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A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa [email protected] www.marcador.pt facebook.com/marcadoreditora © 2016 Direitos reservados para Marcador Editora uma empresa Editorial Presença Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730-132 Barcarena Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e incidentes ou são produtos da imaginação do autor ou são usados ficticiamente. Qualquer semelhança com acontecimentos reais ou lugares ou pessoas, vivas ou mortas, é meramente coincidência. Copyright © 2012 by Ka Hancock Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer forma sem permissão por escrito do proprietário legal. Título original: Dancing on Broken Glass Título: Dançando sobre Vidro – Poderá o casamento sobreviver a um amor impossível? Autora: Ka Hancock Tradução: Liliana Lavado Revisão: Silvina de Sousa Paginação: Maria João Gomes Capa: Catarina Sequeira/Marcador Imagens de capa: © Shutterstock Impressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda. ISBN: 978-989-754-157-5 Depósito legal: 407068/16 1.ª edição: abril de 2016

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  • A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

    [email protected]/marcadoreditora

    © 2016Direitos reservados para Marcador Editorauma empresa Editorial PresençaEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730-132 Barcarena

    Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e incidentes ou são produtos da imaginação do autor ou são usados ficticiamente. Qualquer semelhança com acontecimentos reais ou lugares ou pessoas, vivas ou mortas, é meramente coincidência.

    Copyright © 2012 by Ka HancockTodos os direitos reservados.Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer forma sem permissão por escrito do proprietário legal.

    Título original: Dancing on Broken GlassTítulo: Dançando sobre Vidro – Poderá o casamento sobreviver a um amor impossível?Autora: Ka HancockTradução: Liliana LavadoRevisão: Silvina de SousaPaginação: Maria João GomesCapa: Catarina Sequeira/MarcadorImagens de capa: © ShutterstockImpressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda.

    ISBN: 978-989-754-157-5Depósito legal: 407068/16

    1.ª edição: abril de 2016

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    Agradecimentos

    Oh, como se consegue agradecer a todos aqueles que contribuíram para este feito? Vou começar por um marido que me abasteceu de Pepsi e papel, e sempre me deu, e aos meus amigos imaginários, bastante espaço e liberdade. Amo-te, Mark Dee! Às minhas filhas, que leem cada palavra e se riem indulgentemente, à Hilary, à Abby e à minha rainha das vírgulas, Whitney – todas elas são críticas excelentes e generosas, já para não dizer mulheres extraordinárias. E ao Shawn, um pequeno grande filho que é char-moso e sarcástico em proporções iguais, sempre inspirador, sempre encoraja-dor. Um obrigada especial ao Bear, ao Ryan, ao Weston e à Cesiley – as crianças maravilhosas que tive de forma fácil. À Joyce e ao Lavell Lloyd, apoiantes incansáveis, alimentadores de todos sonhos, e os melhores pais que uma rapa-riga pode ter. Um enorme obrigada ao meu pequeno mas indispensável gru-po de escritores: Dorothy Keddington, Carol Warburton, LuAnn Anderson e Nancy Hopkins – todas elas amigas, irmãs e apoiantes – e ao Ed, cuja voz ainda oiço dentro da minha cabeça. Gratidão é uma expressão demasiado pequena.

    Estou em dívida para com a Mollie Glick, a minha extraordinária agente que me enviou a carta de rejeição mais simpática possível, mas que me atirou uma boia salva-vidas – se algum dia fizeres uma revisão a isto, gostava de o ver novamente – e falava a sério. Tu fizeste toda a diferença! E louros para a Late Hamblin, por tratar de todos os detalhes. Obrigada à maravilhosa Stephanie Abou, pela sua navegação perita do Dançando sobre Vidro pelos mercados estrangeiros; que aventura incrível! E ao Jerry Gross, pelo seu elogio generoso e sugestões sábias na fase inicial.

    Um agradecimento profundo e humilde à minha brilhante editora, Lauren McKenna, por ser tão boa naquilo que faz! (Estavas totalmente certa sobre a Priscilla... e basicamente acerca de tudo o resto.) Obrigada à Megan McKeever e à Alexandra Lewis, por me manterem na linha. Um agradeci-mento imenso a Kristin Dwyer, por me guiar pacientemente pelos caminhos

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    KA HANCOCK

    desconhecidos da publicidade – o que faria eu sem ti!? Obrigada ao John Paul Jones e à Meredith Ray, por fazerem tudo parecer tão bem! E a todas as pes-soas maravilhosas da Gallery que cuidaram tão bem desta história e de mim, não poderia ter desejado uma experiência mais maravilhosa.

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    Prólogo

    Conheci a Morte numa festa. No aniversário dos doze anos da minha irmã Priscilla, quando eu tinha cinco. Ela não era particularmente assustadora, a Morte, já me tinham explicado tudo acerca dela, por isso, vê-la não provo-cou nenhuma impressão adversa em mim. Até que me apercebi de que ela estava lá por causa do meu pai.

    Em pequena, eu partilhava um ritual matinal com o meu pai. Começava com o som de água a correr pelos tubos rebeldes e um chio quando o meu pai rodava a torneira. Ainda vivo na casa onde cresci e isto continua a acon-tecer. Mas nesse tempo o som significava que o meu pai estava acordado.

    Lembro-me de que subia as escadas a cambalear, a esfregar os olhos ensonada e a apalpar o caminho pelo corredor escuro até à porta fechada da casa de banho. É claro que eu batia, e o meu pai cantava lá de dentro:

    – Será a minha Princesa Lulu?Eu adorava porque dava a Lucy, o meu nome, um toque de conto de fa-

    das, e coisas destas impressionam uma criança de cinco anos. Ele abria a porta com vigor e a luz picava-me os olhos enquanto ele me deixava entrar na casa de banho, o nosso santuário privado – apenas eu e o meu pai. Era pequena; a banheira ocupava uma parede inteira, e o lavatório tinha um minibalcão que mal dava para acomodar os instrumentos de barbear e uma barra de sabão. Ainda hoje o Mickey se queixa disso. Eu arrastava a pequena versão de mim mesma até à sanita e abria o livro. Afinal, era esse o propósito ostensivo da minha presença ali: praticar a fonética.

    Entretanto, o meu pai, de pé junto ao lavatório, começava a desfazer a barba, e todos os dias, quando tinha a espuma espalhada pelo rosto, aproxima-va-se de mim para um beijo e uma gargalhada. Hoje, com trinta e três anos, ainda consigo cheirar o creme de barbear dele e ouço o meu riso.

    O meu pai era um homem alto. A barriga dele ficava praticamente pen-durada no lavatório com sabão, e por vezes, quando ele se inclinava para mais perto do espelho a fim de inspecionar alguma coisa, ao endireitar-se encon-trava bolhas de sabão brancas coladas à barriga e dizia:

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    KA HANCOCK

    – Bem, olha isto, Lu, agora tenho creme no meio, tal como uma Oreo. – Mais um beijo e um risinho.

    Quando ele terminava de se lavar e pentear e gargarejar e cuspir, esfre-gava Old Spice no rosto e enchia a casa de banho com aquele aroma inesque-cível. Ainda adoro Old Spice, mas não deixo o Mickey usá-lo.

    Lembro-me de tudo sobre essas manhãs. Das toalhas amarelas no chão, ao lavatório cheio de água com sabão, ao Paul Harvey baixinho como música de fundo, ao uniforme engomado pendurado atrás da porta.

    A vila onde vivíamos, no Município de Brinley, conhecia o meu pai como o sargento James Houston – Jim para o mundo e Jimmy para a minha mãe e o parceiro dele, Deloy Rosenberg. Adorava ver a transformação de pai ensonado, cabelo-por-todo-o-lado, tronco nu, em sargento James Houston. Quando ele saía daquela casa de banho, vestido com o fato azul que a minha mãe engomava todas as noites, eu pensava que ele era invencível. Era inconce-bível para mim que alguma coisa o pudesse magoar, muito menos duas balas minúsculas. Eu pensava que era esse o significado de se ser o sargento James Houston, do Município de Brinley – indestrutível.

    Mas um dia a senhora Delacruz, a minha professora no infantário, disse--nos que todas as coisas morrem.

    – Tudo, sem exceção – disse ela, e deixou-me preocupada.Tenho a certeza de que falei com o meu pai sobre isto, embora não me

    recorde. Lembro-me apenas de ele se ajoelhar junto a mim uma noite para falarmos sobre o assunto. A Lily, que era quatro anos mais velha do que eu, estava na cama ao lado, a fingir que dormia, e por isso ele sussurrava quando fez esta declaração terrível:

    – A senhora Delacruz está certa, todas as coisas morrem. – Suponho que foi em resposta à minha expressão de horror que ele pegou na minha mão, a beijou e a fez deslizar pelo seu queixo áspero. Ele disse-me: – Lulu, não pre-cisas de ter medo da morte. Na verdade, existem segredos sobre a morte que nem toda a gente conhece. – Lembro-me de que se aproximou ainda mais e perguntou: – Queres saber quais são?

