Al Thawra 2

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LEMBRAR E RESISTIR: 64 ANOS DA NAKBA PALESTINA n o 2 - junho 2012 Al Thawra

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Boletim sobre as revoluções árabes e a luta pela libertação da Palestina elaborado por ativistas brasileiros - edição especial sobre Palestina

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lembrar e resistir: 64 anos da nakba palestina

no 2 - junho 2012Al Thawra

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As revoluções do mundo árabe nun-ca estarão completas enquanto perdu-rar a ocupação da Palestina.

Neste momento de retomada da resistência palestina, são necessárias novas lideranças que possam reuni-ficar o povo palestino, seja os que vivem nos territórios ocupados em 1948 e 1967, seja os que estão exila-dos, para conduzir uma luta eficiente para libertar toda a Palestina.

Ter eleições livres para o Conse-lho Nacional Palestino, efetuadas por todas as comunidades palestinas que estão espalhadas pela Palestina ocupada e por todo o mundo, é con-

dição essencial para que o povo pales-tino possa, demo-craticamente, de-cidir os rumos de sua luta.Dedicamos esta

edição do Al Thawra ao povo palestino e à sua luta por uma Pales-

tina livre, onde todos os palestinos tenham direito de retornar e

de viver com todos aqueles que acei-tem conviver em paz, sem privilégios nem discriminação.

EditorialPor uma nova OLP

Eleições livres para o Conselho Nacional Palestino

Soraya [email protected]

Mohamed [email protected]

Fábio [email protected]

Uma onda de revoluções está mudando o cenário no mundo árabe.

A ordem imperialista sustentada por governos árabes, seja diretamente colaboracionistas ou “nacionalistas”, está sendo questionada pela ação re-volucionária de milhões de jovens, trabalhadores e trabalhadoras que se lançam à luta contra as ditaduras e por justiça social – emprego, salário, edu-cação, saúde pública e moradia.

Essa onda revolucionária combina com um desgaste crescente de Israel perante a opinião pública mundial. A invasão do Líbano em 2006, a agres-são à Gaza em 2008-2009, os ataques à flotilha da paz em 2010 e o apar-theid imposto diariamente aos palesti-nos nos territórios ocupados abrem os olhos dos povos de todo o mundo para a questão palestina.

O movimento palestino renasce em meio a esse processo. A campanha de BDS (boicotes, desinvestimento e sanções) prospera nos países centrais, a semana contra o apartheid israelen-se é realizada em dezenas de cidades, milhares de jovens e veteranos viajam para a Palestina ocupada para se in-tegrar aos protestos diários contra a ocupação, lado a lado com a juven-tude palestina, as manifestações por ocasião da formação de Israel ensina-ram para os povos de todo o mundo o significado da palavra nakba.

No entanto, há um descompasso en-

tre a resistência do povo palestino e a sua liderança histórica, a OLP (Or-ganização para a Libertação da Pa-lestina). Os acordos de Oslo firmados entre os líderes da OLP e o Estado de Israel significaram o “tratado de Ver-salhes” da causa palestina, como dizia o intelectual Edward Said.

Nesses acordos não havia nenhu-ma palavra sobre o direito de retorno dos refugiados palestinos; nada sobre a discriminação contra os palestinos que vivem nos territórios ocupados em 1948; sequer havia algum prazo para o fim da ocupação da Cisjordâ-nia, Gaza e Jerusalém. Pior ainda,

concedia a Israel o papel de autori-dade militar sobre a maior parte da Cisjordânia, as chamadas áreas B e C, além do controle do trânsito de pes-soas, mercadorias e capitais.

Desde então, a liderança da OLP privilegiou o papel de gerenciamen-to da ocupação em detrimento da luta contra ela. Essa rendição perante a força ocupante foi acompanhada do esvaziamento das instâncias da OLP e da prioridade dada à Autoridade Pa-lestina, eleita somente por uma parce-la minoritária do povo palestino que vive sob ocupação. Nunca mais houve eleições para a direção da OLP.

Por uma nova liderança para a resistência

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Fábio Bosco

A partilha da Palestina e o papel nefastodas superpotências e do Brasil

Em 29 de novembro de1947 é vo-tada a partilha da Palestina pela ONU (Organização das Nações Unidas). Alguns meses depois é formado o Es-tado de Israel. Apesar de contar com apenas 30% da população local, o es-tado israelense toma 78% do território palestino, expulsa cerca de 800 mil palestinos e destrói 531 vilas.

Essa votação atendeu a objetivos de longo prazo das potências colo-nialistas de criar um estado aliado e totalmente dependente do apoio dos países imperialistas. Foi realizada em meio a manobras regimentais levadas a cabo pelo representante do Brasil, o diplomata Oswaldo Aranha, e à pres-são econômica e ao suborno efetuados

pelos Estados Unidos e pela Agência Judaica. Competindo com os Esta-dos Unidos, a União Soviética não só apoiou a partilha e a formação do Estado de Israel, como foi a principal provedora de armamentos que possi-bilitaram ao recém-formado exército de Israel a vitória militar contra os pa-lestinos e os árabes.

O imperialismo e a dominação do mundo árabeAo final da I Guerra Mundial, a der-

rota do império otomano criou as con-dições para o Reino Unido e a França, principais potências europeias que venceram a guerra, imporem seu do-mínio sobre uma região estratégica.

O Oriente Médio sempre foi uma área de trânsito entre a Europa e a Ásia, por onde passavam mercadorias e exércitos. A isso se uniu a existência abundante de petróleo de ótima quali-dade e de fácil prospecção. Para impor seu domínio na região, os colonialis-tas definiram várias estratégias, entre as quais a formação de "estados" alia-dos e dependentes do apoio ocidental.

Os franceses derrotaram os sírios e formaram um estado cristão no Líbano. No entanto, o fato de que a população cristã libanesa se identifi-

cava como árabe levou ao fracasso a estratégia francesa. Já os ingleses uti-lizam o sionismo, um movimento eu-ropeu apoiado por alguns magnatas, como os Rothschilds, para promover a colonização da Palestina, visando a formação de um estado judeu em con-traposição à população árabe, ampla-mente majoritária. A partir de então, o Reino Unido será o principal apoiador da imigração de judeus europeus e da colonização da Palestina.

Às vésperas da II Grande Guerra, os ingleses mudam de política. Para fazer frente à Alemanha, era necessá-rio atrair o apoio dos árabes. Por isso, lançam o Livro Branco em 1939, que desencorajava a partilha da Palestina e limitava a imigração de judeus de for-ma a impedir que a população judia

excedesse 1/3 da população total. Sem a partilha da Palestina e em minoria, seria impossível para o movimento sionista formar seu estado. Nos anos seguintes, os sionistas vão se enfrentar com os ingleses e vão encontrar um novo apoio entre as potências vence-doras da II Guerra: os Estados Unidos e a União Soviética.

A partilha da Palestina O Reino Unido saiu da II Guerra

fragilizado e não tinha condições de manter suas tropas na Palestina, onde era alvo de milícias sionistas. Então, em fevereiro de 1947, os ingleses en-tregam para a ONU a definição sobre o futuro da Palestina.

"Desde a sua fundação, a ONU en-contrava-se paralisada pela política da guerra fria. No esquema básico para a Palestina, contudo, a Rússia e os Es-tados Unidos, as duas superpotências, estavam de acordo: a Palestina deve-ria ser dividida entre o movimento sionista e os palestinos." (Ilan Pappe em História da Palestina moderna, capítulo 4)

Em abril de 1947 ocorre a primeira sessão da Assembleia Geral da ONU

para discutir a questão palestina, pre-sidida pelo brasileiro Oswaldo Ara-nha, então forte aliado dos Estados Unidos. Os países árabes defenderam a declaração de independência da Pa-lestina e não aceitavam a definição da Palestina como única solução para a dramática situação dos refugiados ju-deus que estavam na Europa.

