Agatha christie - o homem do terno marrom

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Após a morte do pai, uma moça se vê livre para se aventurar na cidade de Londres, mas sem nunca ter imaginado se envolver com criminosos sem escrúpulos organizados em uma quadrilha comandada por um maníaco, Coronel.

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Prólogo

Nadina, a bailarina russa que tomara Paris de assalto,

inclinava-se ora para um lado ora para o outro, ao som dos

aplausos. Os negros olhos oblíquos pareciam estreitas frestas a

acompanhar a linha dos lábios rubros, curvados num meio

sorriso.Francesesentusiastascontinuavamabatercomospésno

soalho, emsinaldeaprovação, enquantoacortina,ao fechar-se

com um som sibilante, ocultava o bizarrodécor colorido de

vermelho,azulecarmesim.Envoltanumturbilhãodegazesazuis

ecorde laranja,adançarinaretirou-sedopalco.Umsenhorde

barbarecebeu-anosbraços.Eraoempresário.

— Magnífico,petite, magnífico — exclamou. — Esta noite,

vocêsuperouasimesma.—Beijou-acomgalanteria,emambas

asfaces.

Habituada a elogios, Mme Nadina aceitou o tributo, sem

constrangimento,eseguiuparaocamarim.Aíseviam,portoda

parte, ramos de flores amontoados descuidadamente e vestidos

maravilhososconfeccionadosemtecidoscomdesenhosfuturistas.

O odor das flores em abundância e os perfumes e essências

sofisticados misturavam-se à atmosfera morna, tornando-a

levemente adocicada. Jeanne, a camareira, atendia a jovem,

tagarelandosemparar,numatorrentedeelogiosfastidiosos.

O dilúvio de palavras que lhe escorria dos lábios foi

interrompido por uma leve batida na porta. Jeanne abriu-a,

voltandocomumcartãodevisita.

—Asenhorarecebe?

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—Querosaberquemé.

Languidamente,abailarinaestendeuobraço,mas,ao

ler onome—CondeSergiusPaulovitch—, rápida centelha

perpassou-lhepeloolhar.

—Diga-lhequeentre.Depressa,Jeanne,openhoaramarelo-

claro.Quandoocondeentrar,vocêpoderetirar-se.

—Bien,madame.

Sorrindo para si mesma, Nadina vestiu o penhoar — uma

coisinha original, feita dechiffon amarelo ornado de arminho.

Instantes depois, dedos longos, muito brancos, tamborilavam

suavementenoespelhodotoucador.

Ovisitanteeradeestaturamediana,talheesbelto,elegante;o

rosto pálido aparentava extrema fadiga. Os traços fisionômicos

não despertavam a atenção; seria mais fácil reconhecê-lo pelo

tratamentocortês,umtantoexagerado,quecostumavadispensar

às pessoas. O conde curvou-se para beijar amão da bailarina,

poisbemavaliavaovalordoprivilégioquelheeraconcedido.

—Senhora,éumgrandeprazer...

Ao fechar a porta atrás de si, Jeanne ainda teve tempo de

ouvir a frase. Tão logo se viu a sós com o jovem, o sorriso de

Nadinatransformou-se.

—Creioque,emborasejamoscompatriotas,nãovamosfalar

russo—observou.

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— Será como quiser, visto não conhecermos uma única

palavradesseidioma—concordouomoço.

Feita a combinação, continuaram a exprimir-se em inglês.

Agora que o conde abandonara osmaneirismos, ninguém teria

dúvidas sobre o seu país de origem. De fato, começara a vida

comoartistanosteatrosdevariedadesdeLondres.Eraexímioem

mudarrapidamentedetrajesedecaracterização.

—Estanoitevocêfezumverdadeirosucesso—observou.—

Minhasfelicitações.

—Noentanto—disseNadina—,estoupreocupada.Nãome

sintoemsituaçãosegura.Asuspeitaperduradesdeaguerra.Sei

quemeespreitam,quesoucontinuamentevigiada.

—Jáaacusaramdeespionagem?

— Nosso chefe está tramando para que isso venha a

acontecer.

— Muitos anos de vida ao "Coronel" — disse o conde,

sorrindo. — A notícia de que pretende aposentar-se é

simplesmente espantosa, não acha? Aposentar-se! Como um

simplesmédico,açougueiroouencanador...

— Ou como qualquer comerciante — terminou Nadina. —

Não nos surpreenderia. É o que sempre foi: um excelente

comerciante. Soube organizar o crime tão bem quanto o faria

alguémcomrelaçãoaumafábricadebotas.Semcomprometer-se,

foicapazdeplanejaredirigir,emtodososramosda"profissão",

uma série decoups estupendos. Roubos de jóias, sabotagens,

falsificações de assinaturas, espionagem (trabalhomais rendoso

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duranteaguerra),assassínioscometidosemsurdina,quasenada

lheescapoudocampodeação.Inteligentíssimo,sempredescobre

opontoaquepodechegar.Abrincadeiraestásetornandomuito

perigosa? É o momento de, dignamente, bater em retirada —

levandoconsigoumafortunaincalculável!

—Humm...—murmurou o conde com ar de dúvida.— É

simplesmentedesconcertanteparatodosnós.Estamos,porassim

dizer,emumasituaçãoindesejável.

—Mas...somospagosregiamente.

Algo, o tom irônico quase imperceptível, talvez, e o sorriso

estranhonoslábiosdajovem,despertouacuriosidadedorapaz.

Mas,diplomaticamente,elenadadeixouperceber,econtinuou:

— Sim, o Coronel sempre foi generoso. A essa qualidade

atribuograndepartedoseuêxito,comotambémàcapacidadede

conseguirumbode expiatório apropriadoaomomento.Émuito

inteligente,não sepodenegar,muito inteligente!E apóstolodo

aforismo"Quemdesejaumacoisabem-feitamandaoutroemseu

lugar!"Porissoaquiestamos,vocêeeu,inculpadosatéaalmae

sobodomínioabsolutodessehomem,semquenenhumdenós

tenhasequerumaprovacontraele.

Fez uma pausa, como à espera de que amoça discordasse,

maselacontinuoucalada,aindaasorrirparasimesma.

—Nenhumdenós—sussurrouoconde.—Alémdisso,você

sabe,ovelhoésupersticioso.Háalgunsanos,foitirarasorte.A

cartomantenãosólheprofetizouumavidarepletadeêxitos,como

tambémqueasuaruínalheadviriadeumamulher.

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Despertadoointeresse,Nadinaolhou-ocomvivacidade.

—Éesquisito,muitoesquisito!Deumamulher?

Ocondesorriu,encolhendoosombros.

— Agora está aposentado... com certeza vai casar-se,

provavelmentecomumajovembonita,pertencenteàsociedade,e

queesbanjaráosseusmilhõesemmuitomenostempodoqueo

queelelevouparaadquiri-los.

Adançarinasacudiuacabeça.

— Não e não, não vai ser assim. Ouça, meu amigo, sigo

amanhãparaLondres.

—EocontratoaquiemParis?

— Pretendo ausentar-me apenas por uma noite. Viajarei

incógnita,comoosmembrosdarealeza.Ninguémjamaissaberá

quesaídaFrança.Adivinhaomotivodaminhaida?

— Para divertir-se, evidentemente... Nesta época do ano —

estamos em janeiro—, quando onevoeiro émais intenso!Deve

haveralgumacoisaatrásdisso,hein?

— Exatamente. — Levantando-se, Nadina foi postar-se

defronte do rapaz. Nas linhas graciosas de seu corpo

transpareciamarrogânciaealtivez.—Vocêacaboudedizerque

nenhumdenósnadapoderáprovar contra ele. Pois estámuito

enganado.Euposso.Eu,umasimplesmulher,tenhoagidocom

inteligência,sim,ecomcoragem—seiqueéprecisocoragem—

para conseguir ludibriá-lo. Lembra-se dos diamantes de De

Beers?

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— Lembro-me, sim. Não foi em Kimberley, pouco antes de

estouraraguerra?Nadativecomahistória,comotambémnada

soubeacercadospormenores;porestaouaquelarazão,abafaram

ocaso,nãoéissomesmo?Rendeuumabelabolada...

— Diamantes no valor de cem mil libras. Eu e mais uma

pessoafomosdestacadasparatrabalharnocaso—sobasordens

do Coronel, evidentemente. Era a minha oportunidade. Veja, o

planoconsistiaemsubstituiralgunsdosdiamantesdeDeBeers

por amostras trazidas da América do Sul. Por coincidência,

achavam-se em Kimberley, nessa ocasião, dois exploradores de

minas.Asuspeita,forçosamente,tinhaderecairsobreeles.

— Bem pensado — interrompeu o conde, dando sinais de

aprovação.

—OCoronelagesemprecominteligência.Poisbem,alémde

executar a minha parte, desempenhei mais uma, não prevista

pelo velho. Fiquei comalguns diamantes sul-americanos—um

oudoisdelessãoraros—,efácilseráprovarnãoterempassado

pelasmãos de De Beers. A posse das pedras torna-me possível

controlaromeuestimadochefe.Assimqueosdoismoçosforem

postosemliberdade,asuspeitasópoderárecairsobreoCoronel.

Durantetodosessesanos,nuncamencioneiofato,masalegra-me

saber que possuo esse trunfo de reserva; agora as coisas

mudaram.Exigireiomeupreço—seráenorme,arrasador.

— Extraordinário — disse o conde. — Sem dúvida, traz

sempreosdiamantescomasenhora?

Eorapazpercorreuocamarimcomolharindiferente.Nadina

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riubaixinho.

—Nempor sombra!Não sou tola...Estão em lugar seguro,

ondeaninguém,nemmesmoemsonho,ocorreráprocurá-los.

—Nuncapensei que fosse tola, senhora,maspermita-mea

ousadia de dizer-lhe que a considero bastante imprudente. O

Coronel não é dos que se deixam extorquir. Sabe disso muito

bem.

—Não tenhomedo dele— respondeu rindo.—Em toda a

minhavidasótemiumúnicohomem—maselejámorreu.

Omoçoencarou-acheiodecuriosidade.

— Esperemos que não ressuscite — observou em tom

despreocupado.

— Que quer dizer com isso? — exclamou a bailarina

imediatamente.

Ocondelançou-lheumolharemquetranspareciasurpresa.

—Apenasquearessurreiçãoadeixariaemmaus lençóis—

explicou.—Seriabrincadeirademaugosto.

Nadinadeuumsuspirodealívio.

— Oh! não, não há perigo! Ele morreu durante a guerra.

Andouapaixonadopormim.

—NaocasiãoemqueestavanaÁfricadoSul?

—Jáquepergunta,éissomesmo,naÁfricadoSul.

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—Vocênasceulá,nãofoi?

Abailarinaconcordoucomumacenodecabeça.Levantando-

se,ovisitantepegouochapéu.

— Pois bem — disse —, quem entende melhor dos seus

negóciosévocê;mas,emseulugar,eusentiriamuitomaismedo

doCoroneldoquedequalqueramantedesiludido.

Nadinariucomdesprezo.

—Comoseeunãooconhecesse,depoisdessesanostodos!

— Será?— perguntou o conde com voz suave.—Gostaria

muitodesaberseérealmenteassim.

—Oh! já disse que não sou tola! E, alémdisso, não sou a

únicanessenegócio.Amanhã,aportaemSouthamptonumnavio

que vem da África do Sul; um dos passageiros veio da África

exclusivamenteameupedido;foiquemexecutouminhasordens.

O Coronel terá, portanto, de haver-se não com uma, mas com

duaspessoas.

—Achaissoaconselhável?

—Énecessário.

—Confianessehomem?

Orostodabailarinailuminou-senumsorriso.

— Sem restrição. É ineficiente, mas digno de absoluta

confiança. — Fez uma pausa e, num tom de voz indiferente,

acrescentou:—Acontecequeeleémeumarido.

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Não posso mais recusar-me a escrever esta história. Os

insistentes pedidos partem não só de pessoas de destaque —

LordeNasby,porexemplo—comodecriaturashumildes—haja

vista Emily, minha ex-empregada. Por sinal, encontrei-a na

Inglaterra,quandoláestiveaúltimavez.Correuaomeuencontro

exclamando:"MeuDeus!senhorita.Dáumlivrolindo!Atéparece

fitadecinema!"

Reconheçopossuircertaaptidãoparaessaclassedetrabalho.

Desde o início, fiz parte integrante do caso, das suas partes

primordiais,edelesaívitoriosa, "porcima",atéo final.Odiário

escritoporSirEustacePedler—postoàminhainteiradisposição

— ser-me-á de grande valia; lendo-o, poderei preencher as

lacunasexistentes,advindasdefatosquenãochegaramaomeu

conhecimento.

Comecemos, então. Anne Beddingfield passa a narrar suas

aventuras.

Levo vida horrivelmente monótona, eu que sempre sonhei

com aventuras. Meu pai, o Professor Beddingfield, foi, na

Inglaterra, uma das maiores autoridades contemporâneas em

assuntosconcernentesaohomemprimitivo.Umgênio,realmente

— ninguém duvida disso. Visto seu espírito habitar as eras

paleolíticas,era-lhedesuma inconveniênciaqueocorpovivesse

nomundomoderno.Nãosepreocupavacomohomemdehojee

sentiadesprezopelohomemneolítico—simplesvaqueiro,noseu

entender.Nadaaquémdoperíodomusterianopoderia interessá-

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lo.

Infelizmente, não podemos prescindir por completo do

homem moderno. Somos obrigados a manter uma espécie de

intercâmbiocomaçougueiros,padeiros,leiteirosemerceeiros.Eu

contava meses de vida quando perdi minha mãe e, com papai

imerso no passado, coube-me a tarefa de levar avante o lado

práticodavida.Ficaramameucargoamaiorpartedostrabalhos

dedatilografiaederevisãodolivroqueeleescreveu:Ohomemde

Neandertal e seusancestrais.Falandocom franqueza,detestoo

homem paleolítico, seja aurignaciano, musteriano, cheliano ou

outro qualquer. Sinto verdadeira aversão pelos homens de

Neandertal,epenso,commuitafreqüência,queéumafelicidade

estaremextintosdesdeépocasremotas.

Não sei se papai chegou a perceber a impressão que me

causavam. Provavelmente nem desconfiou; mas, de qualquer

maneira,issonãoointeressaria.Aopiniãodeterceirosera-lhede

todo indiferente, indício,porcerto,dasua inteligênciasuperior.

Viviatambémcompletamentedesinteressadodasnecessidadesda

vida cotidiana. Comia tudo o que eu lhe punha no prato, de

maneiraexemplar;todavia,asquestõesfinanceirasmortificavam-

no. Nunca tínhamos dinheiro suficiente. A celebridade de que

gozavanãolheproporcionavalucros.Apesardepertenceraquase

todasassociedadesimportantesedepossuirumasériedetítulos

em seqüência ao nome, o grande público o desconhecia, mal

sabendodasuaexistência.Oslongoslivroseruditosquepublicou

concorreram, evidentemente, para aumentar o cabedal do

conhecimento humano, sem contudo exercer atração sobre as

massas.Umaúnicavez foialvodaatençãogeral.Meupaihavia

lido, numa sociedade, um trabalho referente aos filhotes dos

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chimpanzés. Dizia que os seres humanos, na infância,

apresentamalgunsaspectosantropóides,aopassoqueosfilhotes

dos chimpanzés aproximam-se muito mais intimamente do ser

humano do que os chimpanzés adultos. Assim sendo, parecia

querer demonstrar que não só nossos ancestrais eram mais

símios do que nós, como também que os ancestrais dos

chimpanzéspertenciamaum tipomais elevadoqueas espécies

atuais—poroutraspalavras,ochimpanzééumdegenerado.O

Daily Budget, arrojado matutino, sempre à espreita de um

estimulante para o público, imprimiu a notícia em letras

garrafais:"Não descendemos dosmacacos; são osmacacos que

descendemdenós.Eminenteprofessorafirmaqueoschimpanzés

sãosereshumanosemdecadência".Nessemesmodia,apareceu

emcasaumrepórter.Tencionavainduzirmeupaiaescreveruma

série de artigos populares sobre a teoria que expusera. Raras

vezes tive oportunidadede vê-lo tão zangado.Pôs o rapazporta

afora, sem a menor cerimônia, o que me causou profunda

tristeza,vistoestarmos,naquelaocasião,comodinheirobastante

escasso. Por um momento, pensei em sair correndo atrás do

jovem e avisá-lo de que meu pai estava disposto a enviar os

artigos,poismudaradeopinião.Ser-me-iamuitofácilescrevê-los,

e, como papai não era leitor doDaily Budget, provavelmente

jamais ficaria sabendo da transação. Contudo, abandonei o

projeto, por achá-lo arriscado; então, coloquei na cabeça omeu

melhor chapéu e saí tristemente em direção da aldeia, onde

tencionavaconseguirumaentrevistacomomerceeiro,que,com

todaarazão,andavafurioso.

O repórter doDailyBudget foioúnico jovemaaparecerem

casa.

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HaviamomentosemqueeuinvejavaEmily,aempregadinha;

todasasvezesemqueaocasiãoseapresentava,"saíaapasseio"

comummarinheiroaltoeespadaúdo—onoivo.Nosintervalos,

para "não perder o costume", segundo dizia, passeava com um

verdureirojovemoucomoajudantedofarmacêutico.Punha-mea

cismar, imersa na tristeza de não ter com quem "não perder o

costume".Osamigosdemeupaieramprofessoresdemeia-idade,

de longas barbas. Uma ocasião — confesso —, o Professor

Peterson,depoisdesegurar-medelicadamente,deu-me tapinhas

amistosos,dizendoqueeutinha"cinturinhabem-feita",e,nesse

momento, tentou beijar-me. A frase foi suficiente para que,

irrevogavelmente, o classificasse de velho. No tempo em que eu

ainda era criança de colo, jámulher nenhuma que se prezasse

gostariadeouvirfrasesemelhante.Estavacondenadaalevarvida

insípida,euqueansiavaporumaexistênciadeaventuras,cheia

deamoreromantismo.

Existia,naaldeia,umabibliotecarepletade livrosde ficção,

estraçalhados.Deleitavam-meaquelaspáginasrepletasdeamore

de aventuras arriscadas. À noite, sonhava com valentes

rodesianos silenciosos e homens muito fortes que, "de um só

golpe, punham o adversário por terra". Na aldeia, porém,

ninguémera capazde "pôrpor terra" oadversário comdiversos

golpes,quantomaiscomum.

O cinema apresentava semanalmente um episódio do filme

Pamela corre perigo. Pamela, belíssima mulher, desconhecia o

medo. Saltava de aeroplanos, praticava façanhas no interior de

submarinos, escalava arranha-céus, conseguia insinuar-se no

mundo do crime semqueumúnico fio de cabelo lhe saísse do

lugar. Contudo, não devia ser muito inteligente. O chefe de

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polícia acabava fatalmente por agarrá-la, mas, como parecia

avesso à idéia de desferir-lhe forte pancada na cabeça, achava

preferível condená-laàmorte,porasfixia,numacâmaradegás,

ou por outro meio incrível e original. No início do episódio

seguinte,oheróiconseguiasalvá-la.Eudeixavaocinemacoma

cabeçanumazonzeira...Umavez,aochegaracasa,encontreium

aviso da companhia de gás notificando-nos do atraso no

pagamentodascontas!

E, embora o ignorasse, o transcorrer dos segundos

aproximava-mecadavezmaisdaaventura.

Haverámuitagenteque jamaisouviu falardadescobertade

um crânio muito antigo, encontrado na Mina da Montanha

Partida,situadanonortedaRodésia.Certamanhã,depareicom

papai,muitoagitado,quaseapoplético.Empoucosinstantespôs-

meapardahistória.

— Compreendeu, Anne? Tem certas semelhanças com o

crâniodeJava,massãosuperficiais—apenassuperficiais.Agora,

possocomprovaraminhahipótese:aformaancestraldaraçade

Neandertal.VocêgarantequeocrâniodeGibraltarérealmenteo

mais antigo que se encontrou até hoje? Por quê?AÁfrica foi o

berçodaraça.Delá,passaramparaaEuropa...

— Não ponha geléia no arenque — disse eu depressa,

segurandoamãodomeudistraídopai.—Oqueéqueosenhor

estavadizendo?

—QuesetransferiuparaaEuropa...

Derepenteparou,comoseestivessecomumapequenacrise

de sufocação; sofria, apenas, a conseqüência de um bocado

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imoderadodearenque.

— Temos que partir imediatamente — afirmou, quando se

levantavaapósterminararefeição.—Nãopodemosperdertempo.

Precisamos chegar o mais depressa possível. Podem-se fazer

descobertasincalculáveisnosarredores.Interessa-mesaberseos

utensílios são típicos do período musteriano — deve haver

remanescentes do boi primitivo, mas não do rinoceronte

lanuginoso.Sim,éprecisoqueum

pequenoexércitosigaimediatamente.Enós,antesdele.Quer

escreverumacarta,hoje,paraaAgênciaCook,Anne?

—Eodinheiro,papai?—sugericomdelicadeza.Elelançou-

meumolharreprovador.

— Omodo como você encara os fatos deixa-me deprimido,

minhafilha.Nãopodemosseregoístas.Não,não,emsetratando

daciência,nãopodemosseregoístas.

—ÉprovávelqueaCookseja,papai.Aaflição transparecia

noseurosto.

—Anne,façaopagamentoàvista.

— Não temos dinheiro em caixa, papai. Dessa vez o velho

exasperou-se.

—Minhafilha,nãoquero,demaneiraalguma,aborrecer-me

com pormenores vulgares sobre dinheiro. O banco... ontem,

recebi uma carta do administrador; tenho vinte e sete libras a

receber.

—Suponhoquesetratedosaqueadescoberto.

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—Ah!Lembrei-medeumacoisa!Escrevaaosmeuseditores!

Concordei, sem muito entusiasmo. Os livros que meu pai

escrevialheproporcionavammaisglóriadoquedinheiro.

FiqueicontentíssimacomoprojetodaviagemàRodésia.

—Homenscalmosecorajosos—murmurei,emêxtase,para

mim mesma. Olhando para meu pai, notei, de repente, algo

inusitadonasuaaparência.

—Quebotasesquisitas,papai!—disse-lhe.—Troqueabota

marrompelapreta.Enãováseesquecerdocachecol;estámuito

frio.

Daía instantes,elesaíadecasa,comasbotascertasebem

agasalhado.

Nesse dia, voltou tarde, e com desespero verifiquei que não

traziacachecolnemsobretudo!

—Caramba!Anne,temtodaarazão.Tirei-osantesdeentrar

nacaverna.Nãoqueriasujá-los.

FoiacavernadeHampsley,situadanosarredoresdaaldeia,o

motivo principal que nos induziu a fixar residência em Little

Hampsley. Tratava-se de uma gruta — opulenta depositária de

remanescentes da cultura aurignaciana. Existia, na aldeia, um

pequenino museu onde o administrador e papai passavam a

maiorpartedodia.Ficavamremexendoacavernaedalisubiam

comfragmentosdeumrinocerontelanuginosooudealgumurso

dacaverna.

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Papai tossiu muito durante a noite inteira; na manhã

seguinte,estavafebril,motivoporquemandeichamaromédico.

Coitado!Nuncateveumaoportunidadenavida.Quatrodias

depois,morriadepneumoniadupla.

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Apalermada como estava, fiquei gratíssima a toda aquela

gente tão boa. A dor que senti não foi profunda, confesso, pois

papai—bemosabia—nuncamededicaraafeto.Casocontrário,

eu teria retribuído. Não, entre nós não existira afeição; era,

apenas, comosepertencêssemosumaooutro.Sua cultura, e o

devotamento inflexível pela ciência, causavam-me íntima

admiração. Magoava-me saber que ele deixara de existir no

momento exato em que atingia o ponto culminante, o motivo

primordialdeinteressedasuavida.Sentir-me-iamaisfelizseao

menos houvesse a possibilidade de sepultá-lo numa gruta,

ornada de utensílios de pedra e figuras de renas pintadas nas

paredes; mas, graças ao poder da opinião pública, seu corpo

repousa numa alva tumba (com laje demármore), no horrendo

cemitériolocal.Aspalavrasconfortadorasdopastor,emboraditas

comboaintenção,denadamevaleram.

Custou-me algum tempo chegar à evidência de que o meu

maiordesejo—aconquistadaliberdade—porfimserealizara.

Eraórfãepraticamentesemvintém,maslivre,afinal.

Nessaocasiãopudeavaliarabondadedaquelagentesimples.

Insistente, o pastor procurava persuadir-me da necessidade

urgentedeencontraralguémquepudesseauxiliarsuaesposanos

trabalhos domésticos. De repente, a pequenina biblioteca local

decidiucontratarumaassistentedebibliotecária.Porfim,recebi

a visita do médico. Após vários pedidos de desculpas,

verdadeiramente ridículas, a respeito da conta, começou a

gaguejar e, intempestivamente, insinuou que deveríamos nos

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casar.

A proposta causou-me espanto. O médico estava mais

próximodosquarentadoquedostrintae,alémdisso,suafigura

assemelhava-seaumabarriquinha.Nadanasuapessoalembrava

oheróidePamelacorreperigo,quantomaisosrodesianosfortese

silenciosos. Depois de um minuto de reflexão, acabei por

perguntar-lhe por que desejava casar-se comigo. Bastante

confuso, murmurou que a esposa representa auxílio de grande

valia ao médico de clínica geral. A situação tornara-se ainda

menos romântica; não obstante, algo impelia-me a aceitar o

pedidodecasamento.Oferecia-mesegurançaeumlarconfortável.

Pensando agora no caso, acredito ter sido injusta com o

homenzinho. Estava sinceramente apaixonado, mas uma

excessiva delicadeza de sentimentos impedia-o de tocar no

assunto. De qualquer maneira, as minhas idéias românticas

rebelavam-se.

—Émuitabondadesua—respondi.—Maséimpossível.Só

mecasareicomohomemaquemvieraamarcomloucura.

—Nãoacha...?

— Não, não acho — respondi com firmeza. O médico

suspirou.

—Mas,minhafilhaquerida,oquepretendefazer?

— Aventurar-me pelo mundo — afirmei, sem a menor

hesitação.

—Asenhoritaaindaémuitocriança.Nãocompreende...

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— As dificuldades de ordem prática? Compreendo-as, sim,

doutor.Nãosouumaestudantesentimental—masumamulher

briguenta, mercenária e de cabeça dura! Se nos casássemos, o

senhorficariasabendo!

—Gostariaquereconsiderasse...

—Éimpossível.

Ohomenzinhotornouasuspirar.

—Voufazer-lheoutraproposta.Minhatia,quemoranoPaís

de Gales, está precisando de uma jovem que a ajude nos

trabalhoscaseiros.Queacha?

—Não, doutor, vou para Londres. Se acontecem coisas por

toda parte, por que não acontecerão em Londres também? Vou

ficar de olhos bem abertos — o senhor terá oportunidade de

verificar —, alguma coisa há de acontecer! A próxima vez que

ouvir falar em mim, será por notícias vindas da China ou de

Timbuctu.

Recebi, a seguir, a visita de Mr. Flemming, procurador de

papai, que residia em Londres. Antropólogo entusiasta, sentia

grande admiração pelos livros que meu pai escrevera. Magro e

alto,tinhaorostoalongadoecabelosgrisalhos.Quandoentreina

sala, levantou-se e, tomando-me ambas asmãos entre as suas,

começouadar-lhespancadinhasafetuosas.

— Coitadinha! — disse. — Coitadinha, coitadinha!

Inconsciente da minha própria hipocrisia, simulei o

comportamentodeumaórfãdesolada,porquesobasugestãode

suas palavras fui forçada a assim proceder. Bondoso, afável e

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paternal, considerava-me—nãome restavaamenorsombrade

dúvida—umaperfeitasonsinha,desorientada frenteaomundo

perverso.Desdeoprimeiroinstante,sentiainutilidadedequerer

convencê-lo do contrário. O fio da conversa fez-me mudar de

opinião.

— Filhinha, está em condição de prestar atenção? Queria

esclarecê-lasobrealgunspontos.

—Oh!estou.

— Como sabe, seu pai foi uma pessoa de muito valor. A

posteridadedirá.Sóquenãoentendiamuitodenegócios.

Ciente eu estava, tanto ou mais do que o próprio Mr.

Flemming;nadadisse,porém.Elecontinuou:

—Suponhoquenãoconheçagrandecoisadessesassuntos.

Procurareiexplicar-lhedamaneiramaissimplespossível.

E a explicação, longa e desnecessária, resumia-se no

seguinte:eureceberia,paraenfrentarasdespesas,aquantiade

oitentaesete libras,dezessetexelinsequatropence,ameuver,

montante pouco satisfatório. Um tanto agitada, aguardei a

seqüênciadaconversa,temerosadequeoadvogadotivesseuma

tia na Escócia, necessitada da companhia de uma jovem

inteligentequeaauxiliassenos trabalhosdomésticos.Mas,pelo

jeito,nãotinha.

—Adúvida—prosseguiu—éarespeitodoseufuturo.Creio

quenãotemparentes...

—Sousozinhanomundo— respondi.Comoa situação se

Page 24: Agatha christie - o homem do terno marrom

assemelhavaafitadecinema!

—Erelaçõesdeamizade?

—Todosforammuitosgentiscomigo—respondi,

comovida.

— Quem não o seria com uma pessoa tão jovem e

encantadora?—continuouMr.Flemming,emtomgalante.

—Muitobem,minha filha,muitobem; vamos ver o que se

pode fazer. — Hesitou por uns instantes, dizendo depois: —

Suponhamos...Quetalaidéiadepassarunstemposconosco?

Agarreiaoportunidadecomunhasedentes.Londres!Aterra

dosgrandesacontecimentos!

—Osenhorémuitoamável—respondi.—Possoirmesmo?

Sóenquantoestiverprocurandoemprego;precisoganharavida,

sabe?

—Sim, está certo,minha filha. Compreendo perfeitamente.

Vamosprocuraralgumacoisa...queconvenha.

Senti, instintivamente, que o procurador de papai e eu

divergíamosbastantequantoaoconceitoda frase "algumacoisa

que convenha"; sendo, porém, o momento inoportuno, não dei

expansãoaomeupontodevista.

—Então,estácombinado.Querirhoje,comigo?

—Oh,muitoobrigada,Mr.Flemming,mas...

—Minhamulher vai ficar contentíssima em recebê-la. Será

Page 25: Agatha christie - o homem do terno marrom

queosmaridosconhecemrealmenteasesposastãobemquanto

julgam?Tenhocertasdúvidas.Sefossecasada,achariadetestável

quemeumaridolevasseórfãsparacasa,semantesmeconsultar.

— Passaremos um telegrama na estação — continuou o

advogado.

Empoucotempoarrumeiamala—aroupanãoeramuita—

e os objetos de uso pessoal. Antes de pôr o chapéu, olhei-o

tristemente. A princípio, chamava-o de "Mary"; o apelido me

ocorrera pelo fato de assemelhar-se aos que costumam usar as

empregadinhasnosseusdiasdefolga—toas,agora,nemisso!...

Tornara-seumacoisaflácida,deabasdespencadas.Umdia,num

momento de inspiração genial, dei-lhe um soco, dois puxões,

aperteiacopaemdiversospontose,porfim,acrescentei-lheum

enfeite,semelhanteaumacenoura,algocomquepoderiasonhar

umpintor cubista.O resultado revelou-semuito chique. Agora,

depois de retirar a cenoura, é claro, desfiz o resto do trabalho

anterior. Mary recobrou a primitiva aparência, um pouco mais

flácida, talvez. Acredito que eu apresentasse um verdadeiro

aspecto de órfã, segundo a concepção popular. Agia como um

autômato, nervosa ao pensar na recepção que me faria Mrs.