    – Segredos? – questionei. Parecia rebuscado, mas o meu pai nunca me mentia e por isso continuei a ouvir.

    – Lulu, existem três coisas sobre a morte que te posso prometer. Prometo--te que não é o fim. Sente-se que é o fim, é por isso que as pessoas choram, mas não é. E não dói. Essa é outra parte muito importante da morte de que as pessoas têm medo se não a compreendem. Não dói. E finalmente, se não tens medo da morte, Lu, podes estar atenta e preparada. Acreditas em mim?

    O rosto dele estava tão sério, tão credível, que eu simplesmente acenei com a cabeça.

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    – Com o que se parece?– Não estou certo, mas aposto que é bonita.– É simpática?– Muito simpática e muito gentil. – Aqui ele explicou ao meu pequeno

    cérebro, que absorvia tudo como uma esponja, que a morte não era o mesmo que morrer. Que por vezes morrer doía de facto, mas com isso vinha um pouco de magia porque se esquecia a dor como se ela nunca tivesse aconteci-do. Isto deu início a uma grande discussão sobre todas as maneiras sangrentas pelas quais uma pessoa podia morrer, e o quão maravilhosa era a oportunida-de de o esquecer. Devo ter-lhe parecido cética, o que é estranho, porque não duvidei daquilo que ele me estava a dizer. Ainda assim, o meu pai continuou: – Lulu, lembras-te de ter nascido?

    Recordo-me perfeitamente de ter pensado e respondido: – Não.Ele anuiu. – É a mesma coisa com a morte. Esqueces-te.Fiquei deslumbrada. O meu pai estava certo. Sempre certo. Não me lembro

    de tudo o que disse, mas recordo-me da forma como o mistério da morte se dissolveu por completo naquela noite nos seus honestos olhos. Eu confiava nele completamente, e as suas palavras ficaram comigo e solidificaram-se na minha alma de adulta. É claro que me apercebo de que elas foram apenas um presente para agraciar a minha inocência; conforto para uma menina que não conseguia dormir. Mas quem diria que a calma que ele me transmitiu me levaria em segu-rança por tanta perda e me confortaria quando quase me perdi de mim mesma.

    Ele estava certo: a morte acontece a toda a gente. Mas se não é o fim, e não dói..., bem, então o que há para temer?

    Certamente que esta era a lógica do meu eu de cinco anos. Então, quan-do a Morte apareceu na festa de aniversário da Priscilla, eu estava intrigada, mas não alarmada.

    A festa era no nosso jardim das traseiras. O churrasco crepitava com hambúrgueres, as geleiras abarrotavam com cerveja e ponche havaiano, e a minha mãe ajeitava as velas no bolo da Priss. Além disso, metade da turma do 2.º ciclo e muitos dos pais dos meus amigos encontravam-se lá. A Jan e o Harry Bates, os vizinhos do lado, tentavam que o pateta do filho parasse de perseguir a minha irmã Lily com o seu furão. (Eles tinham nove anos, mas já nessa altura eu sabia que a Lily iria casar-se com o Ron Bates. Toda a gente sabia.) A Dr.ª Barbee estava lá e os Witherses da casa funerária ao final da rua, os amigos polícias do meu pai – até o presidente da câmara.

    Eu punha os pratos de plástico na mesa de piquenique quando reparei nela. Soube de imediato quem era, e não me pareceu de todo ameaçadora ou errada.

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    KA HANCOCK

    Na verdade, achei-a muito amável, embora mais tarde me tenha questionado sobre isso. Se tivesse de a descrever, não creio que o conseguisse, como se des-creve a sensação que acompanha uma aparição? Hoje julgo que foi mais como um cru saber que tomou forma e dimensão, e que algo em mim reconheceu. Já a vi depois desse dia e classifiquei-a como sendo do género feminino, mais por instinto e sensação do que por uma prova concreta. Seja como for, sou capaz de a reconhecer em qualquer lugar.

    Não estava assustada com a sua presença. Na verdade, lembro-me de estar bastante intoxicada pelo som do sussurro dela acima do barulho, embora nunca tenha ouvido o que disse. Vi-a numa espécie de flutuar entre os nossos convidados, a sua totalidade sem nada mais substancial do que o interior de uma nuvem. A certa altura, ela até olhou para mim, olhos nos olhos. Se o meu pai nunca me tivesse falado sobre ela, acredito que ainda assim saberia quem era. Era uma ligação irreprimível, inegável. Ela também me conhecia. Sorriu--me – à pequena versão de mim –, mas viu a minha alma adulta e a minha alma adulta compreendeu. Ela também viria para mim. Mas não naquela altura.

    Não, ela estava lá para o meu pai. E o meu pai também a deve ter sentido, porque ele encontrou o meu olhar do outro lado do jardim. Ainda consigo ver o rosto dele, a consciência nos seus olhos. Eles diziam-me que não tivesse medo – ele não tinha.

    Ainda o via como algo grande demais para morrer e demasiado sólido para que uma pequena fuga o pudesse matar. Mas duas balas minúsculas fize-ram isso mesmo. Ele morreu no dia seguinte à Priscilla fazer doze anos, quan-do tentou impedir um vagabundo de roubar a bomba de gasolina da Arnie. A morte veio pela minha mãe doze anos mais tarde. E depois ficámos só nós, três raparigas, a Lily, a Priscilla e eu.

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    Capítulo 1

    Dr.ª Barbee. Almoço com a Lily. Ir buscar a roupa à lavandaria. Hospital para abraçar o Mickey. Eu estava deitada na mesa de exames, gelada, a planear o meu dia pelos dedos enquanto esperava. Charlotte Barbee dissera que voltava logo em seguida para terminarmos, isso já fora há vários minutos. Contei os meus dedos outra vez. Almoço. Lavandaria. Mickey. Havia mais alguma coisa, mas não me lembrava do que era. Na verdade, não conseguia pensar além do Mickey. Ele estava internado há seis dias – um Mickey dife-rente do anterior a esse período. Mas naquela manhã ele parecia bem, parecia quase de volta.

    A Charlotte regressou apressada e a pedir desculpa. – Maldita companhia de seguros! Pensam que não tenho nada melhor

    para fazer do que... – bufou, depois inspirou. – Vamos lá, Lucy, onde estávamos nós?

    Num instante, voltei à posição, os meus pés descalços firmemente apoia-dos nos estribos metálicos, gelados, tal como o resto de mim.

    – Porque tens isto aqui tão frio, Charlotte? É uma maldade.Quando ela não respondeu, levantei a cabeça da almofada e observei o

    rosto dela a flutuar entre os meus joelhos dobrados. Ela estava lá em baixo a ajustar um par de bicos de pato para ver melhor o que logo à partida, na minha opinião, nunca devia ser visto.

    – Então como está o Mickey esta semana? – perguntou, ainda a sondar e ignorando as minhas preocupações sobre a temperatura.

    – Melhor do que na semana passada – respondi, prendendo a respiração com o toque dela.

    – Ainda está no hospital?– Sim. Mas pode voltar para casa na sexta-feira, se se comportar. E eu

    espero bem que assim seja.Charlotte Barbee esboçou o seu sorriso conhecedor. – Há quanto tempo estão casados?– Quase onze anos.

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    – Não passou assim tanto tempo, ou passou? O tempo voa! – disse ela. – Agora respira profundamente algumas vezes.

    As respirações profundas fizeram-me tossir e então lembrei-me: arranjar umas gotas para a tosse.

    Tratava-se do meu exame anual e a Charlotte Barbee era minuciosa. Ela sabia o que procurava, e caso o encontrasse, eu iria vê-lo no rosto dela, onde já o vira antes. Para um observador comum, aquele poderia parecer um exame físico normal, mas a verdade era mais complicada. Eu estava a ser escrutinada por cancro recorrente. Tive o primeiro há cerca de sete anos, aos vinte e seis. Essa patologia não me punha na coluna das mulheres-adultas-saudáveis, mas antes na coluna das sobreviventes-de-cancro – isto é, antes de ficar livre durante cinco anos. Agora que eu e as minhas irmãs estamos na coluna dos saudáveis, respiro um pouco melhor. O cancro que roubou a minha mãe e avó ameaça--nos também às três: a mim, à Lily e à Priscilla. Com esta genética caprichosa a vaguear pelo nosso sangue, somos todas muito vigilantes, especialmente a Dr.ª Barbee, em quem depositamos a nossa confiança.