O representante da Síria declarou: "A organização criada para ocupar-se dos refugiados já está estabelecida e desempenha seu trabalho. Esta é a organização que deve ocupar-se do restabelecimento ou repatriação dos refugiados da Europa (...). Os árabes da Palestina não são responsáveis de forma alguma pela perseguição dos judeus na Europa. Essa perseguição

é condenada por todo o mundo e os árabes figuram entre os que simpati-zam com os judeus perseguidos. Não obstante, não se pode dizer que a solu-ção desse problema incumbe à Pales-tina, país pequeno que já recebeu um número suficiente desses refugiados e outros desde 1920. Qualquer dele-gação que deseje demonstrar simpatia possui em seu país mais espaço do que o que existe na Palestina e dispõe de maiores facilidades para receber esses refugiados e prestar ajuda."

No entanto, a Assembleia Geral decidiu formar a Unscop (Comissão Especial da Nações Unidas para a Palestina), excluindo de seus debates a proposta de independência da Pa-lestina. A Unscop foi formada por 11

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EUA e União Soviética apoiaram a partilha da Palestina

Após a partilha, às armas

países: Canadá, Tchecoslováquia, Gua-temala, Países Baixos, Suécia, Peru, Uruguai, Índia, Irã, Iugoslávia e Aus-trália. Ela (Unscop) visitou a Palestina em junho e, em seguida, os campos de refugiados judeus na Europa. Escreveu que a maioria dos refugiados judeus queria ir para a Palestina por temor do antissemitismo, ainda que fosse notória a preferência pelos Estados Unidos, que limitava então o ingresso dos imi-

grantes. Em agosto, a Unscop infor-mou suas recomendações: a maioria de sete países (Canadá, Tchecoslová-quia, Guatemala, Países Baixos, Peru, Suécia e Uruguai) propôs a partilha da Palestina, com a formação de dois estados independentes em associação econômica, a internacionalização de Jerusalém, bem como a imigração sem restrições da população judia.

A minoria (Índia, Irã e Iugoslávia)

defendeu a independência imediata da Palestina, reivindicando o direito natural da maioria árabe de 70% da população de permanecer com a posse de seu país, onde vivia há séculos. De-fendia ainda a formação de um estado federal entre árabes e judeus, mas uma única cidadania palestina concedida a árabes, judeus e outros. Jerusalém se-ria a capital. A Austrália não aprovou nenhuma das propostas.

Em 11 de outubro, o representante estadunidense H. Johnson informou que apoiaria a proposta da maioria da Unscop: partilha e imigração. Dois dias depois, a União Soviética informou ter a mesma posição. Com o apoio das duas superpotências, o plano de parti-lha estava pronto para a votação.

Nos dias 24 e 25 de novembro foi feita a primeira votação. As propostas da minoria de enviar a questão para a Corte Internacional de Justiça, de que os estados membros recebessem em seus territórios os refugiados judeus, e do estabelecimento de uma Palestina unificada e independente, foram der-rotadas uma a uma, mas contaram com o apoio da Argentina, Grécia, Haiti e Libéria. Já a proposta da maioria (par-tilha, imigração e internacionalização de Jerusalém) contou com 25 votos a favor, 13 contrários, 17 abstenções e duas ausências (vide quadro).

No entanto, para ser aceita como deliberação da Assembleia Geral da ONU, era necessária a maioria de 2/3. Se fosse à votação e nenhuma proposta tivesse 2/3, não haveria uma resolução da ONU sobre o tema, di-

ficultando enormemente os planos de constituir um estado judeu na Pales-tina. No dia 26 de novembro, a pro-posta de partilha não contava com os 2/3 de votos necessários. Por isso, o brasileiro Oswaldo Aranha, que pre-sidia a sessão, suspende os trabalhos sob protestos dos países árabes.

Nos dias seguintes, 27 e 28 de no-vembro, as sessões foram adiadas pelo presidente Oswaldo Aranha. No período, vários países foram subme-tidos a negociatas e chantagem pelos Estados Unidos. Em 29 de novembro, um sábado, com a maioria de 2/3 as-segurada, Oswaldo Aranha convoca a sessão para votação. Os países árabes apresentam nova proposta: uma Pa-lestina unitária com autonomia local para a minoria judia. Os representan-tes dos Estados Unidos, Johnson, e da União Soviética, Gromyko, se opuse-ram a discutir a proposta dos árabes e exigiram que a votação fosse iniciada. Foram 33 votos a favor da partilha, 13 contra, dez abstenções e o impedi-mento de voto do Sião (vide quadro). Além do abuso do poder econômico contra países como Haiti, Libéria e

Filipinas, o representante do Sião, que se opusera na primeira votação, teve suas credenciais retiradas sob a ale-gação de um golpe de estado em seu país, que já ocorrera antes mesmo da primeira votação.

Os dirigentes sionistas entendiam que a partilha da Palestina teria que ser materializada com a expulsão da população local. Para isso, elabora-

ram o plano Dalet, o qual preconizava a utilização de milícias armadas para aterrorizar e expulsar os palestinos. Esse processo foi acelerado devido ao risco de intervenção internacional. A própria delegação estadunidense su-geriu à ONU em março de 1948 que a administração da Palestina fosse assu-mida pela ONU por um prazo de cin-co anos. Apesar do embargo de armas determinado pela ONU, a União So-viética e seus países aliados se trans-formam nos principais provedores de armamentos para Israel.

Escreve Ilan Pappe: "Até maio de 1948 os dois lados estavam mal equi-

pados. Então o recém-formado exér-cito de Israel, com a ajuda do partido comunista local, recebeu um grande carregamento de armas pesadas da Tchecoslováquia e da União Soviética. Isso incluía um acordo de armamentos no valor de US$ 12.280.000 fechado entre a Haganá e a Tchecoslováquia referente à aquisição de 24.500 rifles, 5.200 metralhadoras automáticas e 54 milhões de cartuchos de munição." (Ilan Pappe, The Ethnic Cleansing of Palestine, capítulo 4).

Ele continua: "Durante a trégua nos combates, os exércitos árabes não se reabasteceram de armamentos porque

Oswaldo Aranha, embaixador brasileiro, manobra para votar partilha.

Truman & Stálin

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ConclusãoA nakba palestina foi fruto da von-

tade dos países imperialistas de do-minarem o mundo árabe. Também foi fruto da determinação de Stálin, o ditador soviético, de ter o Estado de

Israel como seu aliado na região. La-mentável foi o papel do embaixador brasileiro que, subserviente aos inte-resses estadunidenses, fez manobras regimentais de toda ordem, rejeitando

todas as solicitações dos países árabes e dirigindo os trabalhos com o único objetivo de aprovar a partilha. Essa dívida do Brasil para com o povo pa-lestino tem que ser saldada.

29 de novembro

Votos a favor da partilha: Austrália, Bélgica, Bo-lívia, BRASIL, Canadá, Costa Rica, Tchecoslováquia, Dinamarca, Equador, Estados Unidos, Filipinas, França, Haiti, Guatemala, Islândia, Libéria, Luxemburgo, Nica-ragua, Noruega, Nova Zelândia, Países Baixos, Panamá, Paraguai, Perú, Polônia, República Dominicana, Bielo Rússia, Ucrânia, Suécia, URSS, União Sul-Africana, Uruguai e Venezuela.

Votos contra: Afeganistão, Arábia Saudita, Cuba, Egi-to, Grécia, India, Irã, Iraque, Líbano, Paquistão, Síria, Turquia e Iêmen.

Abstenções: Argentina, Colômbia, Chile, China, El Salvador, Etiópia, Honduras, México, Reino Unido e Iugoslávia.

Impedido de votar: Sião

25 de novembro

Votos a favor da partilha: Austrália, Bolívia, BRA-SIL, Canadá, Costa Rica, Tchecoslováquia, Chile, Dina-marca, Equador, Estados Unidos, Guatemala, Islândia, Nicaragua, Noruega, Panamá, Perú, Polônia, Repúbli-ca Dominicana, BieloRússia, Ucrânia, Suécia, URSS, União Sul-Africana, Uruguai e Venezuela.