Flemming, esperando, ao mesmo tempo, que minha aparência

viesse,possivelmente,emmeusocorro.

Quando subíamos a escada do casarão situado numa

sossegada praça de Kensington, constatei que o advogado

tambémestavanervoso.Aesposacumprimentou-mealegremente.

Eraalta,comumarsereno;enfim,classificava-seentreotipodas

"boas esposas e mães". Conduziu-me a um quarto

imaculadamentelimpo,forradodefazendaestampada.Esperava,

disse-me,queestivessetudoemordem,e,depoisdeavisar-mede

Page 26: Agatha christie - o homem do terno marrom

que, dentro de quinze minutos mais ou menos, o chá seria

servido, saiu, deixando-me entregue aos meus próprios

pensamentos.

Quandoentrounosalãodoprimeiroandar,abaixodomeu,

percebilevealteraçãonasuavoz.

—Mas, que diabo,Henry, por que...—Perdi o restante da

frase,porémotomacrenãomedeixavadúvida.Algunsminutos

após,chegou-meaosouvidosoutrafrase,ditacommaisazedume:

—Concordocomvocê!Elaémuitobonita!

Esta vida é engraçada. As mulheres belas recebem

amabilidades dos homens; as que não o são recebem-nas das

outrasmulheres.

Com um profundo suspiro, continuei a pentear os cabelos,

que,porsinal,sãomuitobonitos.Negros—muitonegros,enão

castanho-escuros —, nascem no alto da testa, caindo sobre as

orelhas.Commãosimpiedosas,repuxei-osparacimadacabeça.

Seique,atualmente, falaremorelhasédémodé;masasminhas

são perfeitas. Isso fez-me lembrar as "pernas da rainha da

Espanha", na época da mocidade do Professor Peterson. Após

terminaropenteado,assemelhava-meincrivelmenteaessasórfãs

que saem, em fila, pelas ruas, de touquinha amarrada sob o

queixoeagasalhadasnumacapavermelha.

Quando desci, observei o olhar bondoso com que Mrs.

Flemming fitou-me as orelhas descobertas. O marido parecia

perplexo.Tivecertezadequediziacomosseusbotões:"Oqueé

queessameninafez?

Page 27: Agatha christie - o homem do terno marrom

De modo geral, o resto do dia transcorreu sem novidades.

Havíamos combinadoque eu sairia imediatamenteàprocurade

emprego.

Antesdedeitar-me,postei-mediantedo espelho, a observar

cuidadosamente o rosto. Seria bonita realmente? Falando com

franqueza, não ousava afirmá-lo! O nariz não era de linhas

clássicas, nem os lábios como botão de rosa; enfim, não fora

dotada dos requisitos de beleza necessários para merecer o

qualificativodebela.Umdia,lembro-mebem,oauxiliardopastor

disse serem meus olhos como "raios de sol prisioneiros num

bosque negro, negro" — mas esses jovens auxiliares de pastor

lançamaesmoasnumerosascitaçõesquesabemdecor.Ameu

ver,osolhosazuissãomaisbonitosdoqueosverdessalpicados

depontinhosamarelos.Apesardisso,overdeéacoradequadaa

quemandaàcatadeaventuras.

Vesti um traje preto, bem ajustado ao corpo, que me

desnudava osbraços e o colo.Escovei os cabelos; penteei-os de

modo que encobrissem as orelhas. Espessa camada de pó-de-

arrozdeuàminhapeleumatonalidadebemmaisclara.Difícilfoi

encontraroóleomedicinalpara lábiosressequidos,queapliquei

generosamentesobreosmeus.Osolhosnãoficaramesquecidos:

passei nas pálpebras pó de rolha queimada. Finalmente, com

uma fita vermelha a enfeitar-me o ombro nu, uma pena rubra

espetadanoscabelos,cigarronocantodaboca,deiporterminada

atoilette.Oresultadofoimuitodomeuagrado.

—Anne,aAventureira!—-exclamei,inclinando-mediantedo

espelho. — Anne, a Aventureira! Primeiro capítulo: A casa de

Kensington!

Page 28: Agatha christie - o homem do terno marrom

Asjovensnãopassamdeumastolinhas.

Page 29: Agatha christie - o homem do terno marrom

3

As semanas seguintes foram simplesmente tediosas. Mrs.

Flemming e as amigas afiguravam-se-me desinteressantíssimas.

Durante horas, falavam de si mesmas, dos filhos e das

dificuldadesemconseguirleitedeboaqualidadeparaascrianças.

Repisavam as reclamações feitas ao leiteiro, no caso de ser

indesejáveloproduto.Discorriam,emseguida,sobreascriadase

quão difícil se tornava conseguir alguém cujo trabalho as

satisfizesse! Vinha depois a repetição do diálogo travado com a

funcionária da agência.Creio quenão liam jornais ou então se

desinteressavamporcompletodosacontecimentosmundiais.Não

apreciavamasviagens—naInglaterraeratudotãodiferente...A

Riviera,sim,valiaapena;encontravam-se todososamigospor

lá.

Eu ouvia, mas custava conter-me. Quase todas essas

senhoraseramricas.Poderiam,selhesaprouvesse,percorrereste

mundo tão cheio de beleza; no entanto, deleitavam-se em

permanecer deliberadamente em Londres— sempre tristonha e

monótona—, a discorrer sobre leiteiros e criados! Volvendo os

olhos ao passado, penso que, naquela ocasião, talvez eu tivesse

sidoumtanto intolerante.Elas,porsuavez,eram tolas—tolas

até na escolha das tarefas diárias: a maior parte delas fazia a

contabilidadedomésticadeformainapropriadaeconfusa.

Meusnegóciosnãoprogrediamcommuitarapidez.Vendidas

a casa e a mobília, recebi a exata quantia com que saldar as

dívidas.Alémdisso,aindanãotinhaconseguidoemprego,coisa,

aliás,poucodomeuagrado.Estavaconvictadeque,sesaísseem

Page 30: Agatha christie - o homem do terno marrom

busca de aventura, ela viria ao meu encontro até a metade do

caminho. Sempre conseguimos o que desejamos — eis minha

teoria.Poucofaltavaparapô-laemprática.

Estávamos em princípios de janeiro — no dia 8, para ser

exata. Foi quando li um anúncio no jornal. Referia-se a uma

senhora interessadaemcontratarumadamadecompanhia.Os

entendimentosmalograramporque,narealidade,elanecessitava

dosserviçosdeumarobustaarrumadeira,capazdelabutardoze

horaspordia,avinteecincolibrasanuais.Deambasaspartes,a

despedidarevestiu-sedeveladaimpolidez.DesciaEdgwareRoad

— o senhora residia em St. John'sWood—, atravessei o Hyde

ParkemdireçãoaoHospitalSt.George.Aí,entreinaEstaçãode

HydeParkdometrôeadquiriumbilheteparaaGloucesterRoad.

Pus-me a percorrer a plataforma em toda a sua extensão.

Dotada de espírito indagador, desejava saber se os dois túneis

eraminteiriçosousehaviaumaaberturalogodepoisdaestação,

do ladodaDownStreet.Fiquei contentíssima, emboraomotivo

fosse de somenos importância, ao verificar que tudo era como

realmenteeuimaginara.Aestaçãoestavapraticamentevazia;na

extremidade da plataforma, apenasumhomem e eu. Ao passar

porele,espirrei.Nãosuportoocheirodenaftalina!Comcerteza,

seu pesado sobretudo estava impregnado desse odor

desagradável. A maioria dos homens começa a usar agasalhos

antes de janeiro, e, em conseqüência, o cheiro já devia ter

desaparecido.Depé,muitopertodotúnel,elepareciaperdidoem

pensamentos. Sem mostrar-me incivil, pude então observá-lo

atentamente.Baixoemagro,depelemorena,tinhaolhosazuise

barbapreta,nãomuitolonga.

Acaba de chegar do exterior, deduzi. Por isso o sobretudo

Page 31: Agatha christie - o homem do terno marrom

exala tão forte odor de naftalina. Veio da índia. Usa barba,

portanto não é militar. Talvez seja proprietário de alguma

plantaçãodechá.

Nesse momento, o homem voltou-se, como se tencionasse

percorrer a plataforma. Fitou-me de relance; depois, dirigiu o

olhar para alguma coisa que se encontrava por trás demim e,

então,suasfeiçõesalteraram-sedesfiguradaspelomedo,próximo

do terror. Retrocedeu um passo, como se, involuntariamente,

quisessefugirdealgumperigo.Esquecidoporémdolocalemque

se achava, caiu da plataforma. Instantes depois, vivido clarão

iluminouostrilhosealgumacoisa,estalando,fendia-se.Deium

grito. Pessoas acorreram. Como por magia, surgiram dois

funcionáriosdaestação,prontosparatomarasprovidênciasque

ocasorequeria.

Eu continuava no mesmo lugar, pregada ao solo por uma

espécie de terrível encantamento. O acidente amedrontou-me,

mas ao mesmo tempo observava fria e calmamente como

procediamàretiradadohomemdecimadostrilhoselétricoseo

colocavamnaplataforma.

—Soumédico,deixem-mepassar,porfavor.

Umhomemalto,debarbacastanha,atravessouamultidãoe,

passandopertodemim,curvou-sesobreocorpoimóveldoferido.

Enquanto o examinava, estranha sensação de irrealidade

apossou-sedomeuser.Aquilotudoerairreal—nãopodiadeixar

deser.Porfim,omédicolevantou-seeabanouacabeça.

—Estámorto.Nadaháquefazer.

Page 32: Agatha christie - o homem do terno marrom

Como todos os presentes se tivessem aglomerado junto do

acidentado, um carregador, elevando a voz, disse em tom

tristonho:

—Queremseafastar,porfavor?Queestãofazendoaqui?

Sufocada por súbita náusea, voltei-me e, correndo, subi às

cegasaescadariaquelevavaaoelevador.Sentiatodoohorrorda

cena a que acabara de assistir e ansiava por respirar

desafogadamente ao ar livre. Na minha frente caminhava o

médico que, há pouco, fizera o exame do cadáver. O elevador

estava prestes a subir. Para não perdê-lo, o homem disparou

numacorrida.Foiquandolhecaiudobolsoumpedaçodepapel.

Parei, apanhei-o e segui no seu encalço. Fecharam-se as

grades do elevador e lá fiquei com o papel na mão. Subi no

seguinte, mas na rua não encontrei sinal domédico. Fiz votos

paraqueaperdadopapelnãolhetrouxessetranstornos,epela

primeira vez pus-me a examiná-lo. Era meia folha de um

caderninhodenotas,comnúmerosepalavrasrabiscadasalápis,

maisoumenosassim:

Pelo jeito, parecia não ter a menor importância. Assim

mesmo, hesitei em desfazer-me dele. Continuava a segurá-lo,

quando, involuntariamente, franzi o nariz. Naftalina outra vez!

Aspirei-onovamente.Semdúvida,provinhadalioforteodor.Mas

então...

Guardei-onabolsa,bemdobradinho.Sempressa,pus-mea

caminhar,acabeçafervilhandodepensamentos.

A Mrs. Flemming expliquei que, transtornada por haver

presenciado um terrível acidente na estação do metrô, preferia

Page 33: Agatha christie - o homem do terno marrom

subirdiretamenteparaoquarto.Aboamulherinsistiuemqueeu

tomasse uma xícara de chá. Logo mais, a sós com meus

pensamentos, tratei de executar o plano idealizado durante o

trajeto da volta. Queria deslindar a causa daquela curiosa

sensaçãode irrealidadequeseapossaradomeuserenquantoo

médicoprocediaaoexamedocadáver.Emprimeirolugar,deitei-

meno soalho, procurando imitar a posição domorto. Levantei-

me, repeti a operação, mas dessa vez com almofadas. Comecei

então a reproduzir da maneira mais aproximada possível os

movimentos e gestos do médico. E assim acabei descobrindo o

queme intrigava. Sentada no chão, franzi os sobrolhos para a

paredefronteira.

Os jornais da tarde publicaram breve notícia a respeito da

morte de um homem ocorrida numa estação do metrô. Dizia

pairardúvidaquantoasersuicídioouacidente.Eutinha,pois,

umdever a cumprir.Mr. Flemming, após ouvirminhahistória,

concordouplenamentecomigo.

— Com certeza vai ser chamada para depor. Garante que

ninguémmaispresenciouoacidente?

—Garantirnãoposso,mas tivea impressãodequealguém

vinha atrás de mim; de qualquer maneira, não podia estar tão

pertoquantoeu.

Abertooinquérito,Mr.Flemmingacompanhou-meà.polícia.

Temiaqueeuestivessepassandoporgrandeprovação.Paranãoo

desapontar,procureidisfarçarminhaserenidade.

OmortofoiidentificadocomoL.B.Carton.Encontraramem

seusbolsosapenasumbilhetedeumaimobiliária,autorizando-o

Page 34: Agatha christie - o homem do terno marrom

a ver uma casa emMarlow, situada àmargemdo rio. A ordem

fora expedida em nome de L. B. Carton, Russel Hotel. Um

funcionáriodaportarianãosóoidentificou,comoesclareceutera

vítima chegadona véspera, registrando-se comonomedeL.B.

Carton, procedente de Kimberley, África do Sul. Desembarcara

poucoantes,evidentemente.

—Achaquefoiacidente?—perguntou-meojuiz.

— Tenho certeza. Alguma coisa assustou-o e,

impensadamente,deuumpassoparatrás,semsaberoquefazia.

—Eporqueseassustou?

— Não sei. Mas assustou-se. Deu-me a impressão de estar

loucodemedo.

Um estólido jurado lembrou haver pessoas que ficam

apavoradasàvistadeumgato.Talvezohomemtivessevistoum.

A sugestãonãomepareceumuito brilhante,mas foi levada em

consideração pelos colegas, obviamente impacientes para

regressaremaos seus lares e satisfeitíssimos por poderemdar o

veredictodeacidente.

—Éesquisito!—disseo juiz.—Omédicoqueexaminouo

cadáver pela primeira vez não apareceu até agora! Constitui

irregularidadenãoteremtomadoseunomeeendereço.

Sorriinteriormente;jáhaviaelaboradominhaprópriateoriaa

respeito. Em vista disso, decidi fazer daí a alguns dias uma

visitinhaàScotlandYard.

Namanhãseguinte,tiveumasurpresa.OsFlemminghaviam

Page 35: Agatha christie - o homem do terno marrom

comprado um exemplar doDaily Budget, que, por certo, devia

estarnadandoemfelicidade.

"SEQÜÊNCIA EXTRAORDINÁRIA DO ACIDENTE DO METRÔ: MULHER

ESTRANGULADANUMACASASOLITÁRIA."

Lianotíciadeumsófôlego:

"Verificou-seontem,emMarlow, sensacionaldescoberta.Foi

cometido um crime na Casa do Moinho, propriedade de Sir

EustacePedler,membrodoParlamento.Ohomemqueseatirou

nostrilhoselétricosdaEstaçãodeHydeParktrazianobolsouma

autorização para entrar no prédio, que, no momento, está

desalugado.Ontem,encontraramnoandarsuperiordaCasado

Moinhoumalindajovem,mortaporestrangulamento.Ocadáver

aindanãofoiidentificado,masparecetratar-sedeestrangeira.A

políciafoinotificadadocrime.SirEustacePedler,proprietárioda

Casa do Moinho, encontra-se na Riviera, onde foi passar o

inverno".

Page 36: Agatha christie - o homem do terno marrom

4

Ninguémapareceupara identificarocorpo.As investigações

trouxeramàluzosseguintesfatos:

Nodia8dejaneiro,àumahoradatarde,maisoumenosMr.

Butler e Mr. Park, corretores de imóveis, com escritório em

Knightsbridge, receberama visita deuma cliente. Tratava-se de

uma mulher bem-trajada, que se exprimia com leve sotaque

estrangeiro.Disse estar interessada emalugar ou compraruma

casaàmargemdoTâmisaedefácilacessoaLondres.Ofereceram-

lhediversaspropriedades, inclusiveaCasadoMoinho.A jovem

declarouchamar-seMrs.deCastina, residentenoRitz.Onome

entretantonãofiguravanalistadehóspedes,eosempregadosdo

hotelnãoidentificaramocadáver.

Mrs. James — a caseira —, mulher do jardineiro de Sir

Eustace Pedler, prestou depoimento. Mora num pequeno chalé

comfrenteparaaestradaprincipal.Nessamesmatarde,cercadas

três horas, apareceu uma senhora interessada em ver a casa.

Apresentouaautorizaçãofornecidapeloscorretores.Mrs.James

entregouaschavesàvisitante.Ochalésitua-seacertadistância

da propriedade, e ela não costumava acompanhar os inquilinos

em perspectiva. Alguns minutos depois chegou um moço.

Segundoadescriçãodacaseira, tratava-sedeumrapazalto,de

ombros largos, queimado pelo sol, bem-escanhoado e de olhos

cinza-claros. Usava terno marrom. Explicou-lhe ser amigo da

senhoraqueestavavendoacasaeatrasara-seporhaverparado

no correio, onde fora passar um telegrama. A mulher do

jardineiroindicou-lheocaminhoenãopensoumaisnoassunto.

Page 37: Agatha christie - o homem do terno marrom

Cincominutosdepoisomoçovoltouedevolveu-lheaschaves

esclarecendo que a casa talvez não lhes conviesse. Mrs. James

não viu a jovem, mas julgou que já tivesse partido. Notou, no

entanto,ograndenervosismodorapaz.

"Até parece que viu fantasma. Cheguei a pensar que estava

doente."

Nodiaseguinte,tendoidoumcasalveracasa,encontrouo

cadáverestendidonosoalhodeumadassalasdoandarsuperior.

Mrs. James identificou-o como a pessoa que aparecera no dia

anterior.Oscorretorestambémreconheceram"Mrs.deCastina".

Segundoo laudo fornecidopelomédico-legista,a jovemmorrera

há vinte e quatrohoras.ODailyBudget chegouà conclusãode

queohomemdaestaçãodometrôse suicidara,apóscometero

assassínio.Como,porém,suamorteseverificouàsduashorasea

da moça às três, a única conclusão lógica possível é a não-

existência de conexão entre as duas ocorrências. Portanto, a

autorizaçãoencontradaempoderdohomemnãopassavapurae

simplesmentedemaisumadessascoincidênciastãofreqüentes.

Voltou à baila a possibilidade de tratar-se de "crime

premeditado" contra uma pessoa ou pessoas desconhecidas. A

polícia e oDaily Budget também se puseram no encalço do

"homemdo ternomarrom".Mrs.Jamesafirmouquesóa jovem

estavano interiordacasa.Pessoaalguma láentraraatéa tarde

dodiaseguinte,salvoomoçoemquestão.Conclui-se,portanto,

ser ele o assassinoda infelizMrs. deCastina.O criminoso, era

evidente, apanhando-a distraída, sem tempo de gritar,

estrangulou-a com forte corda negra. A bolsa de seda preta

continha quantia elevada, algum dinheiromiúdo, fino lenço de

rendaseminiciaiseapassagemdevolta,emprimeiraclasse,para

Page 38: Agatha christie - o homem do terno marrom

Londres.Resumindo:ocasocontinuavasemsolução.

Foram essas as notícias publicadas peloDaily Budget, e

"Procuremohomemdoternomarrom"oseugritodeguerra.Em

média, quinhentas pessoas por dia escreviam, comunicando

terem obtido êxito em suas investigações. Com isso, os jovens

altos e de rosto bronzeado começaram a amaldiçoar a hora em

queseusalfaiatesosinduziramaencomendarternodessacor.O

acidente ocorrido na estação do metrô, mera coincidência, na

opiniãogeral,desvaneceu-sedamemóriadopovo.

Coincidência realmente? Eu não estava tão segura assim.

Tinhaidéiaspreconcebidas,éverdade—oincidenteocorridona

estaçãoerasegredosómeu—,masconsiderava-ocomooponto

deconexãoentreosdoiscasosfatais.Emambos,alémdeoutras

coisas, surgia a figura de umhomemde rosto bronzeado pelos

raiosdosol.Levandoemcontaessasoutrascoisas,resolvitomar

o que denominei uma atitude audaciosa. Apresentei-me na

Scotland Yard e pedi para falar com a pessoa encarregada do

crimedaCasadoMoinho.

Demoraram algum tempo em entender o que eu desejava,

pois, inadvertidamente, tinha-me encaminhado para o

DepartamentodeObjetosPerdidos.Finalmente,introduziram-me

numa saleta onde me apresentaram ao Inspetor-Detetive

Meadows.

Baixo, de cabelos ruivos, classificava-se o InspetorMeadows

entreostiposqueconsiderosupinamenteirritantes.Umauxiliar

seu,tambémemtrajescivis,estavasentadodiscretamenteaum

canto.

Page 39: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Bomdia—cumprimenteimeionervosa.

—Bomdia.Façaofavordesentar-se.Segundomedisseram,

asenhoritatemalgumacoisaqueacreditanossejaútilrelatar.

O tom com que me falou significava "algo completamente

inverossímil".Comeceiairritar-me.

—Osenhorcomcertezaouviufalarnohomemdaestaçãodo

metrô,não?Aquelequetinhanobolsoumaautorizaçãoparaver

acasaemMarlow.

—Ah!—exclamouoinspetor.—Jásei,éMissBeddingfield,

testemunhanoinquérito.Sim,ohomemtraziaumaautorização

nobolso.Muitasoutraspessoas tambémpodemtrazê-la—mas

acontecequenãoforamassassinadas.

Reunitodaacoragemecontinuei.

—Osenhornãoachaesquisitoqueelenãotivessepassagem?

—Perderapassagemécoisafácil.Jáaconteceucomigo.

—Nemdinheiro.

—Tinhaunsmiúdosnobolsodacalça.

—Eestavasemcarteira.

— Alguns homens não costumam trazer dinheiro, nem

carteiradeespécienenhuma.

Experimenteidirigiraconversaparaoutrorumo.

— O senhor não acha esquisito que o médico não se

Page 40: Agatha christie - o homem do terno marrom

apresentasseatéagora?

—Émuitonaturalquemédicosocupadosnãotenhamtempo

delerjornais.Provavelmentejánemselembradoacidente.

—Realmente, inspetor, o senhor está decidido a não achar

nadaesquisito—dissesuavemente.

—Poisbem,estoucomeçandoapensarqueasenhoritaestá

gostando um pouco demais desse termo,Miss Beddingfield. As

jovens são românticas, bem sei—apreciamomistério e outras

coisassemelhantes.Massouumhomemocupado...

Aceiteiasugestãoelevantei-me.

Ohomemsentadonocantodasaladisseemtomhumilde:

—Quetalseasenhoritanoscontasseempoucaspalavraso

quepensarealmentesobreoassunto,inspetor?

Opolicialconcordouimediatamentecomasugestão.

—Vamos,MissBeddingfield,nãoquisofendê-la.Asenhorita

fez-me perguntas com segunda intenção. Agora, diga apenas a

suaopiniãosobreocaso.

Vacilei em escolher entre a dignidade ofendida e o pujante

desejo de expor minhas teorias. Acabei por mandar às favas a

dignidadeofendida.

—Asenhoritaafirmou,no inquérito, tercertezadequenão

foisuicídio?

— Sim, certeza absoluta. O homem estava amedrontado.

Page 41: Agatha christie - o homem do terno marrom

Amedrontadoporquê?Nãoporminhacausa.Masnaplataforma

podia estar caminhando na nossa direção alguém que ele

reconheceu.

—Asenhoritanãoviuninguém?

—Não— respondi.—Não voltei a cabeça.Mas, assim que

removeram o cadáver do trilho, umhomem, dizendo-semédico,

atravessouapressadamentepelamultidãoefoiexaminarocorpo

estendidonaplataforma.

— Nada vejo de extraordinário — comentou o inspetor

secamente.

—Elenãoémédico.

—Oquê?

—Nãoémédico—repeti.

—Comopodesaber,MissBeddingfield?

—Édifícil explicar.Duranteaguerra trabalheiemdiversos

hospitais,ondetiveoportunidadedepresenciarexamesfeitosem

cadáveres.Ohomemnãopossuíaessaespéciedeinsensibilidade

nem a perícia profissional comuns aos médicos. Além disso,

geralmentenãoseauscultaocoraçãodoladodireitodopaciente.

—Eeleauscultou?

—Sim,emboranaocasiãoeunãoonotasse—maspercebi

quealgumacoisaestavaerrada.Chegandoacasa, repetiacena

diversas vezes e acabei descobrindo o motivo por que tudo me

pareceutãoesquisito.

Page 42: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Humm...—resmungouoinspetor.Vagarosamente,pegou

olápiseumafolhadepapel.

—Enquantodeslizavaasmãospelapartesuperiordocorpo

domortotinhaoportunidadedetirar-lhedosbolsostudoquanto

desejava.

—Nãomepareceprovável—disseoinspetor.—Mas...Bem,

écapazdedescreverohomem?

— Alto, ombros largos; usava sobretudo escuro, sapatos

pretosechapéu-coco.Abarbapretaterminavaemponta,etrazia

óculoscomarosdeouro.

— Sem o sobretudo, a barba e os óculos, seria difícil

reconhecê-lo — murmurou o inspetor. — Poderá facilmente

mudardeaparênciaecertamenteo fará, sese tratar realmente,

comosugeriuasenhorita,deumexímiobatedordecarteiras.

Eu não pretendia sugerir nada disso. A partir daquele

momentodesistideconvenceroinspetor.

—Hámaisalgumacoisaparacontar?—perguntou,quando

melevantavaparasair.

—Sim—respondi.Aproveiteiaoportunidadeparadispararo

último tiro. — O homem é braquicéfalo, e isso ele não poderá

alterarcomfacilidade.

Observeiqueacanetado InspetorMeadowscorriahesitante

no papel. Ele não sabia — era evidente — soletrar a palavra

"braquicéfalo".

Page 43: Agatha christie - o homem do terno marrom

5

Saí furiosa. Naquele momento, achei fácil tentar resolver a

etapa seguinte do trabalho. Quando entrei na Scotland Yard,

tinha um plano mais ou menos arquitetado, caso minhas

informações não dessem resultado satisfatório (e provaram ser

profundamenteinsatisfatórias), istoé,casotivessecoragemdeir

diretamenteaofim.

Num acesso de cólera, muitas vezes achamos fácil tentar

resolver problemas que, em outro estado de espírito, jamais o

faríamos. Sem refletir, segui diretamente para a casa de Lorde

Nasby,milionário,donodoDailyBudgetedeoutrosjornais.Mas

oDailyBudgeteraoseu filhopredileto.Todasasdonas-de-casa

doReinoUnidoconheciam-nocomoproprietáriodessematutino.

Umguiadohoráriodetrabalhodoshomensdeprojeçãonopaís,

publicado recentemente, deu-me a conhecer onde encontrá-lo

naquele momento. Deveria estar em casa, ditando para a

secretária.Nãosupunha,claroestá,fosseadmitidaàsuaaugusta

presençaumajovemqueporláaparecesse.Masjáhaviapensado

sobreisso.HánovestíbulodacasadosFlemmingumasalvaonde

videpositadoocartãodevisitadoMarquêsdeLoamsley,umdos

mais famosos pares da Inglaterra. Tirei-o e, depois de limpá-lo

cuidadosamentecommiolodepão,neleescrevialápisoseguinte:

"Peço-lhe conceder alguns momentos a Miss Beddingfield". As

aventureiras não podem ser muito escrupulosas quanto aos

métodosdequeseutilizam.

Obtivebomresultado.Umlacaiodeperucaempoadarecebeu

o cartão. Daí amomentos, surgiu um pálido secretário e, após

Page 44: Agatha christie - o homem do terno marrom

luta renhida, o rapaz, vencido, retirou-se para dali a pouco

retornar, solicitando-me que o acompanhasse. Ao entrar numa

sala ampla, passoupormimum taquígrafode olhar assustado,

qual visitante do mundo dos espíritos. A porta abriu-se e

encontrei-mefaceafacecomLorde

Nasby.

Eraumhomemcorpulento,decabeçagrande,vastosbigodes

e ventre volumoso. Bem, minha finalidade não é tecer

comentáriossobreabarrigadeLordeNasby,quenessemomento

mefalavaaosgritos:

— Então, que quer dizer isso? Que deseja Loamsley? A

senhoritaéasecretáriadele?Oquesignificatudoisso?

— Antes de mais nada — respondi, procurando manter

aparênciadecalmaabsoluta—,nãoconheçoLordeLoamsley,e

com certeza ele ignora a minha existência. O cartão estava na

bandejadacasadeuma famíliacomquemestoupassandouns

temposeeumesmaescreviaspalavrasqueacabadeler.Precisava

vê-lo.

PoralgunsinstantesimagineiqueLordeNasbyiaservítima

deumataqueapoplético;por fim,engoliuemsecoduasvezese

venceuacrise.

—Seusangue-frioéadmirável.Muitobem,agoraasenhorita

estámevendo!Seoassuntomeinteressar,continuaráaver-me

pormaisdoisminutos,exatamente.

—Sãomaisdoquesuficientes—retruquei.—Eosenhorvai

interessar-se.ÉarespeitodomistériodaCasadoMoinho.

Page 45: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Sevaidizerqueencontrouo "homemdo ternomarrom",

escrevaàseçãocompetentedojornal—atalhouapressadamente.

—Seosenhorcontinuarameinterromper,tereideficaralém

dedoisminutos—dissecomfirmeza.—Nãodescobriqueméo

"homem do ternomarrom",mas tenho toda a probabilidade de

queissovenhaaacontecer.

Fizumasúmuladosfatos ligadosaoacidentedaestaçãodo

metrô e relatei as conclusões a que chegara. Terminada a

exposição,LordeNasbydisse-meinesperadamente:

—Oquesabearespeitodecrâniosbraquicéfalos?Mencionei

onomedemeupai.

—Ohomemdomacaco?Hein?Muitobem,seusensoprático

émuitogrande,menina.Mas,comovê,essesdadossãobastante

deficientes.Não temospistas, e,nopéemqueascoisasestão...

nadadissoadianta.

—Estouperfeitamenteciente.

—Oquedeseja,então?

—Querotrabalharnojornalparapoderinvestigarocaso.

—Nãopodeser.Temosumapessoaespecialmentedesignada

paraessefim.

—Eutenhomeusprópriosconhecimentos.

—Osqueasenhoritaacaboudeexpor?

—Oh!não,LordeNasby.Tenhoplanosparticulares.

Page 46: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Oh, tem, senhorita? É realmente uma moça muito

inteligente.E,então,dequesetrata?

—Quando o pseudomédico entrouno elevador, deixou cair

um pedacinho de papel. Ao erguê-lo, senti que exalava odor de

naftalina.Asroupasdomortotinhamomesmocheiro,masasdo

médico,não.Percebiimediatamentequeopapelforaretiradodas

vestes do cadáver. Nele estão escritos alguns números e duas

palavras.

—Queroveropapel.

— Não posso lhe mostrar — disse, sorrindo. — É o meu

trunfo.

— De acordo. A senhorita é inteligente! Faz bem em ser

perseverante. Não sente escrúpulo em deixar de entregá-lo à

polícia?

— Estive lá, hoje de manhã, exatamente para isso.

ContinuamconsiderandoocasodeMarlowinteiramenteàparte

do acidente da estação do metrô; por isso, em vista das

circunstâncias, explica-se o motivo por que fiquei de posse do

papel.Alémdomais,oinspetormeprovocou.