    A Lily ofereceu-se para vir comigo, para apoio moral, mas honestamente, estes rastreios são quase mais duros para a minha irmã do que para mim, por isso declinei a generosidade. A Lily é quem mais se preocupa entre nós, e a possibilidade de eu voltar a ficar doente é a soma de todos os medos dela. Nestes dias, no que diz respeito a exames físicos, ela prepara-se para o pior ce-nário possível, a rezar o tempo inteiro para ouvir as palavras mágicas da pror-rogação oferecida pela voz da Charlotte: «Está tudo bem.» Em todas as vezes, essa declaração é como ganhar a lotaria, e até a Lily o ouvir, permanece con-vencida de que a sua preocupação dedicada vai produzir um bom resultado.

    Quanto a mim, só desejo mais tempo. Durante cinco anos, senti-me feliz quando me era concedida vida em doses de meio ano, saboreei-as e celebrei--as como se tivesse ludibriado o destino. Agora, se estou saudável nos meus exames de rotina, tenho direito a doses maiores de tempo. Hoje é o meu segundo exame físico anual, e devo dizer, doze meses batem seis a léguas. Ainda assim, a rotina é a mesma – recebo as boas notícias, dou graças a Deus, e continuo a dançar pela vida fora. Mas só até chegar o momento de me pre-parar para a consulta seguinte e de novo ponderar as possibilidades estatísticas, sempre deprimentes. Quando o cancro volta, por norma, fá-lo com espírito de vingança. Quando o medo se esgueira para dentro de mim, como acontece ocasionalmente, repilo-o com as palavras do meu pai de há tanto tempo.

    Por vezes pergunto-me se ele fazia ideia de que eu levaria a sabedoria dele tão a peito. Mas por causa dela, na hora da verdade, a morte não me assusta. No entanto, a parte de morrer faz-me parar por um instante. Já o fiz antes e não me saí muito bem. Ver as pessoas que amo, o terror nos olhos do

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    Mickey... agradeço a Deus todos os dias que ultrapassamos isso porque per-cebi que me saio muito melhor quando sou eu a abrir mão do que quando é alguém a abrir mão de mim.

    – Preciso de uma amostra de urina, e depois terminamos – disse a Charlotte, puxando-me de volta ao assunto em questão.

    – Então, estou bem?Ela pousou as suas mãos fortes e capazes sobre os meus ombros e olhou-

    -me nos olhos. – Acho que vamos enviar os teus fluidos todos para o laboratório e eles

    vão ligar-me e dizer-me que estás bem.– Eu sabia. Então não me devo preocupar por me sentir cansada?– Lucy, eu estou cansada. Tu não sabes o que é cansaço – repreendeu-me.– E este formigueiro na garganta?– Abre a boca. – Ela espreitou-me a boca com uma espátula.– Não vejo nada que me preocupe. Diz-me outra vez: há quanto tempo

    andas a tossir?– Não sei, alguns dias, talvez.– Vou fazer-te uma raspagem, só por precaução.– És tão boa médica. – Ri-me, enquanto ela se voltava para as amostras.– Eu tento. – Quando terminou, colocou o esfregaço num pequeno

    frasco de plástico e sorriu-me. – Vamos lá então, veste esta bata e atravessa o corredor para fazeres a mamografia.

    – Eia! – disse eu sarcasticamente. Ter os meus pequenos seios esmaga-dos entre duas placas de acrílico e examinados em busca de algumas mu-danças microscópias era, para mim, a parte mais difícil daquela provação. O cancro começa numa única célula que recruta as células em redor para a sua rebelião, e depois avança para a destruição do bairro. Quando os pontos aparecem numa mamografia, o estrago tem uma base. A Charlotte levantou o meu queixo com o dedo e olhou-me como se tivesse lido os meus pen-samentos.

    – Lucy, ligo-te se precisarmos de falar. Mas não tenho qualquer preocu-pação, por isso não te admires se te ligar apenas para conversa fiada.

    Eu acenei.– Tudo bem. Vamos jantar na próxima semana.Do outro lado do corredor, forcei-me a uma troca de palavras de cir-

    cunstância enquanto a Aretha manejava os meus peitos como se fossem massa de pão. Ela era a única técnica de mamografia de Brinley, por isso conhecia a maioria dos seios da nossa pequena comunidade, provavelmente ainda melhor do que as donas. Ela era uma mulher alta e elegante – profissionalíssima – e apanhei-me a imaginar o que lhe passaria pela cabeça quando nos via fora

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    KA HANCOCK

    do consultório a viver a nossa vidinha. Reconheceria os peitos antes de re-conhecer os rostos?

    Eu gostava da Aretha. O filho, Bennion, era meu aluno na aula de História em Midlothian, e eu sabia que ela lhe controlava os trabalhos de casa. Pensei em agradecer-lhe por isso, mas, como referi, ela estava ocupada. De todas as vezes que estivera ali, a Aretha nunca me dissera uma palavra antes de ter terminado, e esta não foi exceção.

    – Estás pronta, Lucy. É sempre um prazer em ver-te. O Benny gosta muito da tua aula.

    – Ele é um dos bons. Deves estar orgulhosa.– E estou.Vesti-me e penteei o cabelo. É comprido, por isso distraí-me com as

    escovadelas enquanto olhava o espelho, a procurá-la. Isto acontece todas as vezes que tenho um exame físico – faz parte do ritual. Procuro por qualquer sinal de que a Morte possa estar a espreitar a um canto, no espelho, mesmo atrás de mim, ou a flutuar fora do meu campo de visão. Mas não havia nada, o que era profundamente reconfortante – em simultâneo com as palavras mágicas da Dr.ª Barbee.

    Depois de me vestir, dirigi-me ao Damian, onde ia encontrar-me com a Lily para almoçarmos. A caminhada pelo dia solarengo e a brisa quente davam-me uma sensação deliciosa no rosto. Adoro viver aqui. Brinley, no Connecticut, é uma pequena cidade onde é possível ir a pé a quase todos os sítios em menos de quinze minutos. Da doca ao Loop – a versão de Brinley de uma praça central – são cerca de três quilómetros, e as ruas laterais que compõem os nossos bairros estendem-se por apenas mais um quilómetro para ambos os lados. Connecticut está cheio de história e charme, mas, para mim, Brinley tem o melhor de tudo: velhos bairros dignificados, estradas ladeadas por árvores, o tipo de política exclusiva das pequenas cidades, como reuniões de emergência no Loop para discutir o problema dos dejetos dos cães ou a necessidade de um regulamento para as mangueiras de jardim.

    A rua estava cheia de gente naquela tarde e ninguém parecia ter pressa em chegar aonde quer que fosse. Mas isso talvez porque eu não precisava de estar em nenhum sítio, agora que a escola estava encerrada para o período do verão, e eu terminara de corrigir e classificar cento e setenta exames finais.

    Vi a minha vizinha Diana Dunleavy, que levava a neta, Millicent, à aula de balé. A pequenina ia a pirutear o caminho frente ao Mercado do Mosely num tutu cor-de-rosa. A Diana acenou-me.

    – Sabes que ela herdou este talento todo de mim – gritou do outro lado da rua.

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    Ri-me quando a Millie deslizou direita ao Deloy Rosenberg, que saía da loja das sandes com uma encomenda. Ele deixou cair o tabuleiro de cartão e um saco, mas aparentemente não houve estragos. Ainda assim, a Millie escon-deu o rosto ruborizado nas dobras da saia da Diana, até que o chefe da polícia de Brinley desistiu de a tentar confortar e se afastou com o almoço. Sempre que vejo o Deloy no seu uniforme, penso no meu pai.

    Vi a Lily e a Jan do outro lado da estrada e fui até junto delas. Jan Bates, a nossa vizinha do lado, tornou-se a sogra da Lily, tal como eu previra em criança. O que eu não sabia nessa altura era que ela também se viria a tornar numa mãe para mim.

    Oscar Levine martelava um sinal na porta do pequeno parque quando me viu. O homem de pequena estatura e ossudo baixou o martelo e gritou:

    – Lucy, vais ao Shad Bake no sábado, certo?– É claro que vai, Oscar – respondeu a Lily por mim.A Jan deu-me uma abraço rápido. – Diz que sim – sussurrou ao meu ouvido.– Não faltarei – disse. – E nessa altura o Mickey já vai estar em casa, por

    isso ele também vai.– Assim é que é!O Shad Bake era um ritual de primavera que acontecia ao longo de

    todo o Connecticut River Valley, mas nós, brinianos, fazemo-lo ainda melhor. Prestamos homenagem ao peixe que supostamente está ameaçado espetando--o em pranchas de carvalho em redor de uma fogueira, e depois enfardamo--nos com ele até não nos conseguirmos mexer. É apenas uma das muitas razões pelas quais adoro viver em Brinley.

    – Bem, eu vou ensinar a umas crianças como se pintam pinheiros – disse a Jan, rindo-se. – Portem-se bem, meninas. – Deu-nos um pequeno aperto e ficámos a vê-la a afastar-se.

