"f\- Ptolomeu não afirmou que t é proporcional ar como alguns historiadores afirmam - por exemplo, A. C.Crombie(1962, p. 120).

Além de suas observações qualitativas, Ptolomeu apresentouresultados numéricos, sem comentá-los. As duas primeiras colunasda Tabela l mostram esses resultados em relação a sua investigaçãonuma interface ar-água, que têm uma certa regularidade. Os valoresconsecutivos de r diferem entre si por uma quantidade que decresceuniformemente, conforme aumenta r. As segundas diferenças sãoconstantes e iguais a meio grau. Como outros já fizeram antes,especialmente A. Lejeune (1946), eu diria que Ptolomeu adaptousuas leituras experimentais de maneira a que tivessem essa regula-ridade. Restringindo-me inicialmente ao trabalho de Ptolomeu nainterface ar-água, apresento quatro argumentos que sustentamminha acusação.

Em primeiro lugar, como a regularidade nos resultados dePtolomeu não corresponde à situação real expressa na lei de Snell,é bastante improvável que os resultados equivocados possuíssemaleatoriamente essa regularidade. O segundo argumento diz respei-to às discrepâncias entre os resultados citados por Ptolomeu e os"verdadeiros" valores para r mostrados na terceira coluna daTabela l, calculados a partir de i usando um índice de refração del ,33. Na parte superior e na inferior da tabela, a discrepância entreos valores de Ptolomeu e os valores corretos são maiores do quese pode razoavelmente atribuir a um erro experimental. Paradeterminar esse fato, repeti o experimento de Ptolomeu, recons-truindo seu aparelho da maneira mais fiel possível e seguindo namedida do possível suas instruções bastante claras. Utilizando umaescala de nove polegadas de diâmetro, descobri que r poderia sermedido muito folgadarnente em relação ao quarto de grau mais

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168 ALAN CHALMERS

próximo, com exceção do maior ângulo de refração, onde o erropoderia ser da ordem de até um grau. Admite-se que o uso de umaescala de três polegadas de diâmetro leve a erros prováveis muitomaiores, mas não há razões para acreditar que Ptolomeu tenhapreferido usar uma escala tão inconvenientemente pequena. Pto-lomeu não especifica as dimensões de seu aparelho.

Tabela l - Resultados experimentais de Ptolomeu comparadosaos valores corretos

Resultados de Ptolomeu r correto

r° Calculado para um índicede refração de 1,33

1020304050607080

8151/2221/22935401/2451/250

7°14°22°28°35°40°44°47°

30'54'5'54'10'37'57'46'

Em terceiro lugar, há evidências de que Ptoíomeu realmenteacreditasse que houvesse uma relação precisa entre i e r, pois eleahrmou ter demonstrado "que esse tipo de curvatura (refração) nãoocorre em ângulos iguais, mas que os ângulos, medidos a partirda perpendicular, têm um relacionamento quantitativo preciso"K*>hen e Drabkin, 1958, p. 272). Ptolomeu não ofereceu nenhu-ma prO em apoio a essa afirmação, a menos que a ordem de seusresultados seja considerada essa evidência.

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 169

O quarto ponto, que empresta plausibilidade à tese de quePtolomeu adaptou suas leituras para que as segundas diferenças semantivessem constantes, é o fato de que as tabelas astronômicasbabilônicas que retratavam a distância angular traçada pelo Sol emmeses sucessivos (que ele muito provavelmente conhecia) possuís-sem precisamente essa configuração. As séries matemáticas que osantigos conheciam muito bem, como a seqüência dos quadradosdos números naturais, também a possuem. Vale a pena observarque, a essa altura da história, a idéia de uma função matemáticacontinua que liga uma variável a outra ainda estava por serdesenvolvida. Se existisse algum "relacionamento quantitativocontínuo" ligando i e r, as tabelas do tipo que estamos discutindoconstituiriam os únicos instrumentos matemáticos de que dispu-nha Ptolomeu para expressá-lo.

O fato de que os valores .para r que Ptolomeu registrou diferemmais dos valores corretos nos dois extremos da tabela do que nomeio sugere a idéia de que Ptolomeu tenha começado a partir domeio da tabela dos valores medidos, que podemos considerarestarem a meio grau em relação aos valores corretos, e adaptado osvalores nos dois extremos até que as segundas diferenças fossemconstantes e iguais a meio grau. Portanto, ele estava preparado parapermitir que as leituras adaptadas funcionassem como as registra-das, segundo o método mais do que testado e muito conhecidopelos estudantes de ciência.