— Que homem de idéias curtas! Bem, menina, eis o que

posso fazer; continue seguindo a sua diretriz. Se conseguir

alguma coisa — qualquer que seja — venha contar-me e lhe

daremos uma oportunidade. NoDaily Budget sempre há lugar

para os verdadeiros talentos, devidamente comprovados. Está

bemassim?

Depois de agradecer, pedi desculpas pelamaneira comome

Page 47: Agatha christie - o homem do terno marrom

fizeraintroduzirnasuapresença.

— Não tem importância. Aprecio a imprudência— quando

parte de moça bonita. A propósito, a senhorita pediu-me dois

minutos e ficou três, descontadas as interrupções. Em se

tratando de mulher, é simplesmente admirável! Deve ser o seu

treinocientífico.

Quandosaíàrua,respiravaofegante,comosetivessecorrido.

Pouco conheço sobre Lorde Nasby, mas achei-o simplesmente

cansativo.

Page 48: Agatha christie - o homem do terno marrom

6

Voltei exultante para casa. Meu plano resultou em êxito

muitomaiordoqueeupodiaesperar.LordeNasbyforarealmente

genial.Deacordo comsua expressão, era-menecessário apenas

"confirmar".Fechadanomeuquarto,pegueiopreciosopedacinho

depapelepus-meaexaminá-locomgrandecuidado.Aliestavaa

chavedomistério.

Antes de tudo, que significavam aqueles algarismos? Eram

cincoeumpontodepoisdosegundo.

—Dezessetemil cento e vinte e dois—murmurei. Não era

possívelchegaraconclusãoalguma.

Emseguida,somei-os.Éoprocedimentousualnoslivrosde

ficção,queconduzadeduçõesverdadeiramentesurpreendentes.

—Ummais sete são oito;mais um, nove;mais dois, onze;

maisdois,treze.

Treze!Númerofatídico!Seriaoavisoparaqueabandonasseo

caso?Eramuitopossível.Dequalquermaneira,anãosercomo

advertência,parecia-mecompletamenteinútil.Nãoacreditavaque

navidarealosconspiradoresescrevessemtrezedessamaneira.Se

ofizessemseriaassim:treze,ouentãoassim:13.

Oespaçoentreo1eo2eramaior.Subtraí vinte edoisde

cento e setenta e um. Deu cento e cinqüenta e nove. Repeti a

operação e obtive cento e quarenta e nove.Cálculos aritméticos

não deixam de ser excelente exercício, mas, considerados como

Page 49: Agatha christie - o homem do terno marrom

meio de solução de mistérios, continuam totalmente ineficazes.

Abandoneiaaritméticaantesdetentarascontascomplicadasde

dividiremultiplicar,epasseiaoexamedaspalavras.

CastelodeKilmorden.Era onomedeum lugar, dealguma

coisa mais positiva. O berço, talvez, de alguma família

aristocrática. (Herdeirodesaparecido?Pretendenteaotítulo?)Ou

apenasumaruínapitoresca.(Tesourooculto?)

Sim,demodogeral,estavapropensaaacreditarna idéiado

tesouro. Números fazem boa parceria com tesouros enterrados.

Umpassoàdireita,setepassosàesquerda,

cavar trinta e um centímetros, descer vinte e dois degraus.

Deviasermaisoumenosisso.Naocasião,veria.Oproblemaera

chegaraoCastelodeKilmordenomaisrapidamentepossível.

Usei deumestratagemapara sair do quarto; quando voltei,

trazia diversos livros de consulta:Quem ê quem, Whitaker, um

Dicionário de nomes geográficos, umaGenealogia de famílias

escocesas,eNomesdedestaquenasilhasBritânicas.

O tempo urgia. Com tédio crescente diligenciava nas

pesquisas.Porfim,fechandoviolentamenteoúltimolivro,concluí

pelanão-existênciadoCastelodeKilmorden.

Mas surgiu um obstáculo. Esse lugar forçosamentetem de

existir.Qualarazãoporqueumapessoairiainventaressenome

eescrevê-lonumpedaçodepapel?Simplesmenteabsurdo!

Ocorreu-me outra idéia. Talvez fosse uma daquelas

horrorosas construções acasteladas dos subúrbios, a que os

proprietários batizam com nome pomposo. Se assim fosse,

Page 50: Agatha christie - o homem do terno marrom

tornava-se dificílimo descobri-la. Tristemente, sentei-me no

soalho (é o que sempre faço quando tenho em mente algum

problema importante), perguntando-me por que cargas d'água

estarialevandoasérioumcasoquenãomediziarespeito.

Haveria outradiretriz a seguir?Refletia cheiadeansiedade,

quando de um salto, satisfeitíssima, pus-me de pé. Claro!

Precisava ver a "cena do crime". Assim procediam os melhores

detetives! Embora, dias depois, acabassem sempre descobrindo

algo que passara despercebido à polícia. Traçada a diretriz,

precisava ir a Marlow imediatamente. Como entrar na casa?

Desprezei diversos métodos arriscados, preferindo um bastante

simples. A propriedade estava para alugar — presumivelmente

ainda estaria. Pretendia passar por alguém interessado no

negócio.

Resolvi dirigir-me aos corretores locais, pois geralmente são

emmenornúmeroascasasaseucargo.

ComeceiaagirsemconsultaraopiniãodeMr.Flemming.

Umfuncionárioatenciosoinformou-mearespeitodediversas

propriedades muito convenientes. Usei de ardis a fim de

conseguir encontrar objeções contra elas. Afinal, temia nada

conseguir.

— Não há mais nenhuma? — indaguei, fitando com

expressãopatéticaosolhosdofuncionário.

"Umacasaàmargemdorio,comamplojardimeumchalé",

acrescentei, citando os dados principais da Casa do Moinho,

numarepetiçãodoquehavialidonosjornais.

Page 51: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Sim, a de Sir Eustace Pedler — disse o rapaz com

hesitação.—ACasadoMoinho,asenhoritasabe.

—Não...nãoonde...—faleititubeante.(Realmente,titubear

estásetornandoomeuforte.)

—Essamesma!Ondecometeramocrime.Talvezasenhorita

não...

— Oh! Não me importa — atalhei, procurando dar à voz

entonaçãodezombaria.Percebiqueminhabonafideseassentava

embase sólida.—E talvez até pudesse consegui-la pormelhor

preço,emvistadascircunstâncias.

Golpedemestre,pensei.

—Sim, é possível. Não creio que seja fácil alugá-la agora...

por causa dos empregados e de outros problemas, a senhorita

bempodeimaginar.Selheconvier,aviso-aparaquefaçaaoferta.

Queraautorização?

—Sim,senhor.

Quinzeminutosmaistardeencontrava-menochalédaCasa

doMoinho.Emrespostaaotoquedacampainha,aportaabriu-se

eumasenhoraalta,demeia-idade,irrompeuportaafora.

— Ninguém entra na casa, está ouvindo? Estou farta de

repórteres.SirEustacePedlerdeuordenspara...

— Pensei que a casa estivesse para alugar—disse em tom

gélido,apresentandoaautorização.—Estácerto,sejá...

— Oh! Peço mil desculpas, senhorita. Esse pessoal dos

Page 52: Agatha christie - o homem do terno marrom

jornais vem me aborrecendo continuamente. Não tenho um

minutodepaz.Não,acasaaindanãoestáalugada—eagora,é

poucoprovávelqueoseja.

—Oencanamentoestácomdefeito?—pergunteiemansioso

murmúrio.

— Oh! Meu Deus! Senhorita, o encanamento está

funcionandobem!Comcertezaouviufalardaestrangeiraquefoi

assassinadaaqui?

— Devo ter lido alguma coisa a respeito — respondi

despreocupadamente.

Omeuardeindiferençaprovocavaaboamulher.Serevelasse

interessepelocaso,eramuitopossívelquesefechasseemcopas.

Casocontrário,eladariacomalínguanosdentes.

—Com certeza leu, senhorita! Saiu em todos os jornais. O

Daily Budget está procurando descobrir a pista do criminoso.

Assim como falam, parece que a polícia não vale nada. Tenho

esperança de que agarrem o homem, apesar de ser um moço

muito bonito, não há dúvida. Com jeito de militar, ferido em

combate, talvez. Quem sabe, ficou com a cabeça um pouco

transtornadacomomeusobrinho,filhodeminhairmã.Decertoa

moçaomaltratava—essasestrangeirassãomás.Eralinda!Ficou

aímesmo,nesselugaremqueasenhoritaestá.

—Morena ou loira?— arrisquei a perguntar. — Nunca se

podetercerteza,pelasfotografiasdosjornais.

—Cabelospretos,peleclaríssima—clarademais;nãopodia

sernatural,pensei—,eos lábiospintadosdevermelhodavam-

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lheumardecrueldade.Nãogostodevercoisasassim;queseuse

umpouquinhodepó-de-arroz,devezemquando,estácerto.

Conversávamoscomovelhasamigas;entãoperguntei:

—Eparecianervosa,preocupada?

— Nem um pouquinho. Sorria a si mesma, muito calma,

como se achasse graça em alguma coisa. Fiquei paralisada de

susto,quandonodiaseguinte,àtarde,vieramcorrendomepedir

parachamarapolícia,porqueamoçaestavamorta.Osustonão

passouatéagora;nempor todoodinheirodomundoponhoos

pésnessacasadepoisqueescurece.Olhe,seSirEustacePedler

nãomeimplorassedejoelhos,ia-meemboradaqui.

—JulgueiqueSirEustacePedlerestavaemCannes.

—Estava,sim,senhorita.VoltouparaaInglaterraassimque

soube das novidades. Eu falei que ele se ajoelhou, mas foi

maneiradedizer.Osecretáriodele,oSr.Pagett,ofereceuodobro

do ordenado para a gente continuar aqui. E, como diz John,

dinheiroésempredinheiro.

Concordei prazerosamente com as observações pouco

originaisdeMrs.James.

— Mas o moço — prosseguiu a caseira, retornando ao

assunto anterior —estava preocupadíssimo. Os olhos claros,

prestei bematenção,brilhavam.Estánervoso,pensei.Masnem

emsonhospodiaimaginarquetivesseacontecidoalgumacoisade

mal.Nemquandoelevoltou,comumartãoesquisito.

—Quantotemposedemorounacasa?

Page 54: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Oh!pouco,unscincominutos,talvez.

— A senhora lembra-se se era alto? Cerca de um metro e

oitenta...

—Achoquesim.

—Etinhafeitoabarba?

— Sim, senhorita — e não usa bigode, nem desses que

parecemescovadedentes.

—Lembra-se tambémseoqueixoera lustroso?Mrs.James

fitou-meadmirada.

—Olhe,agoramelembro;era,senhorita.Comosabe?

— É realmente uma coisa esquisita, mas os assassinos

geralmentetêmqueixoslustrosos—foiaminhaexplicação.

Mrs.Jamesaceitou-adeboafé.

—Nãodiga,senhorita!Nuncasoubedissoemtodaaminha

vida.

—Asenhora,decerto,nãoreparounoformatodacabeçadele,

não?

— Era como qualquer outra, senhorita. Quer as chaves

então?

Peguei-asepus-meaandarnadireçãodaCasadoMoinho.

Estavasatisfeita,poisatéaquelemomentotudocaminhavabem.

Asdiferençasexistentesentreohomemdescritopelacaseiraeo

meu "médico" da estação dometrô não eram essenciais. Barba,

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óculosdearosdeouro,sobretudo.O"médico"aparentavameia-

idade, mas a maneira como se curvou sobre o cadáver

demonstravaflexibilidadenasarticulações.

A vítima do acidente (o "homem da naftalina", como eu o

chamava) e a estrangeira, Mrs. de Castina, seja ou não seu

verdadeiro nome, marcaram encontro na Casa do Moinho. Eu

estava começandoa reunir#speçasdoquebra-cabeça.O temor

deseremvigiados,ouqualqueroutromotivo, levou-osàescolha

deumardilbastanteengenhoso:munirem-sedeautorizaçãopara

veremamesmacasa.Assim,oencontroserevestiriadaaparência

demeracasualidade.Eutinhaabsolutacertezanãosódequeo

"homem da naftalina" avistou de repente o "médico", como

também de que se alarmou com esse encontro inesperado. E o

queaconteceudepois?O"médico"removeuodisfarceeseguiua

mulheratéMarlow.Mashaviaapossibilidadedeque,retirandoa

barba apressadamente, permanecessem vestígios de goma no

queixo. Daí a razão da pergunta a Mrs. James. Imersa em

pensamentos,chegueiatéaportabaixaeantiquadadaCasado

Moinho.Abri-acomachaveeentrei.Ovestíbulobaixoeescuro

recendia a mofo e a coisas que estavam em abandono.

Involuntariamente, estremeci. Será que a jovem "a sorrir a si

mesma" não sentiu ao entrar na casa um arrepio de

pressentimento? Acredito que sim. Teria o sorriso desaparecido

doslábios,ocoraçãoaoprimi-lacomonumpesadelomedonho?

Ousubiuaescada,aindasorridente, sem tomarconsciênciada

desgraçaqueseiaabatersobreela?Aspulsaçõesdomeucoração

aceleravam-se. E se houvesse alguém na casa à minha espera

também?Pelaprimeiravez,entendiosignificadodapalavra tão

corriqueira—"atmosfera".Haviaatmosferanessacasa,atmosfera

decrueldade,deameaça,demaldade.

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7

Subi depressa a escada, procurando livrar-me desses

pensamentosopressores.Logodepareicomasalaondeocorreraa

tragédia. No dia em que encontraram o cadáver, chovia

incessantemente. Não era de admirar que de todos os lados

grandesrastrosdebotaslamacentasmarcassemopiso.Pus-mea

pensar se o assassino teria deixado pegadas. Havia a

possibilidade de que a polícia tivesse dúvidas a respeito; mas,

refletindobem,decidipelanegativa;otempoestiverasecoebom.

Na sala,nadade interessante.De forma retangular, tinhaduas

amplas janelas de sacada e paredes pintadas de branco. No

pavimento,destacava-seaáreaanteriormentecobertapelotapete.

Dei buscas cuidadosas, mas não encontrei nem um alfinete.

Parece que a jovem e talentosa detetive estava fadada a não

descobrirapistanegligenciadapelapolícia.

Tinha levado lápis e um caderninho. Dado o fracasso da

pesquisa, e com o intuito de disfarçar meu desapontamento,

melancolicamente pus-me a rabiscar a planta da sala. No

momento em que ia guardar o esquema na bolsa, o lápis

escorregou-meentreosdedoseroloupelosoalho.

Visto ser a Casa do Moinho muito antiga, as tábuas do

pavimentonãoseconservavamnomesmonível.Olápisrolouaté

umareentrância,sobobatentedeumadas janelas,ondehavia

um armário. De repente, ocorreu-me a idéia de que, se a porta

nãoestivessefechada,olápispassariaporela.Abrindo-a,vique

rolava, indoabrigar-sehumildementenocantinhono fundo.Às

apalpadelas, consegui alcançá-lo. A escassez de luz e o formato

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pouco comum do móvel dificultavam a visão da parte interna.

Exceto o lápis, nadamais havia. Renitente como sou, dirigi-me

paraoarmárioinstaladosobaoutrajanela.

À primeira vista, dava a impressão de estar vazio também;

apesar disso comecei a passar repetidas vezes a palma damão

pelo seu interior. Fui recompensada; num canto do fundo,

encontrava-se um cilindro confeccionado em papel áspero,

colocadodentrodeumobjetocôncavo,umaespéciedepequenino

cocho. Reconheci imediatamente tratar-se de um rolo de filme

Kodak.Queachadomaravilhoso!

Lembrei-me de que bem podia ser um filme antigo,

pertencente aSirEustace Pedler e que, rolando até o fundodo

armário, lá ficara esquecido. Mas, na realidade, não acreditava

nisso. O invólucro de papel vermelho era novo e a camada de

poeiranãoiaalémdedoisoutrêsdias—istoé,desdeaocasião

doassassinato.Casocontrário,seriamuitomaisespessa.

Quemodeixaracair?A jovemouorapaz? Lembrava-mede

que o conteúdo da bolsa de Mrs. de Castina estava intato.

Supondoqueofechoseabrissedurantealuta,deduziqueorolo

cairia,masodinheiromiúdoter-se-iaespalhadopelasala.Não,o

filmenãopertenciaàmulher.

De repente, dei um espirro. Estaria o cheiro de naftalina

tornando-seobsessão?Eracapazdejurarqueoodorprovinhado

objetoencontrado.Levei-oaonariz,Alémdocheirocaracterístico,

haviamaisum,muitodesagradável.Nãomefoidifícildescobrira

causa. Enroscado no tubo central de madeira achava-se um

minúsculoretalhodefazendaimpregnadadocheirodenaftalina.

Porcerto,devezemquandoohomemdaestaçãodometrôdeveria

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trazê-lonobolsodosobretudo.Seriaelequemdeixaracairorolo?

Poucoprovável,poisseusmovimentoseramcautelosos.

Não,tinhasidoooutrohomem,o"médico".Tiroudosbolsos

do cadáver o filme e o papel na mesma ocasião. O filme caiu

enquantolutavacomamoça.

Descobrira a pista! Depois de revelado pela Kodak, outras

pistassurgiriam.

Saí da casa entusiasmadíssima e, depois de devolver as

chaves a Mrs. James, encaminhei-me rapidamente à estação.

Duranteotrajetodevolta,tireiopapele,maisumavez,pus-mea

examiná-lo.Derepenteosalgarismosadquiriramsignificado.Ese

significassem uma data? 17 1 22. 17 de janeiro de 1922. Não

podia deixar de ser! Era uma tola por não ter pensado nisso

antes.Assimsendo,precisavadescobrira localizaçãodoCastelo

deKilmorden,poisestávamosem14dejaneiro.Trêsdias.Muito

pouco—quasededesesperar,principalmentequandonãotemos

idéiadequerecursoslançarmão!

Àquela hora já não podiamandar revelar o filme. Tratei de

voltarbemdepressaparacasa—nãoqueriachegartardeparao

jantar. Ocorreu-me um meio bastante simples de verificar a

exatidão de minhas conclusões. Indaguei de Mr. Flemming se

haviamáquinafotográficaentreospertencesdomorto.Sabiado

seuinteressepelocaso;eleoconheciacompormenores.

A resposta negativa surpreendeu-me desagradavelmente. E,

embora continuasse a fazer-lhe perguntas com o intuito de

avivar-lheamemória,prosseguiufirmenamesmaresposta.

Aminhateoriaretrocedeuumpasso.Porqueorolodefilme,

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senãotraziamáquinafotográfica?

Saí cedo, na manhã seguinte, a fim de providenciar a

revelaçãodopreciosoachado.Atarantadacomoestava,percorria

Regent Street em toda a sua extensão para ir à grande casa

Kodak. Lá chegando, encomendei uma cópia do filme.O rapaz,

depoisdeempilhardiversascaixinhasamarelasdeartigoespecial

para climas tropicais, pegou o rolo que eu lhe estendia. Em

seguida,olhou-me.

—Asenhoritaenganou-se—dissesorrindo.

—Oh!Não!—respondi.—Tenhocerteza.

—Ofilmeévirgem.

Saícomaresdedignidadeofendida. Imaginoquedevezem

quandonossejasalutarsaberaquepontopodemosser idiotas.

Mas ninguém gosta de passar pelo processo que leva a essa

conclusão.

Estaquei de súbito, frente ao escritório de uma grande

companhiadenavegação.Avitrinaexpunhaabelaminiaturade

um navio — oCastelo de Kenilworth. Uma idéia extravagante

brotounomeucérebro.Empurreiaportaeentrei.Encaminhei-

meà seçãode vendadepassagens e, gaguejando (desta vez era

sincera),murmurei:

—OCastelodeKilmorden?

— Parte de Southampton, no dia 17. Cidade do Cabo?

Primeiraousegundaclasse?

—Quantocusta?

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—Deprimeira,oitentaesetelibras...

Interrompi-o. Que coincidência! A quantia exata da minha

herança!Jogueiminhaúltimacartada!

—Primeiraclasse—confirmei.

Eraocompromissocategóricocomaaventura.

Page 62: Agatha christie - o homem do terno marrom

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(Fragmentos do diário de Sir Eustace Pedler, membro do

Parlamento)

Coisa extraordinária! Não consigo levar a vida em paz. E

como são aprazíveis os dias tranqüilos! Aprecio o clube, umas

partidasdebridge,opíparosjantaresregadosabomvinho.Gosto

daInglaterranoverãoe,noinverno,daRiviera.Detestoparticipar

de acontecimentos sensacionais. Basta-me tomar conhecimento

deles pelos jornais ao calor da lareira. Meu objetivo é viver no

maior conforto. Para atingir essa finalidade, dediquei grande

esforçoeconsiderávelsomadedinheiro.Masnemsempreobtive

sucesso.Quandoosacontecimentosnãomeatingemdemaneira

direta, desenrolam-se freqüentemente ao meu redor,

independentes da minha vontade, e fatalmente acabam por

envolver-metambém.Eéjustamenteoquedetesto.

A entrada de Guy Pagett, hoje, no meu quarto de dormir,

provocou-meessepreâmbulo;namãotraziaumtelegrama,ena

fisionomia uma expressão tão triste quemais se assemelhava a

agentefunerárioemdiadeenterro.

Guy Pagett, meu secretário, é rapaz zeloso, diligente,

dedicado ao trabalho; enfim, admirável sob todos os pontos de

vista;maséquemmecausaomaiornúmerodeaborrecimentos.

Durantemuito tempo, quebrei a cabeça à procura de um ardil

quemelivrassedasuapresença.Nãopodemos,porém,despedir

um secretário pelo fato de preferir o trabalho à diversão, por

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levantar-se cedo e preservar-se de todos os vícios. O rosto de

Pagetté,nasuapessoa,aúnicacoisaquemediverte.Lembra-me

umenvenenadordoséculoXIV—otipoqueosBórgiatomariam

a seu serviço, para executar-lhes os trabalhos um tanto

singulares.

Eu passaria por cima de tudo isso caso o moço não me

obrigasse a trabalhar também. Naminha opinião, o trabalho é

algo que se pode realizar despreocupada e alegremente — na

brincadeira, enfim! Duvido que Guy Pagett, uma vez na vida,

tivesseprocedidodessaforma.Pelocontrário,tomatudoasério.

Eisporquesetornadifícilvivernasuacompanhia.

Há alguns dias, como me falasse de Florença, de quanto

gostariadeconhecê-la,ocorreu-meabrilhanteidéiadesatisfazer-

lheavontade.

—Meucarorapaz!—exclamei—partaamanhã.Asdespesas

corremporminhaconta.

Janeiro não é a época ideal para uma estada em Florença,

masaGuyPagett tantose lhedava. Imaginei-opasseando,com

umguianasmãos,a visitar religiosamente todasasgaleriasde

arte.E,afinal,umasemanadeliberdadevaliabemmaisdoquea

quantia despendida. Passei dias agradabilíssimos, sozinho,

inteiramentesenhordosmeusatos.

Quando, porém, ao abrir os olhos, divisei-o de pé, o vulto

contraà luzdoabajur,numahoradisparatada comoaquela—

novedamanhã—,percebiquealiberdadefindara.

—Meucaro rapaz—disse—,o enterro já se realizououé

Page 64: Agatha christie - o homem do terno marrom

maistarde?

Pagettnãoapreciavaohumornegro.Continuavaafitar-me.

—Então,osenhorjásabe,SirEustace?

—Sabeoquê?—pergunteiemtomacre.Pelasuaexpressão

deduziqueacabavadeperderumparentequeridoequeoenterro

serealizarianaquelamanhã.

Meusecretárionãotomouconhecimentodogracejo.

—Penseiqueosenhoraindaignoravaofato—ebatiacomos

dedosno telegrama.—Sei quenãogostadeacordar cedo,mas

são novehoras—Pagett insiste em considerar nove damanhã

quaseomeiododia—,entãojulgueique,nessascondições...—

Tornouadarpancadinhasnotelegrama.

—Oqueéisso?—perguntei.

— Telegrama da polícia de Marlow. Assassinaram uma

mulhernasuacasa.

Tornei-mesério.

—Quedescaramento!—exclamei.—Porqueemminhacasa?

Queméoassassino?

— Nada explicam. Suponho que temos de voltar para a

Inglaterraimediatamente,não,SirEustace?

—Nãosuponhanada.Porquevoltar?

—Apolícia...

Page 65: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Comtodososdiabos,quequerapolícia?

—Ocrimefoicometidonasuacasa.

—Isso—falei—édesgraçaenãoculpa.GuyPagettabanou

acabeçatristemente.

—Vairepercutirdesfavoravelmentenoseudistritoeleitoral—

observoucomvozlúgubre.

Por motivos que desconheço, tinha, e ainda tenho, a

impressão de que nesses assuntos o instinto de Pagett segue

sempreatrilhacerta.Aparentemente,ummembrodoParlamento

pode continuar a ser eficiente, apesar de uma jovem ser

assassinadana casa vagade suapropriedade,mas é impossível

prevercomoorespeitávelpovoinglêsencaraoassunto.

— Além disso, trata-se de uma estrangeira, o que piora a

situação—continuouorapazemtomsombrio.

Novamente dei-lhe razão. Se é vergonhoso o fato de uma

mulher ser assassinada numa casa que nos pertence, torna-se

ainda mais vergonhoso quando se trata de uma estrangeira.

Ocorreu-meoutraidéia.

—BomDeus!—exclamei.—TomaraqueCarolinenãofique

assustada.

Carolineéasenhoraquecozinhaparamim.Porsorteminha,

casou-secomojardineiro.Quantoaserboaesposaignoro;masé

excelente cozinheira. James, no entanto, não cuida bem do

jardim — faço vista grossa à sua vadiação. O casal mora

gratuitamentenochalé,graçasàboacozinheiraqueéCaroline.

Page 66: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Nãoacreditoqueelafique—dissePagett.

—Vocêémuitoengraçado—murmurei.

Achoque tenhodevoltarparaa Inglaterra.Pelomenos,éo

queomeusecretáriopensa.E,alémdisso,urgeacalmarCaroline.

Trêsdiasdepois

É inacreditável!Pessoasquepodemviajarpassamo inverno

na Inglaterra. O clima aqui é abominável. Todos esses

aborrecimentosirritam-mesumamente.Dizemoscorretoresque,

comapublicidadeemtornodocaso,seráquaseimpossívelalugar

aCasadoMoinho.Carolineacalmou-seapósaofertadeordenado

em dobro. Bem podíamos ter-lhe enviado um telegrama de

Cannes, nesse sentido. Realmente, não havia necessidade de

deixarmosaSuíça.Voltareiamanhã.

Nodiaseguinte

Ocorreram diversos fatos verdadeiramente surpreendentes.

Em primeiro lugar, encontrei AugustusMilray, omaior cretino

queoatualgoverno jamaisapresentou.Quandomepuxoupara

um canto sossegado do clube, percebi por suas maneiras

melífluas que estava em vias de cochichar-me algum segredo

diplomático. Falou-me demoradamente da África do Sul, da

Page 67: Agatha christie - o homem do terno marrom

situação industrial local, acerca dos crescentes rumores que

circulavamsobreumagrevenoRandedassuascausassecretas

—dosverdadeirosagentesqueatinhamprovocado.Limitava-me

aouvi-locompaciência.Afinal,baixandoavoz,explicou-menum

murmúrio que se fazia necessário entregar ao General Smuts

certosdocumentosrecentementedescobertos.

—Nãoduvidodequevocêestejacerto—disse,disfarçando

umbocejo.

—Mascomoencaminhá-losseestamosemposiçãodelicada

—muitodelicada?

— Está acontecendo alguma coisa com o correio? —

pergunteialegremente.—Seleacartacomdoispenceecoloque-a

nacaixamaispróxima.

AsugestãoescandalizouMilray.

—MeucaroPedler!Nocorreio!

Consideroverdadeiromistérioo fatodeogovernoutilizar-se

demensageiros do rei e simultaneamente chamar a atenção do

públicoparadocumentosconfidenciais.

—Seoenviopelocorreionãoforconveniente,mandeumdos

rapazesquetrabalhamcomvocê.Elevaidivertir-secomaviagem.

— Impossível—disseMilray, abanando a cabeça à Janeira

dosvelhos.—Existemmotivos—asseguro-lhe,existemmotivos.

— Bem — e fui-me levantando —, a conversa está muito

interessante,masprecisoretirar-me...

Page 68: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Um minuto, meu caro Pedler, um minuto, peço-lhe.

Escute; aqui entre nós, é verdade que pretende viajar para a

África do Sul, dentro de pouco tempo? Você tem negócios na

Rodésia, e, alémdisso, sei tambémdo seu grande interesse em

queelapasseapertenceràUnião.

—Pensoempartirdaquiaummês,maisoumenos.

—Nãopodeirantes?Estemês?Estasemana,talvez?

—Poderia—disse,encarando-ocomcuriosidade.—Acontece

queaindanãoseisequero.

— Prestaria grande serviço ao governo — muito grande

mesmo.Eelenãoé—humm...—ingrato.

—Querdizerqueeufariaopapeldemensageiro?

— Exatamente. Você não desempenha função oficial, vai

viajarbona fide. Tudo se engrena para que o resultado seja

plenamentesatisfatório.

—Poisbem—disselentamente.—Nãomeimportodelevar

osdocumentos.Aúnicacoisaquerealmentemeinteressaédeixar

aInglaterraomaisdepressapossível.

—OclimadaÁfricadoSuléagradável—agradabilíssimo.

—Meu caro, sei tudo a respeito do clima. Estive lá pouco

antesdedeflagraraguerra.

—Agradeço-lhemuito,Pedler.Mando-lheosdocumentospor

um mensageiro. Deverá entregá-los ao próprio General Smuts,

compreende?OCastelodeKilmordenpartesábado—umnavioe

Page 69: Agatha christie - o homem do terno marrom

tanto!

Antesdenossepararmos,acompanhei-oempequenapartedo

trajeto pelo Pall Mall. Apertou-me as mãos calorosamente,

repetindo com efusão frases de agradecimento. Pus-me a

caminhar, refletindo sobre os curiososmeios secretosde que se

serveapolíciagovernamental.

Na tarde seguinte uma pessoa foi procurar-me. Não quis

declinaronome,masdesejavafalar-mesobreassuntoparticular.

Os agentes de seguros deixam-me vivamente apreensivo; então

pediaJarvis,omordomo,queorecebesse.Porazar,GuyPagett,

justamentenaocasiãoemquepodiaser-mederealauxílio,sofria

uma crise hepática. Jovensmuito trabalhadores,mas de saúde

frágil,sempreestãosujeitosaachaquesdessanatureza.

Daíapouco,omordomovoltou.

—Elepediu-meparacomunicar-lhequevemdapartedeMr.

Milray.

A questão tomava novo aspecto. Instantes depois, na

biblioteca, eu defrontava o visitante. Era um rapaz elegante, de

pele bronzeada. A não ser uma cicatriz que, desfigurando-lhe o

semblante,cortava-odocantodoolhoatéoqueixo,seriaoquese

podechamardebelorapaz.

—Então—perguntei—,dequesetrata?

—Mr.Milraymandou-me falar com o senhor, Sir Eustace.

Devoacompanhá-loàÁfricadoSul,comoseusecretário.

— Meu caro rapaz — disse —, já tenho secretário e não

Page 70: Agatha christie - o homem do terno marrom

precisodemaisnenhum.

— Creio que precisa, Sir Eustace. Onde se encontra seu

secretárionestemomento?

—Estádecama,comcrisedefígado—expliquei.

—Temcertezadequeésóisso?

—Tenho.Nãoéaprimeira.Omoçosorriu.