    Depois, a minha irmã voltou-se para mim com um sorriso demasiado rasgado que não disfarçava a ansiedade dela.

    – Como correu? – perguntou, entrelaçando o braço no meu.– Estou bem. A Charlotte não ficou preocupada com nada. E a Aretha

    disse que os meus seios estão com um aspeto fantástico.– Sim, estou mesmo a ouvi-la dizer isso.– Na verdade, ela disse que são mais giros do que os teus.A Lily riu-se. – Bem, agora sei que mentes. – A minha irmã é linda, com cabelo loiro

    curto, pele bonita como a da nossa mãe. E sob a luz do Sol, quase parece trans-lúcida. – Então estás bem? – perguntou, a expressão agora séria.

    – Estou bem – garanti com um ligeiro tossir.

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    KA HANCOCK

    Ela inclinou a cabeça para junto da minha e eu senti o arrepio de alívio passar por ela.

    – Mentirosa.– O quê?– Sei que é demasiado cedo para certezas.– Talvez, mas a Charlotte não estava minimamente preocupada, por isso

    também não estou.A Lily olhou-me nos olhos como se procurasse uma verdade escondida.

    Fazia-o desde sempre.– Estou bem, Lil. Sinto-o.Ela anuiu, mas não tirou os olhos de mim. – Ainda bem. Porque... sabes, recuso-me a enterrar-te, Lucy.– Eu sei – disse, apertando-lhe a mão.Na curva, George Thompson, o único florista na cidade, carregava flo-

    res de primavera para a mala de um Cadillac. Ele grunhiu um cumprimen-to indeterminado enquanto arranjava os rebentos com um franzir no rosto grisalho.

    – Como está a Trilby, George? – perguntou a Lily ao aproximarmo-nos. – Sente-se melhor?

    – Não, e está rabugenta como uma galinha molhada. Parece que, de al-guma forma, sou o culpado de ela ter partido o pé. Não era eu que estava a jazzercitar, raios. Para de te rir, Lucy! – reclamou. – Não tem graça nenhuma!

    A Lily deu-me um toque de cotovelo e disse para o George:– Bem, diz-lhe que o espelho antigo que ela encomendou já chegou.

    Pode ir buscá-lo quando se sentir melhor.George parou o que fazia e endireitou-se. Não parecia ter conhecimen-

    to algum sobre um espelho antigo e o momento estava prestes a tornar-se estranho quando a Muriel Piper nos salvou.

    – Olá, meus anjos! – cantarolou ela. – Que dia maravilhoso! Olhem, estou a enlouquecer com as flores. – Riu-se. A Muriel era a matriarca de Brinley, quase nos noventa anos, mas não estava preparada para o admitir. Usava calças de ganga, uma camisola de capuz de caxemira e brincos de dia-mante tão pesados que lhe faziam cair os lóbulos – uma vestimenta casual para jardinagem, aparentemente.

    A Muriel puxou-me num abraço firme que contradizia a idade dela.– Lucy, estás demasiado magra. Quero que passes lá por casa para poder

    cozinhar para ti. Nunca te cuidas quando o Mickey está mal. – Ele vem para casa na sexta. Estou a comer muito bem.– Só na sexta? Ele vai perder o serviço fúnebre da Celia amanhã. – Eu

    acenei. – Bem, trá-lo este fim de semana para lhe poder dar um abraço. Adoro

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    aquele rapaz. – Voltou-se para a Lily. – E o teu! Será sequer possível virem com melhor aspeto? Oh, meu Deus!

    – Vou passar-lhe as palavras da Muriel.– Não te atrevas! Ficaria tão embaraçada! Bem, é melhor despachar-

    -me. Estas flores não se plantam sozinhas. – A Muriel acenou-nos enquanto arrancava com a mala do carro cheia de petúnias e margaridas.

    O meu telefone vibrou no bolso e abri-o.– Olá, Priss.– Está tudo bem? – perguntou sem rodeios a minha irmã mais velha.– A Charlotte disse que pareço bem. Mas vai ligar se houver alguma

    coisa errada com os resultados do laboratório.– Ainda bem. Vou a caminho de uma reunião, liga-me mais tarde. Quero

    saber os detalhes. – E desligou.Fechei o telefone e olhei para a Lily.– Não é de admirar que seja uma grande advogada.– Ela só quer saber que estás bem – disse a Lily encolhendo os ombros.

    – Então – começou quando continuámos a caminhar para o restaurante – o Mickey vem para casa na sexta. Ele sabe da tua consulta de hoje?

    Abanei a cabeça.– Ele acabou de regressar ao normal, não lhe quis dizer até ter a boa

    notícia completa. – És uma boa esposa, Lu. O Mic é um sortudo em ter-te.Encolhi os ombros deixando cair o elogio e pensando que, na verdade,

    era ao contrário. Depois de tudo pelo que passara, sabia que amava mais o Mickey Chandler do que no dia em que me casara com ele.

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    Capítulo 2

    ESCREVER UM DIÁRIO = PROCESSAMENTO = COMPREENSÃO

    7 DE JUNHO DE 2011 – PARA A SESSÃO COM GLEASON

    Desta vez demorou uma semana para me conseguir levantar e sair do buraco. Mas pelo menos não saltei da margem e não me afundei na imensidão. Soube que estava em sarilhos enquanto balançava na bei-ra do precipício e mais uma vez imaginei que podia levantar os pés e le-vitar – precipitar-me e deslizar por cima e ao redor do abismo que sabia que me podia engolir. Já aconteceu, felizmente não foi o caso desta vez.É a minha vida: estar continuamente a aproximar-me e a afastar-me da berma de um buraco que é alternadamente fascinante e aterrador – cheio com o que a minha imaginação defeituosa dita a qualquer instante no tempo. É imperativo para mim manter a distância, mas quanto mais per-to chego, melhor me sinto. Ou pior. E é essa a ironia ridícula porque sou compulsivamente atraído para este perigo, e quanto mais me aproximo, mais próximo quero estar. Aquela vastidão profunda contém formas de escape inimagináveis – por vezes euforia total; outras, uma dor tão intensa que não consigo sequer tentar descrevê-la. De uma maneira ou de outra, o limite alicia-me com as suas mentiras que soam como promessas. Mentiras suaves, sedutoras, às quais nem sempre resisto.A medicação ajuda. Medicação e terapia contínua. A minha determinação ajuda, quando a encontro. Tal como o meu intelecto, que surpreendentemente não está amarrado às restantes funções do meu cérebro desligado. Tenho a educação mais superior que a experiência pessoal pode oferecer. No meio de tudo isto, sei quase sempre o que me está a acontecer, mesmo que por vezes o saiba com um certo distanciamento, como espetador. Ainda assim, tento apli-car uma das muitas estratégias concebidas para me impedir de ser engolido. Nem sempre funciona.

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    KA HANCOCK

    A influência mais forte em mim é a minha mulher. E graças a ela, estou determinado a manter-me a uma boa distância do limite, mesmo se nem sempre sou bem-sucedido. Por vezes, como, por exemplo, quando ela ficou doente, o limite vem até mim. Ou acontece sem qualquer motivo. O abismo estende-se inexplicavelmente mesmo enquanto corro para longe dele – corro pela minha própria vida –, até que o chão sob os meus pés se evapora e me vejo de novo perdido, não importa o quão grande – fútil – foi o meu esforço.Para a maioria das pessoas, este buraco não existe, mas é uma ameaça real para quem sofre da doença bipolar. Sei que pareço um toxicodependente, mas não há nenhuma droga que dê a sensação que a mania dá no instante antes de rebentar, ou o desespero que se segue logo após cedermos a ela.

    7 DE JUNHO – MAIS TARDE

    Ao reler a página no diário, procuro sinais de reflexões da treta que possam alertar o meu psiquiatra, Gleason Webb, e levá-lo a descartá-la e a obrigar--me a reescrevê-la. Mas não vejo nada que eu tenha exagerado terrivelmen-te. Era um retrato bastante fiel de mim, e pensei que até articulara a situação bastante bem, para um maluco.Esperava a Lucy nas escadas da frente deste asilo antigo, que por vezes me parece ser a minha casa longe de casa. Estava a ter um bom dia, dentro e fora. Conseguia sentir o meu eu estável a emergir lentamente, mas com confiança, e tinha de admitir que senti falta dele. Estava satisfeito com ele. Não era muito excitante, mas era confortável e seguro e eu podia contar com ele para ser um pensador equilibrado.Consultei o relógio e perguntei-me onde estaria a Lucy – ela dissera que estaria ali por aquela altura. Levantei-me e comecei a deambular, mas voltei a sentar-me rapidamente. Ela chegaria quando chegasse, não havia motivo para preocupações. Ri-me porque, do nada, apercebi-me de que a medicação começava a fazer efeito. Era capaz de argumentar comigo e isso fez-me sorrir... o milagre dos psicotrópicos. Aquilo ia deixar a Lucy con-tente – ela gostava mais do Sujeito Estável do que de mim... isso não é exatamente verdade. A Lucy ama-me – o eu feito a partir das partes soltas e das partes extra e das partes estragadas. Ela ama o conjunto completo –, ela disse que tinha de amar ou não faria qualquer sentido amar-me. Jurara que era verdade, há muito, muito tempo, e manteve-se fiel à sua pala-vra. Quem teria acreditado? Ainda estou deslumbrado por aquela mulher. Sobretudo em alturas como esta, quando estou a escalar para fora do meu cérebro enevoado e na primeira coisa que consigo pensar com clareza é no

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    amor dela. Todo o ser humano que tem um circuito defeituoso deveria ter esta boa sorte.