Votos contra: Afeganistão, Arábia Saudita, Cuba, Egi-to, India, Irã, Iraque, Líbano, Paquistão, Sião, Síria, Tur-quia e Iêmen.

Abstenções: Argentina, Bélgica, Colômbia, China, El Salvador, Etiópia, França, Grécia, Haiti, Honduras, Li-béria, Luxemburgo, México, Nova Zelândia, Países Bai-xos, Reino Unido e Iugoslávia.

Ausências: Filipinas e Paraguai.

QUADRO DE VOTAÇÕES NA ONU - 1947

a Grã-Bretanha estava decidida a observar o embargo de armas imposto pela ONU às facções em guerra. As forças judaicas, por seu lado, continuaram a eludir a proibição, importando quantidades consideráveis de armamento pesado dos países do bloco do leste, que desobe-deceram à medida da ONU. A paridade da primeira semana foi substituída por uma supe-rioridade dos judeus quando os combates foram retomados em meados de junho de 1948." (Ilan Pappe, História da Pales-tina moderna, capítulo 4).

Sem o apoio das superpotências não haveria a formação do Estado de

Israel. A União Soviética e os Esta-dos Unidos competiam entre si para

formar áreas de influência e apoiaram a nakba (catástrofe palestina). "Em 14 de maio de 1948 foi declarado o Estado de Israel. À 1h da madrugada do dia seguinte, o presidente estadunidense Harry Truman anunciou o reconhecimento de fato do novo estado pelo seu país. Uma hora antes, sir Alan Cunningham, o último alto co-missário britânico, abandonara o país. Dois dias mais tarde, a União Soviética acrescentou seu reconhecimento, mas foi mais longe que a superpotência rival e concedeu o reconheci-

mento de jure." (Ilan Pappe, História da Palestina moderna, capítulo 4).

Harry Truman: os EUA substituíram a Grã-Breta-

nha como principais patro-cinadores de Israel.

Stálin forneceu as armas para Israel derrotar os

palestinos.

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Intelectuais a serviço da nakba palestinaSoraya Misleh

“Ninguém é bastante poderoso ou bastante rico para deslocar um povo de um lugar de habitação e transferi-lo para outro. Só uma ideia pode realizar esta grande tarefa.” A frase é expressa na obra O estado judeu, de Theodor Herzl, publicada em 1896. Pai do sio-nismo político moderno – movimento colonialista que surgiu na Europa no final do século XIX – e idealizador do Estado de Israel, o autor argumentava que a única saída para os judeus seria partir da Europa, dado o antissemitis-mo. A Palestina foi o destino escolhi-do no I Congresso Sionista realizado na Basileia, Suíça, em 1897.

Como estratégia para convencê-los a imigrarem – pois não havia esse ím-peto num primeiro momento –, o sio-nismo procurava reinventar a noção de regresso para um local ocupado por “forasteiros”. Como afirma Ilan Pappe, em seu livro La limpieza étni-ca de Palestina, a designação era dada a não judeus – os quais, para muitos sionistas, ou eram invisíveis ou um obstáculo a ser eliminado.

Assim, criava-se o mito da “ter-ra sem povo para um povo sem ter-ra”. O palestino, conforme a tradição orientalista, era transformado num não povo. Somente tamanha desuma-nização poderia conceber a limpeza étnica planejada e levada a cabo em 15 de maio de 1948, quando da cria-ção unilateral do Estado de Israel. A partir de 29 de novembro de 1947 – quando foi aprovada na Assembleia Geral da ONU (Organização das Na-ções Unidas), presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha, a Resolução nº 181, relativa à partilha da Palestina em dois estados, um judeu e um árabe, sem consulta aos seus habitantes –, foram expulsos cerca de 800 mil nativos ára-bes de suas terras, que se tornaram refugiados, e destruídas 531 aldeias, como aponta Ilan Pappe, em seu livro História da Palestina moderna. Esse processo teve continuidade ainda em 1949, portanto mesmo após a instala-ção do Estado teocrático judeu.

O papel da intelectualidade europeia num primeiro momento – e depois es-

tadunidense – é indicado pelo escritor palestino Edward Said, que em sua obra Orientalismo não deixa dúvidas de que a colonização é justificada de antemão por um discurso cultural que divide o mundo entre “ocidentais” e “orientais”. Os primeiros, como ex-plicitado em seu livro, seriam basica-mente os civilizados, com raciocínio lógico, pacíficos, capazes de valores reais; já os últimos equivaleriam a uma massa uniforme de povos atrasa-dos, bárbaros, afeitos à violência por natureza, que não podem se autogo-vernar, precisam ser temidos e, por-tanto, controlados.

O Orientalismo não é um concei-to novo. Data tradicionalmente, para o “Ocidente cristão”, do século XII, quando houve o surgimento de várias cátedras de estudos sobre o “Oriente”. Não obstante, o século XVIII é enten-dido pelo autor como um marco de sua fase moderna, em que teria tido uma espécie de “renascimento”, com a ampliação das representações sobre os povos “orientais”. A pretensão era

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Os orientalistas tiveram papel fun-damental também na reinvenção das aldeias destruídas durante a chamada nakba palestina – termo utilizado pe-los árabes, que designaria a catástrofe que se abateu sobre eles há 65 anos. O processo de “limpeza” incluiu apagar quaisquer vestígios de sua existência anterior e reinventá-las sob outra for-ma, segundo Pappe, como lugares he-breus puros.

O historiador israelense revela no livro La limpieza étnica de Palestina que o espólio resultante da limpeza ét-nica promovida naquele território foi acompanhado da mudança de nomes dos vilarejos. O autor chega a utilizar o termo “memoricídio” para descre-ver esse trabalho, que teria sido rea-lizado com o auxílio de arqueólogos e especialistas em estudos bíblicos, “que se ofereceram voluntariamente a colaborar com um comitê de nomes oficial cuja tarefa era hebraizar a geo-grafia da Palestina”. Como parte desse movimento, a língua hebraica também foi recriada.

O objetivo, puramente ideológico, era desarabizar a região, mudar sua história e, assim, garantir o sucesso do

projeto colonial. Na ótica de Said, “re-construir uma língua oriental morta ou perdida significava, em última análi-se, reconstruir um Oriente morto ou esquecido”. E preparar o terreno para o que viria a ser feito no local poste-riormente.

Muitos dos vilarejos destruídos de-ram, assim, lugar a parques e bosques israelenses, numa negação sistemá-tica da nakba e uma busca por fazer com que aquelas paisagens tivessem aparência europeia. A escolha por es-pécies não nativas a serem plantadas nesses locais encontraria essa justifi-cativa, de acordo com Pappé.

O historiador israelense lembra que o Fundo Nacional Judeu apre-senta em seu site oficial esses lugares como atração turística. A organização é apresentada como responsável pelo florescimento do deserto e a aparência europeia da paisagem. Esse processo continua em curso, e as representa-ções sobre os árabes – no caso espe-cífico, palestino – são fundamentais para tanto.

Contudo, esse discurso tende a per-der força. A consciência crítica ao longo desse percurso seria o caminho

para se desafiar a visão orientalista, o que implica necessariamente um re-conhecimento histórico das injustiças cometidas ao longo desse percurso.

Pode acelerar esse processo o fato de se intensificar, perante um mundo cada vez mais conectado globalmen-te, a repercussão negativa das últimas ações de Israel – desde a invasão do Líbano em julho de 2006, passando pela ofensiva à Gaza entre dezembro de 2008 e janeiro de 2009 até o ataque à chamada “flotilha da liberdade”, que transportava cerca de 750 pacifistas e ajuda humanitária aos palestinos da-quela faixa, em 31 de maio de 2010. E mais recentemente, a repressão vio-lenta às manifestações nos territórios ocupados, em solidariedade aos 2 mil presos políticos palestinos em greve de fome até 14 de maio.

A resistência heroica desse povo, somada ao crescimento de ações em todo o mundo, como o boicote acadê-mico e cultural a instituições que sus-tentam esse sistema de opressão – e são a espinha dorsal do orientalismo –, mostra que o caminho para uma Palestina livre passa por não silenciar, mas continuar a luta.