—Talvezsejaounãocrisedefígado.Otempodirá.Masacho

conveniente avisá-lo, Sir Eustace, de que Mr. Milray não se

surpreenderiasetentassemafastarseusecretário.Oh!quantoao

senhor,nãoháperigo—suponhoque,porummomento,minhas

feições denotaram pavor —, nem mesmo ameaça. Afastado o

secretário, será mais fácil aproximar-se da sua pessoa. De

qualquermaneira, édesejodeMr.Milrayque euoacompanhe.

Cuidaremosdapassagem,éclaro,masosenhor teráque tomar

providênciasquantoaopassaporte,esclarecendoanecessidadede

fazer-seacompanhardeumsegundosecretário.

O rapaz era realmente decidido. Trocamos um olhar; ele

fitava-mecomexpressãosevera.

—Muitobem—murmurei.

—Nãocontenadaaninguémameurespeito.

—Muitobem—repeti.

Afinal, talvez fosse melhor que o moço me acompanhasse;

contudo, tinha pressentimento de que ia meter-me em

complicações, justamente quando pensava ter alcançado um

Page 71: Agatha christie - o homem do terno marrom

períododepaz!

Interrompi os passos do visitante, no momento em que se

voltavaparadeixarorecinto.

—Parece-merazoávelquequeirasaberonomedomeunovo

secretário—observeicomsarcasmo.

Apósinstantesdesilêncio,respondeu:

— Harry Rayburn é um nome aceitável. Que extravagante

maneiradeapresentar-se!

Page 72: Agatha christie - o homem do terno marrom

9

(ResumodanarrativadeAnne)

Sentir-se mareada é para uma heroína coisa das mais

humilhantes. Nos romances, quanto mais o oceano se agita,

melhorelasesente.Quandotodosospassageirosjáenjoarama

intrépida criaturapermaneceno convés,desafiandoa tormenta.

Confesso que, ao primeiro balanço doKilmorden, senti-me

empalidecer,sendoforçadaabuscarabrigonacabina.Recebeu-

meumasimpáticacamareira.Sugeriu-meumcopodegingerale

com torradas simples. Durante três dias fiquei no camarote, a

gemer. Desvanecera-se o interesse pela solução do mistério.

Tornei-meumaAnnetotalmentediversadaquelaque,aovoltardo

escritório da companhia de navegação, acorrera à South

KensingtonSquare,radiosadefelicidade.

Sorrio, agora, ao recordar-me da maneira abrupta como

entreinosalãodeestar,aoencontrodeMrs.Flemming.Aoruído

depassoselavoltouacabeça,fitando-me:

—Ah!Évocê,Annequerida?Querofalar-lhesobre

umassunto.

—Poisnão—disse,refreandoaimpaciência.

—Miss Emery vai embora.— Tratava-se da governanta.—

Comovocêaindanãoconseguiuencontraremprego,queriasaber

seseimportaria...Comoseriabomseficasseconosco!

Page 73: Agatha christie - o homem do terno marrom

A proposta comoveu-me, porque, na realidade, ela não

precisava de mim. O oferecimento fora inspirado em pura

caridadecristã.Sentiremorsopelascríticassecretasquelhefazia.

Numímpeto,atravesseiasalaeabracei-a.

—Asenhoraéumamor!—exclamei.—Umamor,umamor,

umamor!Muitoobrigada!Mas jáconseguioquedesejava.Sigo

viagemparaaÁfricadoSul,nopróximosábado.

Tomada de assalto, a boa senhora assustou-se. Não estava

habituada a demonstrações inesperadas de afeto. Minhas

palavrasamedrontaram-naaindamais.

— À África do Sul? Anne querida! Precisamos examinar o

projetocommuitocuidado.

Era o que menos desejava. Expliquei-lhe que já tinha

comprado a passagem e que, logo após a minha chegada,

propunha-mearranjarumlugardearrumadeira.Emsituaçãotão

premente, foi a única saída que imaginei. Na África do Sul,

continuei, havia grande procura de arrumadeiras. Garanti-lhe

quetinhacapacidadedecuidardemim.Porfim,comumsuspiro

de alívio e retirando suas mãos das minhas, concordou com o

plano, sem nada mais indagar. No momento da partida, fez

deslizarumenvelopeparaointeriordaminhabolsa.Dentrodele,

haviacinconotasnovasdecincolibraseumbilhete:“Esperoque

nãoseofendaeaceiteopresentecomtodaaminhaafeição".Era,

realmente, boa pessoa. Jamais poderia continuar a viver na

mesmacasaqueela,masnãodeixavadereconheceroseuvalor

intrínseco.Achava-me,pois,depossedevinteecincolibraspara

enfrentaromundoeirnoencalçodaaventura.

Page 74: Agatha christie - o homem do terno marrom

No quarto dia de viagem, a camareira insistiu em que eu

subisse ao tombadilho. Recusei-me firmemente a deixar o

camarote, dominada pela impressão de que lá embaixo levaria

menos tempo para morrer. A jovem procurou despertar-me o

interessepelachegadaàilhadaMadeira.Aesperançanasceuem

meu coração. Pensei em deixar o navio e arranjar um lugar de

arrumadeiraououtroempregoqualquer, contantoque fosseem

terra firme. Encapotada, umamanta a cobrir-me o corpo, débil

comofilhotedepassarinho,fuiarrastadaaoconvésedepositada,

qualmassa inerte,numacadeirapreguiçosa.Lá fiquei,deolhos

fechados, cheia de ódio pela vida.O comissário debordo,moço

loiro,derostoredondo,aproximou-seetomouassentonacadeira

aomeulado.

—Olá!Sentindo-semal,hein?

—Sim—respondiirritadíssima.

—Amanhãoudepoisnemvaiacreditarnoqueaconteceu.O

nevoeironabaíaestavapavoroso,masdaquipordianteteremos

bomtempo.Amanhã,vamosjogarmalha.

Nadarespondi.

—Estápensandoquenãovaificarboa,hein?Vipessoasem

pior estado que a senhorita, e dois diasdepois erama almado

navio.Comasenhoritavaiseramesmacoisa.

Nãomesentiasuficientementecombativaparadizer

francamente que ele não passava de ummentiroso. Fiz um

esforço e concordei com um olhar. Continuou a tagarelar

alegremente. Por felicidade, retirou-se minutos depois. No

Page 75: Agatha christie - o homem do terno marrom

tombadilhohaviaumvaivémdepassageiros,deparesacaminhar

empassosrápidos,"fazendoexercício",jovensrisonhos,crianças

quesaltavamalegremente.Nasespreguiçadeirasjaziam,comoeu

mesma,algunspálidossofredores.

A temperaturaeraamena,nãodemasiadamente fria,eosol

brilhava em todo o esplendor. Insensivelmente, senti-me

reanimar. Comecei a observar os passantes. Uma mulher,

principalmente, atraiu-meaatenção.Aparentava cercade trinta

anos;tinhaestaturamédia,cabeloslouríssimos,rostoredondode

pele sardenta e olhosmuito azuis. No vestido, embora simples,

um quê indefinível traía a origem parisiense. Gestos calmos,

muitoseguradesi,pareciaadonadonavio!Osgarçonscorriam

deum ladoparaoutro,obedecendoàssuasordens.Tinhauma

cadeira preguiçosa especial e inexaurível reforço de almofadas.

Mudavadiversasvezesdeopiniãoantesdeescolherolugarmais

apropriadoparacadauma.Tudonelaatraíaeencantava.Talvez

fosseumadasraraspessoasquesabemoquequerem,cuidamde

consegui-loeagemdeformaanãoofenderninguém.Julgueique,

tão logo me restabelecesse — mas é evidente que isso não ia

acontecer—,conversarcomelaseriaumaboadistração.

Ao meio-dia, mais ou menos, o navio aportou na ilha da

Madeira. Eu ainda estava apática, sem coragem de mover-me;

divertia-me, contudo, apreciar o espetáculo dos vendedores com

suasmercadorias espalhadasno tombadilho.Eas flores, então!

Enfiei o nariz num ramo de aromáticas violetas orvalhadas e

imediatamente senti-memelhor. Veio-me a esperança de chegar

com vida ao fim da viagem. A camareira ofereceu-me caldo de

galinha. Após débeis protestos acabei por tomá-lo

prazerosamente.

Page 76: Agatha christie - o homem do terno marrom

A jovem simpática desceu à terra. Voltou acompanhada de

um homem, com ares de militar. Os cabelos pretos, de alvas

mechasnastêmporas,emolduravamosemblantebronzeado;jáo

notaraantes,aandar,muitocedo,portodaaextensãodoconvés.

Classifiquei-o, imediatamente, como um dos homens fortes e

silenciososdaRodésia.Aproximava-sedosquarentaanose sem

dúvidaeraohomemmaisbonitodebordo.

Quandoacamareirametrouxemaisumagasalho, indaguei

sesabiaquemeraaquelamoçatãoatraente.

— É uma senhora muito conhecida na alta-roda. Mrs.

ClarenceBlair.Jádeveterlidosobreelanosjornais.

Concordeicomumsinaldecabeçaecontinueiafitarajovem

com redobrado interesse.Mrs. Blair figurava entre asmulheres

mais elegantes do país. Observei, meio divertida, que ela era o

centrodaatençãogeral.Diversaspessoastentaramaproximar-se

dela,dadaainformalidadereinantenavidadebordo.Admireia

maneira polida como as afastava. Parecia ter adotado o homem

forteecalmocomoseuparpredileto,oquemuitoosensibilizava.

Namanhã seguinte, depois dedarumas voltas ao redor do

tombadilho,admirei-meaoverMrs.Blairparar juntodaminha

espreguiçadeira.

—Estámelhorestamanhã?

Agradeci,edissequemesentiaumpouquinhomaiscomoum

serhumano.

—Ontem,pareciabemabatida.OCoronelRaceeeuficamos

certosdequeassistiríamosaumfuneralnomar—masficamos

Page 77: Agatha christie - o homem do terno marrom

desapontados.

Rialegremente.—Oarlivrefez-mebem.

—Nãohácomooarfresco—disseoCoronelRace,sorrindo.

—Aatmosferaabafadadoscamarotesmataqualquerpessoa

—declarouMrs.Blair, tomandoassentoaomeu lado; com leve

acenodecabeçadispensouocompanheiroecontinuou:

—Conseguiucabinaexterna?Respondinegativamente.

—Coitadinha!Porquenãomuda?Há tantasvagas!Muitos

passageirosficaramnailhadaMadeira.Falecomocomissário.É

muito simpático — graças a ele transferi-me para um ótimo

camarote.Faça-lheopedidonahoradoalmoço.

Estremeci.

—Nãoconsigosairdaqui.

—Tolice!Vamosdarumpasseio.

Curvou-se para mim, como a encorajar-me. A princípio,

faltavam-meforças;porém,àmedidaqueandavarapidamentede

umladoparaoutro,comeceiasentir-mebemmaisdisposta.

Apósumaouduasvoltas,oCoronelRacereuniu-seanós.

—DooutroladojáseavistaograndepicodeTenerife.

—Já?Dáparatirarumafotografia?

— Não... mas nada impede que a senhora fotografe a

paisagem.

Page 78: Agatha christie - o homem do terno marrom

Mrs.Blairriu.

—Queindelicadeza!Játireialgumasfotografiasmuitoboas.

—Trêsporcento,decerto.

Atravessamos o tombadilho. Coberto de neve, brilhante e

envoltoemtênuenevoeirorosado,elevava-seopico.Escapou-me

umaexclamaçãodesurpresa.Mrs.Blairsaiucorrendoembusca

damáquinafotográfica.

Sem se importar com a zombaria do Coronel Race, fazia o

aparelhofuncionarininterruptamente.

—Ora, o rolo estáno fim.Oh!—exclamoucom tristeza—

tireitodososinstantâneosnomesmofilme!

—Gostodevercriançascombrinquedonovo—murmurouo

coronel.

—Quecriaturahorrível!Felizmentetrouxemaisumfilme.

Retirou-o, com ar triunfante, do bolso do casaquinho de

malha.Subitamenteaoscilaçãodonaviotirou-lheoequilíbrioe,

enquantoseagarravaàgrade,ofilmeroloupelotombadilho.

—Oh!— disseMrs. Blair, fingindo desespero. E curvou-se

sobreasgrades.—Seráquecaiunomar?

— Não, mas considere-se feliz se tiver caído na cabeça de

alguminfelizgarçomdosegundoconvés.

Um rapazinho comumacometa, cujapresençanospassara

despercebida,emitiuumprolongadosomensurdecedor.

Page 79: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Almoço! — bradou Mrs. Blair extasiada. — Estou sem

alimento desde cedo. Só tomei duas xícaras de chá. Vamos

almoçar,MissBeddingfield?

—Bem...— respondihesitante.—Vamos, estou commuita

fome.

—Ótimo.Jáaviàmesadocomissário.Convença-oadar-lhe

ocamarote.

Atravessei o salão e principiei a comer devagar,

cautelosamente.No finalda refeição tinhadevoradoumenorme

prato. O meu amigo da véspera congratulou-se pelo meu

restabelecimento.Naqueledia,disse-me,muitaspessoasfalaram-

lheemmudardecabina.Prometeu-me,porém,quesemdemora

metransfeririaparaumaexterna,conformelhepedira.

Éramosquatroàmesa;eu,duassenhoraseummissionárioa

tagarelarsobreos"coitadosdosnossosirmãosnegros".

Lancei um olhar ao redor.Mrs. Blair sentava-se àmesa do

capitão,tendodeumladooCoronelRaceedooutroumhomem

grisalho, de aparência muito distinta. Vinham depois outras

pessoas. Já as vira no convés, com exceção de umhomem que

nãohaviaaparecidoantes.Casocontrário,dificilmenteescaparia

à minha observação. Era alto e magro, e de semblante tão

sinistro, que me assustei. Cheia de curiosidade, indaguei do

comissárioquemera.

—Aquelehomem?Ah!éosecretáriodeSirEustacePedler.

Coitado!Enjooumuito;hojeéoprimeirodiaemquedesceparaa

sala de almoço. Sir Eustace trouxe dois secretários, e ambos

ressentiram-se da viagem. Este chama-se Pagett; o outro ainda

Page 80: Agatha christie - o homem do terno marrom

nãoapareceu.

Então, o proprietário da Casa do Moinho estava a bordo;

podiasermeracoincidência,mas,assimmesmo...

—Aquele—prosseguiumeuinformante—,sentadoaolado

docapitão,éSirEustacePedler.Velhoimbecilepretensioso.

Quantomais observava o semblante do secretário,menos o

apreciava. A palidez das faces, as pálpebras semicerradas como

que a resguardar o olhar cauteloso, a cabeça de formato

extravagante,bastanteachatada—tudonelecausava-merepulsa

eapreensão.

Deixamosasalaaomesmotempo;nomomentoemquesubia

aescada,encontrei-mejustamenteatrásdeleepude,então,sem

serpressentida,ouvir fragmentosdodiálogoquemantinhacom

SirEustacePedler.

—Vouprovidenciaracabinaimediatamente,nãoémesmo?É

impossíveltrabalharnasua,comtodasasmalasatomarespaço.

— Caro rapaz — respondeu Sir Eustace —, minha cabina

destina-se a ser: (a) quarto de dormir e (b) o lugar onde mal

consigomevestir.Nãoqueroabsolutamentequetomepossedela.

Vocêbemsabequenãosuportooruído infernaldamáquinade

escrever.

—Osenhortemtodaarazão,SirEustace,precisamos

deumlugarparatrabalhar...

Nesse instanteseparei-medelesedesci,a fimdeverificarse

Page 81: Agatha christie - o homem do terno marrom

minha mudança progredia. Essa tarefa estava a cargo do

camaroteiro.

—Conseguiuumacabinaótima,senhorita,naalaD,número

13.

—Oh! não— exclamei—, 13,não. Tenho superstição pelo

número13.

A cabina era realmente muito confortável. Hesitante,

inspecionei-a, mas a tola superstição predominou. Chamei o

camaroteiro,prestesachorar.

—Nãohaveráoutracabinavaga?Ojovempôs-searefletir.

— Sim, a 17, a estibordo. De manhã ainda estava

desocupada,masachoqueumsenhorareservou.Emtodocaso,

como ainda não fizeram amudança e sendo os homensmenos

supersticiosos do que asmulheres, é bem possível que lhe seja

indiferentevirparaesta.

Apropostadeixou-mecontentíssima,eocamaroteiropartiua

fimdeobteraautorizaçãodocomissário.Voltousorridente.

—Estátudoarranjado,senhorita.Vamos.

Econduziu-meàcabina17.Nãoera tãoespaçosaquantoa

13,massatisfazia-meplenamente,eissomebastava.

—Vouprovidenciaramudançaimediatamente,senhorita.

Nesseinstante,ohomemderostosinistro(assimoapelidara)

apareceudiantedaporta.

Page 82: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Desculpe-me—disse—, esta cabina está reservadapara

SirEustacePedler.

—Poisnão,senhor—explicouocamaroteiro—,jáestamos

preparandoa13paraele.

—Não,reserveia17.

—A13émelhor,senhor—muitomaior.

— Preferi esta às outras e tenho o consentimento do

comissário.

— Peço-lhe desculpa — interrompi com frieza —, mas eu

tambémareserveiparamim.

—Nãoconcordo.

Ocamaroteirointrometeu-senaconversa.

—Éamesmacoisa,somentequeaoutraémelhor.

—Desejoficarcomesta.

— Que significa isso? — perguntou uma voz estranha. E,

dirigindo-se ao empregado: — Traga minha bagagem para cá.

Estacabinaéminha.

Quem falava era o Reverendo Edward Chichester, meu

vizinhoàmesadoalmoço.

—Peçoperdão—disse.—Estacabinaéminha.

— Está reservada para Sir Eustace Pedler— insistiu o Sr.

Pagett.

Page 83: Agatha christie - o homem do terno marrom

Adiscussãoacalorava-se.

— Sinto muito, mas tenho o direito de contestar — disse

Chichester com um sorriso humilde, que desmentia a

determinaçãodeconseguiroseuintento.

Dehámuitonotei queaspessoashumildes geralmente são

obstinadas.

O camaroteiro, ao ver o reverendo introduzir-se na cabina,

disse:

—Suacabinaéa28,naalaesquerda.Émuitoconfortável,

senhor.

— Sinto ter de continuar a insistir. Esta é a que me

prometeram.

Chegáramosaumimpasse.Estávamosdecididosanãoceder.

Sinceramente,preferiadequalquerformacontornarasituaçãoe

desistirdacontendaaceitandoacabina28.Excetoa13,erade

somenos importância que ficasse em outro camarote. Masmeu

sangue fervia. Não desejava, de forma alguma, ser a primeira a

recuar.Alémdomais,nãosimpatizavacomChichester,nemcom

sua dentadura, que estalava durante a mastigação. Motivos

inferioresaesselevam-nos,muitasvezes,adetestaralguém.

Repetimos osmesmosargumentosmaisuma vez.Garantia-

nos o camaroteiro, cada vez com mais firmeza, que ambas as

cabinas eram melhores. Ninguém lhe dava atenção. Pagett

começou a zangar-se, mas Chichester conservava-se sereno.

Embora com esforço, eu procurava fazer o mesmo. Ninguém

cedia.

Page 84: Agatha christie - o homem do terno marrom

Uma piscadela e uma palavra murmurada pelo empregado

foramsuficientesparaqueeudesempenhasseacontentoomeu

papel.Abandoneiacenadiscretamente.Porsorte,nãodemoreia

encontrarocomissário.

—Oh! por favor!— exclamei—o senhornão disse que eu

poderia ficar com a cabina 17? Mas os outros não querem ir

embora. Mr. Chichester e Mr. Pagett. O senhorvai dar-me a

cabina,nãovai?

Sempre afirmei serem os homens do mar exímios no trato

gentil com as mulheres. O meu caro comissário correspondeu

maravilhosamenteàexpectativa.Comlargaspassadas,entrouem

cena e não só informou aos disputantes que a cabina 17 era

minha, como tambémquea13 e a28 estavamàdisposiçãode

ambosossenhores.

Dei-lhe a entender que ele era um verdadeiro herói e saí

imediatamente para instalar-me no meu novo domínio. A

altercaçãofoi-mesalutar.Ademais,ooceanoestavacalmo,osdias

cada vezmais quentes e o enjôo demar era coisa do passado.

Subiaoconvésafimdeiniciar-menojogodemalhaeinscrever-

meemdiversosesportes.Nahoradochá,servidonotombadilho,

comi com entusiasmo. Depois, fui jogarshovel-board em

companhia de rapazes simpáticos e amabilíssimos. Como era

agradávelviver!Surpreendi-meaoouvirotoquedecometa—era

o momento de vestir-me para jantar —, então apressei-me em

chegaràminhanovacabina.Ocamareiroesperava-me.

—Acabinaestácomumcheirohorrível,senhorita!Nãoatino

comarazão;creiomesmoqueasenhoritanãosuportarápassara

noiteaí.Poderiamudar-separaumcamarotevagodoconvésC,

Page 85: Agatha christie - o homem do terno marrom

somenteporumanoite.

Oodorerarealmentedesagradabilíssimo—quasenauseante.

Expliqueiaorapazquepensarianocasoenquantomepreparava

paraojantar.Vesti-meapressadamente,espirrandoamiúde.

Que cheiro seria aquele? Ratomorto? Não, pior ainda— e

completamentediferente.Massabiaoqueeraaquilo!

Conhecia esse odor tão desagradável! Alguma coisa... Ah!

Descobri afinal! Assa-fétida! Na época da guerra, trabalhei por

algumtemponodispensáriodeumhospitalefamiliarizei-mecom

diversosmedicamentosdeodorsimplesmentenauseante.

Semdúvida,eraassa-fétida.Como,porém...

Afundei o corpo no sofá, ao descobrir a solução do caso.

Alguém pusera uma pitada de assa-fétida na cabina. Qual o

objetivo?Quememudasse?Porque tantaansiedadeemver-me

fora de lá? Rememorei a cena ocorrida à tarde sob um ângulo

diverso.Quehavia coma cabina17para ser tão solicitada?Os

outros dois camarotes eram melhores. E essa obstinação em

preferiro17?

Dezessete.Quenúmeroinsistente!PartideSouthamptonno

dia 17. Era o número 17... fiquei imóvel, com a respiração

ofegante. Abri rapidamente a mala e tirei o precioso papel

escondidodentrodameia.

17 1 22 — Tinha imaginado que esses algarismos

significassem uma data: a data da partida doCastelo de

Kilmorden. E se estivesse enganada? Pensando bem, quando

escrevemos uma data é necessário acrescentar o mês e o ano?

Page 86: Agatha christie - o homem do terno marrom

Suponhamosque17significassecabina17?E1?Ahora—uma

hora.Então,22sópodiaseradata.Procurei-anocalendário.

Odiaseguinteera22!

Page 87: Agatha christie - o homem do terno marrom

10

Tomei-medegrandenervosismo.Trilhavaporfimocaminho

certo.Estavaclaroquenãopodiaausentar-medacabina.Aassa-

fétidatinhadebrotar.Examineinovamenteosfatos.

Nodiaseguinte,22,àumadamadrugadaouumadatarde,

algumacoisaiaacontecer.Opteipeloprimeirohorário.Eramsete

danoite.Dentrodeseishoras,ficariasabendoaocerto.

Nãomerecordodecomotranscorreuatarde.Retirei-mecedo,

depoisdeexplicaràaflita camareiraque, resfriadacomoestava,

perdera o olfato. Ante a perspectiva de imprevistos, envolvi-me

num penhoar de espessa flanela, calcei chinelos e recolhi-me

tristementeaoleito.Nessestrajes,ser-me-iafácilsaltardacamae

tomarparteativaemqualquerespéciedeacontecimentos.

Quepodia esperar? Ignorava.Pensamentos vagosadejavam-

senocérebro.Deumacoisaestava firmementeconvencida:algo

iasuceder.

Ouvimeus companheiros de viagem dirigirem-se para suas

cabinas. Fragmentos de conversa, despedidas alegres flutuavam

atravésdabandeiradaporta.Silêncio.Apagou-seamaiorparte

das luzes. Uma, na passagem externa, continuava acesa,

irradiandoclaridadedentrodocamarote.

Soaram oito badaladas. O transcorrer da hora seguinte

pareceu-meomais longodaminha vida.Consultei o relógiode

pulsoparaverificarsenãomeenganara.

Page 88: Agatha christie - o homem do terno marrom

Casominhasdeduçõesestivessemerradasenadaacontecesse

àumahora,nãoteriapassadodeumatola,agastarnumlogroo

dinheiroquepossuía.Ocoraçãobatia-medescompassado.

Ouvi o soar de dois relógios. Uma hora! E nada sucedia!

Espere...oqueseriaaquilo?Percebio leveruídodealguémque

corria...

Rápida como uma bomba, a porta abriu-se e um homem

projetou-separadentrodacabina.

— Salve-me — disse uma voz rouca. — Estão à minha

procura.

O momento não era próprio para argumentar ou pedir

explicações. Ouvia ruído de passos. Tinha cerca de quarenta

segundos para agir. De um salto, pus-me de pé frente ao

estranho,postadonomeiodasaleta.

Nãoéfácilesconderumhomemdeummetroeoitentanum

camarotedenavio.Abrioporta-malas,dandotempoaorapazde

seesconderdebaixodobeliche,enquantoeu,comaoutramão,

puxava para perto de mim a bacia para lavar o rosto.

Destramente, enrolei o cabelo no alto da cabeça. O penteado,

desprovido de elegância, podia, de certo ponto de vista, ser

considerado uma suprema obra de arte. Uma mulher com o

cabelonoaltoda cabeça, enoatode tirar o sabonetedamala,

está-sepreparandoevidentementeparalavarorostoeopescoço.

Quemmejulgariaconiventedeumfugitivo?

Umapancadinhaeaportaabriu-seantesqueeudissesse:—

Entre.

Page 89: Agatha christie - o homem do terno marrom

Não conseguia prever o desenrolar dos acontecimentos.

Ocorreu-mequepodiasertantoMr.Pagettbrandindoorevólver

comoomeuamigomissionário comumsacode areia ou outra

armamortífera.Oquemenosesperavaeraacamareiradanoite,

comolharinquisidor—apersonificaçãodarespeitabilidade.

—Desculpe,asenhoritachamou?

—Não—disse—,nãochamei.

—Desculpeincomodá-la.

—Não tem importância.Comonãoconseguiadormir,achei

oportunofazerumaablução.—Assimfalandodavaaimpressão

deestarforadarotina.

—Desculpe,senhorita—repetiua jovem.—Mascomoum

senhor muito embriagado se dirigiu para estes lados, achamos

quepodiaentrarnacabinadeumadassenhoras,pregando-lhes

umsusto.

—Quehorror!—exclameicomexpressãoalarmada.—Será

queelenãovemparacá?

—Oh,nãocreio,senhorita.Sevier,toqueacampainha.Boa

noite.

—Boanoite.

Abrindoaporta,espieiocorredor.Ninguémàvista,excetoa

camareira,queseafastava.

Bêbado! Eis a explicação do fato! Desperdiçara inutilmente

meus dotes artísticos... Abri um pouco mais o porta-malas,

Page 90: Agatha christie - o homem do terno marrom

dizendoemtomáspero:

—Façaofavordesairimediatamente!

Não houve resposta. Espiei embaixo do beliche. O visitante

jaziaimóvel,comosedormisse.Bati-lhenoombro,sem

resultado.

Completamente embriagado, pensei louca de raiva.Que

fazer?

Avistadeumapequenamanchadesanguenosoalhocortou-

mearespiração.

Reunindo toda a força consegui arrastá-lo para o centro do

camarote.O semblantemortalmente pálido indicava ter perdido

ossentidos.Receberaprofundoferimento—umapunhaladasob

a omoplata esquerda. Tirei-lhe o paletó e pus-me a cuidar da

ferida.

Moveu-seaocontactodaágua,friacomoumaferre-toada;em

seguida,sentou-se.

—Façaofavordeficarimóvel—ordenei.

Orapazvoltavaasi rapidamente.Levantou-se,conseguindo

manter-seempé,semrecobrarinteiramenteoequilíbrio.

—Obrigado;nãoéprecisoquemefaçacoisanenhuma.

Falou em tom de desafio, quase agressivo, sem me dirigir

sequerumapalavradeagradecimento.

—Aferidaéprofunda;voufazerumcurativo.

Page 91: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Nãovaifazernada.

Lançou-me em rosto as palavras como se eu lhe tivesse

pedidoumfavor.Zango-mecomfacilidade,porissorespondi-lhe

friamente:

—Suasmaneirasnãosãodignasdeaplauso.

— Posso, pelo menos, livrá-la da minha presença. —

Cambaleante, deu alguns passos na direção da porta. Num

movimentobrusco,puxei-orapidamenteparaosofá.

—Deixedetolice—faleisemamenorcerimônia.—Poracaso

pretende continuardesse jeito, como ferimento sangrandopelo

naviotodo?

Eleentendeuosentidodaspalavras,poispermaneceuimóvel

duranteotempoemquelheenfaixavaaferida.

—Pronto—dissemomentosdepois, tocando-lhede leveno

ombro—, por agora é só. E então, estámais bemhumorado e

dispostoacontaroquesignificaissotudo?

— Sinto não poder satisfazer sua vontade; émuito natural

queestejacuriosa.

—Porquenãopode?—pergunteicontrariada.Osorrisodo

rapazeramaldoso.

— Quem quiser espalhar uma notícia, que a conte a uma

mulher;casocontrário,deveconservarabocafechada.

—Achaquenãosoucapazdeguardarumsegredo?

Page 92: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Acho,não,tenhocerteza.—Elevantou-se.

—Dequalquerforma—continueiferinamente—,soucapaz

deespalharumpoucodoquesucedeuestanoite.

—Semdúvida—faloucomindiferença.

—Queousadia!—exclameizangada.

Estávamos frente a frente, olhares chispantes, ferozes como

dois inimigos figadais. Pela primeira vez, tive oportunidade de

observá-lo pormenorizadamente: cabelo escuro cortado rente,

queixoproeminente, cicatrizna facemorena,olhoscinza-claros,

fitando-medeformaestranha—difícildedescrever—,comoque

azombardemim.Aparentavaserpessoaperigosa.

— Salvei-lhe a vida e nem aomenos agradece!— exclamei

com falsadoçura.Faziaquestãode insistirnesseponto.Percebi

distintamente que hesitava. Sabia, por intuição, que ele não

gostavadetocarnoassuntoeoquantodetestavadever-meavida.

Não dei a mínima importância ao fato; procurava feri-lo, como

nuncaofizeraemtodaaminhavida.

— Prouvera a Deus que não me salvasse! — disse numa

explosão.—Queriamorrerparalivrar-medisso.

—Ficosatisfeitaporsaberquereconheceadívida.Enãovai

se livrar disso. Salvei-lhe a vida e estou à espera de ouvir um

"muitoobrigado".

Se olhar matasse, eu cairia fulminada no mesmo instante.

Passoudesabridamentepormim,e,pertodaporta,falou-mepor

sobreoombro:

Page 93: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Não espere que eu lhe agradeça, nemagoranemnunca.

Apenasreconheçoadívida.Algumdiaserápaga.

Desapareceu,eeufiqueidepunhoscerradosecomocoração

abaterdesesperadamente.

Page 94: Agatha christie - o homem do terno marrom

11

O resto da madrugada transcorreu calmo. Tomei café na

cama e levantei-me tarde. Ao chegar ao convés, Mrs. Blair

recebeu-mefestivamente.

—Bomdia, ciganinha. Sente-se aqui perto demim. Parece

quenãodormiubemà.noite.

