Agostinho - Fé e Razão em Santo Agostinho

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1) Santo Agostinho: “Intellige ut Credas, Crede ut Intelligas” Autor: Sávio Laet de Barros Campos. Licenciado e Bacharel em Filosofia Pela Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected] Agostinho foi o grande mestre do ocidente cristão. Estamos no século IV. 1.1) A Conversão: Pressuposto do Pensamento Agostiniano Enquanto ainda era maniqueísta, vivia sobre a promessa desta seita, qual seja pelo conhecimento racional alcançaria a fé nas Escrituras. Livre dos maniqueus, Agostinho concebe que, deve-se arrancar da fé para chegar a inteligência. Os maniqueísta haviam-lhe prometido levá-lo a fé nas Escrituras a inteligência pelo conhecimento racional; santo Agostinho propor-se-á, a partir de então, alcançar pela fé nas Escrituras a inteligência do que elas ensinam. 1 A conversão, como assinala K. Jarspers, é o pressuposto que funda todo pensamento agostiniano. Na conversão a fé passa a ser qualquer coisa de inquestionável, tão certa que não precisa ser apurada quanto a sua veracidade, ela é dom de Deus: (...) A conversão é o pressuposto do pensamento agostiniano. Somente na conversão é que se torna certa a fé, que não é necessitada por nada e não pode ser transmitida através de nenhuma doutrina, mas lhe é dada em dom por Deus. 2 1 Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média . p. 144 2 K. Jaspers. Os Grandes Filósofos . In: DARIO ANTISERI, Giovanni Reale. História da Filosofia: Antigüidade e Idade Média. 5º Edição. (Coleção Filosofia). São Paulo: Paulus, 1991. p. 434.

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1) Santo Agostinho: “Intellige ut Credas, Crede ut Intelligas”

Autor: Sávio Laet de Barros Campos. Licenciado e Bacharel em Filosofia Pela Universidade Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected]

Agostinho foi o grande mestre do ocidente cristão. Estamos no

século IV.

1.1) A Conversão: Pressuposto do Pensamento Agostiniano

Enquanto ainda era maniqueísta, vivia sobre a promessa desta seita, qual seja pelo conhecimento racional alcançaria a fé nas Escrituras. Livre dos maniqueus, Agostinho concebe que, deve-se arrancar da fé para chegar a inteligência.

Os maniqueísta haviam-lhe prometido levá-lo a fé nas Escrituras a inteligência pelo conhecimento racional; santo Agostinho propor-se-á, a partir de então, alcançar pela fé nas Escrituras a inteligência do que elas ensinam. 1

A conversão, como assinala K. Jarspers, é o pressuposto que funda todo pensamento agostiniano. Na conversão a fé passa a ser qualquer coisa de inquestionável, tão certa que não precisa ser apurada quanto a sua veracidade, ela é dom de Deus:

(...) A conversão é o pressuposto do pensamento agostiniano. Somente na conversão é que se torna certa a fé, que não é necessitada por nada e não pode ser transmitida através de nenhuma doutrina, mas lhe é dada em dom por Deus. 2

1Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 144 2K. Jaspers. Os Grandes Filósofos. In: DARIO ANTISERI, Giovanni Reale. História da Filosofia: Antigüidade e Idade Média. 5º Edição. (Coleção Filosofia). São Paulo: Paulus, 1991. p. 434.

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Daí a importância capital de se conhecer a biografia de Agostinho para lhe penetrar o pensamento.3 Quem está alheio a este momento da vida de Agostinho– acentua Jaspers- ficará estranho ao seu fundamento: “Quem não experimentou por si mesmo a conversão sempre encontrará algo de estranho em todo pensamento que nela se fundamenta.”4

A fé em Agostinho, ainda nas palavras de Jaspers, é um acontecimento único. Tocado por Deus, este lhe muda até as entranhas, e não somente o pensamento.

(...) mas sim um acontecimento único, que, por sua essência, é diferente no seu sentido e na sua eficácia: consciente de ter sido atingido imediatamente por Deus, o homem se transforma até a corporeidade do seu ser e nos objetivos que se propõe. 5

Trata-se de um novo homem, com uma nova hierarquia de valores e um novo modo de pensar: “Juntamente com o modo de pensar, muda também o modo de viver.6 Mas do que isso, quando sua biografia muda, esta transforma o seu modo de pensar nas suas bases:

Tal conversão não é mudança de rota filosófica, que precisa ser renovada a cada dia (...), mas um momento biograficamente datável, que irrompe na vida e lhe dá uma nova base. 7

1.1.1) A Avaliação da Filosofia

Não é a filosofia que muda nele, nem o modo de filosofar, mas sim – conclui Jaspers - é a avaliação que faz da filosofia, o modo com a

3O Leitor nos perdoe a aparente contradição. De fato, uma pergunta de coloca: Se a biografia do autor é necessária, porque não a abordou? Achamos por bem prescindir da biografia, ela estenderia demais o que quer ser apenas um artigo introdutório ao tema. 4K. Jaspers. Op. Cit.. In: DARIO ANTISERI, Giovanni Reale. História da Filosofia: Antigüidade e Idade Média. 5º Edição. (Coleção Filosofia). São Paulo: Paulus, 1991. p. 434. 5Idem. Op. Cit.. 6Idem. Op. Cit. 7Idem. Op. Cit p. 434 e 435.

