Água Viva - Clarice Lispector

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MARTINS PENA

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Obs.: ntegra da obra retirada do endereo www.esnips.com

gua Viva

Clarice Lispector

Tinha que existir uma pintura totalmente

livre da dependncia da figura - o objeto - que,

como a msica, no ilustra coisa

alguma, no conta uma histria e no lana

um mito. Tal pintura contenta-se em evocar

os reinos incomunicveis do esprito,

onde o sonho se torna pensamento, onde o

trao se torna existncia.

Michel Seuphor

E com uma alegria to profunda. uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano da dor de separao mas grito de felicidade diablica. Porque ningum me prende mais. Continuo com capacidade de raciocnio - j estudei matemtica que a loucura do raciocnio -quero me alimentar diretamente da placenta. Tenho um pouco de medo: medo ainda de me entregar pois o prximo instante o desconhecido. O prximo instante feito por mim? Fazemo-lo juntos com a respirao. E com uma desenvoltura de toureiro na arena.

Eu te digo: estou tentando captar a quarta dimenso do instante-j que de to fugidio no mais porque agora tornou-se um novo instante-j que tambm no mais. Cada coisa tem um instante em que ela . Quero apossar-me do da coisa. Esses instantes que decorrem no ar que respiro: em fogos de artifcio eles espocam mudos no espao. Quero possuir os tomos do tempo. E quero capturar o presente que pela sua prpria natureza me interdito: o presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no j. S no ato do amor - pela lmpida abstrao de estrela do que se sentecapta-se a incgnita do instante que duramente cristalina e vibrante no ar e a vida esse instante incontvel, maior que o acontecimento em si: no amor o instante de impessoal jia refulge no ar, glria estranha de corpo, matria sensibilizada pelo arrepio dos instantes - e o que se sente ao mesmo tempo que imaterial to objetivo que acontece como fora do corpo, faiscante no alto, alegria, alegria matria de tempo e por excelncia o instante. E no instante est o dele mesmo. Quero captar o meu . E canto aleluia para o ar assim como faz o pssaro. E meu canto de ningum. Mas no h paixo sofrida em dor e amor a que no se siga uma aleluia.

Meu tema o instante? meu tema de vida. Procuro estar a par dele, divido-me milhares de vezes em tantas vezes quanto os instantes que decorrem, fragmentria que sou e precrios os momentos - s me comprometo com vida que nasa com o tempo e com ele cresa: s no tempo h espao para mim.

Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti abstrato como o instante. tambm com o corpo todo que pinto os meus quadros e na tela fixo o incorpreo, eu corpo-a-corpo comigo mesma. No se compreende msica: ouve-se. Ouve-me ento com teu corpo inteiro. Quando vieres a me ler perguntars por que no me restrinjo pintura e s minhas exposies, j que escrevo tosco e sem ordem. que agora sinto necessidade de palavras - e novo para mim o que escrevo porque minha verdadeira palavra foi at agora intocada. A palavra a minha quarta dimenso.

Hoje acabei a tela de que te falei: linhas redondas que se interpenetram em traos finos e negros, e tu, que tens o hbito de querer saber por qu - e porque no me interessa, a causa matria de passado - perguntars por que os traos negros e finos? por causa do mesmo segredo que me faz escrever agora como se fosse a ti, escrevo redondo, enovelado e tpido, mas s vezes frgido como os instantes frescos, gua do riacho que treme sempre por si mesma. O que pintei nessa tela passvel de ser fraseado em palavras? Tanto quanto possa ser implcita a palavra muda no som musical.

Vejo que nunca te disse como escuro msica - apio de leve a mo na eletrola e a mo vibra espraiando ondas pelo corpo todo: assim ouo a eletricidade da vibrao. Substrato ltimo no domnio da realidade, e o mundo treme nas minhas mos.

E eis que percebo que quero para mim o substrato vibrante da palavra repetida em canto gregoriano. Estou consciente de que tudo que sei no posso dizer, s sei pintando ou pronunciando, slabas cegas de sentido. E se tenho aqui que usar-te palavras, elas tm que fazer um sentido quase que s corpreo, estou em luta com a vibrao ltima. Para te dizer o meu substrato fao uma frase de palavras feitas apenas dos instantes-j. L ento o meu invento de pura vibrao sem significado seno o de cada esfuziante slaba, l o que agora se segue: "com o correr dos sculos perdi o segredo do Egito, quando eu me movia em longitude, latitude e altitude com ao energtica dos eltrons, prtons, nutrons, no fascnio que a palavra e sua sombra". Isso que te escrevi um desenho eletrnico e no tem passado ou futuro: simplesmente j.

Tambm tenho que te escrever porque tua seara a das palavras discursivas e no o direto de minha pintura. Sei que so primrias as minhas frases, escrevo com amor demais por elas e esse amor supre as faltas, mas amor demais prejudica os trabalhos. Este no um livro porque no assim que se escreve. O que escrevo um s clmax? Meus dias so um s clmax: vivo beira.

Ao escrever no posso fabricar como na pintura, quando fabrico artesanalmente uma cor. Mas estou tentando escrever-te com o corpo todo, enviando uma seta que se finca no ponto tenro e nevrlgico da palavra. Meu corpo incgnito te diz: dinossauros, ictiossauros e plessiossauros, com sentido apenas auditivo, sem que por isso se tornem palha seca, e sim mida. No pinto idias, pinto o mais inatingvel "para sempre". Ou "para nunca", o mesmo. Antes de mais nada, pinto pintura. E antes de mais nada te escrevo dura escritura. Quero como poder pegar com a mo a palavra. A palavra objeto? E aos instantes eu lhes tiro o sumo da fruta. Tenho que me destituir para alcanar cerne e semente de vida. O instante semente viva.

A harmonia secreta da desarmonia: quero no o que est feito mas o que tortuosamente ainda se faz. Minhas desequilibradas palavras so o luxo de meu silncio. Escrevo por acrobticas e areas piruetas - escrevo por profundamente querer falar. Embora escrever s esteja me dando a grande medida do silncio.

E se eu digo "eu" porque no ouso dizer "tu", ou "ns" ou "uma pessoa", sou obrigada humildade de me personalizar me apequenando mas sou o s-tu.

Sim, quero a palavra ltima que tambm to primeira que j se confunde com a parte intangvel do real. ainda tenho medo de me afastar da lgica porque caio no instintivo e no direto, e no futuro: a inveno do hoje o meu nico meio de instaurar o futuro. Desde j futuro, e qualquer hora hora marcada. Que mal porm tem eu me afastar da lgica? Estou lidando com a matria-prima. Estou atrs do que fica atrs do pensamento. Intil querer me classificar: eu simplesmente escapulo no deixando, gnero no me pega mais. Estou em um estado muito novo e verdadeiro, curioso de si mesmo, to atraente e pessoal a ponto de no poder pint-lo ou escrev-lo. Parece com momentos que tive contigo, quando te amava, alm dos quais no pude ir pois fui ao fundo dos momentos. um estado de contato com a energia circundante e estremeo. Uma espcie de doida, doida harmonia. Sei que p meu olhar deve ser o de uma pessoa primitiva que se entrega toda ao mundo, primitiva como os deuses que s admitem vastamente o bem e o mal e no querem conhecer o bem enovelado como em cabelos no mal, mal que o bom.

Fixo instantes sbitos que trazem em si a prpria morte e outros nascem - fixo os instantes de metamorfose e de terrvel beleza a sua seqncia e concomitncia.

Agora est amanhecendo e a aurora de neblina branca nas areias da praia. Tudo meu, ento. Mal toco em alimentos, no quero me despertar para alm do despertar do dia. Vou crescendo com o dia que ao crescer me mata certa vaga esperana e me obriga a olhar cara a cara o duro sol. A ventania sopra e desarruma os meus papis. Ouo esse vento de gritos, estertor de pssaro aberto em oblquo vo. E eu aqui me obrigo severidade de uma linguagem tensa, obrigo-me nudez de um esqueleto branco que est livre de humores. Mas o esqueleto livre de vida e enquanto vivo me estremeo toda. No conseguirei a nudez final. E ainda no a quero, ao que parece.

Esta a vida vista pela vida. Posso no ter sentido mas a mesma falta de sentido que tem a veia que pulsa.

Quero escrever-te como quem aprende. Fotografo cada instante, aprofundo as palavras como se pintasse, mais do que um objeto, a sua sombra. No quero perguntar por qu, pode-se perguntar sempre por que e sempre continuar sem resposta: ser que consigo me entregar ao expectante silncio que se segue a uma pergunta sem resposta? Embora adivinhe que em algum lugar ou em algum tempo existe a grande resposta para mim.

E depois saberei como pintar e escrever, depois da estranha mas ntima resposta. Ouve-me, ouve o silncio. O que eu te falo nunca o que te falo e sim outra coisa. Capta essa coisa que me escapa e no entanto vivo dela e estou tona de brilhante escurido. Um instante me leva insensivelmente a outro e o tema atemtico vai se desenrolando sem plano mas geomtrico como as figuras sucessivas em um caleidoscpio.

Entro lentamente na minha ddiva a mim mesma, esplendor dilacerado pelo cantar ltimo que parece ser o primeiro. Entro lentamente na escritura assim como j entrei na pintura. um mundo emaranhado de cips, slabas, madressilvas, cores e palavras - limiar de entrada de ancestral caverna que o tero do mundo e dele vou nascer.

E se muitas vezes pinto grutas que elas so o meu mergulho na terra, escuras mas nimbadas de claridade, e eu, sangue da natureza - grutas extravagantes e perigosas, talism da Terra, onde se unem estalactites, fsseis e pedras, e onde os bichos que so doidos pela sua prpria natureza malfica procuram refgio. As grutas so o meu inferno. Gruta sempre sonhadora com suas nvoas, lembrana ou saudade? espantosa, espantosa, esotrica, esverdeada pelo limo do tempo. Dentro da caverna obscura tremeluzem pendurados os ratos com asas em forma de cruz dos morcegos. Vejo aranhas penugentas e negras. Ratos e ratazanas correm espantados pelo cho e pelas paredes. Entre as pedras o escorpio. Caranguejos, iguais a eles mesmos desde a pr-histria, atravs de mortes e nascimentos, pareceriam bestas ameaadores se fossem do tamanho de um homem. Baratas velhas se arrastam na penumbra. E tudo isso sou eu. Tudo pesado de sonho quando pinto uma gruta ou te escrevo sobre ela - de fora dela vem o tropel de dezenas de cavalos soltos a patearem com cascos secos as trevas, e do atrito dos cascos o jbilo se libera em centelhas: eis-me, eu e a gruta, no tempo que nos apodrecer.

Quero pr em palavras mas sem nenhuma descrio a existncia da gruta que faz algum tempo pintei - e no sei como. S repetindo o seu doce horror, caverna de terror e das maravilhas, lugar de almas aflitas, inverno e inferno, substrato imprevisvel do mal que est dentro de uma terra que no frtil.

Chamo a gruta pelo seu nome e ela passa a viver com seu miasma. Tenho medo ento de mim que sei pintar o horror, eu, bicho de cavernas ecoantes que sou, e sufoco porque sou palavra e tambm o seu eco.

Mas o instante-j um pirilampo que acende e apaga. O presente o instante em que a roda do automvel em alta velocidade toca minimamente no cho. E a parte da roda que ainda no tocou, tocar em um imediato que absorve o instante presente e torna-o passado. Eu, viva e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago, acendo e apago, acendo e apago. S que aquilo que capto em mim tem, quando est sendo agora transposto em escrita, o desespero das palavras ocuparem mais instantes que um relance de olhar. Mais que um instante, quero seu fluxo.