— Por que me chama assim? — indaguei, enquanto

obedientementemesentava.

—Importa-se?Aalcunhaassenta-lhebem.Desdeoprimeiro

diadei-lheesseapelido.Você temumardecigana,quea torna

diferente de todomundo. Cheguei à conclusão de que você e o

Coronel Race eram as duas únicas pessoas com quem seria

agradávelconversar.

—Éengraçado—disse.—Penseiamesmacoisadasenhora.

Só que, da minha parte, compreende-se perfeitamente. A

senhora...asenhoraéumprimor!

—Nadamauo elogio—disseMrs.Blair, agradecendo com

um sinal de cabeça.—Fale-me de sua vida, ciganinha.Qual o

motivoquealevaàÁfricadoSul?

Contei-lhealgunsfatossobremeupai.

—Mas,então,éfilhadeCharlesBeddingfield?Logopercebi

que não era uma simples provinciana! Vai a Broken Hill

desenterrarcrânios?

Page 95: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Talvez—respondicautelosamente.—Tenhooutrosplanos

também.

— Que criatura de coragem! E misteriosa! Mas você está

cansada. Não passou bem a noite? A bordo não consigo ficar

acordada.Ostolosdormemdezhoras,segundodizem.

Sou capaz de dormir vinte.— Bocejou, como uma gatinha

sonolenta.—Umempregado idiotaacordou-meduranteanoite

paraentregar-meofilmequeperdiontemnoconvés.Estendeuo

braço através da escotilha e jogou-o bem em cima de minha

barriga.Noprimeiromomento,atépenseiquefosseumabomba!

—Aívemseuamigo,ocoronel—observei,quandoa figura

altaemarcialdoCoronelRacesurgiunotombadilho.

— Não é só meu. Sente grande admiração por você,

ciganinha.Porisso,nãofuja.

— Vou buscar um lenço para amarrar à cabeça. É mais

confortáveldoquechapéu.

Esaíimediatamente.DesconheciaarazãoporqueoCoronel

Racenãomeagradava.Sentia-metímidanasuapresença.

Entrei na cabina e principiei a procurar alguma coisa com

que prender asmadeixas rebeldes. Naqueles dias procurava ser

meticulosano arranjo dosmeuspertences e conservá-losnuma

determinadaordem.Nembemabriagaveta,percebiquetinham

mexidonosmeusguardados.Examineioarmarinhoeasoutras

gavetas. Foi a mesma coisa. Era como se tivessem dado uma

buscaapressadaederesultadonegativo.

Page 96: Agatha christie - o homem do terno marrom

Sentei-me,muitoséria,nabeiradadobeliche.Quemseriao

autordabusca?Qualafinalidade?Seriapelopapelcomnúmeros

e palavras rabiscadas? Abanei a cabeça, em sinal de

contrariedade. Isso, comcerteza, era coisapassada.Oquemais

podiaser?

Precisava meditar sobre o assunto. Os acontecimentos

ocorridos na noite anterior, apesar de empolgantes, nada

elucidavam. Quem seria o moço que entrara de maneira tão

abruptanaminhacabina?Nãooviraantesnoconvés,nemno

salão. Era funcionário da companhia de navegação ou

passageiro?Quemohaviaferido?Eporque,meuDeus,estavaa

cabina17tãovisada?Tudoeramistério,massemdúvidaestavam

sepassandofatosextraordináriosnoCastelodeKilmorden.

Contei nos dedos as pessoas que convinha manter em

observação.

Pondo de lado o visitante da noite anterior, mas com a

promessaamimmesmadedescobri-loabordoantesdotérmino

dodia,acheiconvenienteatentarnasseguintespessoas:

(1)SirEustacePedler.ProprietáriodaCasadoMoinho,cuja

presença a bordo doCastelo de Kilmorden parecia ser mera

coincidência.

(2)Mr.Pagett,osecretáriodefisionomiasinistra,tãoansioso

porconseguiracabina17.N.B.—DescobrirseacompanhouSir

EustaceaCannes.

(3) Reverendo Edward Chichester. Temperamento um tanto

esquisito.Aanimosidadequesintoporelefoiprovocadapelasua

obstinaçãoemobteracabina17.Aobstinaçãoécoisaterrível.

Page 97: Agatha christie - o homem do terno marrom

Contudo,nãoseria inoportunaa trocadealgumaspalavras

comessesenhor.Amarreirapidamenteumlençonacabeçaesubi

outravezaoconvés,bemdecididaarealizarmeuplano.Afortuna

mesorria.Ohomemláestava,apoiadonagrade,tomandocaldo

decarne.Caminheidiretamenteparaele.

—Esperoquejámetenhaperdoadopeloquesucedeucoma

cabina17—disseacompanhandoaspalavrascommeusorriso

maissimpático.

—Éanticristãoguardarrancor—respondeuMr.Chichester

friamente.—Masocomissáriomeprometeuacabina.

—Oscomissáriossãotãoocupados,nãoacha?—perguntei.

—Acreditoque,àsvezes,seesquecemdaspromessas.

Oreverendonadarespondeu.

— É a primeira vez que vai à África? — indaguei em tom

convencional.

— Para a África do Sul, é a primeira. Trabalhei estes dois

últimosanosnaÁfricaoriental.

—Formidável!Deveterescapadoporumtriz!

—Escapado?

—Deserdevorado,querodizer.

— Não deve tratar de assuntos sagrados com tanta

leviandade,MissBeddingfield.

Page 98: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Ignorava que o canibalismo fosse assunto sagrado —

repliqueizangada.

Novaidéiaacudiu-meaocérebro,maltermineidepronunciar

essas palavras. Se Mr. Chichester realmente passou os dois

últimos anos na África, como é que seu rosto não estava

queimadopelosol?Eapelealvae rosadacomoadeumbebê?

Surgiam-me suspeitas. Além disso, as maneiras e a voz eram

exatamentecomomandaofigurino.Demasiadamente,talvez.Era

—ounão—apenasumclérigodefachada?

Lembrei-medospadresdeLittleHampsley.Algunsmeforam

simpáticos,outros,não,masnenhum,claroestá,assemelhava-se

aomissionário.OsdeLittleHampsleyeramsereshumanos—Mr.

Chichester,osímbolodamagnificência.

Enquantoassimpensava,passouSirEustacePedler.Quando

seachavaemfrentedoreverendo,curvou-se,ergueuumpedaço

depapele,estendendo-oaMr.Chichester,observou:

—Osenhordeixoucairalgumacoisa.

E prosseguiu no passeio, provavelmente sem notar o

nervosismo do sacerdote. A devolução dó papel— ignoro o seu

valor— agitou-o profundamente. Sua tez cobriu-se de uma cor

esverdinhada e começou a amarrotar a folha até transformá-la

numabolinha.Asminhassuspeitasmultiplicaram-se.

Percebendoomeuolhar,apressou-seemdarexplicações.

—É...é...umtrechodosermãoqueestouescrevendo—disse

numsorrisocontrafeito.

Page 99: Agatha christie - o homem do terno marrom

—É?—retorquipolidamente.

Ora essa! Trecho de sermão! Os argumentos de Mr.

Chichestereramrealmentemuitofracos!

Deixou-me logo depois, murmurando uma desculpa. Oh!

Como desejei— e quanto— tivesse sido eu e não Sir Eustace

Pedleraapanharafolhadepapel!Deumacoisaestavabemcerta:

onomedoreverendoseriaoprimeirodostrêsafigurarnalistade

suspeitos.

Terminado o almoço, fui tomar café na sala de estar. Lá

divisei Sir Eustace e Pagett sentados junto de Mrs. Blair e do

Coronel Race. Visto a jovem ter me saudado com um sorriso,

decidireunir-meaogrupo.ConversavamsobreaItália.

—Maséengano—insistiaMrs.Blair.—"Aquacalda"deve

ser"águafria"—enãoquente.

— A senhora não é estudiosa da língua latina— disse Sir

Eustace,sorrindo.

— Os homens vangloriam-se de saber latim — continuou

Mrs.Blair.—Noentanto,observoque,quandolhespedimosque

traduzaminscriçõesdas igrejasantigas, jamaisconseguemfazê-

lo! Principiam a pigarrear até darem um jeito de cair fora da

questão.

—Muitobem—disseoCoronelRace.—Éexatamenteoque

faço.

—Mas adoro os italianos— prosseguiu a senhora.— São

realmente atenciosos — o que não deixa de ter seu lado

Page 100: Agatha christie - o homem do terno marrom

desagradável.Selhespedimosesclarecimentossobreumtrajetoa

seguir, em lugar de dizerem "primeiro à direita, depois à

esquerda",respondemcomverdadeiratorrentedeexplicações.Ao

ver-nosatônitas,pegam-nosdelicadamenteobraçoefazemtodoo

caminhoconosco.

—PassouporexperiênciasemelhanteemFlorença,Pagett?—

indagouSirEustace,voltando-sesorridenteparaosecretário.

A pergunta desconcertou o rapaz. Corou e, gaguejando,

respondeu:

—Oh!Foiassimmesmo,foi...hum...assimmesmo.

Murmurouumpedidodedesculpae,levantando-sedamesa,

afastou-se.

—ComeçoasuspeitardequeGuyPagettcometeualgumato

ignominioso durante a estada em Florença — observou Sir

Eustace,fitandoasilhuetadistantedosecretário.—Todavezque

semencionaFlorençaouItáliaelemudadeassuntoouretira-se

precipitadamente.

— Cometeu, talvez, algum assassinato por lá— disse Mrs.

Blair esperançosa.—Pelaaparência—nãoseofendacom isso,

SirEustace—,eledáaimpressãodesercapazdemataralguém.

—Sim,épuroCinquecento!Àsvezes,ocoitadomediverte—

principalmentequandosabemoscomoéhonradoeobedienteàs

leis.

—Trabalhahátempocomosenhor,SirEustace?—inquiriu

oCoronelRace.

Page 101: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Háseisanos—respondeu,suspirandoprofundamente.

—Deve ser ótimo secretário— observouMrs. Blair..— Oh!

Inestimável,sim,realmenteinestimável.

O pobre homem sentia-se cada vezmais deprimido, visto o

valor de Mr. Pagett constituir a causa da sua secreta mágoa.

Acrescentouvivamente:

— O rapaz devia inspirar-lhe confiança, minha senhora.

Nenhumcriminosotemfisionomiasuspeita.Crippen,creioeu,foi

umdosmoçosmaisagradáveisquesepossaimaginar.

— Foi preso num transatlântico, não? — murmurou Mrs.

Blair.

Umtilintardelouçafez-mevoltarrapidamenteacabeçapara

trás;Mr.Chichesterdeixaracairaxícaradecafé.

Poucodepois,terminadaareunião,Mrs.Blairfoifazerasesta

eeusubiaoconvésnacompanhiadoCoronelRace.

—A senhorita émuito esquiva,MissBeddingfield; ontemà

noite,duranteobaile,procurei-aportodaparte.

—Fuicedoparaacama—expliquei.

—Ehoje,vaifugirtambém?Ouvaidançarcomigo?

—Seráumgrandeprazerdançarcomosenhor—murmurei

timidamente.—Mas,Mrs.Blair...

—Nossaamiga,Mrs.Blair,nãoapreciaadança.

—Eosenhor?

Page 102: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Gostariadedançarcomasenhorita.

—Oh!—exclameicomnervosismo.

O Coronel Race infundia-me certo medo. Mas, ao mesmo

tempo, a sua palestra me distraía. Era mais agradável do que

discutir sobre crânios fossilizados com professores velhos e

gordos!Personificavaexatamenteo idealdos rodesianos fortes e

silenciosos.Quemsabemecasariacomele!Nãomepediraamão

— confesso —, mas, como dizem os escoteiros, estava de

prontidão.Todasasmulheres,semomenormotivo,consideram

cadahomemqueconhecemcomoummaridoemperspectiva,ou

parasimesmas,ouparaassuasmelhoresamigas.

O coronel, exímio bailarino, tirou-me diversas vezes para

dançar.Terminadoobaile,pensavaemvoltarà cabinaquando,

porsugestãosua,fomosaotombadilhodarumavolta.Depoisde

percorrê-lo três vezes em toda a sua extenso, sentamo-nos nas

cadeiraspreguiçosas.Nãosevianemumvultosequer.Aprincípio

aconversaseguiuaoléu.Depoiselemeperguntou:

— Sabe,Miss Beddingfield, encontrei-me uma vez com seu

pai. Pessoa muito interessante. Discorreu sobre o seu assunto

preferido, que, aliás, me fascina também. Fiz alguns trabalhos

nesse sentido,mas são insignificantes.Quando estivena região

daDordogne...

Passamosaumaconversa técnica.Dadosos conhecimentos

quepossuía,aostentaçãodeRace tinharazãodeser.Contudo,

porduasvezes incorreuemenganossingulares,queclassifiquei

como lapsos. Apreendia rapidamente as minhas sugestões,

Page 103: Agatha christie - o homem do terno marrom

conseguindo disfarçar as falhas cometidas. Uma delas foi

mencionaroperíodomusterianocomoposterioraoaurignaciano

—erroabsurdo,mesmoparaquemconheceoassuntopelarama.

Àmeia-noite, desci para a cabina. Intrigavam-meainda aquelas

discrepâncias fora de propósito. Seria possível que tudo aquilo

não passasse de simples "encenação"? Talvez nem conhecesse

arqueologia...Abaneiacabeça,numvagodescontentamento.

Quando ia caindo no sono, sentei-me repentinamente na

cama;umaidéia,qualrelâmpago,atravessou-meocérebro.Ese

elemeestivesseperquirindo?Ospequenosdeslizespoderiamser

nadamaisdoquemerostestes—meiosdeverificarseeupossuía

realmente conhecimentos sobre o assunto. Por outras palavras,

suspeitavadequeeunãofosseaverdadeiraAnneBeddingfield.

Page 104: Agatha christie - o homem do terno marrom

12

(Fragmentos do diário de Sir Eustace Pedler, membro do

Parlamento)

A única coisa digna de menção na vida de bordo é a

tranqüilidade.Afortunadamente,meuscabelosgrisalhosisentam-

medaafrontadecorrernoconvés,debaixopara

cima, carregando batatas e ovos, de praticar esportes

fatigantescomoBrotherBilleBolsterBar.

É um verdadeiro mistério! Como podem achar graça em

divertimentostãocansativos!Masomundoestárepletodetolos.

Devemos render graças a Deus por eles existirem e não

pertencermosaoseunúmero.

Felizmente sou ótimo marinheiro. Já não posso dizer o

mesmodocoitadodoPagett.Foitomandoumacoresverdinhada,

logo que zarpamos de Solent. Meu segundo secretário também

deve estar mareado, pois ainda não apareceu. Alta diplomacia,

talvez, e não enjôo de mar. O principal é que ainda não me

incomodou.

Demodogeral,aturmadebordoécacetíssima,àpartedois

razoáveisparceirosdebridgeeumasenhorabembonita—Mrs.

Blair. Já nos encontramos em Londres, é claro. É das poucas

mulheres que têm senso de humor. Aprecio sua conversa;

apreciá-la-ia muito mais não fora a presença de um cretino

Page 105: Agatha christie - o homem do terno marrom

taciturno, de longas pernas, que se agarra a ela como um

molusco. A presença desse tal Coronel Race não lhe pode ser

agradável. É, de certa forma, um belo rapaz, mas inerte como

água de poço. Um desses tipos de homens fortes e silenciosos

adoradospelasnovelistasepelasadolescentes.

Logo depois que deixamos a ilha da Madeira, subi ao

tombadilhoeGuyPagettcomvozcavernosaprincipiouagaguejar

alguma coisa sobre trabalho. Commilhões de diabos, para que

trabalharabordodeumnavio?Averdadesejadita:prometiaos

editores entregar-lhes as minhasReminiscências no início do

verão, mas que importa! Quem lê reminiscências? Senhoras

idosas quemoram em subúrbios. E em que se resumem essas

reminiscências?Nodecorrerdavida,luteicontraumdeterminado

númerodepessoas tidas•havidascomo importantes.Auxiliado

porPagett,inventoanedotasinsípidassobreelas.Orapaz,porém,

excessivamente honesto, não permite que as invente sobre

pessoas com quem poderia ter-me encontrado, mas que na

realidadenemsequerdivisei.

Commaneirasafáveisprocureipersuadi-lo.

—Vocêpareceumtrapo—dissetranqüilamente.—porque

nãovaiestender-seaosolnumaespreguiçadeira?Não,nãodiga

maisumapalavra.Otrabalhopodeesperar.

Soubedepoisqueeletentavareservarmaisumcamarote.

— Não consigo trabalhar na cabina, Sir Eustace. Está

apinhadademalas.

Pelotomdevozpodia-sepensarqueasmalaserambesouros

negrosouqualqueroutrainutilidade.

Page 106: Agatha christie - o homem do terno marrom

Expliquei-lhe que, apesar de ele não estar ciente do fato, é

hábito mudar-se de roupa durante a viagem. Sorriu-me com

aquelesorrisodescoradocomquesempreouveminhaspiadase

retornouaosseusafazeres.

—Malpodemostrabalharnessa"toquinha".

Bemconheçoas"toquinhas"dePagett.Geralmenteapossa-se

damelhorqueexistenonavio.

—Penaocapitãonãoterdadopreferênciaavocêdestavez—

dissecomsarcasmo.—Quertrazeralgumasdassuasmalaspara

aminhacabina?

UsardesarcasmocomalguémcomoPagettéperigoso.

Animou-seimediatamente.

— Se fosse possível livrar-me damáquina de escrever e da

maladepapéis...

A mala, pesadíssima, causa aborrecimentos sem conta aos

carregadores. Pagett e eu vivemos em luta contínua; teima em

considerá-la objeto de minha propriedade pessoal. Até chego a

acreditar que o objetivo da vida do rapaz é deixá-la aos meus

cuidados. Eu, por meu lado, considero-a como a oportunidade

paraumsecretáriomostrar-serealmenteútil.

— Vamos pedir mais uma cabina — disse-me

apressadamente.

Tudo parecia muito simples, mas Pagett adora o mistério.

Apareceu no dia seguinte com cara de verdadeiro conspirador

renascentista.

Page 107: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Lembra-sedeterditoqueeuutilizasseacabina17como

escritório?

—Equetemisso?Amalanãopassanaporta?

—Asportasdetodasascabinassãodomesmotamanho—

respondeu com seriedade. — Mas vou contar-lhe, Sir Eustace,

estáacontecendoumacoisamuitoesquisita.

RecordaçõesdaleituradeObelichesuperiorborbulharamna

minhamente.

— Está querendo dizer que é assombrada?— repliquei. —

Mas, se não vamos dormir lá, qual a importância do caso?

Fantasmasnãogostamdedatilógrafos.

Explicou-me Pagett que não se tratava de fantasma e que,

afinaldecontas,nãoconseguiraobteracabina17.Relatou-me,

em seguida, longa e confusa história. Segundo a narrativa, um

certo Mr. Chichester, uma moça chamada Beddingfield e ele

quase chegaram às vias de fato por causa do camarote. Inútil

dizer—ajovemlevouamelhor,deixandoorapazmuitosentido.

—Al3ea28sãomelhores—afirmou—,maselesnemao

menosseinteressaramemvê-las.

—Muitobem—atalheiabafandoumbocejo—,vocêtambém

nãoseinteressou,meucaroPagett.

Fitou-mecomolharreprovador.

—Osenhordissequereservasseacabina17—insistiu,com

aresdevítima.

Page 108: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Meucarorapaz—repliqueiirritado—,mencioneia17por

estardesocupada.Nãoquisdizercomissoquevocêdeviaresistir

atéamorteporcausadela—13ou28,tantosemedá.

Haviamágoanoseuolhar.

—Háaindamaisumacoisa—teimava.—MissBeddingfield

ficou com a cabina, e, no entanto, esta manhã vi Chichester

saindodelá.

Encarei-ocomseveridade.

— Se está procurando fazer escândalo em torno de

Chichester,queémissionário—deletériacriatura,porsinal—,e

essaatraentecriança,AnneBeddingfield,nãoacreditonumasó

palavra das suas insinuações — atalhei friamente. — Anne

Beddingfieldéumamoçasimpaticíssima,comavantagemdeter

lindaspernas.Ganhaporgrandediferençadetodasasoutrasque

circulampelonavio.

Meu secretário não apreciou essas considerações. Ele

pertenceaotipodehomensqueounãoobservampernasou,se

nãoforocaso,morremmasnãoconfessam.Julgafrívoloomeu

gostoporessascoisas.E,comomediverteaborrecê-lo,prossegui

maliciosamente:

— Visto já terem travado conhecimento, você bem podia

convidá-lapara jantarànossamesaamanhãànoite.Vaihaver

baileàfantasia.Porfalarnisso,achoconvenientequevocêdesça

àlojadobarbeiroparaescolheromeutraje.

—O senhordecertonão vai fantasiar-se, vai?—perguntou

Pagetthorrorizado.

Page 109: Agatha christie - o homem do terno marrom

Percebi perfeitamente ser isso incompatível com a idéia que

fazia da minha dignidade. Mostrava-se desgostoso e

escandalizado.Narealidade,minhaintençãoeraoutra,mas,em

vista do seu grande desapontamento, não resisti à tentação de

continuar.

—Quequerdizercomisso?—perguntei.—Éclaroquevou

vestirumafantasia.Evocêtambém.

Omoçoestremeceu.

—Váentãoaobarbeirotomarprovidências—concluí.

—Creio que só tem tamanhomédio—murmurou o rapaz,

medindo-mecomoolhar.

Não foi propositado,mas Pagett, de vez em quando, diz-me

coisasterrivelmenteofensivas.

— E encomende mesa para seis no salão — disse. — Vou

convidarocapitão,ameninadaspernasbonitas,Mrs.

Blair...

—SemoCoronelRaceMrs.Blairnãoaceita—interpôsmeu

secretário.—Soubequeeleaconvidouparajantar.

Pagettsempreestáaparde tudo.Fiqueicontrariado,ecom

razão.

—QueméRace?—indagueiexasperado.

Comojádisseantes,Pagettsempreestáapardetudo—ou

pensaqueestá.Tomouaresmisteriosos.

Page 110: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Dizem que faz parte do serviço secreto, Sir Eustace. E é

formidávelnogatilho.Masnãoseiseissoéverdade.

—Issoébemdogoverno,não?—exclamei.—Eisumhomem

abordo cuja função é levardocumentos secretos, eno entanto,

entregam-nosamim,pacatocidadãodesejosodetranqüilidade.

A expressão do rapaz tornava-se cada vez mais misteriosa.

Aproximou-seumpassoe,baixandoavoz,falou:

—Semepermite,essahistóriaémuitoesquisita,SirEustace.

Lembra-sedecomofiqueidoente,antesdepartirmos...

— Meu caro rapaz — interrompi brutalmente —, foi

simplesmenteumacrisehepática.Vocêastemfreqüentemente.

Pagettestremeceu.

Destaveznãofoicomoasoutras.Destavez...

—PeloamordeDeus,nãoentreemdetalhes,Pagett.gostode

ouvirfalarnisso.

— Pois não, Sir Eustace. Acredito, porém, que

deliberadamentetentarammeenvenenar.

—Ah!—exclamei.—AndouconversandocomRayburn.

Orapaznãopôdenegar.

—Dequalquer forma,SirEustace,eleacha—equempode

sabermelhor?

—Porfalarnisso,ondeestáorapaz?—indaguei.—Nãolhe

pusosolhosemcimadesdequezarpamos.

Page 111: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Dizqueestádoente;nãosaidacabina,SirEustace.Outra

vezPagettprincipiouafalarnumsussurro:

— Mas não passa decamouflage, tenho certeza. Fica mais

fácildevelar.

—Velar?

— Pela sua segurança, Sir Eustace. Caso o senhor seja

agredido.

—Você é impagável, Pagett—disse.—Sou capaz de jurar

que sua imaginação tem asas. Se eu fosse você, iria ao baile

mascaradodeMorteoudecarrasco.Combinacomotipolúgubre

debelezatãodoseuagrado.

Ao ouvir essas palavras Pagett calou-se. Deixei-o e subi ao

convés.LáestavaajovemBeddingfieldemanimadapalestracom

o padre missionário Chichester. As mulheres estão sempre

volitandoaoredordesacerdotes.

Umhomem deminha individualidade detesta curvar-se; no

entanto, fiz a gentileza de erguer um pedacinho de papel a

esvoaçaremderredordospésdomissionário.

Esta açãonão foi sequermerecedora deumagradecimento.

Realmente,nãopudedeixardeleraspalavrasescritasnopapel.

Formavamapenasumasentença:

"Quemtudoquertudoperde".

Bonita frase para sermão. Quem é, afinal, o jovem

Chichester?Parece tão puro como o leite. Mas as aparências

Page 112: Agatha christie - o homem do terno marrom

enganam.Meusecretáriomeinformaráarespeito.Pagettsempre

está aparde tudo.Comaresdignos sentei-meao ladodeMrs.

Blair, interrompendo otête-à-tête comRace.Notei que o clérigo

vinhananossadireção.

Convidei-aparajantarcomigonanoitedobaileàfantasia.De

vez em quando, Race procurava um jeito de ser incluído no

convite.

Terminado o almoço, a jovem Beddingfield veio sentar-se

conoscoparatomarcafé.Quantoàssuaspernas,minhaopinião

estáconfirmada.Sãorealmenteasmaisbonitasquecirculampelo

navio.Vouconvidá-latambémparaojantar.

Gostariamuitodesaberquebrincadeirademaugostoandou

Pagett fazendo em Florença. Todas as vezes que semenciona a

Itália,orapazficadesarvorado.Seeunãoestivessecientedasua

respeitabilidade,suspeitariadealgumamourinconfessável...

Imagino bem! Pois se até os homens mais conceituados...

Seriasobremaneiradivertidosefosseesseoproblema.

Pagettcomumsegredoculposo!Esplêndido!

Page 113: Agatha christie - o homem do terno marrom

13

Atardedecorreudeformaverdadeiramentesingular.Aúnica

fantasia que me serviu foi a de ursinho. Não me desgosta, na

Inglaterra, brincar de urso, à noite, com algumas meninas

bonitas;emregiõesequatoriais,entretanto,édesagradável.Muni-

medegrandedosedeespíritofoliãoetireioprimeiroprêmiode

"fantasiadebordo"—expressãoabsurdadesignativadefantasia

alugada por uma noite. Como todo mundo ignorava se fora

confeccionada ou não especialmente para mim, nada disso

importava.

Mrs.Blair compareceuem trajea rigor.Aparentemente está

deacordocomPagettsobreoassunto.OCoronelRaceseguiuo

exemploeAnneBeddingfieldidealizouumcostumedeciganaque

lheassentouàsmilmaravilhas.Meusecretário,pretextandodor

de cabeça, não apareceu. Convidei em seu lugar um rapaz de

fisionomia estranha chamado Reeves, membro destacado do

Partido Trabalhista Sul-Africano. Convém manter-me em boas

relações de amizade com esse homenzinho horroroso, a fim de

obter informações de que necessito. Ser-me-á interessante

conhecerospróseoscontrasrelativosàquestãodoRand.

Anoite estáquentíssima.AnneBeddingfield,meuparduas

vezes,simulouapreciarascontradanças.

ComMrs.Blairdanceiapenasumavez.Ela,porém,nãose

deuotrabalhodefingircoisanenhuma.Tiranizeiaindadiversas

senhoritas,cujaaparênciaatraentemechamouaatenção.

Àhoradaceiapedichampanha.OgarçomsugeriuClicquot

Page 114: Agatha christie - o homem do terno marrom

1911,omelhorvinhodaadegadebordo.Foiaúnicacoisaque

destravou a língua do Coronel Race. Adeus, taciturnidade! O

homem tornou-se realmente tagarela. Diverti-me com isso

durantealgumtempo,atéomomentoemqueverifiqueiserelee

não eu a alma da reunião. Ele chegou a ponto de caçoar

abertamentedomeudiário.

—Qualquerdiasuasindiscriçõesvirãoapúblico,Pedler.

—MeucaroRace—disse—,permita-mesugerirquenãosou

tão tolo quanto julga. Talvez cometa indiscrições, mas não as

consignoembrancoepreto.Apósminhamorteostestamenteiros

irão conhecerminha opinião sobre grande número de pessoas,

masduvidoquevalorizemoudepreciemaquetêmameurespeito.

Odiárioéútilcomoregistrodasidiossincrasiasdeoutrem—não

dasnossas.

— Não obstante, existe uma coisa chamada auto-revelação

inconsciente.

— Aos olhos do psicanalista, todas as coisas são torpes—

repliqueisentenciosamente.

—Devetertidoumavidainteressantíssima,CoronelRace—

disseMissBeddingfield,fitando-ocomolhosbrilhantes.

Asjovenssãoassim!Otelo,comsuasnarrativas,conquistou

Desdêmona.Ecomofoiconquistado?Ora!Pelojeitinhocomque

Desdêmonasabiaouvi-lo...

Pois bem, amoça prendeu a atenção deRace. Ele pôs-se a

contaraventurasdecaçadas.Homensquejácaçaramnumerosos

leõeslevamvantagemcolossalsobreosoutros.

Page 115: Agatha christie - o homem do terno marrom

Já era tempo de eu contar também histórias sobre esses

animaisbravios.Escolhiduascheiasdevivacidadeealegria.

— Por falar em leão— observei—, lembrei-me de um fato

muito emocionante.Umamigomeu foi caçarnaÁfricaoriental.

Uma noite, por motivo que não vem ao caso, saiu da tenda

quando,então,ouviuumrugidoabafado.Cheiodepavor,voltou-

se rapidamente e viu um leão pronto para dar o bote. A arma

estavanabarraca.Velozcomoopensamento,meuamigodesviou

ocorpoeoleãosaltou,indocairalgunspassosadiantedacabeça

do rapaz. Contrariado por haver errado o alvo, o animal soltou

um rugido e preparou-se para o segundo ataque. O moço

abaixou-senovamenteeoleãotornouaerraroalvo.Naterceira

investida, o caçador já se achava perto da entrada da tenda e,

num relance, pegou a arma. Quando voltou, de espingarda na

mão,oleãodesaparecera.Intrigadíssimo,arrastou-seatéofundo

dabarraca,nadireçãodeumapequenaclareira.Lá—éapura

verdade — estava o leão atarefadíssimo, a praticar pequeninos

saltos.

Anarrativafoirecebidacomrisoseaplausos.Então,bebiuns

golesdechampanha.

— Noutra ocasião — narrei —, o meu amigo passou por

experiênciamuitocuriosa.Viajavanumadessascarroçascomuns

nosuldaÁfrica,ansiosoporchegaraofimdaviagemantesdosol

a pino. Era ainda noite quando ordenou aos rapazinhos que

ajoujassemasmulas.Ainquietaçãodosanimaisdificultou-lhesa

tarefa;mas,umavezconcluída,puseram-seacaminho.Asmulas

voavam.Aosprimeirosraiosdosolverificaramque,ajoujadoperto

daroda,estavaumleão.

Page 116: Agatha christie - o homem do terno marrom

Essa história também foi recebida com explosão de

gargalhadas, mas acredito que o maior tributo partiu do meu

sisudoepálidoamigodoPartidoTrabalhista.

— Bom Deus! — exclamou aflito. — Quem desatrelou os

animais?

—PrecisoiràRodésia—disseMrs.Blair.—Depoisdassuas

narrativas,CoronelRace,tenhomesmodeir,apesardeaviagem

serhorrível:cincodiasdetrem!

—Vainomeucarroparticular—disse-lhegalantemente.