Até aqui, o argumento contra Ptolomeu referiu-se apenas aresultados para uma superfície ar-água. O argumento fica muitomais forte quando se observa que as outras duas tabelas deresultados de Ptolomeu, para as interfaces ar-vidro e água-vidro,mostram precisamente a mesma regularidade. As segundas dife-renças são mais uma vez constantes e iguais a meio grau.

Diante do que se disse acima, a referência que G. Sarton (l 927,p. 268) faz ao trabalho de Ptolomeu na ótica como "a mais notávelinvestigação experimental da Antigüidade", e a observação deB. Farrington (l 963, p. 294), de que "observamos aqui, como em

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170 ALAN CHALMERS

outros textos, uma combinação de intuição e sistema característicado homem", assumem um certo ar de ironia.

As investigações óticas dos antigos cientistas árabes foram aprimeira seqüência ao trabalho de Ptolomeu. Aqueles cientistasconheciam bem a Ótica de Ptolomeu e procuraram aperfeiçoá-lade diversas maneiras. Alhazen (965-1039 d. C.) escreveu um gran-de tratado sobre a ótica e inúmeros trabalhos de menor importân-cia. Ele procurou aperfeiçoar as descobertas experimentais dePtolomeu criando um aparelho mais elaborado, cujo principalaperfeiçoamento era a substituição dos marcadores de Ptolomeupor um raio estreito de luz do Sol ou por uma vela. Alhazen chegoua admitir que os resultados de Ptolomeu não eram exatos, emboraainda os empregasse quando procurava resultados das proprieda-des de concentração de uma esfera de vidro. Não citou nenhumade suas próprias medições de r.

Mais significativo para a nossa história é o trabalho realizadotrês séculos mais tarde por al-Farisi. Al-Farisi aceitava a ordem quehavia nos resultados de Ptolomeu e lutou para aperfeiçoá-los, nãoatravés de experimentos, mas empregando métodos "aperfeiçoa-dos" de cálculo. Utilizando as leituras de Ptolomeu onde r corres-pondia a i = 40° e i = 50° numa interface ar-vidro, al-Farisiclaramente utilizou um método "refinado", empregando séries coma primeira, segunda e terceira diferenças constantes para calcular rpara valores de i que iam de 1° a 17° em intervalos de um grau.Os valores resultantes de r diferem mais dos valores corretos doque os de Ptolomeu. As técnicas empregadas por al-Farisi eramcomuns entre os astrônomos árabes e provinham da astronomiada Babilônia, já citada. Ao relacionar uma variável a outra usandotabelas de complexidade cada vez maior, os cientistas árabesaproximaram-se mais da idéia de uma função contínua (paradetalhes, veja Schrarnm, 1965).

Ao contrário desses primeiros cientistas árabes, seus contem-porâneos da Europa ocidental eram muito menos sofisticados eadotaram uma abordagem mais qualitativa sob a influência dostextos de Aristóteles. Os autores medievais da Europa ocidental

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 171

muitas vezes referiam-se à importância da experimentação naciência; contudo, por seus estudos sobre a lei da refração é bemdifícil sustentar a tese de Crombie (1962), de que em sua obrapodem-se constatar as origens do moderno método experimental.Segundo Crombie, Robert Grosseteste foi um dos pioneiros dométodo experimental. Grosseteste dizia que a reflexão e a refraçãoda luz poderiam ser mais bem estudadas com as experiências.Contudo, a lei da refração que ele propunha - ou seja: o ângulode refração é a metade do ângulo de incidência - pode ser refutadamuito simplesmente por meio do experimento. A discrepânciaentre a reverência ao experimento, por um lado, e a ausência deresultados concretos obtidos com a experimentação real, por outro,é ainda mais marcante nos textos do cientista da Silésia, Witelo.Passemos agora ao trabalho deste último.