Modernizar a população indígenaEsse estilo de pensamento refletia a

atitude comum dos europeus em rela-ção à Palestina ainda antes, no século XIX. A população indígena deveria ser modernizada para seu próprio bem ou dar lugar aos recém-chegados e às suas ideias – entre os mais ambicio-sos e enérgicos estariam os sionistas. Um número bastante reduzido de es-trangeiros não se enquadraria nesse grupo, mas não teria sido impeditivo à colonização na localidade.

Conforme Ilan Pappé, viajantes,

missionários e escritores europeus pu-blicaram mais de 3 mil livros e relatos de viagem sobre a Palestina durante aquele século, todos eles pintando-a como um local primitivo, à espera de redenção por parte desses estrangei-ros. Uma organização arqueológica britânica, intitulada Palestine Explo-ration Fund [Fundo de Exploração da Palestina], considerava esse movi-mento uma espécie de operação de sal-vamento. Como escreve o historiador israelense, a visão corrente era de que

“a Palestina tinha urgente necessidade de modernização, visto que as pessoas que os exploradores europeus encon-travam eram obviamente infelizes no seu mundo pré-moderno”. O que não se sustenta minimamente, quando se levam em conta as memórias e relatos dos palestinos. Mas, para os orienta-listas, estes não tinham voz – portan-to, não eram ouvidos, tampouco lhes era dado o direito de expressão.

Reinvenção dos lugares

fortalecer a ideia de uma civilização europeia superior.

Na Palestina, o mandato britânico nas primeiras décadas do século XX – após a queda do Império Otomano que detinha o domínio daquelas ter-ras até sua derrota na Primeira Guerra Mundial – sustentou um projeto que manteria essa esfera de poder e influ-ência sobre a população nativa. Essa perspectiva consideraria que os ha-bitantes do local seriam inferiores e por isso não deveriam ter os mesmos

direitos que os demais. Traria ainda a crença de que há bons e maus árabes – estes últimos os que se recusariam à passividade e seriam, portanto, con-siderados terroristas. Para Said, nesse sentido, “o Orientalismo rege comple-tamente a política de Israel para com os árabes”.

O que explicaria um conjunto de leis discriminatórias em Israel em relação a estes, e mais. Na ótica de Said, um mito acaba por sustentar e produzir outros. As representações são muitas e

servem para manter o status quo. En-tre elas, a de que Israel sempre reage e se defende e mantém sua política mi-litarista por uma questão de segurança ante vizinhos hostis, sempre prontos a atacar, que desejam sua destruição sistemática. O discurso orientalista tem sido hábil em desumanizar esses “vizinhos” e manter acesa a chama do medo e do desconhecimento do “Ou-tro” na sociedade israelense.

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Que ajuda é essa?

Quando colonos religiosos extre-mistas jogavam lixo e pedras contra palestinos do alto de suas colônias no meio da cidade velha em Hebron, a comunidade internacional instalou uma rede de proteção sobre a rua (foto abaixo). Hoje é possível passar pelas ruas de Hebron desviando apenas das gotas de chorume, já que os pedaços de lixo e tijolos se mantêm suspen-sos... No entanto, no fim das contas,

não se questionou o fato de que mais de 90% das investigações da polícia israelense contra violência de colonos são encerradas sem nenhuma acusa-ção (1); ou que os ataques de colonos aumentaram em 317% entre 2007 e 2011 (2).

Muito da ação da comunidade in-ternacional nos territórios palestinos ocupados tem apenas ajudado a “nor-malizar” a ocupação israelense e o re-

gime de segregação entre judeus e pa-lestinos. Os postos de controle agora possuem bebedouros e áreas cobertas; há rotas alternativas pavimentadas aos palestinos quando a eles é proi-bida uma determinada estrada, rua ou calçada. “É querer fazer um apartheid limpo, bonitinho”, diz o palestino Waseem, apontando para uma placa “Mantenha o terminal limpo” na fila do posto de controle 300, que separa Belém de Jerusalém.

Ações de caráter humanitário seriam muito bem-vindas, não fosse a ausência de outras formas de ação e a conivência internacional e dos projetos ditos hu-manitários com os crimes e violações do Estado de Israel. Isso fica evidente quando se observa que os Estados Uni-dos já doaram 115 bilhões de dólares a Israel em assistência bilateral (3), ao passo que os projetos bilaterais de de-senvolvimento na Cisjordânia e Gaza (USAid) não passam de 3.5 bilhões de dólares (4). Para completar, depois do pedido de reconhecimento do Estado palestino na ONU (Organização das Nações Unidas), as doações estaduni-denses foram drasticamente reduzidas, senão interrompidas, em diversos pro-jetos humanitários.

Pedro Ferraracio Charbel *

ONGs e projetos internacionais na Palestina promovem dependência estrutural, pagam o custo da ocupação e não desafiam as políticas israelenses

Aline Baker

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* Pedro Ferraracio Charbel é estudante de Relações Internacionais e Direito. Viveu nos territórios palestinos ocupa-dos por três meses e é membro da Frente Palestina USP.

Além disso, é fundamental ressal-tar que as necessidades humanitárias palestinas não advêm de desastres ou condições naturais, tampouco de um problema socioeconômico histórico, fome estrutural, guerra civil... Trata-se de um povo que teria condições ma-teriais e técnicas para se desenvolver plenamente não fosse a ocupação mili-tar sob a qual está submetido. “Se nós tivermos a permissão para construir uma roda d’água, faremos isso, não precisamos da ajuda internacional”, diz Abu Sakr, líder de uma pequena comunidade no Vale do Jordão. Ele se refere ao fato de que depois dos acor-dos de Oslo, os palestinos, quando au-torizados, só podem usufruir da água de nascentes ou de pouca profundida-de, ao passo que colonos não possuem restrições. “A questão palestina é mais importante do que doar farinha”, diz ele. E acrescenta: “Conquistar nossa liberdade é mais importante do que a ajuda internacional.”

No caso palestino, essa ajuda até poderia se configurar como forma de resistência e questionamento à ocu-pação, se assim o desejasse a comu-nidade internacional. Centros polies-portivos em Ramallah, no entanto, em nada mudam a realidade das pequenas vilas ameaçadas diariamente pelo exército, colonos e políticas restritivas de mobilidade, construção e acesso à água e outros recursos básicos. Nas áreas C da Cisjordânia (5), estruturas palestinas são demolidas diariamente,

num contínuo ímpeto das autoridades israelenses de deslocar e expulsar os palestinos da região. Nesse contexto, mesmo a ajuda humanitária se confi-gura como contestadora, na medida em que conseguir sobreviver e man-ter-se em suas terras é uma forma de resistência. Na área C, existir é resistir – mas é nas áreas A e B que a ajuda internacional se concentra.

Vale ressaltar, todavia, algumas ex-periências bem-sucedidas e direções que mais países deveriam seguir. Os painéis solares financiados pela Ale-manha ao sul de Hebron são talvez o maior exemplo. Os painéis estão sob ordem de demolição por estarem construídos em área C, o que resultou em algo talvez mais importante do que a energia que eles produziriam: grande debate e alarde público sobre a possibilidade de o governo israelense demolir um projeto alemão. Também a União Europeia começa a falar em construir e investir em área C. O Ita-maraty, por sua vez, argumenta que não pode colocar em risco um orça-mento limitado em obras que possam ser demolidas – por isso limita-se a projetos em áreas A e B. O fato é que garantir estruturas e ações humanitá-rias nessas áreas não desafia a ocupa-ção israelense e acaba por financiar serviços que seriam de responsabi-lidade da Autoridade Palestina e, no limite, de Israel.