—Oh!comoosenhorégentil,SirEustace!Devoaceitar?

—Comonão!—exclamei em tom reprovador, e tomeimais

umataçadechampanha.

— Daqui a uma semana chegaremos à África do Sul _-

suspirouMrs.Blair.

— Ah! a África do Sul — exclamei em tom repassado de

sentimentalismo,epus-meacitarumtrechoderecentediscurso

que pronunciei no Instituto das Colônias. — O que possui a

África do Sul digno de mostrar ao mundo? O quê, realmente?

Frutas e propriedades rurais, lã e vime, rebanhos e couro cru,

ouroediamantes...

Falava rapidamente; se fizesse uma pausa, Reeves se

intrometeria com o intuito de informar que o couro cru era

desprovido de valor; freqüentemente, os animais ficavam presos

em arames farpados ou em qualquer outra coisa semelhante,

faziam danificações e sempre acabavam morrendo por maus-

Page 117: Agatha christie - o homem do terno marrom

tratosnasmãosdosmineirosdoRand.Nãoéporsercapitalista

queestariadispostoaouvir insultos.Aosomdapalavramágica

—diamantes—ainterrupçãoproveiodeoutrafonte.

—Diamantes!—exclamouMrs.Blairemêxtase.

— Diamantes! — suspirou Miss Beddingfield. Ambas

dirigiramapalavraaoCoronelRace.

—DecertojáesteveemKimberley,não?

Eu também lá estivera, mas nada disse. Crivaram Race de

perguntas. Como eram asminas? Fechavammesmo os nativos

emcompartimentos?Eassimpordiante.

O coronel respondeu, dando mostras de profundo

conhecimentodoassunto.Descreveuamaneiracomoalojavamos

nativos,comoefetuavamasrevistaseasváriasprecauçõesqueDe

Beerseraobrigadoatomar.

—Peloquevejo,épraticamenteimpossívelroubardiamantes,

não? — perguntou Mrs. Blair com entonação de grande

desapontamento.Atéparecia estar empreendendoa viagemcom

finalidadeexpressa.

—Nadaéimpossível,Mrs.Blair.Sempresepraticamroubos

—hajavistaocasodonegroqueescondeuapedrapreciosana

ferida.

—Sãomuitonumerosos?

— Um único, nesses últimos anos, pouco antes da guerra.

Você deve lembrar-se do fato, Pedler. Ocorreu durante a sua

estadanaÁfricadoSul.

Page 118: Agatha christie - o homem do terno marrom

Concordeicomumsinaldecabeça.

—Conte o caso— exclamouMissBeddingfield.—Oh! Por

favor!

Racesorriu.

—Muitobem,voucontá-lo.Creioquetodosjáouviramfalar

de Sir Laurence Eardsley, grande magnata da mineração sul-

africana. Era proprietário de minas de ouro, mas sua pessoa

participadahistóriaatravésdofilho.Talvezserecordemdeque,

pouco antes da Grande Guerra, correram rumores sobre a

existência de novamina, em Kimberley, oculta na base de um

rochedo perdido na jângal da Guiana Inglesa. Dois moços

exploradores— assim correu a notícia— de volta dessa região

sul-americanatraziamvaliosíssimacoleçãodediamantesbrutos,

alguns de tamanho apreciável. Já haviam sido descobertos

diamantes pequenos nos arredores dos rios Essequibo e

Mazaruni. Contudo, os dois exploradores, John Eardsley e o

amigoLucas,reivindicaramos.direitosdadescobertadefilõesde

grandes depósitos de carvão situados na nascente comum aos

doisrios.Osdiamantes,decoloridosvários,eramazuis,rosados,

amarelos,verdes,negros.Havia-ostambémdomaispurobranco.

Eardsley

e Lucas chegaram a Kimberley, local onde pretendiam

mandar examinar as gemas. Na mesma ocasião, efetuou-se

sensacional roubo de diamantes pertencentes a De Beers. As

pedras enviadas à Inglaterra seguiam reunidas em volumes

guardadosnointeriordegrandecofre-forte,cujaschaves—eram

duas—ficavamempoderdedoishomens.Aumterceirodavama

conheceracombinaçãodosegredodocofre.Osdiamanteseram

Page 119: Agatha christie - o homem do terno marrom

entreguesaobanco,queporsuavezosencaminhavaàInglaterra.

Cadapacotetemovaloraproximadodecemmillibrasesterlinas.

"Obancofoialertadopeloaspectoumpoucodiferentedoselo

delacre.Umavezabertosospacotes,verificaramquecontinham

torrõesdeaçúcar!

"Não sei exatamente como a suspeita recaiu sobre John

Eardsley.SurgiuàtonaasuavidaturbulentaemCambridgeeas

dívidassaldadaspelopai.Dequalquerforma,logoseespalhoua

notícia de que a história das terras--' diamantíferas sul-

americanasnãopassavadepurafantasia.

£JohnEardsleyfoipreso.Emseupoderencontraramparte

dosdiamantesdeDeBeers.

"O caso nunca foi a julgamento. Sir Laurence Eardsley

saldou a dívida e De Beers não instaurou processo. Nunca se

soube ao certo como o roubo foi cometido. Mas, ao ter

conhecimentodequeofilhoeraladrão,ovelhoficoudesesperado.

Logodepois,sofreuumacrisecardíaca.Decertomodo,Johnteve

umdestinoclemente.Alistou-seeseguiuparaofront;combateu

corajosamenteeporfimmorreunocampodebatalha,dirimindo

dessaformaamáculaquejaziasobreseunome.Cercadeummês

depois, Sir Laurence, não resistindo a uma terceira crise do

coração,faleceusemdeixartestamento.Aenormefortunapassou

aoseuparenteconsangüíneomaispróximo,aumhomemaquem

malconhecia."

Ocoronelfezumapausa.Explodiuumaverdadeirababelde

exclamações e perguntas. Miss Beddingfield, com a atenção

atraídaparaumdeterminadoponto,voltou-senacadeira,coma

Page 120: Agatha christie - o homem do terno marrom

respiraçãosuspensa.Entãovoltei-metambém.

Meu novo secretário, Rayburn, estava de pé à porta. Sob o

queimadodapelepercebia-seapalidezdeseurosto,comoalguém

na presença de um fantasma. Era evidente, a história o

emocionaraprofundamente.

De súbito, cônscio dos nossos olhares, virou-se num

movimentobruscoedesapareceu.

—Conhece?—indagouAnnedemaneiraabrupta.

— Émeu secretário também— expliquei.—Mr. Rayburn.

Estáadoentadoatéhoje.

A jovempôs-seabrincarcomumpedacinhodepãosobreo

prato.

—Hámuitoqueéseusecretário?

—Muito,não—respondicautelosamente.

Éinútilprecavermos-noscontraasmulheres.Quantomaior

a nossa resistência,mais forçam a situação. Anne Beddingfield

nãotitubeou.

—Háquantotempo?—inquiriuasperamente.

—Bem...hum...tomei-oameuserviçonasvésperasdeviajar.

Veiorecomendadoporumvelhoamigomeu.

Ela nada mais perguntou e, silenciosa, parecia meditar.

Voltei-me para o coronel, achando que era a minha vez de

Espertarinteressepelahistória.

Page 121: Agatha christie - o homem do terno marrom

—SabequeéoparentemaispróximodeSirLaurence,Race?

—Tinhadesaber—respondeucomumsorriso.—

Poissesoueu!

Page 122: Agatha christie - o homem do terno marrom

14

(ResumodanarrativadeAnne)

Nanoitedobaileàfantasia,tomeiadecisãodecontarosfatos

aalguémdeconfiança.Atéopresentemomento,agirasozinha,e

com issome deliciava. Inopinadamente, tudomudou.Duvidava

do próprio julgamento, e, pela primeira vez, crescia dentro de

mimestranhasensaçãodesolitudeedesolação.

Aindavestidadecigana,sentei-menabeiradobeliche,epus-

me a considerar a situação. Pensei, primeiro, no Coronel Race.

Simpatizava comigo e estava certa de que me trataria com

bondade. Ademais, não era tolo. Apesar disso, quanto mais

refletia/ maior era a incerteza. Possuidor de personalidade

dominadora, tomaria a si a resolução do caso.E omistério era

meu!Aindahaviaoutrasrazõesqueeunãodesejavareconhecer,

masquetornavamdesaconselhávelrecorreraoCoronelRace.

Meusegundopensamento foiparaMrs.Blair.Ela, também,

tratava-mecomgentileza.Nãomeiludiacomacrençadequeisso

tivesse alguma significação. Talvez fosse um capricho

momentâneo. Estava em mim interessá-la, pois tratava-se de

pessoa que experimentara amaior parte das sensações comuns

da vida. Propunha-me acrescentar-lhe uma realmente

extraordinária! E depois, gostava dela, dos seus modos

desenvoltos,dafaltadesentimentalismo,dasmaneiraslibertasde

qualquerindíciodeafetação.

Page 123: Agatha christie - o homem do terno marrom

Resolvi procurá-la imediatamente, onde quer que se

encontrasse. Àquela hora era provável que ainda não estivesse

recolhidaaoleito.

Comonãosoubesseonúmerodasuacabina,resolvirecorrer

aoauxíliodaminhaamiga,acamareiradanoite.

Toqueiacampainha.Apóspequenademora,atendeu-meum

homemqueme forneceu a informaçãodesejada.O camarote de

Mrs.Blaireraonúmero71.Desculpou-seportardarematender-

me,explicandoquetodasascabinasestavamaseucargo.

—Ondeestáacamareira?—perguntei.

—Deixamotrabalhoàsdezdanoite.

—Não...refiro-meàcamareiradanoite.

—Ascamareirasnãotrabalhamànoite,senhorita.

— Mas... uma camareira atendeu-me uma noite dessas...

maisoumenosàumahora.

— Acho que a senhorita estava sonhando. Nenhuma

camareiratrabalhadepoisdasdez.

Afastou-se, e eu lá fiquei ruminando esse bocado

desagradável de informação. Quem seria a mulher que viera à

minha cabina na noite de 22?O semblante tornou-se-memais

sisudo,àmedidaqueavaliavaasagacidadeeaaudáciadosmeus

antagonistas desconhecidos. Então, para adiantar o expediente,

saíembuscadeMrs.Blair.Batiàportadoseucamarote.

—Quemé?—ouvi-lheavoz.

Page 124: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Soueu,AnneBeddingfield.

—Oh!Entre,ciganinha.

Dentro da cabina divisei inúmeras peças de vestuário

espalhadas pelo recinto. Mrs. Blair vestia o mais encantador

quimono que eu já vira: alaranjado, ouro e negro, de causar

invejaaqualquermulher.

— Mrs. Blair — disse abruptamente —, queria contar-lhe

minhavida,seacharquenãoémuitotardeequenãoaaborreço.

—Nemumpouco.Detestoirparaacama—dissecomaquele

jeito encantador, o rosto aberto num sorriso. — Será

simplesmente adorável. Você é uma criatura originalíssima,

ciganinha.Quempensariaemirromperporaquiadentro,àuma

damadrugada,paranarrarahistóriadeSuavida?Ecomosoube

refrear durante semanasminha natural curiosidade! Não estou

habituadaaisso.Vaiserumanovidademuitoagradável.Sente-se

nosofáedesabafe.

Narreitodaahistória.Foi longa,poismelembravadetodos

os pormenores. Quando terminei, deu um profundo suspiro, e

nadadissedoqueeuesperava.Fitando-me,riubaixinhoefalou:

— Sabe, Anne, que você é uma garota original? Nunca

desmaiou?

—Desmaiar?—indagueiintrigada.

— Sim, desmaiar, desmaiar, desmaiar! Por partir sozinha,

comtãopoucodinheiro.Quevaifazerquandoseencontrar,sem

vintém,numpaísestrangeiro?

Page 125: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Não adianta preocupar-me antes da hora. Ainda possuo

muito dinheiro. As vinte e cinco libras, presente de Mrs.

Flemming, estão praticamente intactas. Ontem ganhei quinze

librasnojogo.Ora,tenhoriosdedinheiro.Quarentalibras!

—Riosdedinheiro!SantoDeus!—murmurouMrs.Blair.—

Eunãomearriscaria,Anne,esoumuitocorajosa,àminhamoda,

bem entendido. Não teria ânimo de viajar alegremente com

algumas libras no bolso, sem a menor idéia do que estaria

fazendoeparaondemedirigiria.

—Aíestáagraça—exclamei,inflamadadeentusiasmo.—É

oquedáaformidávelsensaçãodeaventura!

Fitou-me, abanou uma ou duas vezes a cabeça e depois

sorriu:

—Vocêéumafelizarda,Anne!Poucaspessoasnomundosão

comovocê.

—Sim—dissecom impaciência—,masoquepensadisso

tudo,Mrs.Blair?

—Foiacoisamaisemocionanteque jáouvi!Antesdemais

nada, não me chame de Mrs. Blair. Suzanne — é muito mais

simples.Combinado?

—Comonão,Suzanne.

—Vocêéumamor.Agora,ataquemosaquestão.Disseque

reconheceuo secretáriodeSirEustace?Nãome refiroaPagett,

aquelederosto longo,masaooutro,oferidoqueentrounasua

cabinapedindoguarida.

Page 126: Agatha christie - o homem do terno marrom

Fizsinalquesim.

—Então,sãodoisoselosque ligamSirEustaceaocaso.A

jovemfoiassassinadanacasadeleeseusecretárioapareceferido

à uma hora da madrugada. Não lanço suspeitas sobre Sir

Eustace,masnãopodesermeracoincidência.Existealguresum

pontode ligaçãoentreos fatos,mesmoqueelenãoestejaciente

disso.

—Ealémdomais,háocasoumtantoesquisitodacamareira

—continuoupensativa.—Quejeitotinha?

—Malpresteiatençãonela.Estavatãoagitada,osnervostão

tensos, que o aparecimento da camareira foi verdadeira ducha

fria.Mas...sim...creioqueafisionomiadelameéfamiliar.Talvez

ativessevistodepassagem.

—Acreditaqueaconhece—disseSuzanne.—Temcerteza

dequenãoeraumhomem?

—Eramuitoalta—admiti.

— Hummm. Não pode ser Sir Eustace nem Mr. Pagett.

Espere!

Pegando um pedaço de papel, pôs-se a desenhar

freneticamente.Comacabeçainclinadaparaumlado,examinou

odesenho.

— Muito parecido com o Reverendo Edward Chichester.

Vamos agora aos pormenores. — E passou-me o papel. — A

camareiraeraassim?

—Era—exclamei.—Suzanne,comovocêéinteligente!

Page 127: Agatha christie - o homem do terno marrom

Comlevegesto,desdenhoudocumprimento.

—SempredesconfieidessetalChichester.Lembra-sedeque

deixoucairaxícaradecafée ficoumortalmentepálidoquando,

outrodia,falamosdeCrippen?

—Eelequeriaportodaleificarcomacabina17!

—Sim,atéagoraos fatosseencadeiam.Masoquesignifica

tudo isso?O que tencionavam realmente fazer na cabina 17, à

uma da madrugada? Agredir o secretário? Não. Seria uma

incongruência marcarem determinada hora, num determinado

dia e lugar, para praticarem o crime. Absolutamente, não. Iam

reunir-seeorapazfoiapunhaladonomomentoemquesedirigia

à cabina. Mas com quem seria o encontro? Não era com você,

evidentemente.ComChichester,talvez,ouPagett.

— Pouco provável — objetei. — Os dois secretários podem

encontrar-seaqualquerhora.

Guardamossilênciodurantealguns instantes.Suzanneteve

outraidéia:

—Poderádar-seocasodehaveralgumacoisaescondidana

cabina?

—Parecemaisrazoável—concordei.—Issoexplicaporque

remexeram os meus guardados. Estou certa de que não havia

coisanenhumaescondida.

—Talvez,nanoiteanterior,omoçotivessecolocado,semque

vocêpercebesse,algumacoisanagaveta.

Page 128: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Euteriavisto.

—Quemsabeprocuravamoseupreciosopedaçodepapel?

—Podeser,masachocompletamentedesprovidodesentido.

Contémapenashoraedata—jápassadas.Suzanneconcordou.

—Émesmo.Nãofoiporcausadopapel.Jáqueestamosno

assunto,vocêotrouxe?Gostariadevê-lo.

Estavacomigo—eraaprovaA—,eestendi-oaSuzanne.Ela

examinou-o,franzindoassobrancelhas.

Depoisdo17háumponto.Eporquenãooutrodepoisdo1?

—Háumespaço—mencionei.

—Sim,existeumespaço,mas...

De repente, Suzanne levantou-se, continuando a analisá-lo,

muitopróximoda lâmpada.Reprimiuummovimento, comoera

deseufeitio.

—Anne,nãoéumponto!Opapelestárasgado!Assimcomo

umfilete,estávendo?Vocênãoreparoueguiou-sepelosespaços

—pelosespaços.

Levantei-me e, de pé junto dela, li os números damaneira

comoagoraseapresentavam.

—17122.

—Viu?—perguntouSuzanne.—Sãoosmesmos,masnão

sãoamesmacoisa.Ahoraeodianãomudaram—umahora,dia

22—,acabinaéa71!Aminhacabina,

Page 129: Agatha christie - o homem do terno marrom

Anne!

Entreolhamo-nos, encantadas com a descoberta, extasiadas

como se tivéssemos resolvido a chave do mistério. Com um

choque,caínarealidade.

—Mas,Suzanne,aconteceualgumacoisaaqui,àumahora

dodia22?

Elaficoudesapontada.

—Não...nãoaconteceu.

Ocorreu-meumaidéia.

—Estacabinanãoéasua,nãoémesmo,Suzanne?Quero

dizer,nãoéaquevocêreservouantesdepartir,não?

—Não,ocomissáriofezatroca.

— Será que a reservaram para alguém— alguém que não

embarcou?Nãoédifícildescobrir.

— Não é necessário descobrir, ciganinha — exclamou

Suzanne.—Eu jásei!Ocomissário falou-meaesse respeito.A

reserva estava em nome de Mrs. Grey — nome falso de Mme

Nadina, famosa bailarina russa, você sabe.Nunca se exibiu em

Londres, mas enlouqueceu toda Paris e fez verdadeiro sucesso

duranteotempodaguerra.Éatraentíssimaedizemterpéssima

reputação.Quandoocomissáriomeofereceuacabina,mostrava-

se realmente pesaroso pela ausência da dançarina. O Coronel

Racecontou-mehistóriasarespeitodela,históriassingularesque

circulam emParis.Dizem que é espiã; até hoje, porém, não há

Page 130: Agatha christie - o homem do terno marrom

provas. Deve ser esse omotivo que o levou a Paris. Narrou-me

diversos fatos interessantes. Havia um grupo organizado, de

origemnão-alemã.O chefe, a quem chamamdeCoronel, talvez

sejainglês,emboranuncachegassemaumaconclusãoquantoà

sua identidade. Está fora de dúvida ser ele o dirigente de uma

grandeorganizaçãodeescroquesinternacionaiscomfinalidadede

roubos, espionagem, assaltos. Sempre conseguiu fazer recair a

culpadosseusatosnumavítima inocente.Deve ter inteligência

diabólica! Supõem que a bailarina é um dos agentes do grupo.

Sim, Anne, estamos seguindo a pista certa. Nadina pertence à

espéciedemulheresquerealizamnegóciosexcusoscomoeste.O

encontromarcadoparaodia22ànoitedeveriarealizar-senesta

cabina.Ondeseráqueelaestá?Eporquenãoembarcou?

Qualrelâmpago,umpensamentobrotounomeucérebro.

—Elapretendiaembarcar—pronuncieibemdevagar.

—Então,porquenãoveio?

—Porqueestavamorta.Suzanne,amulherassassinadaem

MarloweraNadina!

Minhamenteretrocedeuàsalanuadacasavaga,eoutravez

apossou-sedemimasensaçãoindefiníveldeameaçaeperigo.Por

associaçãodeidéias,lembrei-medolápisrolandonosoalhoeda

descobertadorolodefilmes.Umrolodefilmes—foicomoosoar

denovatecla.Ondeouvirafalaremfilmes?Porqueosassociaraa

Mrs.Blair?

Desúbito,voeinadireçãodeSuzannee,agitadíssima,quase

asacudi.

Page 131: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Osfilmes!Aquelesqueatirarampelaescotilha!

Nãofoinodia22?

—Comosabequesãoosmesmos?Porquedevolvê-losassim,

nomeiodanoite?Sóumloucoteriatal idéia.Não.Elescontêm

umamensagem; foram retiradosda latinhaamarelapara serem

substituídosporalgumaoutracoisa.

—Estáguardada?

— Não estou certa. Deve estar aqui. Lembro-me de tê-la

colocadonaprateleiraaoladodobeliche.

Suzanneestendeuobraço,entregando-meacaixinha.

Eraumcilindro comum,próprio para acondicionamentode

filmesdestinadosausoemclimas tropicais.Peguei-ocommãos

trêmulas, e o coração a bater aceleradamente. Notei que o peso

eraacimadocomum.

Ainda a tremer, retirei o papel adesivo que se destina a

impediraentradadoar.Empurreiatampaenumerosaspedras

devidrobaçorolarampeloleito.

—Pedras—disseprofundamentedesapontada.

—Pedras?—bradouSuzanne.Otimbredasuavozalertou-

me.

—Pedras?Não,Anne,nãosãopedras!Sãodiamantes!

Page 132: Agatha christie - o homem do terno marrom

15

DIAMANTES!

Fascinada, fiquei a contemplar os fragmentos de vidro

espalhadospelobeliche.Pegueiumdeles,que,pelopeso,poderia

serconsideradocomoumcacodegarrafa.

—Temcerteza,Suzanne?

— Ora! Sem dúvida, minha cara. Já vi diamantes brutos

tantas vezes que não posso ter a menor dúvida. E perfeitos,

também,Anne;algunssãoraros.Devehaverumahistóriaatrás

disso.

—Aqueouvimosestanoite—exclamei.

—Vocêquerdizer...

— A história contada pelo Coronel Race. Não pode ser

coincidência.Haviaumafinalidade.

—Observarareação,vocêquerdizer?Aquiescicomumsinal

decabeça.

—AreaçãoqueprovocariaemSirEustace?

—Sim.

Nesse instante, uma dúvida assaltou-me.Era Sir Eustace a

pessoavisadaoueletentavaviremmeuauxílio?Recordei-meda

impressãoquemecausounaquelanoite,quandodeliberadamente

procurou"sondar-me".Porestaouaquelarazão,oCoronelRace

Page 133: Agatha christie - o homem do terno marrom

desconfiava.Aondequeriachegar?Qualaligaçãopossívelcomos

acontecimentos?

—QueméoCoronelRace?—indaguei.

— É difícil responder — disse Suzanne. — Figura muito

conhecidaentreoscaçadores,e,comovocêmesmaoouviudizer

esta noite, aparentado com Sir Laurence Eardsley. Conheci-o

agora.ViajafreqüentementeparaaÁfrica.Dizemquefazpartedo

serviço secreto, mas ignoro se é ou não verdade. Acho-omuito

misterioso.

— Como herdeiro de Sir Laurence Eardsley vai receber

grandefortuna,não?

—Anne,elenadaemdinheiro!Ótimocasamentoparavocê!

—Nemousotentar—disserindo.—Comvocêabordo...Oh!

Asmulherescasadas!

— Bem, nós levamos vantagem — murmurou Suzanne

complacentemente. — Mas todo mundo conhece minha inteira

devoçãoporClarence—meumarido, você sabe.E ele acha tão

tranqüilizadoreagradávelamarumaesposadedicada...

— Clarence deve sentir-se feliz em ter-se casado com uma

pessoacomovocê.

—Bem, habituei-me a viver com ele! Ademais,meumarido

vaifreqüentementeaoMinistériodasRelaçõesExteriores,colocao

monóculo edorme sentadonumavastapoltrona.Vamospassar

umcabogramapedindo-lhequenosconte tudoacercadeRace?

Adoro mandar cabogramas. E Clarence se aborrece muito com

Page 134: Agatha christie - o homem do terno marrom

isso.Sempredizquecartasresolvemoproblemadomesmojeito.

Nãoacredito quenos informenada, porque édiscretíssimo. Por

issoachodifícilvivereternamenteemsuacompanhia.Masvamos

continuarafalarsobreoseucasamento.Tenhocertezadequeo

CoronelRaceestáficandoapaixonado,Anne.Ésóvocêdarumas

olhadelas para ele, e pronto!Muitasmoças arranjamnoivo nas

viagens.

—Nãoqueromecasar.

— Não? — disse Suzanne. — Por quê? Acho preferível

continuarcasada,mesmoquesejacomClarence!

Nãoleveiemconsideraçãoasualeviandade.

—Oquemeinteressa—prosseguicomfirmeza—ésabero

queoCoronelRacetemavercomocaso.Estámetidonisso,sem

dúvida.

—Quecoincidênciatercontadoaquelahistória!

—Nãofoicoincidência—afirmeicategoricamente—,porque

nos observava com a maior atenção. Lembra-se? Conseguiram

reaveralguns diamantes, não todos. Talvez sejam os que estão

faltando...outalvez...

—Talvezoquê?

—Gostaria de saber— era uma resposta indireta— o que

aconteceu ao outro moço. Não me refiro a Eardsley, mas a —

comoéonomedele?—Lucas!

—Dequalquerforma,estamosdeslindandooassunto.Toda

essagenteestáatrásdosdiamantes.Decertoo"homemdoterno

Page 135: Agatha christie - o homem do terno marrom

marrom"matouNadinaparaapoderar-sedaspedras.

—Nãofoielequemamatou—disserepentinamente.

—Claroquefoi.Quemmaispoderiaser?

—Ignoro.Mastenhocertezadequenãofoiele.

—Comonão, se entrouna casa trêsminutosdepoisdela e

voltoubrancofeitocera...

—Porqueaencontroumorta.

—Maisninguémentrounacasa...

— Então é porque o assassino já estava lá ou entrou de

algumoutrojeito.Nãoénecessáriopassarpelochalé;bempodia

tersubidopelaparede.

Suzannefitou-meatentamente.

—O"homemdoternomarrom"—dissecismadora.—Quem

será?Dequalquermaneira, era idêntico ao "médico" da estação

dometrô.Tevetempodetiraramaquilagemeseguiramulheraté

Marlow. Ela e Carton iam encontrar-se lá; ambos tinham

autorizaçãoparaentrarnacasae,setomaramtantasprecauções

para dar aparência de naturalidade ao encontro, é porque

suspeitavam de que estavam sendo vigiados. Carton, não

obstante,não sabia que o "homem do terno marrom" o seguia

secretamente. Ao reconhecê-lo, recebeu tão forte impacto que,

desvairado,retrocedeuumpassoecaiunostrilhos.Tudoestátão

claro,nãoacha,Anne?

Nadarespondi.

Page 136: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Sim,acoisapassou-sedessaforma.Tirouopapeldobolso

docadávere,compressadeirembora,deixou-ocair.Pôs-seentão

aseguiramulheratéMarlow.Eoquefezquandosaiudacasa,

depois que assassinou a bailarina, ou, segundo sua opinião,

quandoaencontroumorta?Paraondefoi?

Continueimuda.

—Eagora...—disseSuzannepensativa.—Serápossívelque

o moço tenha induzido Sir Eustace Pedler a levá-lo como

secretário?SeriaaúnicamaneiradesairasalvodaInglaterrae

aomesmo tempo enganar a justiça. Como conseguiu subornar

SirEustace?Dáaimpressãodetercertaforçasobreele.

— Ou sobre Pagett — sugeri, independente da minha

vontade.

—ParecequevocênãogostadePagett,Anne.Étrabalhadore

muitocompetente.TodossabemosdissoeassimdizSirEustace.

Bem,continuandocomaminhahipótese:Rayburnéo "homem

do ternomarrom".Já tinha lidoopapel, quandoodeixoucair.

Comovocêmesma,iludidopeloquejulgavaumponto,dirigiu-se

àcabina17,àumahoradamadrugadadodia22.Areservado

camarote já tinha sido providenciada anteriormente por

intermédiodePagett.Duranteotrajeto,alguémapunhalou-o...

—Quem?—interrompi.

—Chichester.Tudocombina,vocêvê.Envieumcabogramaa

LordeNasby, Anne, dizendo que encontrou o "homemdo terno

marrom".Oprêmioéseu!

—Vocêpassouporcimadediversascoisas.

Page 137: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Dequecoisas?Rayburntemumacicatriz,bemsei—mas

isso é fácil de imitar. Ele e o assassino são damesma altura e

compleição.Eacabeça?Comoémesmoadescriçãocomquevocê

reduziuapóaScotlandYard?

Tremi.Suzanneeraculta, liamuito,maspediaoscéusque

nãocomeçasseaconversaremtermostécnicosdeantropologia.

— Dolicocéfala — disse despreocupadamente. Minha amiga

duvidava.

—Foiesseotermo?

— Sim. Cabeça de forma alongada, você sabe. Uma cabeça

cuja largura é setenta e cinco por cento menor do que o

comprimento—expliqueifacilmente.

Houve uma pausa. Começava a respirar livremente quando

Suzanne,derepente,disse:

—Eoopostoqualé?

—Oquequerdizercom...ooposto?

— Ora, deve haver um formato oposto. Como se chama a

cabeça cuja largura é setenta e cincopor centomaior do que o

comprimento?

—Braquicéfala—murmureiacontragosto.

—Issomesmo.Foioquepensei.

— É? Só se cometi um lapso. Quis dizer dolicocéfala —

afirmeicomsegurança.

Page 138: Agatha christie - o homem do terno marrom

Suzannefitava-mecomolharinquisidor.Depois,riu.

—Como vocêmente, ciganinha!Mas, seme contasse tudo,

ganharíamostempoeevitaríamosaborrecimentos.

—Nadatenhoparacontar—disseconstrangida.

—Nada?—perguntouSuzannedemaneiragentil.

—Creio que já contei tudo— respondi devagar.—Naome

envergonho disso.Não podemosnos envergonhar deuma coisa

que... nos aconteceu. Foi por causa do que ele fez. Achei-o

detestável,rudeeingrato,maseuocompreendi.Pareciaumcão

que viveu acorrentado, ou que recebeu maus-tratos, disposto a

morderaprimeirapessoaqueencontrasse.Deu-mea impressão

de ser muito agressivo e cheio de amargura. Não sei por que

pensotantonele,maséassim.Preocupa-mehorrivelmente.Sóde

vê-lo, fiquei transtornada. Estou apaixonada. Gostomuito dele.

SoucapazdepercorrerdepésnusaÁfricainteiraparaencontrá-

lo e conquistar o seu amor. Sou capaz demorrer por ele. Sou

capazdetrabalhar,demeescravizar,deroubar,atédemendigar,

tudoporcausadele!Pronto—agoravocêjásabe!Suzannefitou-

medemoradamente.

— Você não parece inglesa, ciganinha!— disse por fim.—

Nãoésentimental.Nuncaencontreialguémdeespíritotãoprático

eaomesmotempotãoapaixonado!Jamaispodereiamarassim—

graças a Deus. — No entanto... no entanto, eu a invejo,

ciganinha.Vocênãoécomoamaioriadaspessoas:possuigrande

capacidadedeamar.Éumabênçãoquenão se case como seu

doutorzinho.Nãomeparece,de jeitonenhum,o tipodepessoa

queaprecieterumexplosivoemcasa!Então,nadadecabograma

Page 139: Agatha christie - o homem do terno marrom

aLordeNasby?

Abaneiacabeça.

—Continuaacreditandonainocênciadorapaz?

—Acreditotambémqueosinocentesvãoparaaforca.