Nova era, esta minha, e ela me anuncia para j. Tenho coragem? Por enquanto estou tendo: porque venho do sofrido longe, venho do inferno de amor mas agora estou livre de ti. Venho do longe - de uma pesada ancestralidade. Eu que venho da dor de viver. E no a quero mais. Quero a vibrao do alegre. Quero a iseno de Mozart. Mas quero tambm a inconseqncia. Liberdade? o meu ltimo refgio, forcei-me liberdade e agento-a no como um dom mas com herosmo: sou heroicamente livre. E quero o fluxo.

No confortvel o que te escrevo. No fao confidncias. Antes me metalizo. E no te sou e me sou confortvel; minha palavra estala no espao do dia. O que sabers de mim a sombra da flecha que se fincou no alvo. S pegarei inutilmente uma sombra que no ocupa lugar no espao, e o que apenas importa o dardo. Construo algo isento de mim e de ti - eis a minha liberdade que leva morte.

Neste instante-j estou envolvida por um vagueante desejo difuso de maravilhamento e milhares de reflexos do sol na gua que corre da bica na relva de um jardim todo maduro de perfumes, jardim e sombras que invento j e agora e que so o meio concreto de falar neste meu instante de vida. Meu estado o de jardim com gua correndo. Descrevendo-o tento misturar palavras para que o tempo se faa. O que te digo deve ser lido rapidamente como quando se olha.

Agora dia feito e de repente de novo domingo em erupo inopinada. Domingo dia de ecos - quentes, secos, e em toda parte zumbidos de abelhas e vespas, gritos de pssaros e o longnquo das marteladas compassadas - de onde vm os ecos de domingo? Eu que detesto domingo por ser oco. Eu, que quero a coisa mais primeira porque fonte de gerao - eu que ambiciono beber gua na nascente da fonte - eu que sou tudo isso, devo por sina e trgico destino s conhecer e experimentar os ecos de mim, porque no capto o mim propriamente dito. Estou em uma expectativa estupefaciente, trmula, maravilha, de costas para o mundo, e em alguma parte foge o inocente esquilo. Plantas, plantas. Fico dormitando no calor estivo do domingo que tem moscas voando em torno do aucareiro. Alarde colorido, o do domingo, e esplendidez madura. E tudo isso pintei h algum tempo e em outro domingo. E eis aquela tela antes virgem, agora coberta de cores maduras. Moscas azuis cintilam diante de minha janela aberta para o ar da rua entorpecida. O dia parece a pele esticada e lisa se uma fruta que em uma pequena catstrofe os dentes rompem, o seu caldo escorre. Tenho medo do domingo maldito que me liquifica.

Para me refazer e te refazer volto a meu estado de jardim e sombra, fresca realidade, mal existo e se existo com delicado cuidado. Em redor da sombra faz calor de suor abundante. Estou viva. Mas sinto que ainda no alcancei os meus limites, fronteiras com o qu? sem fronteiras, a aventura da liberdade perigosa. Mas arrisco, vivo arriscando. Estou cheia de accias balanando amarelas, e eu que mal e mal comecei a minha jornada, comeo-a com um senso de tragdia, adivinhando para que oceano perdido vo os meus passos de vida. E doidamente me apodero dos desvos de mim, meus desvarios me sufocam de tanta beleza. Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca. E tudo isso ganhei ao deixar de te amar.

Escrevo-te como exerccio de esboos antes de pintar. Vejo palavras. O que falo puro presente e este livro uma linha reta no espao. sempre atual, e o fotmetro de uma mquina fotogrfica se abre e imediatamente se fecha, mas guardando em si o flash. Mesmo que eu diga "vivi" ou "viverei" presente porque eu os digo j.

Comecei estas pginas tambm com o fim de preparar-me para pintar. Mas agora estou tomada pelo gosto das palavras, e quase me liberto do domnio das tintas; sinto uma voluptuosidade em ir criando o que te dizer. Vivo a cerimnia da iniciao da palavra e meus gestos so hierticos e triangulares.

Sim, esta a vida vista pela vida. Mas de repente esqueo como captar o que acontece, no sei captar o que existe seno vivendo aqui cada coisa que surgir e no importa o qu: estou quase livre de meus erros. Deixo o cavalo livre correr fogoso. Eu, que troto nervosa e s a realidade me delimita.

E quando o dia chega ao fim ouo os grilos e torno-me toda repleta e ininteligvel. Depois vivo a madrugada azulada que vem com o seu bojo cheio de passarinhos - ser que estou te dando uma idia do que uma pessoa passa em vida? E cada coisa que me ocorra eu anoto para fix-la. Pois quero sentir nas mos o nervo fremente e vivaz do j e que me reaja esse nervo como buliosa veia. E que se rebele, esse nervo de vida, e que se contora e lateje. E que se derramem safiras, ametistas e esmeraldas no obscuro erotismo da vida plena: porque na minha escurido enfim treme o grande topzio, palavra que tem luz prpria.

Estou ouvindo agora uma msica selvtica, quase que apenas batuque e ritmo que vem de uma casa vizinha onde jovens drogados vivem o presente. Um instante mais de ritmo incessante, incessante, e acontece-me algo terrvel.

E que passarei por causa do ritmo em seu paroxismo - passarei para o outro lado da vida. Como te dizer? terrvel e me ameaa. Sinto que no posso mais parar e me assusto. Procuro me distrair do medo. Mas h muito j parou o martelar real: estou sendo o incessante martelar em mim. Do qual tenho que me libertar. Mas no consigo: o outro lado de mim me chama. Os passos que ouo so os meus.

Como se arrancasse das profundezas da terra as nodosas razes de rvore descomunal, assim que te escrevo, e essas razes como se fossem poderosos tentculos como volumosos corpos nus de fortes mulheres envolvidas em serpentes e em carnais desejos de realizao, e tudo isso uma prece de missa negra, e um pedido rastejante de amm: porque aquilo que ruim est desprotegido e precisa da anuncia de Deus: eis a criao.

Ser que passei sem sentir para o outro lado? O outro lado uma vida latejantemente infernal. Mas h a transfigurao do meu terror: ento entrego-me a uma pesada vida toda em smbolos pesados como frutas maduras. Escolho parecenas erradas mas que me arrastam pelo enovelado. Uma parte mnima de lembrana do meu bom-senso de meu passado me mantm roando ainda o lado de c. Ajude-me porque alguma coisa se aproxima e ri de mim. Depressa, salva-me.

Mas ningum pode me dar a mo para eu sair: tenho que usar a grande fora - e no pesadelo em arranco sbito caio enfim de bruos no lado de c. Deixo-me ficar jogada no cho agreste, exausta, o corao ainda pula doido, respiro s golfadas. Estou salvo? enxugo a testa molhada. Ergo-me devagar, tento dar os primeiros passos de uma convalescena fraca. Estou conseguindo me equilibrar.

No, isto tudo no acontece em fatos reais mas sim no domnio de - de uma arte? sim, de um artifcio por meio do qual surge uma realidade delicadssima que passa a existir em mim: a transfigurao me aconteceu.

Mas o outro lado, do qual escapei mal e mal, tornou-se sagrado e a ningum conto meu segredo. Parece-me que em sonho fiz no outro lado um juramento, pacto de sangue. Ningum saber de nada: o que sei to voltil e quase inexistente que fica entre mim e eu.

Sou um dos fracos? fraca que foi tomada por ritmo incessante e doido? se eu fosse slida e forte nem ao menos teria ouvido o ritmo? No encontro resposta: sou. isto apenas o que me vem da vida. Mas sou o qu? a resposta apenas: sou o qu. embora s vezes grite: no quero mais ser eu!! mas eu me grudo a mim e inextricavelmente forma-se uma tessitura de vida.

Quem me acompanha que me acompanhe: a caminhada longa, sofrida mas vivida. Porque agora te falo a srio: no estou brincando com palavras. Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligveis que se enovelam para alm das palavras. E um silncio se evola sutil do entrechoque das frases.

Ento escrever o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que no palavra. Quando essa no-palavra - a entrelinha - morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alvio jogar a palavra fora. Mas a cessa a analogia: a no-palavra, ao morder a isca, incorporou-a o que salva ento escrever distraidamente.

No quero ter a terrvel limitao de quem vive apenas do que passvel de fazer sentido. Eu no: quero uma verdade inventada.

O que te direi? te direi os instantes. Exorbito-me e s ento que existo e de um modo febril. Que febre: conseguirei um dia parar de viver? ai de mim que tanto morro. Sigo o tortuoso caminho das razes rebentando a terra, tenho por dom a paixo, na queimada de tronco seco contoro-me s labaredas. durao de minha existncia dou uma significao oculta que me ultrapassa. Sou um ser concomitante: reno em mim o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja no tique-taque dos relgios.

Para me interpretar e formular-me preciso de novos sinais e articulaes novas em formas que se localizem aqum e alm de minha histria humana. Transfiguro q realidade e ento outra realidade sonhadora e sonmbula, me cria. E eu inteira rolo e medida que rolo no cho vou me acrescentando em folhas, eu, obra annima de uma realidade annima s justificvel enquanto dura a minha vida. E depois? depois tudo o que vivi ser de um pobre suprfluo.

Mas por enquanto estou no meio do que grita e pulula. E sutil como a realidade mais intangvel. Por enquanto o tempo quanto dura um pensamento.

E de uma pureza tal esse contato com o invisvel ncleo da realidade.

Sei o que estou fazendo aqui: conto os instantes que pingam e so grossos de sangue.

Sei o que estou fazendo aqui: estou improvisando. Mas que mal tem isso? improviso como no jazz improvisam msica, jazz em fria, improviso diante da platia.

E to curioso ter substitudo as tintas por essa coisa estranha que a palavra. Palavras - movo-me com cuidado entre elas que podem se tornar ameaadoras; posso ter a liberdade de escrever o seguinte: "peregrinos, mercadores e pastores guiavam suas caravanas rumo ao Tibet e os caminhos eram difceis e primitivos". Com esta frase fiz uma cena nascer, como em um flash fotogrfico.

O que diz este jazz que improviso? Diz braos enovelados em pernas e as chamas subindo e eu passiva como uma carne que devorada pelo adunco agudo de uma guia que interrompe seu vo cego. Expresso a mim e a ti os meus desejos mais ocultos e consigo com as palavras uma orgaca beleza confusa. Estremeo de prazer por entre a novidade de usar palavras que formam intenso matagal! Luto por conquistar mais profundamente a minha liberdade de sensaes e pensamentos, sem nenhum sentido utilitrio: sou sozinha, eu e minha liberdade. tamanha a liberdade que pode escandalizar um primitivo mas sei que no te escandalizas com a plenitude que consigo e que sem fronteiras perceptveis. Esta minha capacidade de viver o que redondo e amplo - cerco-me por plantas carnvoras e animais legendrios, tudo banhado pela tosca e esquerda luz de um sexo mtico. Vou adiante de modo intuitivo e sem procurar uma idia: sou orgnica. E no me indago sobre os meus motivos. Mergulho na quase dor de uma intensa alegria - e para me enfeitar nascem entre os meus cabelos folhas e ramagens.