    O Mickey esperava-me nas escadas do Hospital Edgemont, sem qual-quer traço de semelhança com um paciente, vestido com calças de ganga e T-shirt cinzenta. Logo que atravessei a rua e ele me viu, pareceu iluminar-se e apeteceu-me rir, estava com tão bom aspeto, tão saudável! Os ombros largos e as pernas longas eram a assinatura do Mickey. Mas o sorriso servia de baró-metro da sanidade dele, e àquela distância parecia-me muito bem. Levantou--se e empurrou os óculos de sol para cima do cabelo escuro ainda espesso, as madeixas cinzentas na franja, proeminente como no dia em que o conheci. O Mickey caminhou para mim com um sorriso lento, e quando se aproximou o suficiente, abraçou-me com força, mas não esmagadora; o que era bom sinal. Pareceu-me que conseguia ver o meu Mickey ali, nos olhos escuros que há apenas alguns dias estavam selvagens e desfocados.

    – Como estás?O Mickey afastou-se e deslizou a mão pelo meu cabelo. – Estou melhor, Lu. E vi o Gleason esta manhã. Ele disse que posso ir

    para casa na sexta. Beijei-o. – Ainda bem para ti. Ainda bem para mim. – Eia! – Voltou a puxar-me para perto. Lá estava ele. Lá estava o meu Mickey.– O que fazes aqui fora?– Esperava-te. A Peony disse que está a ver-me. – Olhou para cima e

    segui o olhar dele. Não havia dúvida, a enfermeira do Mickey, Peony Litman, estava de pé junto à janela do terceiro andar a abanar o dedo. Tinha setenta anos e, fiel à sua formação, estava fardada de branco, incluindo um chapéu. – Ela disse que podemos ir dar uma volta se te responsabilizares por mim.

    Olhei para cima e acenei. A velha enfermeira sorriu e agitou o dedo na minha direção.

    Edgemont é um hospital colonial antigo restaurado por várias vezes. Visto do exterior, ainda parece pitoresco e antiquado, mas as instalações e os serviços servem Brinley e New Brinley. O hospital situa-se no centro de uma área verde impecavelmente cuidada e viam-se vários pacientes a aproveitar a tarde solarenga. Puxei o braço do Mickey por cima do meu ombro e inspirei a fragrância suave dos lilases e da lavanda.

    – Senti a tua falta, querida – disse ele.– Eu também. – Pelo menos desta vez não me meti num avião nem roubei nada. Não

    cavei o jardim.

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    KA HANCOCK

    – Pequenas bênçãos. Na semana anterior, o estado de espírito e a energia do Mickey tinham

    atingido níveis elevadíssimos, e desde então vinham a acalmar à medida que ele se ajustava à medicação. É esse o truque-chave com o Mickey; manter os sintomas depressivos sob controlo com, por exemplo, Prozac pode empurrá-lo para a hipomania – a qual ele até desfruta e não fica ansioso para retificar. Ele pensa sempre que consegue conter a energia. Mas desta vez, apesar do esforço do médico na tentativa de o gerir em ambulatório, ele parara de dormir. Sem uma intervenção, seguir-se-ia a psicose. Graças a um ajuste da medicação e a um pouco de tempo ali, em Edgemont, ele agora pairava perto do que o resto do mundo considera normal, mas que ele classifica muito abaixo disso. Ainda assim, a recuperação de uma fase maníaca era mais fácil do que a de um episódio depressivo.

    – O que tens andado a fazer? – perguntei.– Não muito. Só um monte de estabilização. E quando isso se torna

    aborrecido, conto os queixos da Peony.– Não te metas com ela; tem um trabalho difícil a tomar conta de ti.

    O Jared passou por cá?– Duas vezes. Ele recebeu notícias do arquiteto e queria mostrar-me

    alguns planos. São bons. Acho que vamos deitar abaixo aquela parede do fundo, abri-la para pôr mais mesas.

    No último ano, o Mickey e o sócio andavam a discutir a expansão do clube de ambos. Seria bom ver finalmente algo a acontecer.

    O Mickey olhou-me.– Preciso de te dizer uma coisa, Lu.Parei. Normalmente aquelas palavras eram prelúdio de um desastre, por

    isso preparei-me. Teria comprado outro autocarro no eBay? Contratado mais trabalhadores imigrantes para pintar a nossa casa? Pedido um bode empresta-do para comer as nossas ervas?

    – Sou toda ouvidos – aventurei-me.– Não é assim tão mau. É só que... há uns quatro meses, Lucy, eu... eu

    estava bem na altura e comprei bilhetes para fazermos um cruzeiro.Eu olhei-o com intensidade. – Um cruzeiro?– Queria fazer-te uma surpresa. – Tudo bem, estou surpresa. Quando partimos?– Bem, era suposto sairmos na passada quinta-feira. Tu sabes, o teu último

    dia de aulas.– Oh – suspirei. – Isso teria sido divertido. Porque não me contaste?– Ia contar, mas queria que fosse surpresa.

  • DANÇANDO SOBRE VIDRO

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    – Isso é querido. – Estou a tratar das coisas para nos devolverem o dinheiro. Pode ser

    que consiga receber metade, porque foi uma hospitalização de emergência. Lamento, amor.

    – Também eu! Consegues imaginar? Sexo na praia à meia-noite. Mergulhos pelados no oceano. Quase desejo que não me tivesses contado nada.

    – Sexo na praia? – Sexo na praia, Michael. Montes dele.Mickey sorriu-me, o meu marido lindíssimo, de aspeto perfeitamente

    normal. – Que tal... que tal Havai no teu aniversário, em setembro?– Hmmmmm.– A sério. Vamos. Vai manter-me bem.Não consigo dizer com exatidão quantas vezes isto não funcionou –

    talvez não tantas quanto penso, já que aprendemos a não fazer muitos planos. Ainda assim, a ideia do Havai soava maravilhosamente. Beijei-lhe o queixo.

    – Lucy, juro que vou fazer com que aconteça. – Que tal isto – disse para o meu preocupado marido. – Guardamos o

    dinheiro. Fazemos as reservas, compro o biquíni. E daqui a três meses, no meu aniversário, com ou sem ti, vou para o Havai.

    – Oh, vou estar lá! Não vais sem mim.– Sei que vais estar, mas pelo sim pelo não... assim continuas a poder

    manter a promessa. Ele colocou o braço ao meu redor e caminhámos pelas imediações,

    sonhando e planeando, até que a medicação do Mickey o deixou com de-masiada sede para falar. Quando voltámos para o terceiro piso da Unidade de Psiquiatria General e Abuso de Substâncias, a Peony estava lá para nos receber.

    – Lucy! É bom ver-te, querida. Como estás?– Não muito mal.– Já terminou a escola antes do verão?– Sim, e sabe muito bem. A velha enfermeira riu-se. – As pessoas pensam que tenho um trabalho duro, mas não trabalhava

    com adolescentes nem que me pagassem a dobrar.Sorri. Sentia a mesma coisa acerca do trabalho dela. Ela entregou ao

    Mickey os comprimidos dele juntamente com um copo de papel com água e viu-o a tomá-los. Depois de ele os ter engolido, ela verificou debaixo da língua, e este pequeno ato intrusivo surpreendia-me sempre. Na nossa vida normal, o Mickey era um empresário inteligente, divertido e bem-sucedido.

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    KA HANCOCK

    Ele era relaxado e conversador – o tipo de homem que fazia o jantar caso chegasse a casa antes de mim. Queixava-se quando eu lhe pedia que fosse até ao Mosely buscar tampões. Fazia a rotação dos meus pneus e pagava a conta da eletricidade. Era o homem a quem eu ainda não resistia quando saía do chuveiro. E também era aquele homem. O que periodicamente escorregava para fora do caminho, o suficiente para a Peony ter de se certificar de que não escondia a medicação. Apertei a mão dele e ele apertou a minha de volta.