Isso porque Israel, enquanto potên-cia ocupante, contraria a IV Conven-

ção de Genebra quando não presta os serviços básicos aos palestinos e em todos os territórios ocupados. Muitos des-ses serviços, especial-mente depois de Oslo, acabam sendo ofereci-dos por ONGs ou pela Autoridade Palestina em cooperação com organismos internacio-nais, nos mais variados campos: educação, saú-de, lazer, transporte etc. O dilema aparente se

daria entre o fato de a ajuda internacio-nal pagar o custo da ocupação ao cum-prir as obrigações a que se nega Israel; e a impossibilida-de de deixar seres humanos sofrendo sem assistência. Nesse cenário, o número de ONGs só cresce.

Outros casos internacionais mos-tram quão falha e problemática é a ação massiva de ONGs em zonas de crise. O Haiti é o exemplo maior. Na Palestina, os tradicionais problemas de dependência, corrupção e explora-ção econômica da desgraça se somam a aspectos particulares da ocupação israelense. “Algumas organizações, antes de empregar palestinos, de-mandam que o candidato à vaga as-sine que não pertence a determinadas organizações ou partidos políticos”, explica Abdul Hakim Sabbah, dire-tor da ONG Project Hope. Diversos doadores internacionais – estados e organizações – requerem nomes e có-pia dos documentos dos empregados interlocutores das ONGs que operam na Palestina, objetivando garantir que não haja ninguém com vínculo políti-co “indesejado”.

Numa dinâmica competitiva aluci-nada, muitas ONGs disputam comu-nidades, financiamentos e se negam a desenvolver projetos realmente eman-cipatórios. O objetivo deveria ser construir uma Palestina livre que não precisasse de internacionais, mas o que se vê é a criação de uma dependên-cia estrutural. Muitos palestinos são incorporados na nascente burocracia desse sistema que substitui o Estado de Israel e a Autoridade Palestina em quase todas as suas obrigações. A falta de responsabilidade coletiva faz com que alguns observem que ajuda inter-nacional não só estaria prolongando a ocupação, mas também configurando estruturalmente uma sociedade e um governo problemáticos para uma fu-tura Palestina livre, seja na solução de um ou dois estados.

1. Yesh Din, dada sheet 12/02/20112. EAPPI, Fact sheet 2012, n13. USA, Congressional Research Service4. USAid.gov5. Os acordos de Oslo dividiram a Cisjordânia entre áreas A (controladas pela Autoridade Palestina), B (controle civil palestino e militar israelense) e C (total controle de Israel).

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Mulheres palestinas não fogem à luta

Ao final dos anos 60 e início dos 70, diversas delas partiram para a ação di-reta, diante da omissão internacional à violação cotidiana de direitos hu-manos e da expansão israelense, que

em 1967 resultará na ocupação por parte dessa potência bélica de toda a Palestina histórica. A mais conheci-da em todo o mundo é Leila Khaled, da Frente Popular pela Libertação da

Palestina. Expulsa de Haifa aos qua-tro anos, tornou-se refugiada e aos 15 começou a se envolver com a luta ar-

A ativista palestina Rana Hamadeh desafiou o exército israelense

Ações diretas

No último dia 1o de maio, a ima-gem de uma mulher que subiu em um tanque israelense em frente à prisão israelense de Ofer, na cidade de Ra-mallah, Cisjordânia, Palestina ocupa-da, ganhou o mundo. A jovem pales-tina que desafiou o exército ocupante, de nome Rana Hamadeh, durante um protesto em solidariedade aos presos políticos palestinos então em greve de fome, chama atenção para a resistên-cia feminina histórica naquelas terras.

As mulheres palestinas nunca fugi-ram à luta. Pelo contrário. Já no final do século XIX, quando se instalaram os primeiros assentamentos sionistas em território palestino, elas estiveram na linha de frente dos protestos contra

a colonização que viria a culminar na criação unilateral do Estado de Israel (em 15 de maio de 1948). Em 1903, período que marca o começo da se-gunda onda de imigração sionista – a primeira se deu a partir de 1882 –, criaram uma associação de mulheres.

Nos anos 1920, sua atuação se forta-leceu e em 1929 aconteceu o primeiro Congresso de Mulheres Árabes naque-le destino, que resultou na formação de organização do gênero. Elas também tiveram papel crucial nas revoltas de 1936 a 1939 contra o mandato britâni-co e a entrega de terras aos sionistas, em que os palestinos foram totalmente desarmados, numa preparação para a limpeza étnica planejada que foi levada

a cabo em 1948. Nesse ano que marca a nakba (catástrofe), uma brigada fe-minina, batizada de Zahrat (pequenas flores), colocou-se, como durante toda a luta, na linha de frente contra a ex-propriação do seu território.

Já diante da consolidação do projeto sionista, em 1965, foi criada a União Geral das Mulheres Palestinas, atrela-da à OLP (Organização para a Liberta-ção da Palestina). No início seu papel ainda era, contudo, limitado, reserva-do à assistência social e aos cuidados com a saúde. Mas a política não foi deixada de lado.

Soraya Misleh

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* Em http://www.guata.com.br/poesiasempre/081126PS_poesia_palestina_de_combate.html, cujos poemas fo-ram extraídos do livro "Poesia Palestina de Combate", publicado em 1981, pela Editora Achiamé, no Rio de Janeiro. Tradução de Jaime Cardoso e José Carlos Gondim.

mada. Então com apenas 24 anos, par-ticipou do sequestro de aviões em tro-ca de prisioneiros políticos e colocou em evidência a causa palestina. Foi detida em uma das ações e saiu após outra operação do gênero. A escritora e ativista egípcia Nawal El Saadawi, em seu livro A face oculta de Eva – As mulheres do mundo árabe, cita outros nomes, como o de Amina Dahbour, de Fatma Barnaw e de Sadis Abou Gha-zala. “A extensa lista de mártires ser-viria para encher as páginas de todo um capítulo”, frisa. E conclui: Seus “feitos intrépidos um dia serão admi-rados pelas futuras gerações de jovens e mulheres”. Nesse período, conquis-taram mais espaço na política, forta-lecendo sua luta contra o apartheid israelense e o sexismo.

Nas intifadas (levantes) de 1987 e 2002, novamente as mulheres foram às ruas. Na primeira delas, as que vi-viam nas áreas rurais assumiram papel central, mas as que residiam na região urbana também marcaram presença. Para se ter uma ideia, um terço das baixas era da parcela feminina. Se-gundo escreveu o historiador israelen-se Ilan Pappe em História da Palesti-na moderna, a luta era dupla, contra os padrões da sociedade patriarcal e a ocupação. O número de mulheres de-tidas passou de centenas no início da década de 70 para milhares nos anos 80. Após a última troca de prisionei-ros, em 2011, restam ainda nove nos cárceres israelenses, as quais têm se somado aos protestos constantes con-tra as más condições a que são subme-tidas, assim como todos os palestinos detidos ilegalmente pelas forças de ocupação.

Ao longo de toda essa trajetória, as mulheres se destacaram também em outras trincheiras de luta, como no campo das palavras. No âmbito cultu-ral, entre as que merecem ser lembra-das encontra-se Fadwa Touqan, que nasceu em 1917 na cidade de Nablus, na Cisjordânia, e faleceu em 2003. Nas palavras de Moshe Dayan, chefe do exército israelense quando da cha-mada Guerra dos Seis Dias, em 1967, seus versos eram mais subversivos que dez atentados.

As mulheres são as que mais sofrem em situações de emergência huma-nitária ou conflitos armados ou, por-

tanto, frente à ocupação de territórios palestinos. É o que aponta relatório di-vulgado pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 2010.

Os dados são alarmantes: durante a última ofensiva à Gaza, ao final de 2008 e início de 2009, 114 foram as-sassinadas; 40% não puderam fazer o pré ou pós-natal; e quatro foram mor-tas em função do bloqueio naqueles anos, por terem sido proibidas de cir-cular para obter tratamentos especia-lizados, medicamentos ou serviços de saúde adequados.

Na Cisjordânia, a situação é igual-mente grave. Dados de 2007 indicam que cerca de 70 mulheres deram à luz em checkpoints, impedidas de passar para ter seus filhos com dignidade nas maternidades, sendo que seis de-las sofreram violência, apesar de em trabalho de parto. Trinta e cinco bebês morreram e cinco mães.