No sei sobre o que estou escrevendo: sou obscura para mim mesma. S tive inicialmente uma viso lunar e lcida, e ento prendi para mim o instante antes que ele morresse e que perpetuamente morre. No um recado de idias que te transmito e sim uma instintiva volpia daquilo que est escondido na natureza e que adivinho. E esta uma festa de palavras. Escrevo em signos que so mais um gesto que voz. Tudo isso o que me habituei a pintar mexendo na natureza ntima das coisas. Mas agora chegou a hora de parar a pintura para me refazer, refao-me nestas linhas. Tenho uma voz. Assim como me lano no trao de meu desenho, este um exerccio de vida sem planejamento. O mundo no tem ordem visvel e eu s tenho a ordem da respirao. Deixo-me acontecer.

Estou dentro dos grandes sonhos da noite: pois o agora-j de noite. E canto a passagem do tempo: sou ainda a rainha dos medas e dos persas e sou tambm a minha lenta evoluo que se lana como uma ponte levadia em um futuro cujas nvoas leitosas j respiro hoje. Minha aura mistrio de vida. Eu me ultrapasso abdicando de mim e ento sou o mundo: sigo a voz do mundo, eu mesma de sbito com voz nica.

O mundo: um emaranhado de fios telefricos em eriamento. E a luminosidade no entanto obscura: esta sou eu diante do mundo.

Equilbrio perigoso, o meu, o perigo de morte de alma. A noite de hoje me olha com entorpecimento, azinhavre e visco. Quero dentro dessa noite que mais longe que a vida, quero, dentro desta noite, vida crua e sangrenta e cheia de saliva. Quero a seguinte palavra: esplendidez, esplendidez a fruta na sua suculncia, fruta sem tristeza. Quero lonjuras. Minha selvagem intuio de mim mesma. Mas o meu principal est sempre escondido. Sou implcita. E quando vou me explicar perco a mida intimidade.

De que cor o infinito espacial? da cor do ar. Ns - diante do escndalo da morte.

Ouve apenas superficialmente o que digo e da falta de sentido nascer um sentido como de mim nasce inexplicavelmente vida alta e leve. A densa selva de palavras envolve espessamente o que sinto e vivo, e transforma tudo o que sou em alguma coisa minha que fica fora de mim. A natureza envolvente: ela me enovela toda e sexualmente viva, apenas isto: viva. Tambm eu estou truculentamente viva - e lambo o meu focinho como o tigre depois de ter devorado o veado.

Escrevo-te na hora mesmo em si prpria. Desenrolo-me apenas no atual. Falo hoje - no ontem nem amanh - mas hoje e neste prprio instante perecvel. Minha liberdade pequena e enquadrada me une liberdade do mundo - mas o que uma janela seno o ar emoldurado por esquadrias? Estou asperamente viva. Vou embora - diz a morte sem acrescentar que me leva consigo. E estremeo em respirao arfante por ter que acompanh-la. Eu sou a morte. neste meu ser mesmo que se d a morte - como te explicar? uma morte sensual. Como morta ando por entre o capim alto na luz esverdeada das hastes: sou Diana a Caadora de ouro e s encontro ossadas. Vivo de uma camada subjacente de sentimentos: estou mal e mal viva.

Mas esses dias de alto vero de danao sopram-me a necessidade de renncia. Renuncio a ter um significado, e ento o doce e doloroso quebranto me toma. Formas redondas e redondas se entrecruzam no ar. Navego na minha galera que arrosta os ventos de um vero enfeitiado. Folhas esmagadas me lembram o cho da infncia. A mo verde e os seios de ouro - assim que pinto a marca de Sat. Aqueles que nos temem e nossa alquimia desnudavam feiticeiras e magos em busca da marca recndita que era quase sempre encontrada embora s se soubesse dela pelo olhar pois esta marca era indescritvel e impronuncivel mesmo no negrume de uma Idade Mdia - Idade Mdia, s a minha escura subjacncia e ao claro das fogueiras os marcados danam em crculos cavalgando galhos e folhagens que so o smbolo flico da fertilidade: mesmo nas missas brancas usa-se o sangue e este bebido.

Escuta: eu te deixo ser, deixa-me ser ento.

Mas eternamente palavra muito dura: tem um "t" grantico no meio. Eternidade: pois tudo que nunca comeou. Minha pequena cabea to limitada estala ao pensar em alguma coisa que no comea e no termina - porque assim o eterno. Felizmente esse sentimento dura pouco porque eu no agento que demora e se permanecesse levaria ao desvario. Mas a cabea tambm estala ao imaginar o contrrio: alguma coisa que tivesse comeado - pois onde comearia? E que terminasse - mas o que viria depois de terminar? Como vs s-me impossvel aprofundar e apossar-me da vida, ela area, o meu leve hlito. Mas bem sei o que quero aqui: quero o inconcluso. Quero a profunda desordem orgnica que no entanto d a pressentir uma ordem subjacente. A grande potncia da potencialidade. Estas minhas frases balbuciadas so feitas na hora mesma em que esto sendo escritas e crepitam de to novas e ainda verdes. Elas so o j. Quero a experincia de uma falta de construo. Embora este meu texto seja todo atravessado de ponta a ponta por um frgil fio condutor -qual? o do mergulho na matria da palavra? o da paixo? Fio luxurioso, sopro que aquece o decorrer das slabas. A vida mal e mal me escapa embora me venha a certeza de que a vida outra e tem um estilo oculto.

Este texto que te dou no para ser visto de perto: ganha sua secreta redondez antes invisvel quando visto de um avio em alto vo. Ento adivinha-se o jogo das ilhas e vem-se canais e mares. Entende-me: escrevo-te uma onomatopia, convulso da linguagem. Transmito-te no uma histria mas apenas palavras que vivem do som. Digo-te assim:

"Tronco luxurioso".

E banho-me nele. Ele est ligado raiz que penetra em ns na terra. Tudo o que te escrevo tenso. Uso palavras soltas que so em si mesmas um dardo livre: "selvagens, brbaros, nobres decadentes e marginais". Isto te diz alguma coisa? A mim fala.

Mas a palavra mais importante da lngua tem uma nica letra: . .

Estou no seu mago.

Ainda estou.

Estou no centro vivo e mole,

Ainda.

Tremeluz e elstico. Como o andar de uma negra pantera lustrosa que vi e que andava macio, lento e perigoso. Mas enjaulada no - porque no quero. Quanto ao imprevisvel - a prxima frase me imprevisvel. No mago onde estou, no mago do , no fao perguntas. Porque quando - . Sou limitada apenas pela minha identidade. Eu, entidade elstica e separada de outros corpos.

Na verdade ainda no estou vendo bem o fio da meada do que estou te escrevendo. Acho que nunca verei - mas admito o escuro onde fulgem os dois olhos da pantera macia. A escurido o meu caldo de cultura. A escurido ferica. Vou te falando e me arriscando desconexo: sou subterraneamente inatingvel pelo meu conhecimento.

Escrevo-te porque no me entendo.

Mas vou me seguindo. Elstica. um tal mistrio essa floresta onde sobrevivo para ser. Mas agora acho que vai mesmo. Isto : vou entrar. Quero dizer: no mistrio. Eu mesma misteriosa e dentro do mago em que me movo nadando, protozorio. Um dia eu disse infantilmente: eu posso tudo. Era a anteviso de poder um dia me largar e cair em um abandono de qualquer lei. Elstica. A profunda alegria: o xtase secreto. Sei como inventar um pensamento. Sinto o alvoroo da novidade. Mas bem sei que o que escrevo apenas um tom.

Nesse mago tenho a estranha impresso de que no perteno ao gnero humano.

H muita coisa a dizer que no sei como dizer. Faltam as palavras. Mas recuso-me a inventar novas: as que existem j devem dizer o que se consegue dizer e o que proibido. E o que proibido eu adivinho. Se houver fora. Atrs do pensamento no h palavras: -se. Minha pintura no tem palavras: fica atrs do pensamento. Nesse terreno do -se sou puro xtase cristalino. -se. Sou-me. Tu te s.

E sou assombrada pelos meus fantasmas, pelo que mtico, fantstico e gigantesco: a vida sobrenatural. E caminho segurando um guarda-chuva aberto sobre corda tensa. Caminho at o limite do meu sonho grande. Vejo a fria dos impulsos viscerais: vsceras torturadas me guiam. No gosto do que acabo de escrever - mas sou obrigada a aceitar o trecho todo porque ele me aconteceu. E respeito muito o que eu me aconteo. Minha essncia inconsciente de si prpria e por isso que cegamente me obedeo.

Estou sendo antimeldica. Comprazo-me com a harmonia difcil dos speros contrrios. Para onde vou? e a resposta : vou.

Quando eu morrer ento nunca terei nascido e vivido: a morte apaga os traos de espuma do mar na praia.

Agora um instante. J outro agora.

E outro. Meu esforo: trazer agora o futuro para j. Movo-me dentro de meus instintos fundos que se cumprem s cegas. Sinto ento que estou nas proximidades de fontes, lagoas e cachoeiras, todas de guas abundantes. E eu livre.

Ouve-me, ouve o meu silncio. O que falo nunca o que falo e sim outra coisa. Quando digo "guas abundantes" estou falando da fora de corpo nas guas do mundo. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma no posso. L a energia que est no meu silncio. Ah tenho medo do Deus e do seu silncio.

Sou-me.

Mas h tambm o mistrio do impessoal que o "it": eu tenho o impessoal dentro de mim e no corrupto e apodrecvel pelo pessoal que s vezes me encharcar: mas seco-me ao sol e sou um impessoal de caroo seco e germinativo. Meu pessoal hmus na terra e vive do apodrecimento. Meu "it" duro como uma pedra-seixo.

A transcendncia em mim o "it" vivo e mole e tem o pensamento que uma ostra tem. Ser que a ostra quando arrancada de sua raiz sente ansiedade? Fica inquieta na sua vida sem olhos. Eu costumava pingar limo em cima da ostra viva e via com horror e fascnio ela contorcer-se toda. E eu estava comendo o it vivo. O it vivo o Deus.

Vou parar um pouco porque sei que o Deus o mundo. o que existe. Eu rezo para o que existe? No perigoso aproximar-se do que existe. A prece profunda uma meditao sobre o nada. o contato seco e eltrico consigo, um consigo impessoal.

No gosto quando pingam limo nas minhas profundezas e fazem com que eu me contora toda. Os fatos da vida so o limo na ostra? Ser que a ostra dorme?

Qual o elemento primeiro? logo teve que ser dois para haver o secreto movimento ntimo do qual jorra leite.

Disseram-me que a gata depois de parir come a prpria placenta e durante quatro dias no come mais nada. S depois que toma leite. Deixa-me falar puramente em amamentar. Fala-se na subida do leite. Como? E no adiantaria explicar porque a explicao exige uma outra explicao que exigiria uma outra explicao e que se abriria de novo para o mistrio. Mas sei de coisas it sobre amamentar criana.

Estou respirando. Para cima e para baixo. Para cima e para baixo. Como que a ostra nua respira? Se respira no vejo. O que no vejo no existe? O que mais me emociona que o que no vejo contudo existe. Porque ento tenho aos meus ps todo um mundo desconhecido que existe pleno e cheio de rica saliva. A verdade est em alguma parte: mas intil pensar. No a descobrirei e no entanto vivo dela.

O que te escrevo no vem de manso, subindo aos poucos at um auge para depois ir morrendo de manso. No: o que te escrevo de fogo como olhos em brasa.

Hoje noite de lua cheia. Pela janela a lua cobre a minha cama e deixa tudo de um branco leitoso azulado. O luar canhestro. Fica do lado esquerdo de quem entra. Ento fujo fechando os olhos. Porque a lua cheia de uma insnia leve: entorpecida e dormente como depois do amor. E eu tinha resolvido que ia dormir para poder sonhar, estava com saudades das novidades do sonho.