Mais ou menos em 1270, Witelo escreveu um livro sobre aótica com base em todas as fontes que estavam à sua disposição,inclusive as obras de Ptolomeu e Alhazen. Por nada menos quetrês séculos e meio esta foi a obra clássica da ótica - não apenasdevido à abrangência do tema, mas também porque, ao contráriode seus predecessores, estava escrita em latim legível. Nesse livro,Witeío discutia a refração. Uma de suas afirmações sobre ela éseguida por este trecho:

A comprovação dessa hipótese depende de experimentações feitas cominstrumentos, e não de outros tipos de demonstração. Portanto, quandose deseja encontrar a maneira corno os raios de luz são refratados em umsegundo meio transparente mais denso do que o primeiro, como na água,que é mais densa que o ar (supondo que se use o instrumento descrito porAlhazen)... (Crombie, 1962, p. 2Í9)

Witelo prosseguia, descrevendo detalhadamente um apare*"°para mensuração dos ângulos de refração que era uma versãoaperfeiçoada do de Alhazen. Com esse aparelho, ele poderia medirT para os raios que passavam em qualquer uma das duas direçõespelas interfaces ar-água, ar-vidro e água-vidro. Os resultados

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citados por ele estão na Tabela 2. As diferenças entre i e r foram,incluídas nas tabelas de Witelo. O erro de subtração na primeiralinha é de Witelo.

Examinemos em primeiro lugar os resultados relativos a ar-água. Com exceção da primeira leitura, esses são idênticos aos dePtolomeu e é provável que Witelo os tenha copiado. Seus resulta-dos relativos a ar-vidro são perfeitamente idênticos aos de Ptolo-meu. O fato de Witelo estar preparado para mudar a primeiraleitura é muito significativo. Sua modificação elimina a ordem portrás das leituras e mostra que ele não havia percebido essa ordem.Ele não conhecia as técnicas da matemática, que seus contempo-râneos árabes conheciam muito bem.

Tabela 2 - Os resultados "experimentais" de Witelo

Ar-água

10

20

30

4050607080

7°15°22°29°35°40°45°50°

r

45'

30'

30'

0'

0'

30'

30'

0'

2

io

4°7

1115192430

o

o

o

o

o

o

- r

5'30'

30'

0'

0'

30'

30'

0'

12°

24°

37°

51°65°

79°

94°110°

Água-ar

r

5'

30'

30'

0'

0'

30'

30'

0'

2

47

11151924

r

o

o

o

o

o

o

o

30°

- i

5

30)

30'

0

0

30

30

0

y

'

j

Passemos agora à segunda metade da tabela de Witelo. Comoos raios que passam da água para o ar sofrem uma reflexão internatotal para grandes ângulos de incidência, uma espiada de um olhomoderno mostra que os resultados são absurdos e não poderiamser provenientes de medições experimentais. Não é difícil verificarcomo Witelo calculou esses ângulos de refração. Seu cálculo

aparentemente baseava-se numa interpretação equivocada de Pto-lomeu, que escrevera em sua Ótica-.

Nossa proposição é a de que a quantidade da refração é a mesma nosdois tipos de passagens, mas as duas refrações são de tipo diferente. Emsua passagem de um meio mais rarefeito (ou menos denso) para um maisdenso, o raio se inclina para a perpendicular, enquanto na passagem deum meio mais denso para um menos denso, ele se inclina para fora daperpendicular. (Cohen e Drabkin, 1958, p. 279)

Essa é uma definição bastante descuidada da lei da reversibili-dade. Witelo interpretou isso da seguinte maneira: para determi-nado ângulo de incidência, um raio que passa do ar para a água édefletido por x graus na direção normal, e então um raio que passada água para o ar no mesmo ângulo de incidência será defletidopor x graus do normal.

O fato de serem as leituras de Witelo em parte copiadas e emparte calculadas de uma teoria falsa e de que, em especial, osegundo conjunto tenha pouco a ver com o que realmente acontecereduz bastante a credibilidade e o significado dos sermões desteautor sobre a importância do experimento.