Mas não se intimidam. Representan-do quase metade da população total de 3,9 milhões nos territórios palestinos ocupados em 1967 (1,8 milhão), estão reunidas em diversas organizações, por educação, saúde, trabalho, contra a ocupação e o sexismo. Ali, assim como nos campos de refugiados, em que são milhares, na diáspora ou onde hoje é Israel, sempre se fizeram e fa-zem ouvir e notar, desafiando o proje-to sionista.

Em recente visita à Palestina, a constatação de que a voz feminina é decisiva: “Antes saíamos de nossa

terra, porque achávamos que voltaría-mos em breve. Hoje podem destruir nossas casas, roubar nossas oliveiras, nos agredir, não vamos embora. Nem que tivermos que morar numa tenda, aqui é nossa terra.” Sentimento que expressou tão bem Fadwa Tuqan, no poema cujo título em português seria “Basta-me permanecer em seu seio”*:

Basta-me morrer em meu paísaí ser enterradadissolver-me e aí reduzir-me a nadaressuscitar erva em sua terraressuscitar florque uma criança crescida em meu país arrancarábasta-me estar no seio de minha pátria.terra........erva.....................flor

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O Brasil e as bombas ClusterAs razões pelas quais não ratificamos o acordo que proíbe o uso de um armamento

que causa graves danos a civis em conflitos armados

Sâmia Gabriela Teixeira

Berihu Mesele (foto) é um soldado reformado da Etiópia. Ele é do norte do país, da cidade de Mekele, é casa-do e tem dois filhos. Tem uma dura lembrança de 1998, da guerra entre Eritréia e Etiópia, conflito movido por questões territoriais.

Nesse ano, no dia 5 de maio, por volta das três horas da tarde, a Escola Primária Ayder foi alvo de um avião de combate que despejou munições Cluster, bombardeando o estabeleci-mento civil.

Ao ouvir as explosões, Berihu cor-reu para a escola com a intenção de socorrer os feridos. Com ele, uma multidão também seguia na mesma

direção, todos preocupados com as crianças, filhos, sobrinhos, netos. Já haviam se passado 30 minutos quan-do um novo avião sobrevoou o local e bombardeou novamente a escola. Berihu foi atingido por uma munição Cluster e perdeu a consciência.

Acordou após dois dias no hospital e logo soube que os ferimentos cau-sados pela bomba eram muito graves, sendo necessário o amputamento de suas pernas. Hoje, o etíope Berihu é cadeirante, trabalha como funcionário do governo e ajuda a divulgar a his-tória de vítimas das bombas Cluster, reivindicando o banimento desse tipo de arma de guerra.

Esforços humanitários e indústria bélica brasileiraEm 30 de maio de 2008 ocorreu em

Dublin a Convenção sobre Armas de Fragmentação, que proíbe os países que ratificarem o tratado de usar mu-nições Cluster, desenvolver, produzir, estocar, reter e transferir, direta ou in-diretamente, a bomba.

Além de tais condições, os países que ratificaram a convenção devem prestar suporte às vítimas e regiões de risco que ainda possuem bombas do gênero intactas. O Brasil se posicio-nou como observador na convenção e não ratificou o tratado.

Desse grupo de países na Conven-ção, 13 não ratificaram a proibição do uso da Cluster. Apesar do Brasil não ser um país com histórico de guerras, o impacto de sua produção de muni-ções do tipo se relaciona diretamente com países envolvidos em conflitos nos quais foram e são utilizadas as bombas.

Essa relação pode ser notada nos ne-gócios entre Israel e Brasil. Em setem-bro de 2011, a Embraer Defesa e Se-gurança anunciou a aquisição de 25% da AEL Sistemas, subsidiária da Elbit Systems, a maior empresa bélica pri-vada de produtos de defesa de Israel.

Além da participação com a AEL Sistemas, a Embraer formalizou com a subsidiária a criação de uma nova empresa, a Harpia Systems, que pre-

vê disputar um mercado potencial de 1 bilhão de dólares nos próximos 15 anos. Essa nova empresa terá estrutu-ra própria em Brasília e a intenção é de que se estabeleça uma fábrica para engenharia e produção.

Além dessas empresas, de acordo com a ONG Human Rights Watch, outras companhias têm destaque no mercado da indústria bélica brasileira e não somente fabricam essas armas de munição fragmentada como também exportam para outros países, princi-palmente do Oriente Médio. Dentre as empresas citadas estão a Avibras, Tar-

get e Ares, outra companhia comprada pela Elbit Systems no final de 2010.

Uma das principais atividades da empresa israelense no Brasil é de-senvolver a tecnologia de aviões de combate não tripulados, modelos uti-lizados no período de 2008 e 2009 na Faixa de Gaza e que tiveram a precisão de bombardeio fragilizada por uma pesquisa da Organização de Direitos Humanos Btselem, que constatou que 42 ataques por aviões desse tipo mata-ram 87 civis na região.

Para o historiador e especialista em teoria militar Douglas Anfra, há

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“Desenvolvimento necessário”Ratificar a convenção para banir as

bombas Cluster, na visão de alguns especialistas, significa uma perigosa desestabilização econômica no campo da indústria bélica, o que afeta o posi-cionamento político do país.

Para Rafael Duarte, professor de Re-lações Internacionais do UDF (Centro Universitário do Distrito Federal), “o Brasil não ratificou por ter interesses comerciais, como contratos firmados ou em vias de confirmação, e também políticos”.

Outro ponto significativo para ele é que “Rússia, China, Argentina, Esta-dos Unidos, Arábia Saudita e Israel, entre muitos outros, nem chegaram a assinar o tratado, e apesar de a União Europeia quase que totalmente ter ra-tificado, por ser uma potência regio-nal, tornou-se necessário que o Brasil fosse um pouco mais pragmático em termos de Defesa Nacional e produ-ção bélica”.

Como um contraponto, ao analisar todos os possíveis fatores para a não ratificação, Douglas defende que o ba-nimento das bombas Cluster não teria força o suficiente para prejudicar os negócios da indústria bélica brasileira nem mesmo o desenvolvimento ar-mamentista, “pois a tecnologia desse tipo de arma já é considerada obsoleta perto das inovações de ponta das cha-madas guerras eletrônicas”.

Uma fonte do Itamaraty, do gabine-te do ministro de Relações Exterio-res, reforça essa lógica ao dizer que “qualquer esforço para eliminar um tipo de armamento não seria capaz de enfraquecer a economia no âmbito industrial de armamento, pois nessa

posição basta redirecionar os investi-mentos para outros tipos de armas e tecnologias”.

Para Gabriel Amaral, cientista po-lítico e consultor do IBE (Instituto Brasil Empresarial), “a ratificação por parte do Brasil só seria viável com o desenvolvimento de uma compensa-ção para essa indústria, para que nem a soberania, nem o desenvolvimento de pesquisa e diminuição da arreca-dação tributária venha a prejudicar os interesses nacionais”.

Para isso, já há uma cooperação por parte do governo, que desde 2011 ado-tou uma medida provisória que bene-ficia a indústria bélica com reduções ou isenções de tributos por cinco anos, dentre eles o IPI (Imposto sobre Pro-dutos Industrializados) e o PIS (Pro-grama de Integração Social).

Gustavo Vieira, especialista em Di-reito Internacional e coordenador da

Campanha Brasileira Contra Minas Terrestres e Bombas Cluster, acom-panhou as negociações do Tratado de Oslo e dialogou diretamente com o Itamaraty, sem obter resultados. “A pior consequência disso é que o Brasil dessa maneira apoia uma posição da comunidade internacional em favor de uma arma que sabidamente causa danos inaceitáveis a civis.”

De acordo com Gustavo, a posição do país viola os limites fixados pelo Direito Internacional Humanitário. “Por não permitir distinção dos alvos pela imprecisão – que pode ser fruto da altitude, vento, inclinação do solo, forma de armazenamento que alteram a condição do uso – e pelas falhas que geram efeitos de longo prazo – falhas de explosão que facilmente chegam a 30% das munições empregadas – essa é uma arma de efeitos desproporcio-nais”, explica.