    Depois de anos de paciência, perseverança e perícia, Gleason – o Dr. Gleason Webb – conseguira definir um cocktail eficaz para ser prescrito no tratamen-to da doença bipolar do Mickey. Um cocktail que por vezes o meu marido abandona por razões que fazem sentido apenas para ele, mas que levam à reintrodução gradual do mesmo, que é onde estamos agora. É necessária uma mão-cheia de comprimidos para o manter estável. Ele toma um estabilizador de humor, normalmente lítio, por vezes Depakote, frequentemente ambos. Ou Risperdal para evitar que oiça as vozes. Neurontin, que previne as convulsões –um efeito secundário do Risperdal. Symmetrel, para os sintomas semelhan-tes a Parkinson que podem ocorrer como efeito secundário do Depakote, Propranolol para os tremores e Benadryl para a rigidez muscular efeito secun-dário dos tremores. Klonopin para a ansiedade má, e Ambien para o ajudar a dormir. Isto sem levar em conta os antidepressivos quando precisa deles. Mas no seu todo, os medicamentos fazem um trabalho mágico para normalizar o comportamento do Mickey, os estados de espírito e as reações, mas apenas se ele tomar o que é suposto, quando é suposto, o que frequentemente é um tiro no escuro.

    Esta é a música ambiente da nossa vida: o Mickey está a tomar a medi-cação? Se eu fosse outro tipo de esposa, uma que contava os comprimidos e via o Mickey a engoli-los da mesma forma que a enfermeira o fez, a resposta seria um sim esmagador. Mas não consigo imaginar-me a retirar-lhe essa responsabilidade, essa dignidade, e por isso tenho tentado nunca encorajar o Mickey a apoiar-se em mim. Na saúde e na doença, gosto dele com poder, não dependente. Isso não quer dizer que não mantenho sempre um olho atento nele e que não tomo conta do negócio quando ele fica louco. É o que se faz quando se ama alguém como o Mickey. Não me estou a queixar. Fui alertada sobre o que era viver esta vida. Tive uma dúzia de oportunidades para mudar de ideias. A verdade é que penso que amei o Mickey um pouco logo no primeiro momento em que o vi. E dou graças a Deus, porque hoje não consigo imaginar-me a amar mais ninguém. Ou a ser amada por outra pessoa. Apesar das armadilhas (e dos cruzeiros perdidos ocasionalmente), sei que escolheria de novo o Mickey.

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    Capítulo 3

    8 DE SETEMBRO de 1998

    Ela deu-me o número de telefone, e mesmo sabendo que nunca lhe iria ligar, memorizei-o. Não consegui evitar. Nunca houve ninguém que me visse da maneira que ela me viu. Tenho a certeza de que soa estranho, olhar para mim e ver-me são duas coisas bem diferentes. E sei qual a diferença porque tenho sido olhado por muitas mulheres, e uns quantos homens, durante grande parte da minha vida adulta. Mas a Lucy pare-ceu ver-me não pelo prisma da atração de uma jovem rapariga, mas por uma luz menos bondosa, crua e mais reveladora. Primeiro que tudo, ela desarmou-me quando me sentei para seduzir a irmã, que, tenho de o di-zer, era bastante atraente por si mesma – loira, esperta e definitivamente interessante, embora não o meu género de mulher. Mas à medida que a multidão se juntava no meu clube para a festa de aniversário, eu divertia--me com a companhia dela. E então esta rapariga – ela era apenas uma rapariga – cruzou a porta e o ambiente mudou completamente, elevou--se. Toda a gente a conhecia, e era óbvio que todos a adoravam. É um cliché, sei-o, mas não tirei os olhos dela enquanto andava pela sala. Ela tinha um abraço para toda a gente e um sorriso fácil. Usava uma cami-sola preta justa, saia curta e botas – e era o meu tipo de beleza. Pensei que me apanhara a olhá-la, porque, finalmente, veio até junto de nós, e fiquei um pouco ansioso. Mas não se aproximou por mim, aproximou-se pela rapariga que eu estivera a seduzir, e eu podia ter caído para o lado quando descobri que eram irmãs. Sorriu-me de forma aberta e apreciativa e disse que se chamava Lucy Houston. Combinava com ela na perfeição. Era mais baixa do que a irmã e tinha um cabelo cor de avelã maravilho-so no qual eu só queria tocar. Enquanto a irmã, a Priscilla, me pareceu uma peça de exposição – cuidadosamente composta e embelezada –, a Lucy era mais natural, e acreditem quando digo, ela não precisava de

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    KA HANCOCK

    nenhum aperfeiçoamento: pele clara, olhos verdes grandes, nariz pequeno e empinado, lábios cheios para serem beijados. Juntava-se a tudo isto o pormenor de parecer simplesmente gira, e a pequena Lucy Houston era quase irresistível.Bem, acontece que celebrávamos o vigésimo primeiro aniversário dela, o que a tornava demasiado jovem ao pé dos meus vinte e nove anos. Mas algo sucedeu quando ela subiu ao palco comigo. Eu tentava apenas fazer o meu papel, dizer algumas piadas, provocar algumas gargalhadas, o normal. Chamei-a para um pouco de luta e ela não hesitou. Depois o mundo de certo modo desapareceu e só havia ela. Não sei o que fez, mas de alguma maneira arrastou-me para fora da personagem cuidadosa que mostro ao mundo e viu o meu verdadeiro eu. E não hesitou. Quando a beijei por puro divertimento, e ela me beijou de volta, penso que a reconheci de uma forma cósmica qualquer, como uma parte de mim que eu não sabia que faltava. Não sei se este tipo de coisa acontece a pessoas normais, mas para mim não havia como o negar. E para alguém que está muito atrás na linha dos abençoados, foi chocante ao ponto de me ater-rorizar. E aterrorizou-me ao ponto da estupidez. Aquela rapariga lin-díssima deu-me o número de telefone e eu deixei-a sair da minha vida.

    Conheci Mickey Chandler em 1998 quando estudava na Universidade Northeastern em Boston. A Lily convenceu-me a regressar a casa para festejar os meus vinte e um anos, planeou uma festa e convidou toda a gente que eu conhecia. O meu aniversário podia ser o pretexto, mas eu sabia que ela também precisava de uma pausa; a minha irmã e o marido, o Ron, tinham acabado de passar por um processo de adoção que terminara de forma terrível.

    Acho que a pobre da Lily nunca vai recuperar da espera infindável por aquela criança preciosa. Ela dera-lhe o nome de James Harrison Bates em homenagem ao nosso pai e ao pai do Ron. Estávamos todos apaixonados por aquele bebé, saudável, careca e adorável. Depois perdemo-lo quando a mãe de quinze anos mudou de opinião. Aquela rapariga – como a idiota da mãe e o advogado – bateu à porta da Lily e exigiu que ela lhe devolvesse o filho. O termo legal, é claro, era a revogação da adoção, e em Nova Iorque, de onde a mãe era originária, ela tinha quarenta e cinco dias para iniciar o processo de intenção para revogar o consentimento. Ela iniciou-o no último dia do prazo, e abriu um buraco na Lily que penso que nunca irá sarar.

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    A minha irmã jura que nunca mais vai tentar. Ninguém a pode julgar. Não após dois abortos e um processo tedioso para resolver o problema – cér-vix incompetente. Entretanto outra adoção falhada. A mãe mudou de ideia antes de o bebé nascer, foi difícil para a Lily, mas não tanto quanto perder o Jamie. Depois do Jamie, o tema dos bebés tornou-se proibido. E mais tarde, tornou-se desnecessário – eu jurei nunca reproduzir, e a Priscilla casou-se com a carreira, afirmando não ter qualquer interesse em formar família. Mas na altura em que a Lily perdeu o filho pela primeira vez, o Ron estava tão desesperado para lhe consolar o coração que lhe comprou uma casa vitoriana dilapidada na nossa praça histórica de Brinley, e o bebé deles tornou-se numa loja de antiguidades à qual chamaram Fantasmas no Sótão. Eles concluíram o negócio no dia antes de eu ter feito vinte e um anos, por isso a minha grande noite também era uma comemoração deles.

    A Lily esforçara-se por tornar a minha festa de aniversário fabulosa. Encontrou o espaço e contratou o dono para animar a festa. Depois convi-dou todos os meus amigos e algumas mães emprestadas. Eu tive várias durante a minha vida, já que só tinha dezassete anos quando a nossa mãe morreu e – aos olhos das mulheres de Brinley – ainda era uma criança. Foram três em particular que se voluntariaram para a tarefa, e todas elas estavam no Colby naquela noite para a festa – Jan Bates, Lainy Withers e Charlotte Barbee. Das três, a Jan era-me provavelmente a mais próxima. E uma artista talentosa: pintou um retrato com a Lily, a Priss, eu e o nosso pai e ofereceu-o à minha mãe como uma surpresa. A Jan fizera-o a partir de fotografias tiradas quando éramos pequenas, mas ninguém diria que não tínhamos posado para o retra-to. Ele permaneceu pendurado no quarto da minha mãe até à morte dela, e agora a Lily tinha-o sobre a lareira. A Jan e o Harrison Bates eram os amigos mais próximos dos meus pais, e sempre foram carinhosos connosco, como se fôssemos do seu sangue.