Ento sonhei uma coisa que vou tentar reproduzir. Trata-se de um filme que eu assistia. Tinha um homem que imitava artista de cinema. E tudo que esse homem fazia era por sua vez imitado por outros e outros. Qualquer gesto. E havia a propaganda de uma bebida chamada Zerbino. O homem pegava a garrafa de Zerbino e levava-a boca. Ento todos pegavam uma garrafa de Zerbino e levavam-na boca. No meio o homem que imitava artista de cinema dizia: este um filme de propaganda de Zerbino e Zerbino na verdade no presta. Mas no era o final. O homem retomava a bebida e bebia. E assim faziam todos: era fatal. Zerbino era uma instituio mais forte que o homem. As mulheres a essa altura pareciam aeromoas. As aeromoas so desidratadas - preciso acrescentar-lhes ao p bastante gua para se tornarem leite. um filme de pessoas automticas que sabem aguda e gravemente que so automticas e que no h escapatria. O Deus no automtico: para Ele cada instante . Ele it.

Mas h perguntas que me fiz em criana e que no foram respondidas, ficaram ecoando plangentes: o mundo se fez sozinho? Mas se fez onde? em que lugar? E se foi atravs da energia de Deus - como comeou? ser que como agora quando estou sendo e ao mesmo tempo me fazendo? por esta ausncia de resposta que fico to atrapalhada.

Mas 9 e 7 e 8 so os meus nmeros secretos. Sou uma iniciada sem seita. vida do mistrio. Minha paixo pelo mago dos nmeros, nos quais adivinho o cerne de seu prprio destino rgido e fatal. E sonho com luxuriantes grandezas aprofundadas em trevas: alvoroo da abundncia, onde as plantas aveludadas e carnvoras somos ns que acabamos de brotar, agudo amor - lento desmaio.

Ser que isto que estou te escrevendo atrs do pensamento? Raciocnio que no . Quem for capaz de parar de raciocinar - o que terrivelmente difcil - que me acompanhe. Mas pelo menos no estou imitando artista-de-cinema e ningum precisa me levar boca ou tornar-se aeromoa.

Vou te fazer uma confisso: estou um pouco assustada. que no sei aonde me levar esta minha liberdade. No arbitraria nem libertina. Mas estou solta.

De vez em quando te darei uma leve histria - rea meldica e cantabile para quebrar este meu quarteto de cordas: um trecho figurativo para abrir uma clareira na minha nutridora selva.

Estou livre? Tem qualquer coisa que ainda me prende. Ou prendo-me a ela? Tambm assim: no estou toda solta por estar em unio com tudo. Alis uma pessoa tudo. No pesado de se carregar porque simplesmente no se carrega: -se o tudo.

Parece-me que pela primeira vez estou sabendo das coisas. A impresso que s no vou mais at as coisas para no me ultrapassar. Tenho certo medo de mim, no sou de confiana e desconfio do meu falso poder.

Este a palavra de quem no pode.

No dirijo nada. Nem as minhas prprias palavras. Mas no triste: humildade alegre. Eu, que vivo de lado, sou esquerda de quem entra. E estremece em mim o mundo.

Esta palavra a ti promscua? Gostaria que no fosse, eu no sou promscua. Mas sou caleidoscpica: fascinam-me as minhas mutaes faiscantes que aqui caleidoscopicamente registro.

Vou agora parar um pouco para me aprofundar mais. Depois eu volto.

Voltei. Fui existindo. Recebi uma carta de So Paulo de pessoa que no conheo. Carta derradeira de suicida. Telefonei para So Paulo. O telefone no respondia, tocava e tocava e soava como em um apartamento em silncio. Morreu ou no morreu? Hoje de manh telefonei de novo: continuava a no responder. Morreu, sim. Nunca esquecerei.

No estou mais assustada. Deixa-me falar, est bem? Nasci assim: tirando do tero de minha me a vida que sempre foi eterna. Espera por mim - sim? Na hora de pintar ou escrever sou annima. Meu profundo anonimato que nunca ningum tocou.

Tenho uma coisa importante para te dizer. que no estou brincando: it elemento puro. material do instante do tempo. No estou coisificando nada: estou tendo o verdadeiro parto do it. Sinto-me tonta como quem vai nascer.

Nascer: j assisti gata parindo. Sai o gato envolto em um saco de gua e todo encolhido dentro. A me lambe tantas vezes o saco de gua que este enfim se rompe e eis um gato quase livre, preso apenas pelo cordo umbilical. Ento a gata-me-criadora rompe com os dentes esse cordo e aparece mais um fato no mundo. Este processo it. No estou brincando. Estou grave. Porque estou livre. Sou to simples.

Estou dando a voc a liberdade. Antes rompo o saco de gua. Depois corto o cordo umbilical. E voc est vivo por conta prpria.

E quando naso fico livre. Esta a base de minha tragdia.

No. No fcil. Mas "". Comi minha prpria placenta para no precisar comer durante quatro dias. Para ter leite para te dar. O leite um "isto". E ningum eu. ningum voc. Esta a solido.

Estou esperando a prxima frase. questo de segundos. Falando em segundos pergunto se voc agenta que o tempo seja hoje e agora e j. Eu agento porque comi a prpria placenta.

As trs e meia da madrugada acordei. E logo elstica pulei da cama. Vim te escrever. Quer dizer: ser. Agora so cinco e meia da manh. De nada tenho vontade: estou pura. No te desejo esta solido. Mas eu mesma estou na obscuridade criadora. Lcida escurido, luminosa estupidez.

Muita coisa no posso te contar. No vou ser autobiogrfica. Quero ser "bio".

Escrevo ao correr das palavras.

Antes do aparecimento do espelho a pessoa no conhecia o prprio rosto seno refletido nas guas de um lago. Depois de um certo tempo cada um responsvel pela cara que tem. Vou olhar agora a minha. um rosto nu. E quando penso que inexiste um igual ao meu no mundo, fico de susto alegre. Nem nunca haver. Nunca o impossvel. Gosto de nunca. Tambm gosto de sempre. Que h entre nunca e sempre que os liga to indiretamente e intimamente?

No fundo de tudo h a aleluia. Este instante . Voc que me l .

Custa-me crer que eu morra. Pois estou borbulhante em uma frescura frgida. Minha vida vai ser longussima porque cada instante . A impresso que estou por nascer e no consigo.

Sou um corao batendo no mundo.

Voc que me l que me ajude a nascer.

Espere: est ficando escuro. Mais.

Mais escuro.

O instante de um escuro total.

Continua.

Espere: comeo a vislumbrar uma coisa. Uma forma luminescente. Barriga leitosa com umbigo? Espere - pois sairei desta escurido onde tenho medo, escurido e xtase. Sou o corao da treva.

O problema que na janela de meu quarto h um problema na cortina. Ela no corre e no se fecha portanto. Ento a lua cheia entra toda e vem fosforescer de silncios o quarto: horrvel.

Agora as trevas vo se dissipando. Nasci.

Pausa.

Maravilhoso escndalo: naso.

Estou de olhos fechados. Sou pura inconscincia. J cortaram o cordo umbilical: estou solta no universo. No penso mas sinto o it. Com olhos fechados procuro cegamente o peito: quero leite grosso. Ningum me ensinou a querer. Mas eu quero. Fico deitada com olhos abertos a ver o teto. Por dentro a obscuridade. Um eu que pulsa j se forma. H girassis. H trigo alto. Eu .

Ouo o ri bombo oco do tempo. o mundo surdamente se formando. Se eu ouo porque existe antes da formao do tempo. A minha conscincia leve e agora ar. O ar no tem lugar nem poca. O ar o no-lugar onde tudo vai existir. O que estou escrevendo msica do ar. A formao do mundo. Pouco a pouco se aproxima o que vai ser. O que vai ser j . O futuro para a frente e para trs e para os lados. O futuro o que sempre existiu e o que sempre existir. Mesmo que seja abolido o Tempo? O que estou te escrevendo no para se ler - para se ser. A trombeta dos anjos-seres ecoa no sem tempo. Nasce no ar a primeira flor. Forma-se o cho que terra. O resto ar e o resto lento fogo em perptua mutao. A palavra "perptua" no existe porque no existe o tempo? Mas existe o ri bombo. E a existncia minha comea a existir. Comea ento o tempo?

Ocorreu-me de repente que no preciso ter ordem para viver. no h padro a seguir e nem h o prprio padro: naso.

Ainda no estou pronta para falar em "ele" ou "ela". Demonstro "aquilo". Aquilo lei universal. Nascimento e morte. Nascimento. Morte. Nascimento e -como uma respirao do mundo.

Eu sou puro it que pulsava ritmadamente. Mas sinto que em breve estarei pronta para falar em ele ou ela. Histria no te prometo aqui. Mas tem it. Quem suporta? It mole e ostra e placenta. No estou brincando pois no sou um sinnimo - sou o prprio nome. H uma linha de ao atravessando isto tudo que te escrevo. H o futuro. Que hoje mesmo.

Minha noite vasta passa-se no primrio de uma latncia. A mo pousa na terra e escuta quente um corao a pulsar. Vejo a grande lesma branca com seios de mulher: ente humano? Queimo-a em fogueira inquisitorial. Tenho o misticismo das trevas de um passado remoto. E saio dessas torturas de vtima com a marca indescritvel que simboliza a vida. Cercam-me criaturas elementares, anes, gnomos, duendes e gnios. Sacrifico animais para colher-lhes o sangue de que preciso para minhas cerimnias de sortilgio. Na minha sanha fao a oferenda da alma no seu prprio negrume. A missa me apavora - a mim que a executo. E a turva mente domina a matria. A fera arreganha os dentes e galopam no longe do ar os cavalos dos carros alegricos.

Na minha noite idolatro o sentido secreto do mundo. Boca e lngua. E um cavalo solto de uma fora livre. Guardo-lhe o casco em amoroso fetichismo. Na minha funda noite sopra um louco vento que me traz fiapos de gritos.

Estou sentindo o martrio de uma inoportuna sensualidade. De madrugada acordo cheia de frutos. Quem vir colher os frutos de minha vida? Seno tu e eu mesma? Por que que as coisas um instante antes de acontecerem parecem j ter acontecido? uma questo de simultaneidade de tempo. E eis que te fao perguntas e muitas estas sero. Porque sou uma pergunta.

E na minha noite sinto o mal que me domina. O que se chama de bela paisagem no me causa seno cansao. Gosto das paisagens de terra esturricada e seca, com rvores contorcidas e montanhas feitas de rocha e com uma luz alvar e suspensa. Ali, sim, que a beleza recndita est. Sei que tambm no gostas de arte. nasci dura, herica, solitria e em p. E encontrei meu contraponto na paisagem sem pitoresco e sem beleza. A feira o meu estandarte de guerra. Eu amo o feio com um amor de igual para igual. E desafio a morte. Eu - eu sou a minha prpria morte. E ningum vai mais longe. O que h de brbaro em mim procura o brbaro cruel fora de mim. Vejo em claros e escuros os rostos das pessoas que vacilam s chamas da fogueira. Sou uma rvore que arde com duro prazer. S uma doura me possui: a conivncia com o mundo. Eu amo a minha cruz, a que doloridamente carrego. o mnimo que posso fazer da minha vida: aceitar comiseravelmente o sacrifcio da noite.