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qual a encara.8 De fato, existe uma luz interior que nos é interior, e ao mesmo tempo nos transcende. Esta luz é maior que nós, maior que o próprio filosofar.9 Jarspers acentua que Agostinho, na sua conversão, reconhece quão exagerado era a sua admiração pela filosofia: “Agostinho reconhece que a sua admiração anterior pela filosofia (como dialética) era absolutamente exagerada.” 10

A bem - aventurança que perseguia encontra-se em Deus, e este só se deixa alcançar pelo único caminho que é Cristo: “A bem-aventurança encontra-se em somente no anseio de Deus; mas essa bem-aventurança pertence somente à vida futura e o único caminho para chegar a ela é Cristo.” 11Para uma felicidade terrena, bastar-lhe-ia uma filosofia humana, mas, para uma felicidade eterna- que acabara de descobrir- é necessário uma sabedoria divina. A filosofia, encontra-se, por fim, reduzida e o pensamento Bíblico é o que lhe afigura como essencial.12 Com efeito, ninguém pode atravessar o mar do século se não for carregado pela cruz de Cristo: “(...) Ninguém pode atravessar o mar do século se não for carregado pela cruz de Cristo.”13 1.2) A Distância do Fideísmo

Apesar de toda esta mística em torno da fé e do encontro com Deus, longe de Agostinho todo ranço de fideísmo, ele não é irracional.14 A fé estimula a inteligência e mais, ela lhe pressupõe.15 Destarte, a fé

8Idem. Op. Cit p. 435: “No movimento do filosofar, do autônomo ao crente-cristão, parece tratar-se do mesmo filosofar. (...). Acima de qualquer outra coisa (depois da conversão), o que mudou foi a avaliação da filosofia.” 9Idem. Op. Cit: “Agora, porém, passava a ser avaliada (a filosofia) negativamente: a luz interior está mais no alto.” ( O Parênteses é nosso). 10Idem. Op. Cit: “Agostinho reconhece que a sua admiração anterior pela filosofia (como dialética) era absolutamente exagerada.” 11Idem. Op. Cit 12Idem. Op. Cit: “Desse modo, reduziu-se o valor da filosofia (como mera dialética). O pensamento bíblico-teológico torna-se a única coisa essencial.” 13Agostinho. In. DARIO ANTISERI, Giovanni Reale. História da Filosofia: Antigüidade e Idade Média. 5º Edição. (Coleção Filosofia). São Paulo: Paulus, 1991. p. 436. 14Giovanni Reale. História da Filosofia: Antigüidade e Idade Media: p. 435:“(...) Agostinho está bem distante do fideísmo, que não deixa de ser uma forma de irracionalismo. “ 15Giovanni Reale. Ibidem: “(...) A fé estimula e promove a inteligência.”; Agostinho. Comentário ao Evangelho de João. 29, 6: in: DARIO ANTISERI, Giovanni Reale.

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consiste, antes de tudo, num pensamento que assente; ora, isto equivale a dizer que sem pensamento não há fé: “A fé é ‘ cogitare cum assensione’, modo de pensar assentindo; por isso, sem pensamento não haveria a fé.” 16 Outrossim, a inteligência não elimina, antes esclarece e clarifica a fé: “E analogamente, por seu turno, a inteligência não elimina a fé, mas a fortalece, e, de certo modo, a clarifica”.17 Fé e razão se complementam18, porque se a fé busca a inteligência encontra: “A fé busca, a inteligência encontram.” 19 Doravante, a inteligência será a recompensa daquele crer: “ intellectus merces est fidei, ‘ a inteligência é recompensa da fé’”.20 1.3) Razão e Fé 1.3.1) Compreender Para Crer

Não é estranho a Agostinho ainda uma atividade da razão que preceda à da fé. De fato, embora as verdades de fé nos sejam indemonstráveis, pela razão, podemos perceber a conveniência de a elas assentir. Portanto, a indústria da razão que precede a fé consiste em mostrar a pertinência do conteúdo da fé:

Sem dúvida, um certo trabalho da razão deve preceder o assentimento às verdades de fé; muito embora estas nos sejam demonstráveis, pode-se demonstrar que convém crer nelas, e é a razão que se encarrega disso. 21