— Hummm! É verdade! Anne querida, você é capaz de

enfrentar os fatos, enfrente-os agora! Apesar de tudo o queme

contou,talvezsejaeleocriminoso.

—Não—afirmei.—Ele,não.

—Issoésentimentalismo.

—Não,nãoé.Admitoquefossecapazdematar.Admitoaté

quetenhaseguidoamulhercomessaidéiaemmente.Masnãoa

estrangularia com um pedacinho de corda preta. Se o fizesse,

seriacomasprópriasmãos.

Suzanneestremeceulevemente.Fitou-mecomosolhosquase

fechados.

— Hummm! Anne, estou principiando a entender por que

essemoçotantoaencantou!

Page 140: Agatha christie - o homem do terno marrom

16

Na manhã seguinte tive oportunidade de fazer perguntas

capciosas ao Coronel Race. Terminada a limpeza do convés,

andávamosdeumladoparaoutro.

—Comovaiaciganinhaestamanhã?Comsaudadesdeterra

firmeedacarroçacomabarraquinha?

Sacudiacabeçanegativamente.

—Agoraqueomarestátãocalmo,tenhoaimpressãodeque

gostariadeficarporaquieternamente.

—Queentusiasmo!

—Ora,amanhãestátãolinda!

Debruçamo-nos na grade. Reinava grande tranqüilidade. O

oceano parecia coberto de uma camada oleosa, e, na sua

superfície, as enormes áreas azuis, verde-claras, esmeralda,

púrpura e alaranjadas, lembravamum quadro cubista. Vez por

outra,passavaumpeixe-voador,qualrelâmpagoprateado.Oar,

úmido e quente, parecia viscoso,mas a brisa assemelhava-se a

umacarícia.

—Muitointeressanteahistóriaquenoscontouontemànoite

—disse,quebrandoosilêncio.

—Qual?

—Adosdiamantes.

Page 141: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Creio que todas as mulheres se interessam por esse

assunto.

—Éclaro!Por falarnisso,oqueaconteceuaooutrorapaz?

Eramdois.

—ALucas?Ah!Sim;ausenteocompanheiro,nãofoipossível

prosseguirnojulgamento.Saiulivre,também.

—Sabemdoseuparadeiro?

OCoronelRace olhava em frente, para omar.O semblante

inexpressivocomoumamáscaradava-me,contudo,a impressão

denãotergostadodasperguntas.

Respondeuprontamente:

—Seguiuparaaguerraeportou-secomoumbravo.Recebeu

umferimentoe,comotivessedesaparecido,foidadopormorto.

Fiqueisabendooquedesejava.Nadamaisperguntei.

Nuncacomonaquelemomentoquistantosaberatéqueponto

chegavamosconhecimentosdocoronelsobreocaso.Intrigava-me

opapelquedesempenhavanaquilotudo.

Ainda faltavaumacoisa: terumaconversacomocamareiro

danoite.Comumpequenoestímulofinanceiro,logoconseguique

destravassealíngua.

— A senhorita não ficou assustada, ficou? Parecia uma

brincadeirainocente.Algumaaposta,ououtracoisaassim,foio

quededuzi.

Page 142: Agatha christie - o homem do terno marrom

Aospoucos,foivomitandotudo.DuranteaviagemdaCidade

do Cabo à Inglaterra, um passageiro entregou-lhe um rolo de

filmes, instruindo-o para que no trajeto de volta o jogasse no

camarote 71, à uma da madrugada do dia 22 de janeiro. O

camarote deveria estar ocupado por uma senhora, e toda a

histórianão passava de uma simples aposta. Deduzi que o

empregado fora regiamente pago para realizar o negócio. Não

mencionaram o nome da senhora. Naturalmente, assim que

subiu ao navio, Mrs. Blair, por intermédio do comissário,

conseguiuacabina71.Aocamareironãopoderiaocorrertratar-

se de outra pessoa. Chamava-se Carton o passageiro que lhe

fizera o pedido sobre o filme, e o tipo descrito combinava

exatamentecomodohomemmortonaestaçãodometrô.

Em todo caso, parte do mistério estava desvendada. Os

diamantesconstituíam,pois,achavedasituação.

OsúltimosdiasnoKilmorden transcorreramrapidamente.À

medidaquenosaproximávamosdaCidadedoCabo,acheidebom

alvitreconsiderarcuidadosamentemeusplanosfuturosemanter

diversaspessoasemobservação:Mr.Chichester,SirEustaceeo

secretário e, por certo, o Coronel Race também! Como agir?

Chichester estava em primeiro lugar. Na verdade, embora com

relutância, estava a ponto de dispensar a vigilância sobre Sir

Eustace e Mr. Pagett, quando uma conversa oportuna me

despertounovasdúvidas.

Nãomeesqueceradeque,àsimplesmençãodeFlorença,Mr.

Pagettmostrava-seincompreensivelmenteemocionado.Naúltima

noiteabordo, estávamos todos sentadosno convés, quandoSir

Eustace dirigiu uma pergunta inteiramente inocente ao

secretário.Nãome lembrodoassunto;sóseiquese relacionava

Page 143: Agatha christie - o homem do terno marrom

comos atrasos verificadosnas estradas de ferro italianas.Notei

imediatamenteo constrangimentodeMr.Pagett, comodaoutra

vez.QuandoSirEustacetirouMrs.Blairparadançar,sentei-me

na cadeira vaga ao seu lado. Estava firmemente determinada a

chegaraoâmagodaquestão.

— Sempre tive vontade de ir a Itália — disse. —

PrincipalmenteaFlorença.Aproveitoubastanteaestadalá?

— Muitíssimo, Miss Beddingfield. Com licença, há a

correspondênciadeSirEustaceque...

Segurei-ocomfirmezapelamangadopaletó.

—Oh!Nãoépreciso fugir!—exclameinumtomafetadode

viúvarica.—TenhocertezadequeSirEustacenãogostariaque

medeixassesozinha,semninguémcomquemconversar.Parece

que não aprecia falar sobre Florença. Oh! Mr. Pagett, estou

começando a acreditar que o senhor guarda o segredo de um

crime!

Ainda com a mão a segurar-lhe o braço, senti seu corpo

estremecerrepentinamente.

—Não,MissBeddingfield!De formaalguma!—disseaflito.

—Teriaimensoprazer,mas,creia,háunscabogramas...

—Oh!Mr.Pagett,quedesculpa!VoucontaraSirEustace...

Não foi preciso prosseguir. Ou ira vez o rapaz estremeceu.

Davaaimpressãodeestarsobgrandetensãonervosa.

—Oquedesejasaber?

Page 144: Agatha christie - o homem do terno marrom

Otomdemártirresignadofez-mesorririnteriormente.

—Oh!Tudo!Osquadros,asoliveiras...Fizumapausa,meio

embaraçada.

—Osenhorfalaitaliano?

—Infelizmente,nemumapalavra,anãoser,éclaro,comos

porteirosdehotéis...humm...osguias...

—Ah!Muitobem—apressei-meemresponder.—Equalo

quadroquemaisapreciou?

—Oh!humm...aMadona...humm,Rafael,asenhoritasabe.

—VelhaFlorençaquerida—murmureiemtomsentimental.

— Tão pitoresca, às margens do Arno. Lindo rio. E o Duomo,

lembra-sedoDuomo?

—Éclaro,éclaro.

—Rio lindo também, não acha?— arrisquei.—Quase tão

beloquantooArno.

—Sim,semdúvida.

Prossegui, embalada pelo sucesso da cilada. Agora, já não

tinha dúvida. A cada palavra pronunciada, Mr. Pagett

atrapalhava-se.NuncaestiveraemFlorença.Masentãoonde?Na

própriaInglaterra,quandosurgiuomistériodaCasadoMoinho?

Decididarumgolpedeaudácia.

—Coisacuriosa!—exclamei.—Pensoquejáoviantes.Devo

estar enganada, porque o senhor estava em Florença nessa

Page 145: Agatha christie - o homem do terno marrom

ocasião.Mas,assimmesmo...

Observei-ofrancamente.Lançou-meumolhardecaçaacuada

epassoualínguapeloslábiossecos.

—Onde...humm...onde...

—Achoqueovi?—disseterminandoafrase.—EmMarlow.

ConheceMarlow?Ora!Toliceminha,poisseSirEustacetemuma

casalá!

Murmurando uma desculpa incoerente, minha vítima

levantou-seesaiuquaseacorrer.

Nessanoite,tomadadeardenteentusiasmo, invadiacabina

daminhaamiga.

— Veja, Suzanne — insisti ao terminar a história —, ele

estavanaInglaterra,emMarlow,naocasiãodocrime.Aindatem

certeza,agora,dequeo"homemdoternomarrom"éoculpado?

— De uma coisa estou certa — respondeu, com os olhos

brilhandoinesperadamente.

—Dequê?

—Dequeo"homemdoternomarrom"émaisbonitodoqueo

coitado do Pagett. Não, Anne, não fique zangada. Estava

querendo apenas amolar você. Brincadeira à parte, fez uma

descobertaimportantíssima.AtéestemomentoPagetttinhaálibi.

Agora,nãotemmais.

—Exatamente—disse.—Precisamosficardeolhonele.

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—Emtodos—murmuroutristemente.—Muitobem,quero

tratardeoutroassunto.Ésobrefinanças.Não,nãofaçacarafeia.

Seiquantoéorgulhosae independente,masouçaavozdobom

senso.Somossócias;nãolheofereceriaumrealsóporquegosto

de você, ou porque está desamparada; o que quero é emoção e

estou pronta a pagar por ela. Vamos seguir juntas, sem olhar

despesas. Antes de mais nada, você vai comigo, às minhas

expensas, para o Mount Nelson Hotel, e então planejaremos a

campanha. Discutimos, mas afinal concordei, embora ficasse

descontente.Desejavarealizaroplanoporminhaprópriaconta.

— Está decidido — disse Suzanne por fim. Levantando-se,

espreguiçou-seedissenumgrandebocejo:—Minhaeloqüência

exauriu-me. Vamos agora falar sobre as nossas vítimas. Mr.

Chichester vai para Durban. Sir Eustace para oMount Nelson

Hotel, na Cidade do Cabo, e depois para a Rodésia, em vagão

reservadodaestradade ferro.Ontemànoite,nummomentode

expansão,depoisdaquartataçadechampanha,convidou-meair

emsuacompanhia.Pensoutalvezqueeunãoaceitasse;mas,se

eucontinuarfirme,nãopoderáretirarooferecimento.

—Ótimo!—concordei.—VigieSirEustaceePagettedeixe

Chichesterporminhaconta.EoCoronelRace?

Suzannefitou-medemaneiraestranha.

—Anne,nãoépossívelquesuspeite...

— Como não! Suspeito de todos. Estou disposta a vigiar

qualquerpessoa,pormenosvisadaqueseja.

—OCoronelRacetambémvaiparaaRodésia—continuou

Suzanne, pensativa. — Se conseguirmos que Sir Eustace o

Page 147: Agatha christie - o homem do terno marrom

convide...

—Vocêécapazdisso;consegueoquequer.

—Adorolisonjas—ronronouSuzanne.

Quando nos separamos, ficou combinado que Suzanne

usaria de toda a habilidade para o bom resultado dos nossos

intentos.

Eu estava tão agitada, que preferi não ir deitar-me

imediatamente.Eraaúltimanoiteabordo.Nodiaseguinte,bem

cedinho,chegaríamosàbaíadeTable.

Corriparaoconvés.Sopravaumabrisafresca,agradável,eo

navio oscilava no mar levemente encapelado. O tombadilho

desertoestavaàsescuras.Passavadameia-noite.

Curvada sobre a grade, pus-me a observar o rastro

fosforescente de espuma. Deslizávamos velozmente nas águas

negras,emdireçãoàÁfrica.Sentiacomosefosseoúnicosernum

mundo maravilhoso. Fiquei imóvel, envolta em estranha paz,

perdidaemsonhos,despercebidadoperpassardashoras.

Inopinadamente, estranha sensação alertou-me contra um

possívelperigo.Nadaouvira,masinstintivamenteolheiaoredor.

Protegidopelaescuridão,umvultoarrastava-seportrásdemim.

Nomomentoemquemevoltavaparaoseulado,deuumsaltoe,

apertando-me o pescoço, sufocava-me os gritos. Lutei

desesperadamente, mas debalde. Meio asfixiada, mordia e

arranhavameu antagonista— não fosse eumulher! Com uma

das mãos o homem continuava a apertar-me o pescoço e, com

isso,levavadesvantagem.Semetivesseapanhadodistraída,ser-

Page 148: Agatha christie - o homem do terno marrom

lhe-iafacílimo,numúnicoesúbitomovimento,atirar-menomar.

Ostubarõesseencarregariamdoresto.

Aos poucos, as forças me abandonavam. O assaltante

despendia todas as energias na luta. Foi quando outro vulto,

correndocomospésdeveludo,juntou-seanós.Comumúnico

soco,estendeuoadversárionotombadilho.Atremer,recostei-me

nagrade,dominadaporumasensaçãodemal-estar.

Comrápidomovimento,meusalvadorvoltou-separamim:

—Estáferida!

Otomríspidoeraumaameaçacontraquemousaraofender-

me.Reconheci-oantesdeouvir-lheavoz.Eraomoço—ohomem

dacicatriz.

Nesse instante, o agressor levantou-se rápido como um

relâmpago e disparou pelo convés. Soltando uma imprecação,

Rayburnsaiuapersegui-lo.

Detesto não participar dos acontecimentos, por isso fui

tambémnoencalçodofugitivo.Seguimospeloconvés,aestibordo

donavio.Pertodaportadosalão,jazia,todoencurvado,ocorpo

inertedohomem.Rayburninclinou-sesobreele.

—Deuoutrosoco?—pergunteicomarespiraçãosuspensa.

—Nãofoinecessário—respondeusorridente.—Encontrei-o

assim. Ou não conseguiu abrir a porta ou então ^ pura

simulação.Logoveremos.Evamostambémsaberquemé.

Aproximei-me, com o coração a bater, descompassado.

Percebi, imediatamente, que o assaltante era mais alto do que

Page 149: Agatha christie - o homem do terno marrom

Chichester.Omissionário,decompleiçãodelicada,seriacapazde,

numa situação premente, fazer uso da faca. De resto, em suas

mãosnuas,depoucolheserviria.

Rayburn acendeu um fósforo. Ambos soltamos uma

exclamaçãodesurpresa.OhomemeraGuyPagett.

Rayburnmostrava-seestupefatocomadescoberta.

—Pagett—murmurou.—BomDeus,éPagett!Senti-meem

situaçãodesuperioridade.

—Estáadmirado?

—Estou—respondeu lentamente.—Jamais suspeitei...—

Mirou-me atentamente. — E a senhorita não está? Conseguiu

reconhecê-lonomomentoemqueaatacou?

—Não,emabsoluto.Apesardisso,nãoestoutãosurpresa.

Orapazencarou-mecomdesconfiança.

— Pergunto-me a mimmesmo que proveito vai tirar disso.

Sabealgumacoisaarespeito?

Sorri.

—Bastante,Mr....humm...Lucas!

Franzi os sobrolhos, dada a força com que me apertou o

braço.

—Ondedescobriuessenome?—perguntourudemente.

—Poisnãoéassimquesechama?—dissecomdoçura.—Ou

Page 150: Agatha christie - o homem do terno marrom

prefereoapelidodeo"homemdoternomarrom"?

Minhas palavras confundiram-no; retirando a mão do meu

braço,afastou-seumpouco.

—Moçaoufeiticeira?—dissetomandofôlego.

—Amiga—eaproximei-medele.—Ofereci-lheminhaajuda

umavezeofereço-anovamente.Aceita?

Diantedarespostaviolenta,recuei:

— Nada quero das mulheres. Para o inferno as boas

intenções.

Comodaoutravez,comeceiaimpacientar-me.

—Talvez—disse—osenhornãoavalieatéquepontoestá

emmeupoder.Aumapalavraminhaocapitão...

—Poisentãodigaessapalavra—falouemtomzombeteiro.

E, adiantando um passo:— Embora esteja imaginando coisas,

minhacara,nãoimaginouqueestáemmeupodernesteminuto?

Possoagarrá-lapelopescoço,assim.—Numrápidogesto,aação

seguiu-seàspalavras.Senti

Suasmãosaoredordopescoço,acomprimi-la—massempre

deleve.—Assim,easfixiá-laaospoucos!Depois,commaissorte

do que este nosso amigo inconsciente, fácil seria atirar o seu

cadávernomar.Eagora,quemediz?

Minharespostafoiumarisada,emborasoubessequeoperigo

era real. Naquele instante, Rayburn odiou-me. Eu adorava o

perigo,damesmaformacomoadoreiocontatodassuasmãosem

Page 151: Agatha christie - o homem do terno marrom

tornodomeupescoço.Jamais trocariaessemomentoporoutro

qualquerdaminhavida.

Deuumarisadinhaelibertou-me.

—Comosechama?—inquiriuabruptamente.

—AnneBeddingfield.

—Nadaaamedronta,AnneBeddingfield?

— Oh! Sim— respondi, adotando um tom indiferente que

estava longe de sentir. — Vespas, mulheres sarcásticas,

adolescentes,baratasechefesdebalconistas.

Riu omesmo riso curto de antes.Emseguida, comos pés,

moveuocorpoinanimadodePagett.

—Quefazercomesterebotalho?Jogarnomar?—perguntou

despreocupado.

—Comoquiser—respondicomamesmacalma.

— - Admiro seus instintos sanguinários,MissBeddingfield.

Bem,elevaiserecobraraospoucos.

— Pelo que vejo, é incapaz de cometer um segundo

assassinato—dissecomvozmacia.

—Segundoassassinato?Fitou-mesinceramenteintrigado.

—AmulherdeMarlow—relembrei,observandoatentamente

oresultadodafrase.

Horrenda expressão perpassou-lhe pela fisionomia. Parecia

Page 152: Agatha christie - o homem do terno marrom

ter-seesquecidodaminhapresença.

—Podiatê-lamatado—disse.—Àsvezes,chegoaacreditar

quedesejavamatá-la...

Invadiu-meviolentaondadeódiopelamulhermorta.Naquele

instante,eu é que me sentia com forças de matá-la, caso

aparecessenaminhafrente...Houvetempoemqueeleaamara...

comcerteza...comcerteza...Porissoficaratãotranstornado!

Recuperandoosangue-frio,falei:

—Creioquenadamaistemosparadizer,anãoserumboa-

noite.

—Boanoiteeatéavista,MissBeddingfield.

—Aurevoir,Mr.Lucas.

Sobressaltou-se novamente ao ouvir o nome. Aproximando-

se,disse:

—Porquemefalouassim—istoé,aurevoir?

—Porquealgumacoisamedizqueaindanosencontraremos.

—Não,sedependerdemim.

Otomenfáticonãomeofendeu.Pelocontrário,encheu-mede

íntimaalegria.Nãosoutãotola,afinal.

— Apesar disso — falei em tom grave —, creio que nos

encontraremos.

—Porquê?

Page 153: Agatha christie - o homem do terno marrom

Sacudi a cabeça, incapaz de explicar o que me levara a

pronunciaraquelaspalavras.

— Não quero vê-la nuncamais— confirmou num impulso

violento.

A frase era rude, confesso,mas, rindo baixinho, desapareci

naescuridão.

Ouviseuspassosseguindo-me,depoisfoiosilêncio,eentãoo

som de uma palavra ficou a flutuar na escada. "Feiticeira",

talvez...

Page 154: Agatha christie - o homem do terno marrom

17

(FragmentosdodiáriodeSirEustacePedler)

MountNelsonHotel,CidadedoCabo.

Foiumaverdadeira satisfaçãoparamimdeixar oKilmorden.

Durante a viagem, tive a impressão de estar envolvido numa

tramadeintrigas.Emresumo:naúltimanoite,GuyPagettbebeu

e andou metido em briga. Que pensar de um homem que me

aparececomumapelotadotamanhodeumovonoladodireitoda

cabeçaeapálpebramatizadadetodasascoresdoarco-íris?

Pagett,comonãopodiadeixardeser,continuamisterioso,e

quer me fazer crer que os acontecimentos da véspera sejam o

resultado do seu devotamento aos meus interesses. Contou-me

umahistóriamuitovaga, entremeadadedivagações.Custou-me

entendê-la.

Primeiro, encontrou-se com um homem cuja atitude lhe

despertou desconfiança — estou transcrevendo suas próprias

palavras; com certeza extraiu-as diretamente das páginas de

algumcontosobreespionagemalemã.Nemaomenossabeoque

significa "umhomemdecujaatitudedesconfiou".Foi oque lhe

disse.

—Andavasorrateiramente,altashorasdanoite,SirEustace.

—Evocê,oqueestavafazendo?Porquenãofoiparaacama

dormircomoumbomcristão?—indaguei,irritado.

Page 155: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Estava providenciando o código dos cabogramas para o

senhor,SirEustace,edepoisdatilografeiodiário.

—Eentão?

—Penseiemdarumgiroantesdemerecolher,SirEustace.

Ohomemestavapassandonocorredor justamenteemfrenteda

suacabina.Peloseuolhar,julgueiquetinhaacontecidoalguma

coisa.Saiufurtivamentepelaescadariadosalão,eeuatrásdele.

—MeucaroPagett—falei—,qualarazãoporqueocoitado

dorapaznãopoderiairaoconvés?Tantaspessoasdormemlá—e

demaneiramuitodesconfortável.Semprepenseiassim.Àscinco

emponto, osmarinheiros procedemà limpeza do tombadilho e

borrifam-nascomágua.—Estremeciàsimplesidéiadequeisso

meacontecesse.—Dequalquermaneira—prossegui—,sevocê

importunou um pobre-diabo que sofre de insônia, não admira

quelhedesseumsocobemdado.

Pagettcontinuavapaciente.

—Sequiserterabondadedemeouvir,SirEustace...Percebi

queohomemestavarondandosuacabina.Eoqueequetinhade

fazer por lá? No corredor só há duas cabinas: a sua e a do

CoronelRace.

—Race—afirmei,acendendocuidadosamenteumcigarro—

sabetomarcontadesiprópriosemseuauxílio,Pagett.—Depois,

acrescenteicomoconclusão:—Eutambém.

Pagett aproximou-se, fungando, como sói acontecer quando

vaicontarumsegredo.

Page 156: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Veja,SirEustace,imaginei—eagoratenhocertezadeque

éRayburn.

—Rayburn?

—Sim,SirEustace.Abaneiacabeça.

—Rayburn tem suficiente bom senso para nãome acordar

duranteanoite.

—Éverdade,SirEustace.Creioque foi encontrar-secomo

CoronelRace.Encontrosecreto,parareceberinstruções!

—Nãoassobienomeuouvido,Pagett—falei,afastando-me

um pouco —, e veja se controla a respiração. A idéia é

simplesmente absurda. Por quemarcar encontro altashorasda

noite?Setiveremalgumacoisaquedizer,nadamaisfácildoque

conversar perfeitamente à vontade à hora em que servem o

consommé.

Pagettnãoconcordou.

— Alguma coisa estava acontecendo ontem à noite, Sir

Eustace—insistiu.—PorqueRayburnmeassaltoudemaneira

tãobrutal?

—TemcertezadequefoiRayburn?

Pagett parecia convencido do fato. Foi a única parte da

históriaemquesemostroupositivo.

—Tudoissoémuitoesquisito—continuou.—Emprimeiro

lugar,quefimlevouRayburn?

Page 157: Agatha christie - o homem do terno marrom

É verdade; desde o desembarquenão lhe pusemos os olhos

em cima.Nãonos acompanhou aohotel,masnão acredito que

estejacommedodePagett.

Essa história me aborrece muitíssimo. Um dos meus

secretários some como por encanto e o outro mais parece um

desconceituado pugilista profissional. Nessas condições, é

impossível levá-lo comigo, a não ser que queira passar por

palhaço na Cidade do Cabo. Hoje à tarde, tenho encontro

marcadopara entregar obillet-doux do velhoMilray,masPagett

não vai comigo. Para o diabo com essa mania de espreitar os

outros!

Decididamente, estou de mau humor. Tive um desjejum

venenoso em companhia de pessoas venenosas. Garçonetes

holandesas de grossos tornozelos levaram meia hora para me

servir um péssimo pedaço de peixe. Além disso, essa farsa de

submeter-me aomaldito examemédico! Ficar plantado às cinco

damadrugadademãosparaoaltocansa-mehorrivelmente.

Maistarde.

Deu-seum fatomuito grave. Fui levar a carta deMilray ao

primeiro-ministro. O envelope lacrado parecia intacto, mas o

conteúdoeraumafolhaembranco!

Meti-me numa confusão dos diabos. Não sei como, mas

Milray, esse cretino choramingas, sempre consegue enredar-me

emcasoscomplicados.

Pagettépéssimacompanhianosmomentosemquenecessito

Page 158: Agatha christie - o homem do terno marrom

de conforto. Manifesta certa satisfação sombria que me

enlouquece. Ainda mais, aproveitou-se da minha perturbação

para deixar a mala de papéis inteiramente a meu cargo. Se o

rapaznãotomarcuidado,opróximoenterroseráodele.

Porfim,tivedeouvi-lo.

— Quem sabe, Sir Eustace, Rayburn, sem ser pressentido,

escutouumaouduaspalavrinhasdaconversaquemanteve,na

rua, com Mr. Milray. Lembre-se, o senhor não recebeu

autorizaçãoescritadeMr.Milray.AceitouRayburnpeloqueele

própriolhedisse.

— Então, julga Rayburn um escroque? — disse

pausadamente.

Pagettconfirmou.Ignoroatéquepontooressentimentopelo

olho preto influenciava a sua opinião sobreRayburn. Falou-me

longamente contra o companheiro. Não pensei em tomar

providências.Ohomemaquemfazemdetolonãoseapressaem

espalharofatoaosquatroventos.

Não obstante o recente infortúnio, Pagett, com a energia

costumeira, estava pronto a tomar medidas drásticas. A seu

modo, evidentemente. Pôs em alvoroço o posto policial, enviou

inúmeros telegramas e convidou uma verdadeira multidão de

militares ingleses eholandesespara tomaruísque comsoda, às

minhasexpensas.

Nessa tarde chegou a resposta de Milray. Nada sabia a

respeito do meu secretário! Afinal, restava um pequenino

conforto.

Page 159: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Apesar dos pesares — disse a Pagett —, não o

envenenaram.Apenassofreumaisumadassuascriseshepáticas.

Orapazfranziuossobrolhos.Foiaminhaúnicadesforra.

Maistarde.

Pagettestánoseuelemento.AgoraqueRayburnnadamaisé

doqueo"homemdoternomarrom",océrebrodomeusecretário

cintila, repleto de idéias brilhantes. Acho que ele está com a

razão, como sempre. Essa confusão está se tornando

desagradável. Quanto antes seguir para a Rodésia, melhor. Já

comuniqueiaPagettqueelenãovaicomigo.

—Escute,meucarorapaz,asuapresençaénecessáriaaqui.

A qualquer momento, poderá ser chamado para identificar

Rayburn. Além disso, na qualidade de membro do Parlamento

inglês, tenhode zelarpelaminhaprópriadignidade.Nãoposso

apresentar-me em público acompanhado de um secretário cuja

aparência dá a impressão de ter-se imiscuído em briga de

bêbados.

Pagett fitou-me com ar sisudo. Por ser tão respeitável, seu

aspectocausa-lhetristezaeaflição.

—Maseacorrespondênciaeasanotaçõesparaosdiscursos,

SirEustace?

—Eumearranjo—respondidespreocupadamente.

— O vagão reservado segue no trem das onze, amanhã,

quarta-feira — continuou Pagett. — Já tomei todas as

providências.Mrs.Blairvailevarempregada.

Page 160: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Mrs.Blair?—murmurei,comindiferença.

—Elamedissequeésuaconvidada.

Eraverdade,agoramelembrava.Nanoitedobaileàfantasia,

convidei-acominsistência.Nuncapenseiqueaceitasse.Apesarde

encantadora,nãoestoucertoserealmentequeroacompanhiade

Mrs.Blairdurantetodootrajetoda

viagem à Rodésia. As mulheres exigem tanta atenção da

nossaparte!E,alémdisso,sãodifíceiscomoodiabo!

— Convidei mais alguém? — indaguei nervoso. — Num

momentodeexpansividade,fazemoscadacoisa!

—Mrs.BlairdeuaentenderqueoCoronelRace tambémé

seuconvidado.

Senti-mesimplesmentearrasado.

— Devia estar embriagado quando convidei Race, muito

embriagadomesmo.Sigameuconselho,Pagett,equeoseuolho

negrolhesirvadeaviso;nãovácairnabebedeiraoutravez.

—Comoédeseuconhecimento,souabstêmio,SirEustace.

—Emvistadasuafraqueza,émaisprudentequefaçavotode

abstençãodetodasasbebidas.Nãoconvideimaisninguém,não,

Pagett?

—Não,queeusaiba.Deiumsuspirodealívio.

— E Miss Beddingfield? — disse pensativo. — Quer ir à

Rodésia desenterrar ossos, creio. Estou disposto a oferecer-lhe

Page 161: Agatha christie - o homem do terno marrom

trabalho, temporariamente, como minha secretária. Ela me

contouqueédatilografa.

Surpreendeu-meaveemênciacomquePagettseopôsàidéia.

OrapaznãogostadeAnneBeddingfield.Desdeanoitedobaile,

demonstraemoçãoincontrolávelquandosefalanamoça.

Vou convidá-la, uma vez que isso o aborrece. Jámencionei

antesasbelíssimaspernasdajovem.

Page 162: Agatha christie - o homem do terno marrom

18

(ResumodanarrativadeAnne)

Por mais que viva, jamais poderei esquecer-me da primeira

vezquediviseiomonteTable.Levantei-medemadrugadaesubi

ao tombadilho, diretamente para os barcos. Sabia estar

cometendoverdadeirocrime,masdecidifazeralgumacoisacomo

propósito de minorar a minha solidão. Estávamos justamente

entrando na baía de Table. Nuvens que mais pareciam alvos

carneirinhospairavamacimadamontanha,enasencostas,atéa

orladomar,aninhava-seacidadeadormecida,cordeouro,como

queenfeitiçadapelosraiosdesol.

Prendiarespiração,presadessesentimentoestranhoquenos

domina quando deparamos com o supremamente belo. Nãome

exprimocomfacilidade,massabiaterencontrado—duranteum

momento fugaz, é verdade — aquilo por que ansiava desde a

minha partida de Little Hampsley. Era algo novo, que

ultrapassavaaminhaimaginação,saciandoomeuardentedesejo

deromanceeaventura.

Em completo silêncio — assim me parecia —, oKilmorden

deslizava,aproximando-sedabaía.Eracomonumsonhoe,como

todos os sonhadores, não podia abandonar a irrealidade. Nós,

pobressereshumanos,nadaqueremosperder.

—ÉaÁfricadoSul—repetiaininterruptamente.—Áfricado

Sul, África do Sul. Você está vendo omundo. Istoé o mundo.

Page 163: Agatha christie - o homem do terno marrom

Você está vendo omundo. Pensenisso, AnneBeddingfield, sua

cabeçaoca.Vocêestádiantedomundo!

Julguei que o convés ia ser só meu, mas logo notei uma

silhueta debruçadana grade, absorta tambémna contemplação

da rápida aproximação da cidade. Antes que voltasse a cabeça,

sabiadequemsetratava.Natranqüilamanhãensolarada,acena

danoiteanteriorpareciairrealemelodramática.Quepensariade

mim? Senti-me enrubescer quando me lembrei do que lhe

dissera.Contudo,nãofora—oufora—pormal?