O estranho me toma: ento abro o negro guarda-chuva e alvoroo-me em uma festa de baile onde brilham estrelas. O nervo raivoso dentro de mim e que me contorce. At que a noite alta vem me encontrar exangue. Noite alta grande e me come. A ventania me chama. Sigo-a e me estraalho. Se eu no entrar no jogo que se desdobra em vida perderei a prpria vida em um suicdio da minha espcie. Protejo com o fogo meu jogo de vida. Quando a existncia de mim e do mundo ficam insustentveis pela razo - ento me solto e sigo uma verdade latente. Ser que eu reconheceria a verdade se esta se comprovasse?

De mim no mundo quero te dizer da fora que me guia e me traz o prprio mundo, da sensualidade vital de estruturas ntidas, e das curvas que so organicamente ligadas a outras formas curvas. Meu grafismo e minhas circunvolues so potentes e a liberdade que sopra no vero tem a fatalidade em si mesma. O erotismo prprio do que vivo est espalhado no ar, no mar, nas plantas, em ns, espalhado na veemncia de minha voz, eu te escrevo com minha voz. E h um vigor de tronco robusto , de razes entranhadas na terra viva que reage dando-lhes grandes alimentos. Respiro de noite a energia. E tudo isto no fantstico. Fantstico: o mundo por um instante exatamente o que meu corao pede. Estou prestes a morrer-me e constituir novas composies. Estou me exprimindo muito mal e as palavras certas me escapam. Minha forma interna finamente depurada e no entanto meu conjunto com o mundo tem a crueza nua dos sonhos livres e das grandes realidades. No conheo a proibio. E minha prpria fora me libera, essa vida plena que se me transborda. E nada planejo no meu trabalho intuitivo de viver: trabalho com o indireto, o informal e o imprevisto.

Agora de madrugada estou plida e arfante e tenho a boca seca diante do que alcano. A natureza em cntico coral e eu morrendo. O que canta a natureza? a prpria palavra final que no nunca mais eu. Os sculos cairo sobre mim. Mas por enquanto uma truculncia de corpo e alma que se manifesta no rico escaldar de palavras pesadas que se atropelam umas nas outras - e algo selvagem, primrio e enervado se ergue dos meus pntanos, a planta maldita que est prxima de se entregar ao Deus. Quanto mais maldita, mais at o Deus. Eu me aprofundei em mim e encontrei que eu quero vida sangrenta, e o sentido oculto tem uma intensidade que tem luz. a luz secreta de uma sabedoria da fatalidade: a pedra fundamental da terra. mais um pressgio de vida que vida mesmo. Eu a exorcizo excluindo os profanos. No meu mundo pouca liberdade de ao me concedida. Sou livre apenas para executar os gestos fatais. Minha anarquia obedece subterraneamente a uma lei onde lido oculta com astronomia, matemtica e mecnica. A liturgia dos enxames dissonantes dos insetos que saem dos pntanos nevoentos e pestilentos. Insetos, sapos, piolhos, moscas, pulgas e percevejos - tudo nascido de uma corrupta germinao mals de larvas. E minha fome se alimenta desses seres putrefatos em decomposio. Meu rito purificador de foras. Mas existe malignidade na selva. Bebo um gole de sangue que me plenifica toda. Ouo cmbalos e trombetas e tamborins que enchem o ar de barulhos e marulhos abafando ento o silncio do disco do sol e seu prodgio. Quero um manto tecido com fios de ouro solar. O sol a tenso mgica do silncio. Na minha viagem aos mistrios ouo a planta carnvora que lamenta tempos imemoriais: e tenho pesadelos obscenos sob ventos doentios. Estou encantada, seduzida, arrebatada por vozes furtivas. As inscries cuneiformes quase ininteligveis falam de como conceber e do frmulas sobre como se alimentar da fora das trevas. Falam das fmeas nuas e rastejantes. E o eclipse do sol causa terror secreto que no entanto anuncia um esplendor de corao. Ponho sobre os cabelos o diadema de bronze.

Atrs do pensamento - mais atrs ainda - est o teto que eu olhava enquanto infante. De repente chorava. J era amor. Ou nem mesmo chorava. Ficava espreita. A perscrutar o teto. O instante o vasto ovo de vsceras mornas.

Agora de novo madrugada.

Mas ao amanhecer eu penso que ns somos os contemporneos do dia seguinte. Que o Deus me ajude: estou perdida. Preciso terrivelmente de voc. Ns temos que ser dois. Para que o trigo fique alto. Estou to grave que vou parar.

Nasci h alguns instantes e estou ofuscada.

Os cristais tilintam e fascam. O trigo est maduro: o po repartido. Mas repartido com doura? importante saber. No penso assim como o diamante no pensa. Brilho toda lmpida. No tenho fome nem sede: sou. Tenho dois olhos que esto abertos. Para o nada. Para o teto.

Vou fazer um adaggio. Leia devagar e com paz. um largo afresco. Nascer assim:

Os girassis lentamente viram suas corolas para o sol. O trigo est maduro. O po com doura que se come. Meu impulso se liga ao das razes das rvores.

Nascimento: os pobres tm uma orao em snscrito. Eles no pedem: so pobres de esprito. Nascimento: os africanos tm a pele negra e fosca. Muitos so filhos da rainha de Sab com o rei Salomo. Os africanos para me adormecer, eu recm-nascida, entoam uma lengalenga primria onde cantam monotonamente que a sogra, logo que eles saem, vem e tira um cacho de bananas.

H uma cano de amor deles que diz tambm monotonamente o lamento que fao meu: por que te amo se no respondes? envio mensageiros em vo; quando te cumprimento tu ocultas a face; por que te amo se nem ao menos me notas? H tambm a cano para ninar elefantes que vo se banhar no rio. Sou africana: um fio de lamento triste e largo e selvtico est na minha voz que te canta. Os brancos batiam nos negros com chicote. Mas como o cisne segrega um leo que impermeabiliza a pele - assim a dor dos negros no pode entrar e no di. Pode-se transformar a dor em prazer - basta um "clic". Cisne negro?

Mas h os que morrem de fome e eu nada posso seno nascer. Minha lengalenga : que posso fazer por eles? Minha resposta : pintar um afresco em adaggio. Poderia sofrer a fome dos outros em silncio mas uma voz de contralto me faz cantar - canto fosco e negro. minha mensagem de pessoa s. A pessoa come outra de fome. Mas eu me alimentei com minha prpria placenta. E no vou roer unhas porque isto um tranqilo adaggio.

Parei para tomar gua fresca: o copo neste instante-j de grosso cristal facetado e com milhares de fascas de instantes. Os objetos so tempo parado?

Continua a lua cheia. Relgios pararam e o som de um carrilho rouco escorre pelo muro. Quero ser enterrada com o relgio no pulso para que na terra algo possa pulsar o tempo.

Estou to ampla. Sou coerente: meu cntico profundo. Devagar. Mas crescendo. Est crescendo mais ainda. Se crescer muito vira lua cheia e silncio, e fantasmagrico cho lunar. espreita do tempo que me pra. O que te escrevo srio. Vai virar duro objeto imperecvel. O que vem imprevisto. Para ser inutilmente sincera devo dizer que agora so seis e quinze da manh.

O risco - estou arriscando descobrir terra nova. Onde jamais passos humanos houve. Antes tenho que passar pelo vegetal perfumado. Ganhei dama-da-noite que fica no meu terrao. Vou comear a fabricar o meu prprio perfume: compro lcool apropriado e a essncia do que j vem macerado e sobretudo o fixador que tem que ser de origem puramente animal. Almscar pesado. Eis o ltimo acorde grave do adaggio. Meu nmero 9. 7. 8. Tudo atrs do pensamento. Se tudo isso existe, ento sou eu. mas por que esse mal-estar? porque no estou vivendo do nico medo que se existe para cada um de se viver e nem sei qual . Desconfortvel. No me sinto bem. No sei o que que h. Mas alguma coisa est errada e d mal-estar. No entanto estou sendo franca e meu jogo limpo. Abro o jogo. S no conto os fatos de minha vida: sou secreta por natureza. O que h ento? S sei que no quero a impostura. Recuso-me. Eu me aprofundei mas no acredito em mim porque meu pensamento inventado.

J posso me preparar para o "ele" ou "ela". O adaggio chegou ao fim. Ento comeo. No minto. Minha verdade fasca como um pingente de lustre de cristal.

Mas ela oculta. Eu agento porque sou forte: comi minha prpria placenta.

Embora tudo seja to frgil. Sinto-me to perdida. Vivo de um segredo que se irradia em raios luminosos que me ofuscariam se eu no os cobrisse com um manto pesado de falsas certezas. Que o Deus me ajude: estou sem guia e de novo escuro.

Terei que morrer de novo para de novo nascer? Aceito.

Vou voltar para o desconhecido de mim mesma e quando nascer falarei em "ele" ou "ela". Por enquanto o que me sustenta o "aquilo" que um "it". Criar de si prprio um ser muito grave. Estou me criando. E andar na escurido completa procura de ns mesmos o que fazemos. Di. Mas dor de parto: nasce uma coisa que . -se. duro como uma pedra seca. Mas o mago it mole e vivo, perecvel, periclitante. Vida de matria elementar.

Como o Deus no tem nome vou dar a Ele o nome de Simptar. No pertence a lngua nenhuma. Eu me dou o nome de Amptala. Que eu saiba no existe tal nome. Talvez em lngua anterior ao snscrito, lngua it. Ouo o tique-taque do relgio: apresso-me ento. O tique-taque it.

Acho que no vou morrer no instante seguinte porque o mdico que me examinou detidamente disse que estou em sade perfeita. Est vendo? o instante passou e eu no morri. Quero que me enterrem diretamente na terra embora dentro do caixo. No quero ser engavetada na parede como no cemitrio So Joo Batista que no tem mais lugar na terra. Ento inventaram essas diablicas paredes onde se fica como em um arquivo.

Agora um instante. Voc sente? eu sinto.

O ar "it" e no tem perfume. Tambm gosto. Mas gosto de dama-da-noite, almiscarada porque sua doura uma entrega lua. J comi gelia de rosas pequenas e escarlates: seu gosto nos benze ao mesmo tempo que nos acomete. Como reproduzir em palavras o gosto? O gosto uno e as palavras so muitas. Quanto msica, depois de tocada para onde ela vai? Msica s tem de concreto o instrumento. Bem atrs do pensamento tenho um fundo musical. Mas ainda mais atrs h o corao batendo. Assim o mais profundo pensamento um corao batendo.

Quero morrer com vida. Juro que s morrerei lucrando o ltimo instante, h uma prece profunda em mim que vai nascer no sei quando. Queria tanto morrer de sade. Como quem explode. clate melhor: j'clate. Por enquanto h dilogo contigo. Depois ser monlogo. Depois o silncio. Sei que haver uma ordem.

O caos de novo se prepara como instrumentos musicais que se afinam antes de comear a msica eletrnica. Estou improvisando e a beleza do que improviso fuga. Sinto latejando em mim a prece que ainda no veio. Sinto que vou pedir que os fatos apenas escorram sobre mim sem me molhar. Estou pronta para o silncio grande da morte. Vou dormir.

Levantei-me. O tiro de misericrdia. Porque estou cansada de me defender. Sou inocente. At ingnua porque me entrego sem garantias. Nasci por Ordem. Estou completamente tranqila. Respiro por Ordem. No tenho estilo de vida: atingi o impessoal, o que to difcil. Daqui a pouco a Ordem vai me mandar ultrapassar o mximo. Ultrapassar o mximo viver o elemento puro. Tem pessoas que no agentam: vomitam. Mas eu estou habituada ao sangue.

Que msica belssima ouo no profundo de mim. feita de traos geomtricos se entrecruzando no ar. Msica de cmara sem melodia. modo de expressar o silncio. O que te escrevo de cmara.