Nos três séculos que seguiram os eventos que acabo dedescrever, os europeus ocidentais tomaram conhecimento de umnúmero cada vez maior de textos árabes e gregos. Os cientistas doRenascimento eram muito mais sofisticados em questões de mate-mática do que seus predecessores - e eram menos aristotélicos. Naprimeira década do século XVII, a pessoa mais notável para a nossahistória é Kepler, que voltou seu imenso conhecimento teórico paraum estudo sobre a ótica. Sua primeira fonte foi o texto de Witelo.Quando ele verificou o que pensava serem os resultados de Witelosobre a refração (que sabemos serem de fato de Ptolomeu), seuconhecimento das técnicas dos astrônomos foi suficiente parafazê-lo perceber imediatamente a ordem que havia por trás das lei-turas. Contudo, Kepler discordava de que o relacionamento entrei e r fosse aquele; estava convencido de que o relacionamentocorreto deveria assumir a forma de uma função trigonométrica.Kepler testou urna série de funções trigonométricas em relação ao

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174ALAN CHALMERS

experimento. Tentou i - r = k sec i, 2i - r - k sen i, itan i - k tan r,tan i ~ sen (i - r), l - tan i cot (i - r) = k tan i (aqui ele começa aentrar em desespero), l - tan i cot (i - r) = k sen i, i - r = k{ + k2 seci, e finalmente, l - tan i cot (i - r) = kj + k2 sen i. Nenhuma dessasfórmulas mostrou-se satisfatória, e a essa altura Kepler aceitou aderrota.

A descoberta da lei correta não estava muito longe. Talvez osdescobridores tenham sido três. Os manuscritos discutidos porShirley (1951) que estão no Museu Britânico mostram que Tho-mas Harriott descobriu experimentalmente a lei por volta de 1616,embora não a houvesse divulgado. Snell também descobriu a leitalvez pouco antes de 1626, pois ela é mencionada em seusmanuscritos. Também não a divulgou e até hoje não está muitoclara a maneira como chegou a ela. Descartes obteve teoricamentea lei do seno, talvez já por volta de 1619, e foi com certeza o primeiroa publicá-la, em 1637. Sabra (1967, capítulo 4) persuasivamenteafirma que Descartes chegou à lei independente e possivelmenteantes de Snell, ao contrário do que dizem outros autores. Para umfísico moderno, a atribuição à Descartes não é muito convincente,pois baseia-se em falsos pressupostos e não tem argumentação lámuito conclusiva. Entretanto, Sabra mostrou que a argumentaçãode Descartes tem muito sentido, quando se considera sua teoriadentro de seu contexto histórico.

A história da lei da refração certamente é um golpe em qualqueridéia mais simplória de uma ciência progredindo uniformementeatravés de cuidadosas generalizações a partir de resultados deobservação e experimento. O grotesco dos pesquisadores antigosserve para mostrar que o método experimental que a ciênciamoderna aceita sem discutir nem sempre existiu. A habilidadeartesanal que a experimentação exige, a cuidadosa eliminação dasfontes de erro, a repetição e a crítica das leituras e interpretações,a estimativa de erros prováveis e assim por diante gradualmenteforam aparecendo durante o século XVII, e deve muito a pioneiroscomo Kepler e Galileu. Quando pensam na natureza, os cientistasmodernos são muito mais hábeis do que foi Ptolomeu.

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ÍNDICE DE AUTORES

Albury, D.,160, 175Albury, R., 42, 175al-Farisi, 170Alhazen, 170-1Althusser, L, 39,175Anscombe, E., 175Aquino, T. de, 47, 76, 143Aristóteles, 26, 31, 46-8, 75-6,170Arquimedes, 26,48-50, 56Armstrong, D., 40, 175

Bacon, R, 14,44,67-8Barnes, B., 112, 114,129, 175Barnes, J., 46, 175Bartels.D., 160, 175Bhaskar, R., 53,91,175Block, L, 16,175Blondlot,R., 71,106,126Bloor, D., 63,109, 111, 114, 115,124-5,

175-6BockJ.W., 76,176Brahe, T., 80, 82Brewster, D., 43, 45Burtt,E.A., 68, 176

Chalmers, A. F., 11, 17, 21, 25, 28, 50,66,105,116,120,154,176

Charleton.W., 122Chiaramonti, S., 75Clavelin, M., 48, 51,75, 176Clavius, C., 80Cohen, M. R., 166,168,173, 176Collier.A., 97, 176Collins, H. M., 13, 19, 21, 99-106, 110,

116,150,177Copérnico, N., 64-5, 72-3, 79, 81-3Cox,G., 13, 21,110,176-7Crombie.A. C., 167,171,177Currie, G., 56, 181