    A Lily arrancou-me dos braços da Jan e engoliu-me com o seu abraço, e eu engoli-a de volta. A minha irmã tornara-se esquelética e havia um círculo de dor em redor dos seus olhos, mas fazia um bom trabalho a escondê-lo, especialmente quando o Ron cantou desafinado o Feliz Aniversário e nos pôs os ouvidos a doer. A Priscilla – a nossa joia cintilante – encontrava-se a um canto, enrolada com um homem de bom aspeto que parecia precisar de ser resgatado. Eu fui até junto deles e ela exibiu-me um sorriso perfeito. A minha irmã mais velha estava deslumbrante com as suas calças de ganga justas e T-shirt ainda mais justa da cor das maçãs fuji. Ela estava a seduzir como uma cortesã, mas a Priscilla era um conjunto de contrastes. Ao vê-la naquele momento, ninguém adivinha-ria que ela estava a subir a escada da lei corporativa e que tinha a capacidade de roubar a um oponente a capacidade de pronunciar frases completas. Era uma

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    KA HANCOCK

    ameaça tripla bem camuflada: linda, brilhante e decidida. Mas a Priss tinha um lado suave que poucos, além de mim e da Lily, conheciam.

    – Olá – disse eu.– Olá para ti também – respondeu ela, soltando as mãos do braço more-

    no do amigo para me dar um abraço. – Feliz aniversário, Lu – sussurrou-me rapidamente ao ouvido. Depois retomou o lugar junto do homem charmoso, que olhava intensamente para mim.

    Eu sorri. – Sou a Lucy.Ele levantou-se. Era alto, com ombros largos e uma cintura afunilada. Eu,

    por outro lado, sou bem baixinha e maria-rapaz, e tive de erguer o olhar para encontrar o dele. Estendeu a mão e eu aceitei-a.

    – Este é... bem, para ser honesta – a Priss riu-se –, nem sei o teu nome.– Mickey. – O homem mostrou um sorriso agradável que parecia con-

    ter um bocadinho extra de algo só para mim. Olhei a Priss, cujo olhar me avisava de que o vira primeiro. Uma pena, porque era bem giro. Tinha cabelo maravilhoso, escuro e ondulado com uma mecha cinzenta que lhe caía sobre a testa e tornava difícil determinar a sua idade – eu diria, trinta. E tinha uma boca grande e olhos escuros lindos que não se desviaram de mim enquanto o observava, e pensei: Eu podia habituar-me a isto. Mas eu nunca competira com a Priscilla por homens, e não ia começar ali, por isso recolhi a minha mão e disse apenas:

    – Prazer em conhecer-te.Os olhos dele seguraram os meus tempo suficiente para eu saber que

    se competisse com a Priss, ela ficava em apuros. Mas era óbvio que a minha irmã estava no seu elemento; deixei-a continuar e fui passear pela sala e pôr a conversa em dia com alguns amigos.

    O Colby, um clube na cidade mais próxima de Brinley, fervilhava com música, cerveja e conversa. Eu divertia-me a trocar novidades com o meu amigo Chad Withers, que conhecia desde a infância e que geria com o pai a única casa funerária em Brinley. Ele estava a informar-me sobre a sua vida amorosa anémica quando alguém deu uns toques num microfone e pergun-tou:

    – Esta coisa está a funcionar?Toda a gente parou e voltou a atenção para o pequeno palco a um

    canto da sala. Imaginei que o Ron tivesse avisado a gerência sobre o meu aniversário e que em algum momento a ocasião seria mencionada. Mas fui surpreendida quando o amigo da Priscilla, o jeitoso com sorriso maravilhoso, fez as honras.

    Ele disse:

  • DANÇANDO SOBRE VIDRO

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    – Bem-vindos ao Colby! É bom ver-vos. Estão a divertir-se? São todos de Brinley, certo?

    Chad assobiou entre os dedos.– Bom. Bom. Dizem que Brinley é conhecida pelo divertimento. Sei

    que isto provavelmente é um degrau abaixo do bingo e do salão municipal, mas... – O Mickey riu-se, depois pôs a mão sobre o coração num gesto si-mulado de desculpa. – Estou a brincar. Adoro Brinley. As pessoas de lá são muito simpáticas. E ricas, ouvi dizer, o que é ainda melhor, por isso... sabem, sintam-se à vontade para gastarem muito dinheiro. O Howie está ali a prepa-rar bebidas e esta noite trabalha numa em exclusivo chamada A Lucy Chegou à Maioridade, em honra da nossa convidada especial.

    Gargalhadas ecoaram pelo clube e eu senti uma ponta de calor no rosto.– Sim. São vinte e um dólares cada copo, por isso há que beber, tenho

    a prestação do crédito da habitação atrasada. – Riu-se, levou a mão ao bolso e tirou-a para fora. – Bemmm, eu sou o Mickey Chandler, e nós aqui, no Colby, adoramos ocasiões únicas, sobretudo aniversários, e esta noite brin-damos à Lucy Houston. – Apalpou a frente da camisa e tirou um pedaço de papel de um bolso. – Quero agradecer à irmã dela, a Lily, por me forne-cer todas as histórias cabeludas sobre a Looooosy... Se é que me entendem. Onde está ela, afinal? Alguém viu a aniversariante?

    Na sala mal iluminada, um holofote encontrou-me e eu fiz uma vénia dramática quando os meus amigos se lançaram numa ovação.

    O Mickey bateu algumas palmas. – Ali está ela. A Lucy tem agora vinte e um anos... por isso tenham aten-

    ção. Vamos lá ver... és estudante, certo? Acenei em afirmação.– A frequentar a escola em Boston, a viver a boa vida com algumas

    companheiras de casa, suponho. Então deixa-me perguntar-te uma coisa. Tens o frigorífico dividido em pequenas secções bem delineadas, uma por cada habitante? Correto? E aposto que o teu nome está no teu queijo e em cada um dos teus ovos. Admite, Lucy. – O Mickey riu-se. – Os rapazes não são assim. É tudo da comunidade, certo, rapazes? Comida, bebida, raparigas. Está tudo disponível para ser agarrado. Adivinhei?

    O Chad assobiou como se soubesse do que o Mickey falava e eu ri-me só porque ele era giro! Mais importante, a Lily riu-se, aquilo de que ela pre-cisava desesperadamente, por isso tornei-me de imediato fã dele.

    – Lucy, anda cá – pediu o Mickey. – Ajuda-me antes que eu estrague isto tudo e vocês me deixem e voltem todos para o bingo.

    Sem qualquer timidez, avancei antes de ele ter terminado de me convi-dar, passando pela Priscilla. Ela pareceu um pouco incomodada, mas não havia

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    nada que eu pudesse fazer. No palco, o sorriso do Mickey estava de volta – o sorriso bom de quando nos conhecemos – e sem a minha irmã a bloquear o calor, marinei nele. As minhas irmãs são loiras bonitas, mas sou eu quem tem o cabelo bom – grosso e castanho-avermelhado – do meu pai. Naquela noite estava solto e o Mickey alcançou-o e deslizou uma mão por ele, quase como se o inspecionasse. Ele cheirava divinalmente.

    – Como é que não és loira como as tuas irmãs? – perguntou, longe do microfone, enquanto esfregava uma mão-cheia entre os dedos. Depois apercebeu-se do que fazia e soltou-o. – Então, ah, Lucy... vinte e um. O que fazem as raparigas de vinte e um anos para se divertirem?

    – Bem, senhor Chandler, tenho a certeza de que as mesmas coisas que os velhos tarados fazem para se divertirem.

    – Essa foi uma piada sobre velhos? – perguntou, fingindo-se ofendido. – Estás a dar cabo de mim. Mas dou-te um desconto já que és uma aniversa-riante tão jeitosa.

    – Ora, obrigada. Também não és mau de todo. – Estiquei a mão e apalpei o peito sólido dele, e quando o fiz, os olhos dele moveram-se de uma forma que eu não os largaria por nada.

    Ele recuperou depressa. – Não adoram miúdas universitárias? Rapazes, estou correto ou

    não? Mulheres jovens e lindíssimas? Mas temos de as apanhar no mo-mento certo. Sabem como é, a desabrochar, mas ainda parvas o suficiente para nos darem uma hipótese. Porque depois de elas olharem para a vida com seriedade, é para esquecer. Acabou para os gajos como nós. Verdade, Lucy?