E isto que tento escrever maneira de me debater. Estou apavorada. Por que nesta Terra houve dinossauros? como se extingue uma raa?

Verifico que estou escrevendo como se estivesse entre o sono e a viglia.

Eis que de repente vejo que h muito no estou entendendo. O gume de minha faca est ficando cego? Parece-me que o mais provvel que no entendo porque o que vejo agora difcil: estou entrando sorrateiramente em contato com uma realidade nova para mim que ainda no tem pensamentos correspondentes e muito menos ainda alguma palavra que a signifique: uma sensao atrs do pensamento.

E eis que meu mal me domina. Sou ainda a cruel rainha dos medas e dos persas e sou tambm uma lenta evoluo que se lana como ponte levadia a um futuro cujas nvoas leitosas j respiro. Minha aura de mistrio de vida. Eu me ultrapasso abdicando de meu nome, e ento sou o mundo. Sigo a voz do mundo com voz nica.

O que te escrevo no tem comeo: uma continuao. Das palavras deste canto, canto que meu e teu, evola-se um halo que transcende as frases, voc sente? minha experincia vem de que eu j consegui pintar o halo das coisas. O halo mais importante que as coisas e as palavras. O halo vertiginoso. Finco a palavra no vazio descampado: uma palavra como fino bloco monoltico que projeta sombra. E trombeta que anuncia. O halo o it.

Preciso sentir de novo o it dos animais. H muito tempo no entro em contato com a vida primitiva animlica. Estou precisando estudar bichos. Quero captar o it para poder pintar no uma guia e um cavalo, mas um cavalo com asas abertas de grande guia.

Arrepio-me toda ao entrar em contato fsico com bichos ou com a simples viso deles. Os bichos me fantasticam. Eles so o tempo que no se conta. Pareo ter certo horror daquela criatura viva que no humana e que tem meus prprios instintos embora livres e indomveis. Animal nunca substitui uma coisa por outra.

Os animais no riem. Embora s vezes o co ri. Alm da boca arfante o sorriso se transmite por olhos tornados brilhantes e mais sensuais, enquanto o rabo abana em alegra perspectiva. Mas gato no ri nunca. Um "ele" que conheo no quer mais saber de gatos. Fartou-se para sempre porque tinha certa gata que ficava em danao peridica. Eram to imperativos seus sentidos que na poca do cio, aps longos e plangentes miados, jogava-se de cima do telhado e feria-se no cho.

s vezes eletrizo-me ao ver bicho. Estou agora ouvindo o grito ancestral dentro de mim: parece que no sei quem mais a criatura, se eu ou o bicho. E confundo-me toda. Fico ao que parece com medo de encarar instintos abafados que diante do bicho sou obrigada a assumir.

Conheci um "ela" que humanizava bicho conversando com ele e emprestando-lhe as prprias caractersticas. No humanizo bicho porque ofensa - h que respeitar-lhe a natureza - eu que me animalizo. No difcil e vem simplesmente. s no lutar contra e s entregar-se.

Nada existe de mais difcil do que entregar-se ao instante. Esta dificuldade dor humana. nossa. Eu me entrego em palavras e me entrego quando pinto.

Segurar passarinho na concha meio fechada da mo terrvel, como se tivesse os instantes trmulos na mo. O passarinho espavorido esbate desordenadamente milhares de asas e de repente se tem na mo semicerrada as asas finas debatendo-se e de repente se torna intolervel e abre-se depressa a mo para libertar a presa leve. Ou se entrega-o depressa ao dono para que ele lhe d a maior liberdade relativa da gaiola. Pssaros - eu os quero nas rvores ou voando longe de minhas mos. Talvez certo dia venha a ficar ntima deles e a gozar-lhes a levssima presena de instante. "Gozar-lhes a levssima presena" d-me a sensao de ter escrito frase completa por dizer exatamente o que : a levitao dos pssaros.

Ter coruja nunca me ocorreria, embora eu as tenha pintado nas grutas. Mas um "ela" achou por terra na mata de Santa Teresa um filhote de coruja todo s e mngua de me. Levou-o para casa. Aconchegou-o. Alimentou-o e dava-lhe murmrios e terminou descobrindo que ele gostava de carne crua. Quando ficou forte era de se esperar que fugisse imediatamente mas demorou a ir em busca do prprio destino que seria o de reunir-se aos de sua doida raa: que se afeioara, essa diablica ave, moa. At que em um arranco - como se estivesse em luta consigo prprio - libertou-se com o vo para a profundeza do mundo.

J vi cavalos soltos no pasto onde de noite o cavalo branco - rei da natureza - lanava para o alto ar seu longo relincho de glria. J tive perfeitas relaes com eles. Lembro-me de mim de p com a mesma altivez do cavalo e a passar a mo pelo seu plo nu. Pela sua crina agreste. Eu me sentia assim: a mulher e o cavalo.

Sei histria passada mas que se renova j. O ele contou-me que morou durante algum tempo com parte de sua famlia que vivia em pequena aldeia em um vale dos altos Pirineus nevados. No inverno os lobos esfaimados desciam das montanhas at a aldeia a farejar presa. Todos os habitantes se trancavam atentos em casa a abrigar na sala ovelhas e cavalos e ces e cabras, o calor humana e calor animal - todos alertamente a ouvir o arranhar das garras dos lobos nas portas cerradas. A escutar. A escutar.

Estou melanclica. de manh. Mas conheo o segredo das manhs puras. E descanso na melancolia.

Sei da histria de uma rosa. Parece-te estranho falar em rosa quando estou me ocupando com bichos? Mas ela agiu de um modo tal que lembra os mistrios animais. De dois em dois dias eu comprava uma rosa e colocava-a na gua dentro da jarra feita especialmente para abrigar o longo talo de uma s flor. De dois em dois dias a rosa murchava e eu a trocava por outra. At que houve determinada rosa. Cor-de-rosa sem corante ou enxerto porm do mais vivo rosa pela natureza mesmo. Sua beleza alargava o corao em amplides.

Parecia to orgulhosa da turgidez de sua corola toda aberta e das prprias ptalas que era com uma altivez que se mantinha quase erecta. Porque no ficava totalmente erecta: com graciosidade inclinava-se sobre o talo que era fino e quebradio. Uma relao ntima estabeleceu-se intensamente entre mim e a flor: eu a admirava e ela parecia sentir-se admirada.. e to gloriosa ficou na sua assombrao e com tanto amor era observada que se passavam os dias e ela no murchava: continuava de corola toda aberta e tmida, fresca como flor nascida. Durou em beleza e vida uma semana inteira. S ento comeou a dar mostras de algum cansao. Depois morreu. Foi com relutncia que a troquei por outra. E nunca a esqueci. O estranho que a empregada perguntou-me um dia queima-roupa: "e aquela rosa?" Nem perguntei qual. sabia. Esta rosa que viveu por amor longamente dado era lembrada porque a mulher vira o modo como eu olhava a flor e transmitia-lhe em ondas a minha energia. Intura cegamente que algo se passara entre mim e a rosa. Esta - deu-me vontade de cham-la de "jia da vida", pois chamo muito as coisas - tinha tanto instinto de natureza que eu e ela tnhamos podido nos viver uma a outra profundamente como s acontece entre bicho e homem.

No ter nascido bicho uma minha secreta nostalgia. Eles s vezes clamam do longe muitas geraes e eu no posso responder seno ficando inquieta. o chamado.

Esse ar solto, esse vento que me bate na alma da cara deixando-a ansiada em uma imitao de um angustiante xtase cada vez novo, novamente e sempre, cada vez o mergulho em alguma coisa sem fundo onde caio sempre caindo sem parar at morrer e adquirir enfim silncio. Oh vento siroco, eu no te perdo a morte, tu que me trazes uma lembrana machucada de coisas vividas que, ai de mim, sempre se repetem, mesmo sob formas outras e diferentes. A coisa vivida me espanta assim como me espanta o futuro. Este, como o j passado, intangvel, mera suposio.

Estou nesse instante em um vazio branco esperando o prximo instante, cortar o tempo apenas hiptese de trabalho. Mas o que existe perecvel e isto obriga a contar o tempo imutvel e permanente. Nunca comeou e nunca vai acabar. Nunca.

Soube de um ela que morreu na cama mas aos gritos: estou me apagando! At que houve o benefcio do coma dentro do qual o ela se libertou do corpo e no teve nenhum medo de morrer.

Para te escrever eu antes me perfumo toda.

Eu te conheo todo por te viver toda. Em mim profunda a vida. As madrugadas vm me encontrar plida de ter vivido a noite dos sonhos fundos. Embora s vezes eu sobrenade em um raso aparente que tem debaixo de si uma profundidade de azul-escuro quase negro. Por isto te escrevo. Por sopro das grossas algas e no tenro nascente do amor.

Eu vou morrer: h uma tenso como a de um arco prestes a disparar a flecha. Lembro-me do signo Sagitrio: metade homem e metade animal. A parte humana em rigidez clssica segura a flecha. O arco pode disparar a qualquer instante e atingir o alvo. Sei que vou atingir o alvo.

Agora vou escrever ao correr da mo: no mexo no que ela escrever. Esse um modo de no haver defasagem entre o instante e eu: ajo no mago do prprio instante. Mas de qualquer modo h alguma defasagem. Comea assim: como o amor impede a morte, e no sei o que estou querendo dizer com isto. Confio na minha incompreenso que tem me dado vida liberta do entendimento, perdi amigos, no entendo a morte. O horrvel dever o de ir at o fim. E sem contar com ningum. Viver-se a si mesma. E para sofrer menos embotar-me um pouco. Porque no posso mais carregar as dores do mundo. Que fazer quando sinto totalmente o que outras pessoas so e sentem? Vivo-as mas no tenho mais fora. No quero contar nem a mim mesma certas coisas. Seria trair o -se. Sinto que sei de umas verdades. Que j pressinto. Mas verdades no tm palavras. Verdades ou verdade? No vou falar no Deus, Ele segredo meu. Est fazendo um dia de sol. A praia estava cheia de vento bom e de uma liberdade. E eu estava s. Sem precisar de ningum. difcil porque preciso repartir contigo o que sinto. O mar calmo. Mas espreita e em suspeita. Como se tal calma no pudesse durar. Algo est sempre por acontecer. O imprevisto improvisado e fatal me fascina. J entrei contigo em comunicao to grande que deixei de existir sendo. Voc tornou-se um eu. to difcil falar e dizer coisas que no podem ser ditas. to silencioso. Como traduzir o silncio do encontro real entre ns dois? Dificlimo contar: olhei para voc fixamente por uns instantes. Tais momentos so meus segredos. Houve o que se chama de comunho perfeita. Eu chamo isto de estado agudo de felicidade. Estou terrivelmente lcida e parece que alcano um plano mais alto de humanidade. Ou da desumanidade - o it.

O que fao por involuntrio instinto no pode ser descrito.

Que estou fazendo ao te escrever? estou tentando fotografar o perfume.

Escrevo-te este fac-smile de livro, o livro de quem no sabe escrever; mas que no domnio mais leve da fala quase no sei falar. Sobretudo falar-te por escrito, eu que me habituei a que fosses a audincia, embora distrada, de minha voz. Quando pinto respeito o material que uso, respeito-lhe o primordial destino. esto quando te escrevo respeito as slabas.

Novo instante em que vejo o que vai se seguir. Embora para falar do instante de viso eu tenha que ser mais discursiva que o instante: muitos instantes se passaro antes que eu desdobre e esgote a complexidade una e rpida de um relance.