Darwin.C., 117-9,131-2, 148Davy, H., 160-3De Belidor, 42Demócrito, 43Descartes, R., 14, 24-5, 35, 56, 165,174Douglas, M., 115Drabkin, I. E, 166, 168, 173, 176Drake, S., 53, 77,81,177Durkheim.E., 115

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184A1ANCHALMERS

Eddington, A., 56Edge.D.O., 37, 177EínStein,A.,36,41,56,88,100Euclides,48-9,165

Farrington, B., 169, 177Feyerabend, P. K., 13, 16-9, 27-8, 33, 58,

'64-7,72-3,74,79,92,149,177Fresnel, A. J., 44, 121,155Freud, S., 31Freudenthal, G., 138-48, 177

Gaífcey, E. S.,16,177Galileu, 18, 26, 37, 50-4, 62, 64-7, 72-84,

91,94,116,149,174,177-8Galton.F., 131-4Gaukroger, S.,48, 78,178Geach, P.T., 175Geymonat, L, 75, 178Gosset,W. S., 134Gower.B., 18, 23,178Grosseteste, R., 171

Hacking, L, 43, 97,114,178Hamlyn.W., 125Hanfling, O., 15, 178Hanson, N. R., 63, 70,113, 178Harriott,T., 165, 174Hertz, H., 56, 86-9,92,98,106,126,178Hesse, M., 115Heibert, E.,43,178Hindess, B., 97Hobbes.T., 143-7Hon, G., 98, 178Howson, C., 178Hume, D., 25,178

Jacob, M. C., 147,178Johnston, R., 160, 175

Keech, M., 13,21, 110Kepler,]., 166, 173-4Knorr-Cetina, K. D., 105, 121-2, 139,

155-6,178Koertge, N., 53, 178

Kuhn.T., 27, 44, 63, 76, 153, 178-9

Lakatos, L, 12, 15, 23, 27, 29, 32-7, 55,89,114,116,119,124,179

Latour, B., 110, 157,158, 179Laudan, L, 40,110, 120-4, 136, 179Letbniz, G.W.,26Lejeune, A., 167, 179Locke.J., 25, 40, 143,179Lowe, L, 162, 175

Mackenzie, D., 111,129-38,175,180Malthus,T. R., 117,148Marx, K., 20Mauss, M., 115Maxwell, J. C., 32, 56, 86, 88, 92, 118,

147,180Merton, R. K., 159, 180Mulkay, M., 37, 111-4, 177-8,180Musgrave, A., 15, 89, 119, 179-80

Newton, L, 26, 29-30, 34-6, 54-5, 95,130-48

Nickles.T., 119,180

Paris, J. A., 160Pearson, K., 131-4,138Pemberton, H., 55Pickering, A., 99, 102, 180Platão, 46Poisson, S. D., 121Popper, K. R., 12, 15, 23, 29-32, 40, 55,

58,69,93-6,112-4,116,120,180Porter.T. M., 118, 180Price, D. J. de S., 82, 180Prout, W., 89Psimopoulos, M., 13, 16, 181Ptolomeu, 50, 71,82,165-74

Rorty, R., 97, 180Rousseau,}.-}., 145

Sabra, A.]., 174,180Sarton, G., 169, 180Schramm, M., 170, 181

A FABRICAÇÃO DA CIÊNCIA 185

Schwartz,]., 160, 175Shapin, S., 129Shea.W. R.,51,181Shirley,]. R.,174, 181Smith.A., 145Snell.W., 165, 174Soddy, F., 89Suchting.W., 39,181

Tait, P., 147,181Theocharis, T., 13, 16,181Thomson, W., 147, 181Thurber,]., 63, 70, 78, 181Tiles, M., 71,181Turnbull, D., 109, 181

Wallace, W., 47, 181Watkins,]., 40, 181

Weber.J., 100-6, 120, 126, 150

Weldon,W. F. R., 132

Wisan.W. L, 54, 181

Witelo, 171-3

Wood, R. B., 71

Woolgar.S., 110,134,179, 181

Wooüett, E. L, 159,181

Worrall, J., 23, 56,155, 181

Yearley, S-, 134, 181

Young.R., 117-8,182

Young, T., 155

Yule.G., 133-4