A soberania do EstadoOutro ponto analisado é o fato de

que o desenvolvimento bélico de qualquer país é de suma importância para afirmar a sua soberania, e que esse crescimento favorece a situação econômica consideravelmente. “O Brasil é um dos países com menor taxa de pesquisa e desenvolvimento do mundo e qualquer medida que pos-sibilite restrição a essa indústria pode reduzir ainda mais esse índice que já é

insuficiente. Nós estamos atrás de to-dos os outros países do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), ocupando a 47ª posição de 132 países no ranking mundial de inovação”, diz Gabriel. Porém, considerando que o Chile está em colocação avançada e é um país que ratificou a convenção, o banimento de tais armas parece, de fato, não intervir no desenvolvimento bélico do país.

Segundo o consultor jurídico do CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha), Gabriel Valladares, a so-berania é respaldada pelo fato de os países não signatários ou os que não

um jogo político e econômico que não respeita questões humanitárias, uma vez que “a indústria bélica é

um lobby extremamente poderoso, ca-paz de pressionar governos, financiar campanhas e, na pior das ações, saciar

a necessidade de girar capital com o ‘destruir e reconstruir’ que guerras proporcionam”.

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A luta pelo banimentoNo ataque ocorrido na Etiópia,

além de Berihu, 53 pessoas foram mortas e 185 feridas. E esse caso não é isolado. As bombas Cluster agrupam munições explosivas capa-zes de atingir uma superfície exten-sa de até 30 mil metros quadrados e espalhar mais de 600 munições a cada míssil.

A maioria das bombas cai sem uma direção precisa, mas, apesar disso, muitos militares defendem a importância do uso por permitir atacar múltiplos objetivos de uma superfície, como tanques, veículos blindados e tropas.

A experiência diz que a Cluster

cumpre bem seu papel militar, mas também pode-se incluir na conta dos “múltiplos objetivos” a vida de civis inocentes e até crianças e seus familiares localizados em uma escola. O perigo ainda ultrapassa os períodos de conflitos ou guerras, pois uma bomba Cluster, quando disparada, pode se manter intacta no solo até que sofra manejo brusco ou queda. Uma criança de 20 quilos é capaz de explodir essa munição, o que a torna tão perigosa quanto as minas terrestres.

Há 23 países que têm registro de vítimas por explosões de bombas Cluster. São eles: Afeganistão, Al-

bânia, Azerbaijão, Bósnia-Herzego-vina, Camboja, Chad, Croácia, Eri-tréia, Etiópia, Iraque, Israel, Kosovo, Kuwait, Laos, Líbano, Montenegro, Marrocos, Rússia, Serra Leoa, Su-dão, Síria, Tadjiquistão e Vietnã.

*A história do etíope Berihu faz parte dos relatos divulgados pela Organização Internacional Não Governa-mental Ban Advocates, que apoia vítimas de bombas Cluster e minas terrestres e defende o banimento de tais armas seja em produção, exportação ou armazenamento. Para conhecer o trabalho da organização, acesse o site:www.handicapinternational.be/em

ratificaram a convenção “não serem obrigados a apresentar justificativas para negar o tratado, por conservar, dessa maneira, a soberania de Estado”. Essa condição conflita com o perfil político do Brasil que, comentado por Douglas, “ainda carrega característi-cas da ditadura militar, por ser um dos países em que, no momento de tran-sição política para a democracia, não prendeu militares responsáveis por mortes injustificáveis e não reformou o exército como um todo”, deixando assim os interesses políticos, valida-

dos pela necessidade dessa soberania, um tanto duvidosos.

No caso da guerra entre Eritréia e Etiópia, especificamente, do bombar-deio à Escola Primária Ayder, Berihu foi apenas uma das centenas de víti-mas sobreviventes. Conforme as in-formações da instituição Land Mine and Cluster Munition Monitor (Mo-nitor de Minas Terrestres e Munições Cluster), em outubro de 2010, a Eri-tréia negou fabricar munições Cluster e justificou a existência dos artefatos utilizados como material de herança

da luta pela independência: bombas Cluster CB-500. A arma é de origem chilena, país com histórico e perfil militar semelhante ao do Brasil, que nas décadas de 80 e 90 teve elevado lucro com a produção e exportação de Cluster, enviadas principalmente para a Etiópia e Iraque. Com a ratificação feita em agosto de 2011, o país deve seguir as normas da convenção e evi-tar os danos e perigos que ainda exis-tem nos destinos para os quais expor-tou a arma, e que matam e ferem até hoje civis comuns, como Berihu.

Soldados e armas israelenses derramam sangue do povo

palestino. O Brasil não deveria legitimar esse massacre.

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* Entrevista publicada originalmente no site www.icarabe.org – ICArabe (Instituto da Cultura Árabe)

Abder Raouf: Dia 8 de junho de 1956. Foram 14 dias de viagem de navio, desembarcamos em Santos, era bem cedo, 8h, 8h30. Encontrei com meus irmãos no mesmo dia, Hasan e Muhamad, que ficou três anos no Bra-sil, ele tinha sete filhos lá na Palestina, juntou 5, 6 mil dólares e voltou para criá-los. Na situação que eles viviam

não tinha como mandar estudar e não tem um deles que não tem diploma universitário. Estudaram através de bolsa de estudos. Hoje, o povo mais culto do Oriente Mé-dio é o palestino, não existe anal-fabeto desde 1956, e não tem onde cair morto, mais de 4,5 milhões vi-vem em campos de refugiados.

Saudades da terra natal

Palestino de Qaqun, uma pequena aldeia de 2 mil ha-bitantes que ficava a 8km do mar, Abder Raouf Ibrahim Yusuf Misleh ainda tem memórias da sua curta vida na Palestina e do dia 15 de maio de 1948, o dia da nakba (ca-tástrofe). Desde 1956 não vê mais sua terra. Aos 77 anos, sofre os sentimentos de nostalgia e impotência de um refu-giado na diáspora. Hoje, Qaqun não existe mais e integra o

rol das cidades inteiramente destruídas pelos sionistas em 1948, ano da criação do Estado de Israel. Em seu lugar, um parque em meio a paisagem tipicamente europeia.

Aqui, um relato de olhos que testemunharam a expulsão e pés que percorreram o caminho dessa tragédia. De sua vida em São Paulo, parece ainda enxergar e andar sobre as ruínas de sua Qaqun.

Arturo Hartmann e Soraya Misleh*

Como era a vida na sua terra?Abder Raouf: Em 1945 eu tinha dez anos, meu pai era agricultor e ar-rendava terra, tinha 200 hectares em que era cultivado o trigo. Meu pai an-dava a cavalo no meio daquele trigo e ficava cantando, de tão bonita que era a plantação, o trigo era mais alto do que ele, chegava a 1,90m. Uma noite eu dormi no meio daquela plantação.

Era lua cheia, meu pai falou para mim: “Filho, você é pequeno, vai dormir.” Era meia-noite, porque durante o dia era muito calor, então trabalhava-se a noite inteira. Eu peguei o sapato, pus no chão, pus um lenço embaixo da mi-nha cabeça, um maço de trigo sob meu corpo e dormi. Aquela noite eu não trocava por nada nesse mundo, senti

um prazer que não tem limite. Não existiam nas aldeias convites para ca-samento, todo mundo participava. Era assim, vivendo em paz, com carinho. A gente tinha ligações com colonos judeus que viviam pertinho da aldeia, a gente vivia muito bem com eles, o problema foi o sionismo. Mas esses judeus apoiaram de maneira violenta.