Escrevo-te medida de meu flego. Estarei sendo hermtica como na minha pintura? Porque parece que se tem de ser terrivelmente explcita. Sou explcita? Pouco se me d. Agora vou acender um cigarro. Talvez volte mquina ou talvez pare por aqui mesmo para sempre. Eu, que nunca sou adequada.

Voltei. Estou pensando em tartarugas. Uma vez eu disse por pura intuio que a tartaruga era um animal dinossurico. Depois que vim ler que mesmo. Tenho cada uma. Um dia vou pintar tartarugas. Elas me interessam muito. Todos os seres vivos, que no o homem, so um escndalo de maravilhamento: fomos modelados e sobrou muita matria-prima - it - e formaram-se ento os bichos. Para que uma tartaruga? Talvez o ttulo do que estou te escrevendo devesse ser um pouco assim e em forma interrogativa: "E as tartarugas?" Voc que me l diria: verdade que h muito tempo no penso em tartarugas.

Fiquei de repente to aflita que sou capaz de dizer agora fim e acabar o que te escrevo, mais na base de palavras cegas. Mesmo para os descrentes h o instante do desespero que divino: a ausncia do Deus um ato de religio. Neste mesmo instante estou pedindo ao Deus que me ajude. Estou precisando.

Precisando mais do que a fora humana. Sou forte mas tambm destrutiva. O Deus tem que vir a mim j que no tenho ido a Ele. Que o Deus venha: por favor. Mesmo que eu no merea. Venha. Ou talvez os que menos merecem mais precisem. Sou inquieta e spera e desesperanada. Embora amor dentro de mim eu tenha. S que no sei usar amor. s vezes me arranha como se fossem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e no entanto continuo inquieta porque preciso que o Deus venha. Venha antes que seja tarde demais. Corro perigo como toda pessoa que vive. E a nica coisa que me espera exatamente o inesperado. Mas sei que terei paz antes da morte e que experimentarei um dia o delicado da vida. Perceberei - assim como se come e se vive o gosto da comida. Minha voz cai no abismo de teu silncio. Tu me ls em silncio. Mas nesse ilimitado campo mudo desdobro as asas, livre para viver. ento aceito o pior e entro no mago da morte e para isto estou viva. O mago sensvel. E vibra-me esse it.

Agora vou falar da dolncia das flores para sentir mais o que existe. Antes te dou com prazer o nctar, suco doce que muitas flores contm e que os insetos buscam com avidez. Pistilo rgo feminino da flor que geralmente ocupa o centro e contm o rudimento da semente. Plen p fecundante produzido nos estames e contido nas anteras. Estame o rgo masculino da flor. composto por estilete e pela antera na parte inferior contornando o pistilo. Fecundao a unio de dois elementos de gerao - masculino e feminino - da qual resulta o fruto frtil. "E plantou Jav Deus um jardim no den que fica no Oriente e colocou nele o homem que formara" (Gen. 11, 8).

Quero pintar uma rosa.

Rosa a flor feminina que se d toda e tanto que para ela s resta a alegria de se ter dado. Seu perfume mistrio doido. quando profundamente aspirada toca no fundo ntimo do corao e deixa o interior do corpo inteiro perfumado. O modo de ela se abrir em mulher belssimo. As ptalas tem gosto bom na boca - s experimentar. Mas rosa no it. ela. As encarnadas so de grande sensualidade. As brancas so a paz do Deus. muito raro encontrar na casa de flores rosas brancas. As amarelas so de um alarma alegre. As cor-de-rosa so em geral mais carnudas e tm a cor por excelncia. As alaranjadas so produto de enxerto e so sexualmente atraentes.

Preste ateno e um favor: estou convidando voc para mudar-se para reino novo.

J o cravo tem uma agressividade que vem de certa irritao. So speras e arrebitadas as pontas de suas ptalas. O perfume do cravo de algum modo mortal. Os cravos vermelhos berram em violenta beleza. Os brancos lembram o pequeno caixo de criana defunta: o cheiro ento se torna pungente e a gente desvia a cabea para o lado com horror. Como transplantar o cravo para a tela?

O girassol o grande filho do sol. Tanto que sabe virar sua enorme corola para o lado de quem o criou. No importa se pai ou me. No sei. Ser o girassol flor feminina ou masculina? Acho que masculina.

A violeta introvertida e sua introspeco profunda. Dizem que se esconde por modstia. No . Esconde-se para poder captar o prprio segredo. Seu quase-no-perfume glria abafada mas exige da gente que o busque. No grita nunca o seu perfume. Violeta diz levezas que no se pode dizer.

A sempre-viva sempre morta. Sua secura tende eternidade. O nome em grego quer dizer: sol de ouro. A margarida florzinha alegre. simples e tona da pele. S tem uma camada de ptalas. O centro uma brincadeira infantil.

A formosa orqudea exquise e antiptica. No espontnea. Requer redoma. Mas mulher esplendorosa e isto no se pode negar. Tambm no se pode negar que nobre porque epfita. Epfitas nascem sobre outras plantas sem contudo tirar delas a nutrio. Estava mentindo quando disse que era antiptica. Adoro orqudeas. J nascem artificiais, j nascem arte.

Tulipa s tulipa na Holanda. Uma nica tulipa simplesmente no . Precisa de campo aberto para ser.

Flor dos trigais s d no meio do trigo. Na sua humildade tem a ousadia de aparecer em diversas formas e cores. A flor do trigal bblica. Nos prespios da Espanha no se separa dos ramos de trigo. um pequeno corao batendo.

Mas anglica perigosa. Tem perfume de capela. Traz xtase. Lembra a hstia. Muitos tm vontade de com-la e encher a boca com o intenso cheiro sagrado.

O jasmim dos namorados. D vontade de pr reticncias agora. Eles andam de mos dadas, balanando os braos e se do beijos ao quase som odorante do jasmim.

Estrelcia masculina por excelncia. Tem uma agressividade de amor e de sadio orgulho. Parece ter crista de galo e o seu canto. S que no espera pela aurora. A violncia de tua beleza.

Dama-da-noite tem perfume de lua cheia. fantasmagrica e um pouco assustadora e para quem ama o perigo. S sai de noite com seu cheiro tonteador. Dama-da-noite silente. E tambm da esquina deserta e em trevas e dos jardins de casas de luzes apagadas e janelas fechadas. perigosssima: um assobio no escuro, o que ningum agenta. Mas eu agento porque amo o perigo. Quanto suculenta flor de cctus, grande e cheirosa e de cor brilhante. a vingana sumarenta que faz a planta desrtica. o esplendor nascendo da esterilidade desptica.

Estou com preguia de falar da edelvais. que se encontra altura de trs mil e quatrocentos metros de altitude. branca e lanosa. Raramente alcanvel: a aspirao.

Gernio flor de canteiro de janela. Encontra-se em So Paulo, no bairro de Graja e na Sua.

Vitria-rgia est no Jardim Botnico do Rio de Janeiro. Enorme e at quase dois metros de dimetro. Aquticas, de se morrer delas. Elas so o amaznico: o dinossauro das flores. Espalham grande tranqilidade. A um tempo majestosas e simples. E apesar de viverem no nvel das guas elas do sombras. Isto que estou te escrevendo em latim: de natura florum. Depois te mostrarei meu estudo j transformado em desenho linear.

O crisntemo de alegria profunda. Fala atravs da cor e do despenteado. a flor que descabeladamente controla a prpria selvageria.

Acho que vou ter que pedir licena para morrer. Mas no posso, tarde demais. Ouvi o "Pssaro de Fogo" - e afoguei-me inteira.

Tenho que interromper porque - Eu no disse? eu no disse que um dia ia me acontecer uma coisa? Pois aconteceu agora mesmo. Um homem chamado Joo falou comigo pelo telefone. Ele se criou no profundo da Amaznia. E diz que l corre a lenda de uma planta que fala. Chama-se taj. E dizem que sendo mistificada de um modo ritualista pelos indgenas, ela eventualmente diz uma palavra. Joo me contou uma coisa que no tem explicao: uma vez entrou tarde da noite em casa e quando estava passando pelo corredor onde estava a planta ouviu a palavra "Joo". Ento pensou que era sua me o chamando e respondeu: j vou. Subiu mas encontrou a me e o pai ressonando profundamente.

Estou cansada. Meu cansao vem muito porque sou uma pessoa extremamente ocupada: tomo conta do mundo. Todos os dias olho pelo terrao para o pedao de praia com mar e vejo as espessas espumas mais brancas e que durante a noite as guas avanaram inquietas. Vejo isto pela marca que as ondas deixam na areia. Olho as amendoeiras da rua onde moro. Antes de dormir tomo conta do mundo e vejo se o cu da noite est estrelado e azul-marinho porque em certas noites em vez de negro o cu parece azul-marinho intenso, cor que j pintei em vitral. Gosto de intensidades. Tomo conta do menino que tem nove anos de idade e que est vestido de trapos e magrrimo. Ter tuberculose, se que j no a tem. No Jardim Botnico, ento, fico exaurida. Tenho que tomar conta com o olhar de milhares de plantas e rvores e sobretudo da vitria-rgia. Ela est l. E eu a olho.

Repare que no menciono minhas impresses emotivas: lucidamente falo de algumas das milhares de coisas e pessoas dais quais tomo conta. Tambm no se trata de emprego pois dinheiro no ganho por isto. Fico apenas sabendo como o mundo.

Se tomar conta do mundo d muito trabalho? Sim. Po exemplo: obriga-me a me lembrar do rosto inexpressivo e por isso assustador da mulher que vi na rua. Com os olhos tomo conta da misria dos que vivem encosta acima.

Voc h de me perguntar por que tomo conta do mundo. que nasci incumbida.

Tomei em criana conta de uma fileira de formigas: elas andam em fila indiana carregando um mnimo de folha. O que no impede que cada uma comunique alguma coisa que vier em direo oposta. Formiga e abelha j no so it. So elas.

Li o livro sobre as abelhas e desde ento tomo conta sobretudo da rainha-me. As abelhas voam e lidam com flores. banal? Isto eu mesma constatei. Faz parte do trabalho registrar o bvio. Na pequena formiga cabe todo um mundo que me escapa se eu no tomar cuidado. Por exemplo: cabe senso instintivo de organizao, linguagem para alm do supersnico e sentimentos de sexo. Agora no encontro uma s formiga para olhar. Que no houve matana eu sei porque seno j teria sabido.

Tomar conta do mundo exige tambm muita pacincia: tenho que esperar pelo dia em que me aparea uma formiga.

S no encontrei ainda a quem prestar contas. Ou no? Pois estou te prestando contas aqui mesmo. Vou agora mesmo prestar-te contas daquela primavera que foi bem seca. O rdio estalava ao captar-lhe a esttica. A roupa eriava-se ao largar a eletricidade do corpo e o pente erguia os cabelos imantados - esta era uma dura primavera. Ela estava exausta do inverno e brotava toda eltrica. De qualquer ponto em que se estava partia-se para o longe. Nunca se viu tanto caminho. Falvamos pouco, tu e eu. ignoro por que todo mundo estava to zangado e eletronicamente apto. Mas apto a qu? o corpo pesava de sono. E os nossos grandes olhos inexpressivos como olhos de cego quando esto bem abertos. No terrao estava o peixe no aqurio e tomamos refresco naquele bar de hotel olhando para o campo. Com o vento vinha o sonho das cabras: na outra mesa um fauno solitrio. Olhvamos o copo de refresco gelado e sonhvamos estticos dentro do copo transparente. "O que mesmo o que voc disse?", voc perguntava. "Eu no disse nada". Passavam-se dias e mais dias e tudo naquele perigo e os gernios to encarnados. Bastava um instante de sintonizao e de novo captava-se a esttica farpada da primavera ao vento: o sonho impudente das cabras e o peixe todo vazio e nossa sbita tendncia ao roubo de frutas. O fauno agora coroado em saltos solitrios. "O qu?" "Eu no disse nada". Mas eu percebia um pequeno rumor como de um corao batendo debaixo da terra. Colocava quietamente o ouvido no cho e ouvia o vero abrir caminho por dentro e o meu corao embaixo da terra - "nada! eu no disse nada!" - e sentia a paciente brutalidade com que a terra fechada se abria por dentro em parto, e sabia com que peso de doura o vero amadurecia cem mil laranjas e sabia que as laranjas eram minhas. Porque eu queria.