História da Filosofia: Patrística e Escolástica . Trad. Ivo Storniolo. Rev. Zolferino Tonon. 2º ed. São Paulo: Paulus, 2005. p. 104: “Justamente porque não entendes, crês; mas, crendo, tornas-te capaz de entender, com efeito, se não credes, jamais conseguirás entender, porque te tornarás sempre menos capaz.” 16Idem. Op. Cit 17Idem. Op. Cit 18Idem. Op. Cit: “(...) fé e razão são complementares (...)”. 19Agostinho. A Trindade.XV, 2, 2. In: DARIO ANTISERI, Giovanni Reale. História da Filosofia: Antigüidade e Idade Média. 5º Edição. (Coleção Filosofia). São Paulo: Paulus, 1991. p. 436. 20Giovanni Reale. História da Filosofia: Antigüidade e Idade Média:p. 435. Agostinho. Comentário ao Evangelho de João. 36, 7. in: DARIO ANTISERI, Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica . Trad. Ivo Storniolo. Rev. Zolferino Tonon. 2º ed. São Paulo: Paulus, 2005. p. 105: “Eu dissera: se alguém crer; e tinha dado este conselho: se não compreendeste, crê! A inteligência é fruto da fé!” 21Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 144.

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1.3.2) Crer Para Compreender

Hora, se há um concurso da razão que precede a fé, impõe-se outro que a sucede. Agostinho não se cansa de repetir: “É preciso crer para compreender (Nisi credidritis, non intelligetis)”22. Se aceita as verdades da fé para, proporcionalmente as nossas possibilidades neste mundo, conseguirmos obter alguma inteligência sobre elas:

Portanto, há uma intervenção da razão que precede a fé, mas a uma segunda, que a segue. Baseando-se numa tradução, aliás incorreta, de um texto de Isaías pelos Setenta, Agostinho não se cansa de repetir: Nisi credidritis, non intelligetis. Há que aceitar pela fé as verdades que Deus revela, se se quiser adquirir em seguida alguma inteligência delas, que será a inteligência do conteúdo da fé acessível ao homem neste mundo. 23

1.3.4) A Síntese Agostiniana: Compreender Para Crer, Crer Para Compreender.

Agostinho no célebre Sermão 43 expressa numa fórmula solene esta dupla atividade da razão: “compreender para crer, crê para compreender (intellige ut credas, crede ut inelligas) .”24 Compreendendo no que se deve crer, cremos25; crendo, podemos compreender naquilo que cremos.

22Agostinho. Comentário ao Evangelho de João. 29, 6: in: DARIO ANTISERI, Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica . Trad. Ivo Storniolo. Rev. Zolferino Tonon. 2º ed. São Paulo: Paulus, 2005. p. 104: “ “Não procures, portanto, entender para crer, mas crê para entender; porque, se não credes, não entendereis.” (O itálico é nosso). 23Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 144. Agostinho. Comentário ao Evangelho de João. 36, 7. in: DARIO ANTISERI, Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica . Trad. Ivo Storniolo. Rev. Zolferino Tonon. 2º ed. São Paulo: Paulus, 2005. p. 105: “Eles não creram porque tinham conhecimento, mas creram para conhecer. Creiamos também nós para conhecer, não esperemos conhecer para crer.” 24Etienne Gilson. A Filosofia na Idade Média. p. 144: “Um texto célebre do Sermão 43 resume essa dupla atividade da razão numa fórmula perfeita: compreender para crer, crê para compreender (intellige ut credas, crede ut inelligas).” 25Aqui compreender não significa conhecer o mistério, mas apenas ter presente qual o objeto ao qual devemos assentir. Por exemplo, saber que a Trindade deve ser crida não significa compreender o seu mistério!

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Se por um lado, é preciso partir da fé, por outro é dever de quem crê buscar inteligir aquilo que crê, pois o fim último do homem não é crer, mas conhecer.

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BIBLIOGRAFIA Agostinho. A Trindade. in: DARIO ANTISERI, Giovanni Reale. História da Filosofia: Antigüidade e Idade Média. 5º Edição. (Coleção Filosofia). São Paulo: Paulus, 1991. _____. Comentário ao Evangelho de João. DARIO ANTISERI, Giovanni Reale. História da Filosofia: Patrística e Escolástica . Trad. Ivo Storniolo. Rev. Zolferino Tonon. 2º ed. São Paulo: Paulus, 2005. p. 104 e 105. DARIO ANTISERI, Giovanni Reale. História da Filosofia: Antigüidade e Idade Média. 5º Edição. (Coleção Filosofia). São Paulo: Paulus, 1991. p. 428 a 460. GILSON, Etienne. A Filosofia Na Idade Média. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: MARTINS FONTES, 1995. p 142 a 158. PHILOTHEUS BOEHNER, Etienne Gilson. História da Filosofia Cristã, Desde as Origens até Nicolau de Cusa. 7ºed. Trad. Raimundo Vier. Rio de Janeiro: VOZES, 2000. p. 139 a 208. JASPERS. Os Grandes Filósofos. In: DARIO ANTISERI, Giovanni Reale. História da Filosofia: Antigüidade e Idade Média. 5º Edição. (Coleção Filosofia). São Paulo: Paulus, 1991.