    – Estás a falar especificamente sobre mim?Mickey olhou em volta de forma teatral.– Não vejo mais ninguém aqui em cima. – Então levantou mais uma

    mão-cheia do meu cabelo. – É melhor procurar outra vez por cabelos loiros. Sim, estou a falar sobre ti – disse, ficando perto de mim.

    – Bem, tenho a certeza de que tu terias uma hipótese comigo.Mais uma vez, ele estava atordoado e os meus amigos vaiavam-no. Eu

    ri-me.– É por pena, não é? – atirou ele. – És uma estudante do quadro de hon-

    ra que sente pena de um rapaz que penou para se licenciar e acabou a fazer stand-up num clube de comédia?

    – Estás a gozar comigo? – disparei. – Um comediante com uma licencia-tura? Vendido!

    Os olhos sorridentes dele seguraram os meus enquanto decidia o que fazer a seguir. Finalmente ele disse:

  • DANÇANDO SOBRE VIDRO

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    – Então, tudo bem! Vamos lá! – O Mickey Chandler puxou-me e fez um grande espetáculo ao dar à universitariazinha um beijo de aniversário. Penso que era suposto ser um beijo pequeno e inofensivo, mas mergulhei de cabeça – afinal, era o meu aniversário –, e para ser justa, ele não se ficou atrás. Houve algo quase familiar na maneira como as nossas línguas dançaram e os nossos dentes clicaram. Foi delicioso e não fui eu quem o interrompeu.

    Quando nos separámos, eu estava ofegante e um pouco embaraçada. A máscara do Mickey escorregara novamente, e parecia não acreditar no que acabava de acontecer. Ri-me e saltei do palco para uma versão mais pican-te de Feliz Aniversário. Para a multidão, tudo o que se passara fazia parte do divertimento. Bem, a Priss parecia um pouco chateada. Mas eu não estava arrependida. Era a minha noite e a atuação do Mickey. Ele continuou a olhar para mim, a tentar parecer indiferente, o que me deixou feliz. Quando voltei para o bar, a Priss abordou-me.

    – O que foi aquilo?– Nada. Não foi nada, só uma brincadeira.– Pareceu mais do que isso – disse ela, um pouco irritada.Eu ri-me enquanto olhava para trás, até ao palco onde Mickey Chandler

    continuava a olhar na minha direção e contava uma história engraçada sobre dois cães e uma caixa multibanco. Tentei imaginar o que estaria a ver. Uma Priscilla alta, deslumbrante, loira, voluptuosidade manufaturada a transbordar do top, e a dar um raspanete à irmã mais pequena, consideravelmente menos voluptuosa – mas bem-composta de saia e botas –, que não estava a ligar nenhuma. Quando o Mickey saiu do palco, eu disse:

    – Agora é a tua oportunidade, Priss.A minha irmã tirou um instante para ponderar, mas depois olhou por

    cima do meu ombro.– Tenho de pôr umas coisas em dia. Por isso considera o rapaz engraçado

    como o meu presente de aniversário.Voltei-me e encontrei Trent Rosenberg a olhar para a minha irmã como

    se ela fosse uma refeição e ele estivesse sem comer há um ano. O Trent era um ex-namorado do secundário, e tratava-se do rumor mais antigo que corria por Brinley. Eu queria acreditar que a minha irmã era coisa a mais para ele. Especialmente sendo ele casado e com filhos.

    – Não seja estúpida, Priss.– O quê? Não é nada.Eu teria dito mais, mas nesse instante a Lily pôs-se entre nós e pediu

    ao Ron que nos tirasse uma fotografia. Ela puxou-me para a frente dela e da Priss e sorrimos as três; as raparigas Houston na pose tradicional; eu ladeada pelas minhas irmãs mais velhas, cada uma a agarrar com força a outra.

  • 34

    KA HANCOCK

    Depois disso, o Chad pegou-me na mão. – Anda lá, Lu, está a tocar a nossa música. – E de facto, Wang Chung

    brotava da jukebox, transportando-me ao baile de finalistas.Quando quase toda a gente dera a noite por terminada, decidi procurar

    Mickey Chandler. O barman apontou para o fundo do corredor, onde encontrei um escritório com a porta ligeiramente aberta. Clareei a voz e bati. Mickey levantou o olhar do computador.

    – Olá.– Olá, só queria agradecer-te pela animação.– Foi um prazer. – Ele sorriu.Eu já escrevinhara o meu número de telefone num guardanapo e dei-

    -lho com o meu melhor sorriso.– Foi uma grande noite. Ele aceitou o guardanapo e pareceu surpreendido. – Saíste-te muito bem em cima do palco – disse ele com um sorriso

    autoconsciente. Mas não disse nem mais uma palavra. Nada. Por isso, antes que se tornasse demasiado desconfortável, observei apenas:

    – Bem, obrigada mais uma vez. – E saí. Estava confusa e um pouco desapontada, mas recusei-me a acreditar que o interpretara mal.

    Mickey Chandler intrigava-me. Enquanto o provocava em palco, soube que apanhei algo bem real por trás da máscara de palhaço. Ele sabia que eu o vira, e percebi que não estava seguro do que sentia sobre o facto. Mas foi este vislumbre que me afetou tanto. Tentei não matutar sobre isso, mas tenho de admitir que ele cruzou os meus pensamentos algumas vezes nos oito meses que se seguiram.

    No final de maio de 1999, a Priscilla apareceu no meu apartamento perto da universidade às quatro da manhã. Abri a porta com olhos turvos, mas a imagem dela ali de pé, a tremer, acordou-me totalmente. O cabelo dela estava molhado.

    – Priss? O que fazes aqui?– Preciso que me leves a casa – disse ela, passando por mim. Não trazia

    sapatos. – Onde estão as tuas chaves?– Priscilla, o que estás a fazer?– Podes levar-me? – Ela levantou almofadas e moveu-se rapidamente

    pela sala. – Onde diabo está a tua mala?Segurei-lhe a mão e ela tentou libertá-la, mas eu puxei-a. – Priscilla, para! O que se passa?– Encontrei um nódulo! – gritou. Depois em voz baixa, aterrorizada:

    – Eu encontrei um nódulo.Olhei para ela e não respirei.

  • DANÇANDO SOBRE VIDRO

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    – Por favor, Lucy. Podemos ir? Conduzimos para Brinley de pijama, a Priss num pânico silencioso e eu

    a interrogar-me se me escapara alguma coisa. Via a minha irmã com bastante regularidade desde que morava em Boston, mas nunca vi a Morte a espreitar perto dela. Naquele momento receava olhar. Conduzimos mais de metade do caminho em silêncio, até que procurei a mão dela.

    – Priss, fala comigo.Ela apertou a minha mão e largou-a. – Continua a conduzir, Lu. A Charlotte pediu uma biopsia no final dessa manhã. E esperámos.

    Estávamos todas no consultório dela quando chegaram os resultados, e a Lily e eu segurámos as mãos da Priss. Graças a Deus que as notícias não eram terríveis. O nódulo era maligno, mas estava encapsulado e seria removido na totalidade – quase um motivo para celebração. Mas não tanto. A área em redor do crescimento precisava de ser examinada extensivamente em busca de células anormais. Se fosse encontrada alguma, haveria razão para preocu-pação. Então, a Priss foi para a cirurgia e voltámos a esperar. Foi um dia longo de mãos dadas, para mim e para a Lily.

    – Acho que não consigo vê-la a passar por isto – disse a Lily mais do que uma vez.

    – Ela é demasiado geniosa para isto a mandar ao chão – respondi.Ao final dessa noite, recebemos o relatório que dizia que a área envol-

    vente estava limpa. Quase nos derretemos de alívio, especialmente a Lily. O Ron levou-a para casa por volta das onze, mas eu fiquei porque a Priscilla estava muito agitada.

    Era quase meia-noite quando ela adormeceu – graças a uma dose de Demerol. Eu precisava de uma pausa, por isso desci até à cafetaria para beber alguma coisa. O espaço estava com uma iluminação fraca e num silêncio qua-se total. A maioria das cadeiras fora posta sobre as mesas para que o chão pu-desse ser esfregado. Havia apenas um homem de estatura pequena a trabalhar atrás do balcão. Pedi batatas fritas e Coca-Cola e ele disse-me que mas levava. Olhei em volta da sala grande e vazia à procura de um lugar e descobri que, além de mim e de alguns médicos sentados a um canto, havia um homem sentado sozinho.

    Reconheci de imediato a mecha cinzenta no cabelo dele e fixei os olhos no Mickey Chandler. Quando ele não desviou o olhar, caminhei até ele e disse:

    – Olá, comediante. Lembras-te de mim? Ele olhou-me como se visse um fantasma. – A aniversariante.