Orgulho-me de sempre pressentir mudana de tempo. H coisa no ar - o corpo avisa que vir algo novo e eu me alvoroo toda. No sei para qu. naquela mesma primavera ganhei a planta chamada prmula. to misteriosa que no seu mistrio est contido o inexplicvel da natureza. Aparentemente nada tem de singular. Mas no dia exato em que comea a primavera as folhas morrem e em lugar delas nascem flores fechadas que tm um perfume masculino e feminino extremamente estonteador.

A gente est sentada perto e olhando distrada. E eis que elas vagarosamente vo se abrindo e entregando-se nova estao sob nosso olhar espantado: a primavera que ento se instala.

Mas quando vem o inverno eu dou e dou e dou. Agasalho muito. Aconchego ninhadas de pessoas no meu peito morno. E ouve-se barulho de quem toma sopa quente. Estou vivendo agora dias de chuva: j se aproxima eu dar.

No v que isto aqui como filho nascendo? Di. Dor vida exacerbada. O processo di. Vir-a-ser uma lenta e lenta dor boa. o espreguiamento amplo at onde a pessoa pode se esticar. E o sangue agradece. Respiro, respiro. O ar it. Ar com vento j um ele ou ela. Se eu tivesse que me esforar para te escrever ia ficar to triste. s vezes no agento a fora da inspirao. Ento pinto abafado. to bom que as coisas no dependam de mim.

Tenho falado muito em morte. Mas vou te falar no sopro de vida. Quando a pessoa j est sem respirao faz-se a respirao bucal: cola-se a boca na boca do outro e se respira. E a outra recomea a respirar. Essa troca de aspiraes uma das coisas mais belas que j ouvi dizerem da vida. Na verdade a beleza deste boca a boca est me ofuscando.

Oh, como tudo incerto. E no entanto dentro da Ordem. No sei sequer o que vou te escrever na frase seguinte. A verdade ltima a gente nunca diz. Quem sabe da verdade que venha ento. E fale. Ouviremos contritos.

... eu o vi de repente e era um homem to extraordinariamente bonito e viril que eu senti uma alegria de criao. No que eu o quisesse para mim assim como no quero o menino que vi com cabelos de arcanjo correndo atrs da bola. Eu queria somente olhar. O homem olhou um instante para mim e sorriu calmo: ele sabia o quanto era belo e sei que sabia que eu no o queria para mim. Sorriu porque no sentiu ameaa alguma. que os seres excepcionais em qualquer sentido esto sujeitos a mais perigos que o comum das pessoas. Atravessei a rua e tomei um txi. A brisa arrepiava-me os cabelos da nuca. E eu estava to feliz que me encolhi no canto do txi de medo porque a felicidade di. E isto tudo causado pela viso do homem bonito. Eu continuava a no quer-lo para mim - gosto das pessoas um pouco feias e ao mesmo tempo harmoniosas, mas ele de certa forma dera-me muito com o sorriso de camaradagem entre pessoas que se entendem. Tudo isso eu no entendia.

A coragem de viver: deixo oculto o que precisa ser oculto e precisa irradiar-se em segredo.

Calo-me.

Porque no sei qual o meu segredo. Conta-me o teu, ensina-me sobre o secreto de cada um de ns. No segredo difamante. apenas esse isto: segredo.

E no tem frmulas.

Penso que agora terei que pedir licena para morrer um pouco. Com licena - sim? No demoro. Obrigada.

... No. No consegui morrer. Termino aqui esta "coisa-palavra" por um ato voluntrio? Ainda no.

Estou transfigurando a realidade - o que que est me escapando? por que no estendo a mo e pego? porque apenas sonhei com o mundo mas jamais o vi.

Isto que estou te escrevendo um contralto. negro-espiritual. Tem coro e velas acesas. Estou tendo agora uma vertigem. Tenho um pouco de medo. A que me levar minha liberdade? O que isto que estou te escrevendo? Isso me deixa solitria. Mas vou e rezo e minha liberdade regida pela Ordem - j estou sem medo. O que me guia apenas um senso de descoberta. Atrs do atrs do pensamento.

Ir me seguindo na verdade o que fao quando vou te escrevendo e agora mesmo: sigo-me sem saber ao que me levar. s vezes ir seguindo-me to difcil. Por estar seguindo o que ainda no passa de uma nebulosa. s vezes termino desistindo.

Agora estou com medo. Porque vou te dizer uma coisa. Espere que o medo passe.

Passou. o seguinte: a dissonncia me harmoniosa. A melodia por vezes me cansa. E tambm o chamado "leit-motit". Quero na msica e no que te escrevo e no que pinto, quero traos geomtricos que se cruzam no ar e formam uma desarmonia que eu entendo. puro it. Meu ser se embebe todo e levemente se embriaga. Isto que estou te escrevendo muito importante. E eu trabalho quando durmo: porque ento que me movo no mistrio.

Hoje domingo de manh. Neste domingo de sol e de Jpiter estou sozinha em casa. Dobrei-me de repente em dois e para frente como em profunda dor de parto - e vi que a menina em mim morria. Nunca esquecerei este domingo sangrento. Para cicatrizar levar tempo. E eis-me aqui dura e silenciosa e herica. Sem menina dentro de mim. Todas as vidas so vidas hericas.

A criao me escapa. E nem quero saber tanto. Basta-me que meu corao bata no peito. Basta-me o impossvel vivo do it.

Sinto agora mesmo o corao batendo desordenadamente dentro do peito. E a reivindicao porque nas ltimas frases andei pensando somente tona de mim. Ento o fundo da existncia se manifesta para banhar e apagar os traos do pensamento. O mar apaga os traos das ondas na areia. Oh Deus, como estou sendo feliz. O que estraga a felicidade o medo.

Fico com medo. Mas o corao bate. O amor inexplicvel faz o corao bater mais depressa. A garantia nica que eu nasci. Tu s uma forma de ser eu, e eu uma forma de te ser: eis os limites de minha possibilidade.

Estou em uma delicia de se morrer dela. Doce quebranto ao te falar. Mas h a espera. A espera sentir-me voraz em relao ao futuro. Um dia disseste que me amavas. Finjo acreditar e vivo, de ontem para hoje, em amor alegre. Mas lembrar-se com saudade como se despedir de novo.

Um mundo fantstico me rodeia e me . Ouo o canto doido de um passarinho e esmago borboletas entre os dedos. Sou uma fruta roda por um verme. E espero o apocalipse orgsmico. Uma chusma dissonante de insetos me rodeia, luz de lamparina acesa que sou. Exorbito-me ento para ser. Sou em transe. Penetro no ar circundante. Que febre: no consigo parar de viver. Nesta densa selva de palavras que envolve espessamente o que sinto e penso e vivo e transforma tudo o que sou em alguma coisa minha e que no entanto fica inteiramente fora de mim. Fico me assistindo pensar. O que me pergunto : quem em mim que est fora at de pensar? Escrevo-te tudo isto pois um desafio que sou obrigada com humildade a aceitar. Sou assombrada pelos meus fantasmas, pelo que mtico e fantstico - a vida sobrenatural. E eu caminho em corda bamba at o limite de meu sonho. As vsceras torturadas pela voluptuosidade me guiam, fria dos impulsos. Antes de me organizar tenho que me desorganizar internamente. Para experimentar o primeiro e passageiro estado primrio de liberdade. Da liberdade de errar, cair e levantar-me.

Mas se eu esperar compreender para aceitar as coisas - nunca o ato de entrega se far. Tenho que dar o mergulho de uma s vez, mergulho que abrange a compreenso e sobretudo a incompreenso. E quem sou eu para ousar pensar? Devo entregar-me. Como se faz? Sei porm que s andando que se sabe andar e - milagre - se anda.

Eu, que fabrico o futuro como uma aranha diligente. E o melhor de mim quando nada sei e fabrico no sei o qu.

Eis que de repente vejo que no sei nada. o gume de minha faca est ficando cego? Parece-me que p mais provvel que no entendo porque o que vejo agora difcil: estou entrando sorrateiramente em contato com uma realidade nova para mim e que ainda no tem pensamentos correspondentes, e muito menos ainda uma palavra que a signifique. mais uma sensao atrs do pensamento.

Como te explicar? Vou tentar. que estou percebendo uma realidade enviesada. Vista por um corte oblquo. S agora pressenti o oblquo da vida. Antes s via atravs de cortes retos e paralelos. No percebia o sonso trao enviesado. Agora adivinho que a vida outra. Que viver no s desenrolar sentimentos grossos - algo mais sortilgico e mais grcil, sem por isso perder o seu fino vigor animal. Sobre esta vida insolitamente enviesada tenho posto minha pata que pesa, fazendo assim que a existncia fenea no que tem de oblquo e fortuito e no entanto ao mesmo tempo sutilmente fatal. Compreendi a fatalidade do acaso e no existe nisso contradio.

A vida oblqua muito ntima. No digo mais sobre essa intimidade para no ferir o pensar-sentir com palavras secas. Para deixar esse oblquo na sua independncia desenvolta.

E conheo tambm um modo de vida que suave orgulho, graa de movimentos, frustrao leve e contnua, de uma habilidade de esquivana que vem de longo caminho antigo. Como sinal de revolta apenas uma ironia sem peso e excntrica. Tem um lado da vida que como no inverno tomar caf em um terrao dentro da friagem e aconchegada na l.

Conheo um modo de vida que sombra leve desfraldada ao vento e balanando leve no cho: vida que sombra flutuante, levitao e sonhos no dia aberto: vivo a riqueza da terra.

Sim. A vida muito oriental. S algumas pessoas escolhidas pela fatalidade do acaso provaram da liberdade esquiva e delicada da vida. como saber arrumar flores em um jarro: uma sabedoria quase intil. Essa liberdade fugitiva da vida no deve ser jamais esquecida: deve estar presente como um eflvio.

Viver essa vida mais um lembrar-se indireto dela do que um viver direto. Parece uma convalescena macia de algo que no entanto poderia ter sido absolutamente terrvel. Convalescena de um prazer frgido. S para os iniciados a vida ento se torna fragilmente verdadeira. E est-se no instante-j: come-se a fruta na sua vigncia. Ser que no sei mais do que estou falando e que tudo me escapou sem eu sentir? Sei sim - mas com muito cuidado porque seno por um triz no sei mais. Alimento-me delicadamente do cotidiano trivial e tomo caf no terrao no limiar deste crepsculo que parece doentio apenas porque doce e sensvel.

A vida oblqua? Bem sei que h um desencontro leve entre as coisas, elas quase se chocam, h desencontro entre os seres que se perdem uns aos outros entre palavras que quase no dizem mais nada. Mas quase nos entendemos nesse leve desencontro, nesse quase que a nica forma de suportar a vida em cheio, pois um encontro brusco face a face com ela nos assustaria, espaventaria os se