O senhor lembra o dia exato em que as tropas de Israel chegaram a sua aldeia?Abder Raouf: Foi em 14 de maio de 1948. A Palestina tem 28 mil km2, um terço é deserto, outro é montanha e outro é terra plana, eu nasci na ter-ra plana. Até que fizeram uma divisão da Palestina em 1947 e o cemitério da aldeia faria parte do futuro Esta-do de Israel. Meu pai falava: “Não é possível, a gente tem parente enterra-do, não pode nem visitar mais?” Em 1948, os líderes árabes venderam a Palestina. Tanques do exército ira-quiano estavam na minha aldeia e o coronel, que estava com 35 soldados, telefonou para os comandantes ingle-

ses, que mandaram eles recuarem. Esse coronel era um patriota, estavam também 300 a 400 soldados palesti-nos da minha aldeia, eles não tinham treinamento, os iraquianos tinham. Ele falou: “Nós não vamos obedecer à ordem e vamos defender a aldeia até a morte.” O comando-geral ficava a menos de 3km de distância e deixou todos os iraquianos e os soldados da minha aldeia morrerem. A nossa casa foi invadida e perdemos tudo, a gen-te não tinha nem o que comer. Fomos para a casa dos meus tios, que era bem simples, nas montanhas, na Cisjordâ-

nia, e ficamos mais ou menos quatro meses. Para sobreviver, porque até os animais que meu pai tinha foram mortos, perto da fronteira, tinha uma área lá em que estava plantado milho branco, de noite parávamos o cami-nhão em uma vala e conseguimos tirar cinco caminhões, os vizinhos fizeram o mesmo. Daí, as metralhadoras co-meçaram a cantar. Meu pai, que tinha 12 filhos, falou: “Vamos dividir entre todos.” Cada irmão ficou com dez sa-cos de 50kg, com aquilo, que hoje não corresponde a mais do que 100 reais, nós recomeçamos a vida.

O senhor veio para o Brasil quando?

Abder Raouf: A gente tem que es-perar, 100 anos, 200 anos, até aparecer uma força superior a Israel e recuperar

a nossa terra. O império americano não vai durar a vida inteira, todo império um dia tem fim.

Qual a sua expectativa em relação à Palestina?

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Pequeno tributo a Edward Said

Edward W. Said (foto) nasceu em Jerusalém, em 1935, de uma família abastada. Tal qual a maioria do povo palestino, ele e sua família vivencia-ram a expulsão de sua terra natal por ocasião da formação do Estado de Is-rael em 1948.

Em 1951, foi estudar nos Estados Unidos. O êxito obtido lhe valeu a admissão nas prestigiosas universida-des de Princeton e Harvard, nas quais cursou graduação e pós-graduação em estudos literários.

Dois eventos o levaram a trilhar o ca-minho de ativista da causa palestina, da qual ele se tornaria o mais conhecido e eloquente defensor no mundo ocidental.

O primeiro foi o assassinato brutal de Farid Haddad, um amigo de sua família, executado pelas forças de segurança de Gamal Abdel Nasser por sua militância no Partido Comunista Egípcio. Em sua autobiografia Out of Place, escrita em 1993, ele afirma: “A vida e a morte de Farid foram uma inspiração por quatro décadas, nem todas períodos de cons-ciência ou de ativismo político.” Pos-teriormente, Said dedicou sua obra A questão palestina a Farid Haddad e ao poeta palestino Rashid Hussein.

O segundo acontecimento foi a der-rota na guerra árabe-israelense de 1967, que colocou uma sombra na esperança de retorno à Palestina. A guerra de 1967 “parecia materializar o deslocamento que permeava todas as outras perdas... Eu não era mais a mesma pessoa após 1967”, escreveu em Out of Place. Nes-se momento, em 1968, Said concebe o tema central de sua mais influen-te obra: Orientalismo, redigindo The Arab Portrayed, na qual critica o trata-mento discriminatório dado aos árabes pela mídia e pela produção cultural e intelectual ocidental.

A partir daí, escreveu inúmeros ar-tigos para diversas publicações, como o The New York Times e o Le Monde

Diplomatique, sempre na condição de intelectual engajado na causa palestina. Em 1975, ele testemunhou ante uma comissão do Congresso estadunidense sobre relações internacionais: “Imagi-nem que, por uma maliciosa ironia, vo-cês fossem declarados estrangeiros em seu próprio país. Essa é a essência da sina palestina durante o século XX.”

Entre 1975 e 1976, Said concluiu sua obra mais conhecida e um dos estudos contemporâneos mais influentes na área de humanidades: Orientalismo. Nessa obra, disseca a forma como o Oriente é representado e inventado, em contrapo-sição a um Ocidente “civilizado”, com o objetivo de controlar e manipular o que se considera explicitamente diferente.

Em 1977, Said é eleito para o Con-selho Nacional Palestino sem aliar-se a quaisquer facções palestinas. Ele en-tendia sua participação como “um ato de solidariedade” que lhe permitiria atuar em prol da causa palestina.

Em 1979, publicou A questão pales-tina, uma denúncia contundente contra o colonialismo brutal imposto à Pales-tina e seu povo. As dificuldades para sua publicação ilustram a controvérsia sobre a Palestina. Editoras estaduni-denses rejeitavam a obra por achá-la demasiado provocativa. Uma editora libanesa se propôs a publicá-la em ára-be, desde que Said retirasse as críticas à Síria e à Arábia Saudita, condições que ele não aceitou. Já entre os palestinos, havia outra controvérsia: a defesa da solução de dois estados em oposição à então política da OLP (Organização para a Libertação da Palestina) de uma Palestina laica e democrática em todo o seu território histórico.

Said não se omitiu de debates difíceis. Denunciou a manipulação “orientalis-ta” da mídia estadunidense quando da tomada da embaixada daquele país em Teerã por estudantes revolucionários e criticou o apoio incondicional a Israel durante a invasão do Líbano em 1982. Em 1984-1986, organizou uma expo-sição de fotos sobre o dia a dia dos pa-lestinos através da ONU (Organização das Nações Unidas), a qual, contudo, recusou-se a realizá-la se os letreiros re-digidos por Said fossem mantidos, por entender que despertavam polêmica.

Durante a Guerra do Golfo, em 1991, o autor de Orientalismo criticou

a omissão da maioria da intelectuali-dade estadunidense quanto aos abusos de seu governo.

Em setembro do mesmo ano, Said renunciou ao Conselho Nacional Pa-lestino alegando leucemia. Mas outro motivo para seu desligamento era seu descontentamento com o apoio dado pela OLP a Saddam Hussein.

Em 1993, ele denunciou os acordos de Oslo, firmados entre a OLP e o Es-tado de Israel. Afirmou que “longe de garantir os direitos palestinos, os acor-dos asseguram o prolongamento do controle israelense sobre os territórios ocupados”. “Clinton, como um impe-rador romano, traz dois reis vassalos para sua corte imperial e os faz dar as mãos na sua frente.” Said defendeu a renúncia de Arafat, ao que Arafat res-pondeu com a proibição de circulação de seus livros e escritos.

Em 1999, Said mudou de posição sobre a política de dois estados e publi-cou no New York Times Magazine um artigo defendendo um estado democrá-tico binacional na Palestina, baseado na igualdade entre todos. Ele faleceu em 2003, em decorrência de leucemia.

Publicou 20 obras, algumas delas em 31 línguas, e deu palestras em mais de 200 universidades em todo o mundo. Foi membro da Academia Americana de Arte e Ciências e da Sociedade Real de Literatura. Afora sua atuação na defesa da causa palestina, foi um dos principais intelectuais do pós-guerra, sendo referência obrigatória em estu-dos pós-coloniais.

Não poderíamos deixar de escrever esse pequeno tributo ao maior porta--voz da causa palestina no chamado Ocidente. Sua defesa incondicional dos direitos do povo palestino, sua denún-cia implacável do imperialismo e do sionismo, sua posição de independên-cia perante os governos árabes corrup-tos e mesmo com relação a Arafat são qualidades de um grande intelectual que, ao contrário de muitos, pautou-se pelo ativismo engajado por uma causa difícil, porém justa. Sua atuação é um exemplo prático do que preconizava Karl Marx: “Os filósofos limitaram--se a interpretar o mundo de diversas maneiras. A questão, no entanto, é transformá-lo.” Fica aqui essa modesta homenagem a um grande lutador.

Fábio Bosco