Resolutamente, virei a cabeçaparaooutro ladoepus-mea

contemplar amontanha.SeRayburndesejava ficar só,não iria

perturbá-lo,atraindoaatençãoparaaminhapresença.

Comprofundasurpresa,ouvipassoslevesportrásdemim,e

emseguidaumavozalegrechamou-me:

—MissBeddingfield.Voltei-me.

— Quero pedir desculpas. Procedi como um verdadeiro

selvagem,ontemànoite.

—Ontem,foi...foiumanoitediferente—dissedepressa.

A observação não era dasmais brilhantes,mas foi a única

quemeocorreu.

—Quermeperdoar?

Tomouamãoquelheestendiemsilêncio.

—Querodizermaisumacoisa.—Suaexpressão tornou-se

maisgrave.—MissBeddingfield, talveznãosaibaquesemeteu

Page 164: Agatha christie - o homem do terno marrom

numnegóciomuitoperigoso.

—Tambémchegueiaessaconclusão.

— Não creio. Não é possível saber, por isso quero avisá-la.

Abandone a idéia, mesmo porque não lhe diz respeito. Não

permita que a curiosidade a leve a intrometer-se em negócios

alheios. Por favor,não se zangueoutra vez.Estou falandopara

seubem.Seiquenãofazidéiadoquepodeacontecer;nadadetém

esseshomens.Sãoimplacáveis.Jácorreuperigo—lembre-sede

ontemànoite. Imaginamque a senhorita sabe alguma coisa.A

única saída é persuadi-los de que estão enganados. Mas tome

cuidado, semprede atalaia contra o perigo, e se algumdia cair

nas mãos deles, não force a situação; aja com inteligência —

conteaverdade.Repito:éaúnicaesperançadesalvar-se.

—Estou ficando arrepiadademedo,Mr.Rayburn—disse.

Principiava a acreditar no que me dizia. — Por que se dá o

trabalhodeavisar-me?

Levou alguns instantes para responder; depois, falou

baixinho:

—Talvezsejaaúltimacoisaqueposso fazerpelasenhorita.

Quando descer em terra, estarei a salvo; mas não sei se

conseguirei...

—Oquê?—exclamei.

—Bemvê,temonãosejaaúnicapessoaabordoasaberque

souo"homemdoternomarrom".

—Seestápensandoquecontei...—disseemtomdeprotesto.

Page 165: Agatha christie - o homem do terno marrom

Rayburntranqüilizou-mecomumsorriso.

—Nãoestouduvidando,MissBeddingfield.Sealgumavezo

disse,foimentira.Abordoexisteumhomemquesabe.Seresolver

falar, estou perdido. Em todo caso, estou levando a coisa na

esportiva;quemsabeelenãovenhaafalar.

—Porquê?

—Porqueépessoaqueprefereagirsozinha.Quandoeucair

nas garras da polícia, não mais poderei ser-lhe útil. Se

conseguissemelivrar!Bem,dentrodepoucotemposaberei.

Riucomescárnio,masnoteiaexpressãoduradeseurosto.

Seapostavacomodestino,erabomjogador.Eradosquesabem

perdereaindasorriem.

— De qualquer maneira — falou —, não acredito que nos

encontremosoutravez.

—Não—confirmeipausadamente.—Nãoacredito.

—Então...adeus.

—Adeus.

Durantealguns instantes,seguroucomforçaaminhamão,

osolhosclaros,tãosingulares,comoquealançarchispasdentro

dos meus; depois, voltando-se abruptamente, afastou-se. E eu

fiquei a ouvir o ruído dos passos soando e tornando a soar no

tombadilho. Jamais poderia esquecê-lo. Passos... que deixavam

umvazionaminhavida.

Confesso francamente, não pude aproveitar as duas horas

Page 166: Agatha christie - o homem do terno marrom

seguintes. Só depois de chegar ao cais e de preencher todas as

ridículas formalidades exigidas pela burocracia, respirei

livremente.Comonãoefetuassemnenhumaprisão,descobrique

odiaestavamaravilhoso,equesentiaumafomecanina.Fuiao

encontrodeSuzanne,porqueíamospernoitarnomesmohotel.O

vapor, com destino a Port Elizabeth e Durban, só partiria na

manhã seguinte. Tomamos um táxi e nos dirigimos ao Mount

Nelson.

Tudomepareciacelestial.Osol,oar,as flores!Lembrei-me

deLittleHampsley,emjaneiro,deruasenlameadaseachuvaque

"comcerteza ia cair". Julguei-medignade felicitações. Suzanne

não participava dos meus entusiasmos. Viajara muito, sem

dúvida. Além disso, era incapaz de animar-se antes do café da

manhã. Lançou-me verdadeira ducha fria diantedo meu

entusiasmoporumagigantescatrepadeiracobertadefloresazuis.

A propósito, quero deixar bem claro que não vou discorrer

sobreaÁfricadoSul.Nadade cor local—sabemosbemoque

significa:meia dúzia de palavras em itálico por página.É coisa

quemuito admiro,mas não posso imitar. Quando falamos das

ilhasdosmaresdo sul, referimo-nos imediatamente abêche-de-

mer. Não sei o que quer dizerbêche-de-mer, nunca soube e

provavelmentenuncasaberei.Umaouduasvezes,chegueia ter

umaidéia,masestavaerrada.NaÁfricadoSul,falamosdestoep,

mas isso eu sei o que significa: é uma coisa redonda, que se

coloca ao redor das casas e serve de sala de estar. Em várias

outras partes do mundo recebe outras denominações: varanda,

piazza eha-ha. Existe tambémomamão. Já tive ocasião de ler

sobreesse fruto,por issonãotivedúvidaquandoopuseramna

minhafrente,nahoradocafé.Aprimeiraimpressãofoiadeum

Page 167: Agatha christie - o homem do terno marrom

melão passado. Experimentei-o novamente, depois dos

esclarecimentos prestados pela garçonete holandesa, que me

convenceu a comê-lo comumas gotas de limão. Tive prazer em

travar conhecimento com o mamão. Associava-o. vagamente à

hula-hula.Mas,senãomeengano,hula-hulaéumasaiadepalha

usadapelashavaianas.Não,enganei-meoutravez;asaiaélava-

lava.

Em contraposição à maneira tão diversa como nos

exprimimosnaInglaterra,essascoisassãomuitodivertidas.Não

posso deixar de imaginar o quanto a nossa ilha, tão fria, se

tornariamaisalegresecomêssemosbacon-baconnodesjejumou

entãovestíssemosumablusa-blusaparasairàrua.

Depoisdaprimeirarefeição,Suzannetornou-semaissociável.

Da janela do meu quarto, contíguo ao dela, descortinava-se o

lindo panorama da baía de Table. Contemplava-o enquanto

minha amiga se punha à procura de um pote de beleza.

Encontrando-o,começouimediatamenteaaplicá-loe,então,pôde

prestaratençãoàsminhaspalavras.

— Viu Sir Eustace? — perguntei. — Saía da sala do café

justamentenahoraemqueentrávamos.Nãogostoudopeixeou

não sei de quê e queixou-se ao chefe dos garçons. Jogou um

pêssego no chão para mostrar como estava duro — não tanto

quantopensava,eopêssegoesborrachou-se.

Suzannesorriu.

— Sir Eustace, como eu mesma, não gosta de levantar-se

cedo. Anne, e Mr. Pagett? Você o viu? Encontramo-nos no

corredor.Estácomumolhoamassado.Queteráacontecido?

Page 168: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Ora! Quis apenas atirar-me pela grade do navio —-

respondicomindiferença.

Foi um sucesso! Suzanne interrompeu a massagem facial,

assediando-mecomperguntas.Nãomefizderogada.

— O mistério aumenta dia a dia — exclamou. — Se se

tratassedeSirEustace,euresolveriafacilmenteocaso,enquanto

vocêsedivertiriaàcustadoReverendoEdwardChichester;mas

agoraacoisamudoudefigura.Vamosverse,numanoiteescura,

Pagettnãomevaiatirardotrem.

—Você está fora de suspeita, Suzanne.Mas, caso aconteça

algumacoisa,telegrafareiimediatamenteaClarence.

—Ah!Agoramelembro—dê-meumimpressodetelegrama.

Vamos ver, que é que eu digo? "Envolvida no mistério mais

emocionantefavormandarmillibrasimediatamenteSuzanne."

Peguei o impresso e sugeri eliminar o "no" e, senão fizesse

muitaquestãode serdelicada, o "favor" também.Suzannedáa

impressão de não ligar a mínima importância aos assuntos de

ordem financeira.Em lugar de atender àsminhas sugestões de

economia, acrescentou mais três palavras: "divertindo-me

imensamente".

Minha amiga combinara almoçar com amigos, que a foram

buscarnohotel, àsonzehorasmaisoumenos.Fiquei sozinha,

entregue aos meus próprios pensamentos. Desci e pus-me a

caminhar nos terrenos de propriedade do hotel, atravessei as

linhasdaestradadeferroeseguiporfrescaavenidasombreada,

atéalcançararuaprincipal.Sempreca-*minhando,admiravao

panorama, deliciada com o sol e a divertir-me em ver os

Page 169: Agatha christie - o homem do terno marrom

vendedoresnegrosapregoandofloresefrutas.Encontreiumlugar

ondehaviaomelhorsorvetecomsoda.Porfim,acabeicomprando

umacestinhadepêssegosevolteiaohotel.

Foi-me alegre surpresa encontrar um bilhete do

administradordomuseu,dizendo ter sabidodaminha chegada

n oKilmorden, onde o informaram ser eu filha do Professor

Beddingfield. Conheceu meu pai, por quem sentia grande

admiração. Acrescentou que a esposa tinha muito prazer em

convidar-me para tomar chá, à tarde, na sua vila, em Mui-

zenberg.Emseguidavinhaminstruçõessobreotrajeto.

Alegrou-me saber que meu pobre pai ainda era altamente

considerado. Achei que seria bom levar alguém comigo até o

museu,masresolviassumiroriscoeseguisozinha.

Saí logo após o almoço. Vestida de linho branco e com o

melhor chapéu (um dos que Suzanne pusera de lado), tomei o

expressoparaMuizenbergemeiahoramaistarde láchegava.O

trajetoémuitobonito.ContornamosabasedomonteTable,onde

se viam lindas flores. Como sou fraca em geografia, nunca me

passou pela cabeça que a Cidade do Cabo se localizasse numa

península; por isso, surpreendi-me quando, ao sair do trem,

novamente divisei o mar. Pessoas sobre pequenas tábuas de

bordos recurvos vogavam ao sabor das ondas. Dirigi-me ao

pavilhão de banhos, e, quandome perguntaram se queria uma

daquelaspranchas,respondi:"Sim,porfavor".Julgueifacílimaa

práticadesseesporte.Poisnãoé.Enãodigomaisnada.Furiosa,

arremessei a prancha bem longe demim. Não obstante, estava

resolvida a voltar na primeira oportunidade e experimentá-la

outra vez. Nãome deixaria vencer. Por casualidade, finalmente,

Page 170: Agatha christie - o homem do terno marrom

consegui deslizar sobre as águas. Fiquei louca de alegria. Esse

esporteé assim: ou dizemos terríveis impropérios ou ficamos

tolamentesatisfeitascomnósmesmas.

FoiumpoucodifícilencontraraVilaMadgee.Situava-seno

altodaencostadamontanha, isoladadosoutros chalés e vilas.

Sorridente, um negrinho banto respondeu ao toque da

campainha.

—Mrs.Raffini?"

Fez-me entrar e, precedendo-me no corredor, abriu uma

porta. No momento de transpor o limiar, hesitei. Assaltou-me

súbitopressentimento,masassimmesmoatravessei-o.Comum

baque,aportafechou-seportrásdemim.

Umhomemsentadoaumamesalevantou-seedirigiu-separa

omeuladocomamãoestendida,dizendo:

—Quantoprazercomsuavisita,MissBeddingfield.Eraalto,

holandês,evidentemente,debarbaflamejante.

Não tinha aspecto de administrador de museu. No mesmo

instante, percebi que levara um logro. Estava em poder do

inimigo.

Page 171: Agatha christie - o homem do terno marrom

19

Nãopudedeixardeme lembrarda terceirapartedeVameia

correperigo.Quantasvezesmesenteinaquelascadeirasdepreço

ínfimo, mastigando uma barra de chocolate, ansiosa por que

aquelas coisas me acontecessem! Pois bem, aconteceram muito

mais. Só que não as achava tão divertidas como imaginara. No

cinema,tudocorremuitobem;sabíamos,paranossosossego,que

viriaaquartaparte.MasquempoderiagarantirqueparaAnne,a

Aventureira, o filme não ia terminar abruptamente no fim de

qualquerepisódio?

Sim, estavametida emmaus lençóis. Veio-me àmemória o

que Rayburn me dissera com rude franqueza naquela manhã.

"Fale a verdade", tinha dito. Seria conveniente? Em primeiro

lugar,quecréditomerecia?Achariamplausívelquemeenvolvesse

nessa louca aventura, estribada unicamente numpedacinho de

papel com cheiro de naftalina? A história era inacreditável.

Enquanto raciocinava friamente, amaldiçoei-me, chamei-me de

idiota melodramática. E quanto desejei voltar à vida calma e

aborrecidadeLittleHampsley!

Todos esses pensamentos atravessaram-me o cérebro como

umrelâmpago.Instintivamente,olheiparaamaçanetadaporta.

O homem limitou-se a sorrir. Depois, disse com expressão

zombeteira:

—Aquiestáeaquifica.Resolviencarardefrenteaquestão.

—OadministradordoMuseudaCidadedoCaboconvidou-

meavir.Secometiumengano...

Page 172: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Engano?Oh!Sim,ebemgrande!Riuumrisoselvagem.

—Nãotemdireitodedeter-meaqui.Vouinformarapolícia...

— De que maneira? — E riu novamente. Sentei-me numa

cadeira.

—Devoconcluirqueosenhoréumloucoperigoso—disse

emtomgélido.

—Sou?

—Queroavisá-lodequemeusamigosestãoperfeitamentea

pardosmeuspassos.Seeunãovoltaratéatarde,sairãoàminha

procura.Entendeu?

—Então,seusamigossabemondeestá,hein?Qualdeles?

Lançado o desafio, pus-me rapidamente a calcular de que

possibilidade dispunha. Deveria mencionar Sir Eustace? Era

muito conhecido e seunomebempodia fazerpender abalança

para omeu lado.Mas, caso osmeus adversários estivessemem

contacto com Pagett, a mentira viria à luz. Melhor deixar Sir

Eustaceempaz.

—Mrs.Blairéminhaamiga—dissedespreocupadamente.—

Viemosjuntas.

—Nãoacredito—disseomeuguardião,sacudindoacabeça

ruiva. — Não se vêem desde as onze da manhã. E você leu o

bilheteahoradoalmoço.

Percebi, então, o quanto era rigorosa a vigilância exercida

Page 173: Agatha christie - o homem do terno marrom

sobreaminhapessoa.Contudo,nãoestavadispostaaentregaros

pontosantesdelutar.

—Émuito inteligente—observei ironicamente.—Talvez já

tenha ouvido falar numaútil invenção— o telefone.Mrs. Blair

telefonou-me depois do almoço, enquanto eu descansava no

quarto.

Comgrandesatisfaçãonoteiqueohomemdavasinaisdeleve

inquietação.Esquecera-se,evidentemente,dapossibilidadedeum

chamadodeSuzanne.Comodesejeiquefosseverdade!

—Basta!—disserudemente.Elevantou-se.

— Que vai fazer de mim?— indaguei, esforçando-me para

aparentarcalma.

—Levá-laparaondenãopossacausaraborrecimentos,caso

seusamigosvenhamprocurá-la.

O sangue gelou-me nas veias; mas tranqüilizei-me com as

palavrasqueproferiuemseguida.

— Amanhã, terá de responder a algumas perguntas, e

somente depois saberei que atitude tomar. Uma coisa lhe digo,

jovem, temos diversas maneiras de fazer falar os tolinhos

obstinados.

Nada animador, mas pelo menos haveria uma trégua.

Dispunha de todo o tempo até o dia seguinte.O homem, claro

está, não passava de um subalterno obediente às ordens

superiores.EseessesuperiorfossePagett?

Aoseuchamadoacorreramdoisnegrinhos,queme levaram

Page 174: Agatha christie - o homem do terno marrom

escada acima. Debati-me sem cessar; os rapazinhos, porém,

ataram-mepésemãos.Asaleta,umaespéciedesótão,situava-se

logo abaixo do telhado. Apesar de bastante empoeirada,

apresentava indícios de haver sido ocupada anteriormente. O

holandês,ematitudezombeteira,fezumareverênciaeretirou-se

fechandoaporta.

Fiqueiaodesamparo.Amarradafortemente,nãoconseguiade

formanenhumadesatarosnósquemeprendiam,ealémdissoa

mordaça impedia-mede gritar.Sepor acaso chegasse alguémà

casa, eunadapoderia fazerparaatrair-lheaatenção.Doandar

inferior veio o som de uma porta que se fechava. Decerto o

holandêsiaembora.

Impossibilitada de tomar providências, sentia-me

enlouquecer. Forcei novamente as cordas queme imobilizavam,

mas em vão.Desisti, afinal, e não sei se desmaiei ou adormeci.

Quandovolteiamim,estavacomocorpodolorido.Aescuridãona

saleta fazia crer que a noite ia avançada. A lua, alta no céu,

misturava seu brilho à poeira cintilante das estrelas.

Insuportáveiseramadoreaimobilidade;haviaaindaamordaça

quemeasfixiava.

Foi quando pousei o olhar num pedacinho de vidro, meio

escondidonumcantinhodosoalho.Umraiodeluarincidiasobre

ele.Enquantooolhava,ocorreu-meumaidéia.Nãocontavacomo

auxílio nem dos braços nem das pernas, mas podiarolar.

Lentamente, com grande dificuldade, pus-me em movimento.

Alémdadoredafaltademeiosdeprotegerorostocomosbraços,

não era fácil seguir na direção desejada. Por fim, consegui

alcançarmeuobjetivo.Leveimuitotempoantesdecolocarovidro

demodoque,encostadonaparede,pudesse,porfricção,cortaros

Page 175: Agatha christie - o homem do terno marrom

laços que me prendiam. O processo era demorado, cruciante e

simplesmente desesperador. Afinal, serrei as cordas que me

ligavam os pulsos. Esfreguei-os vigorosamente e, refeita a

circulação, desatei a mordaça. Algumas inspirações profundas

fizeram-meumbemextraordinário.

Nãoconseguiamanter-medepé,mesmodepoisdedesataro

últimonó.Balanceiosbraçosparaafrenteeparatráscomofito

de restabelecer a circulação. Pensava, antes de mais nada, em

conseguiralimento.

Esperei um quarto de hora. Queria ter certeza de que a

circulaçãosenormalizara.Depois,napontadospés,semfazero

menor ruído, encaminhei-me para a porta. Como previa, não

estavafechadaachave.Abri-aeespieifora.

Reinava silêncio. Os raios da lua, atravessando a janela,

iluminavamaescadaempoeiradaesemtapete.Arrastei-mecom

cuidado pelos degraus abaixo. Ainda o silêncio. À medida que

descia, comecei a ouvir leve murmúrio de vozes. Parei

imediatamenteepus-meàescuta.Umrelógiodeparedemarcava

maisdemeia-noite.

Prossegui na descida, perfeitamente cônscia dos riscos que

corria,masacuriosidade impelia-me.Com infinitasprecauções,

preparei-me para iniciar as investigações. Escorreguei de

mansinhopeloúltimo lanceda escadaaté alcançar o vestíbulo.

Olheiaoredore,assustada,prendiarespiração.Sentadopertoda

portaestavaumnegrinhobanto.Percebiquedormia.

Quefazer?Voltarouprosseguir?Asvozesvinhamdamesma

sala onde estivera na ocasião da chegada. Reconheci a voz do

Page 176: Agatha christie - o homem do terno marrom

holandês;aoutranãomeeraestranha.

Achei que devia ouvir a conversa, embora arriscando-me a

passarpertodonegrinho.Atravessei o vestíbulo e, como corpo

coladoàporta,ajoelhei-me.Durantealgunsinstantesnadaouvi.

Falavamalto,masaspalavraseramininteligíveis.

Espieipelafechadura.Tinhaacertado:umdoshomenserao

holandês;ooutroestavasentadoforadaminhaáreavisual.

De repente, levantou-se para preparar um drinque. Vi-o de

costas,vestidodepreto.Antesquesevoltassejásabiadequemse

tratava.

EranemmaisnemmenosqueMr.Chichester!

Agoraaconversatornava-seclara.

—Dequalquermaneira,nãodeixade serperigoso.E se os

amigosvieremàprocuradela?—falavaoholandês.

Chichestertinhaabandonadoporcompletootimbreclerical.

Nãoeradeadmirarqueeunãooreconhecesse.

—Éblefe.Nãotêmamenoridéiadeondeseencontra.

—Elaafirmoucomsegurança.

—Talvez.Penseinocaso;nadatemosquetemer.

Alémdomais, sãoordensdoCoronel.Não vaidesobedecer-

lhe,nãoé?

Oholandêsproferiuumaexclamaçãonopróprioidioma.Pela

entonaçãoparecequedesaprovava.

Page 177: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Umapancadanacabeçaresolviatudo—resmungou.—É

coisasimples.Onavioestádesaída.Podíamoslevá-laabordoe...

—Certo—disseChichesteremtommeditativo.—Éoqueeu

faria.Elasabedemais,quantoaissonãohádúvida.OCoronel,

comosabemos,prefereagirsozinho,masnãoadmiteomesmode

ninguém.

Faloucomosealgum fatodesagradável se lhe reavivassena

memória.

— Ele quer, primeiro, obter umas tantas... informações da

moça.

Fezumapausaantesdepronunciarapalavra"informações".

Oholandêsimediatamentecompreendeuoquequeriadizer.

—Informações?

—Maisoumenosisso."Diamantes",dissecomigomesma.

— E agora — continuou Chichester — dê-me as listas.

Durantelongotempoaconversaçãotornou-sequase

inaudível.Falarammuitoemhortaliças.Mencionaramdatas,

preços, vários nomes de lugares que eu desconhecia, e levaram

maisdemeiahoraaacertaraquelaintrincadacontabilidade.

— Bem — disse Chichester. Ouvi o ruído de uma cadeira

arrastadanosoalho.—VoulevarestasparaoCoronelver.

—Quandopretendepartir?

—Lápelasdezdamanha.

Page 178: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Querveramoçaantesdeir?

—Não.Háordensseverasparaqueninguémavejaantesdeo

Coronelchegar.Elaestábem?

—Vi-aantesdojantar.Estavadormindo,creio.Eacomida?

—Sentirumpoucodefomenãolhefarámalnenhum.Assim

responderá melhor às perguntas do Coronel. E, até lá, que

ninguémseaproximedela.Estábemamarrada?

Oholandêsriu.

—Oqueestápensando?

Ambosdesataramnuma risada. Interiormente, fiz omesmo.

Osruídosindicavamestaremprestesadeixarasala;porisso,bati

emretirada.Ejánãoerasemtempo.Quandoalcanceiotopoda

escada, ouvi a porta abrir-se e percebi que o negrinho se

levantava. Era impossível escapar pelo vestíbulo. Movida pela

prudência,volteiaosótão,envolvi-menascordasedeitei-meno

soalho.Casofossemver-me,nadalheschamariaaatenção.

Felizmentenãoapareceram.Cercadeumahoramais tarde,

arrastei-me novamente escada abaixo. Desta vez o negrinho,

sentado perto da porta, cantarolava. Ansiava por sair da casa,

masnãoviameiosparaisso.

Por fim, fui obrigada a voltar outra vez ao sótão, pois era

evidente que o negrinho fazia a guarda noturna. Esperei

pacientemente até que, de madrugada, fizeram-se ouvir os

primeiros ruídos na casa. Os homens tomavam a refeição no

vestíbulo, e fácilme foi distinguir as vozes dos dois. Sentia-me

Page 179: Agatha christie - o homem do terno marrom

cadavezmaisfraca.Dequemaneiraconseguiriasairdelá?

Resolvimunir-medepaciência.Umgestodesastradoe tudo

estaria perdido. Terminado o repasto, percebi que Chichester

partia,e,parameusossego,oholandêsoacompanhou.

Mal respirava. Tiraram amesa e deram início à limpeza da

casa.Por fim,saídatocamaisumavez.Deslizeivagarosamente

pela escada até o vestíbulo. Atravessei-o, rápida como o raio, e,

abrindoaporta,encontrei-mefora,àluzdosol.

Descia ladeiracomolouca,eentãoretomeiopassonormal.

Os transeuntes fitavam-me cheios de curiosidade, o que, aliás,

não era de admirar. Depois de tanto rolar no soalho do sotão,

traziaorostoeasvestescobertasdepó.Finalmentedepareicom

umagaragem.Entrei.

—Sofriumacidente—expliquei.—Precisodeumcarropara

ir àCidade doCabo imediatamente. Tenho de alcançar o navio

paraDurban.

A espera não foi longa. Dez minutos depois, o automóvel

disparavanadireçãoindicada.EramisterverificarseChichester

embarcara. Após alguns momentos de reflexão, resolvi partir

também.Opseudomissionárioignoravaqueeuoviranavila,em

Muizenberg.Nãoeradifícilpreverque iaarmaroutrasciladas...

Mastratava-sedohomemqueeuperseguia,daquelequeandavaà

procuradosdiamantesamandadodomisteriosoCoronel.

Adeus, planos! Quando cheguei ao porto, oKilmorden

zarpava.FiqueisemsaberseChichesterembarcaraounão!

Page 180: Agatha christie - o homem do terno marrom

20

Segui diretamente para o hotel. Nenhum conhecido no

vestíbulo.SubiaescadariaebatinaportadoquartodeSuzanne,

que me convidou a entrar. Quando me viu, abraçou-me com

efusão.

— Anne querida, onde esteve? Fiquei mortalmente

preocupada.Oqueandoufazendotodoessetempo?

— Em aventuras— respondi. — Terceira parte deP ameia

correperigo.

— Por que será que essas coisas só acontecem a você? —

perguntouemtomlamentoso.—Porqueninguémmeamordaça

nemmeamarraasmãoseospés?

—Não iagostarnemumpouquinho—garanti.—Falando

francamente, não estou entusiasmada por aventuras. Coisas

comoessasporquepasseideixamimpressãoduradoura.

Suzanne não se convencia. Se lhe pusessem mordaça e a

atassem com cordas durante uma ou duas horas, mudaria de

opinião imediatamente. Adora emoções, mas abomina o

desconforto.

—Eagora,quevamosfazer?—perguntou.

—Aindanãoseimuitobem—respondipensativa-mente.—

VocêvaiàRodésiavigiarPagett...

—Evocê?

Page 181: Agatha christie - o homem do terno marrom

Aí estava a dificuldade. Chichester teria ou não partido no

Kilmorden?Pretenderiarealizaroprimitivoplanodeseguirpara

Durban? A hora em que deixou Muizenberg parecia confirmar

ambas as questões. Nesse caso, seguindo de trem, eu chegaria

antes do vapor. Por outro lado, se informassem Chichester a

respeito da minha fuga e que deixara a Cidade do Cabo com

destinoaDurban,ser-lhe-iamuitosimplesdesembarcaremPort

ElizabethouemEastLondon.Querdeumaformaquerdeoutra,

euoperderiacompletamentedevista.

Oproblemaerarealmenteintrincado.

—Nãoimporta—disse.—Vamosindagarohoráriodostrens

paraDurban.

—Está na hora do chá— lembrou Suzanne.—Vamos ao

salão.

Informaram-menaportariaqueotrempartiaàsoitoequinze

danoite.Retardeiomomentodetomaradecisãoefuireunir-me

aSuzanne.

— Se Chichester usar outro disfarce, você será capaz de

reconhecê-lo?—perguntouSuzanne.

Abaneiacabeçatristemente.

—Senão fossepelodesenho, jamaiso reconheceria vestido

decamareira.

—Tenhocertezadequeéatorprofissional—disseSuzanne

pensativa.—Sabemaquilar-secomperfeição.Émuitocapazde

sair do navio vestido com ummacacão ou com qualquer outro

Page 182: Agatha christie - o homem do terno marrom

disfarce,evocêjamaisoreconheceria.

—Comovocêéanimadora...—murmurei.

NessemomentooCoronelRaceveioaonossoencontro.

—QuefimlevouSirEustace?—indagouSuzanne.—Nãoo

vihoje.

Pelafisionomiadocoronelperpassouestranhaexpressão.

—Andamuitoocupadoporcausadeunsimprevistos.

—Oqueaconteceu?

—Nãocontooquenãodevesercontado...

—Entãoconteoutracoisa,sóparadistrair-nos,mesmoque

sejainvenção.

—Bem,sabemqueviajamoscomofamoso"homemdoterno

marrom"?

—Oquê?

Senti-me empalidecer e que imediatamente as faces se me

tornavam cor de lacre. Felizmente o coronel não me estava

olhandonessemomento.

— Creio que é verdade; todos os portos estavam alerta.

ConseguiuiludirPedlereveiocomoseusecretário!

—Mr.Pagett?

—Oh!Não...ooutrorapaz.Diziachamar-seRayburn.

Page 183: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Conseguiramprendê-lo?—perguntouSuzanne.Porsoba

mesaapertou-meamãocomoaquerer tranqüilizar-me.Eumal

respirava,àesperadaresposta.

—Não,desapareceucomoporencanto.

—QualfoiareaçãodeSirEustace?

—Consideraocasocomoum insultopessoalqueodestino

lhereservou.

Mais tarde, tivemos oportunidade de ouvir o relato de Sir

Eustacesobreoassunto.Estávamostirandoumasonecadepois

doalmoçoquandoummensageironosacordouparaentregarum

bilhete.Emtermospatéticos,solicitavaanossacompanhiaparao

chá.

O pobrezinho estava realmente era estado lamentável.

EncorajadopelaspalavrasdeSuzanne,murmuradasemtomde

simpatia, contou-nos tudo de um só fôlego. (Suzanne é muito

jeitosaparaessascoisas.)

—Antesdemaisnada:umaestrangeirateveaimpertinência

dedeixar-seassassinaremminhacasa—depropósito, sópara

meaborrecer.Porquelogonaminhacasa?Porque,comtantas

casasnaGrã-Bretanha,foilogoescolheraCasadoMoinho?Que

malfizaessamulherparaquefossemorrerjustamentelá?

Suzanne tornou a ronronar com simpatia e Sir Eustace

prosseguiunumtomaindamaislastimoso:

—E,comosenãobastasse,ocriminosoteveadesfaçatez,a

enorme desfaçatez de empregar-se como meu secretário! Meu

Page 184: Agatha christie - o homem do terno marrom

secretário, orabolas!Estou fartodesecretários,nãoqueromais

secretários. Ou são assassinos disfarçados ou então bêbados

contumazes. Viram o olho amarrotado de Pagett? Com certeza

viram.Comopodeummortalsairempúblicocomumsecretário

nessas condições?E o rosto de um amarelo repelente— o tom

exatoqueabsolutamentenãocombinacomoolhopreto.Bastade

secretários—amenosquesejaumamoça.Umamoçabonita,de

olhosbrilhantes.

que saiba segurar minhas mãos entre as suas quando eu

estivercontrariado.Quemediz sobre isso,MissAnne?Aceitaa

oferta?

— Terei de segurar suas mãos muitas vezes?— perguntei,

rindo.

—Odiainteiro—foiarespostagalante.

—Assim,poucotemporestaráparaadatilografia...

—Não importa. Toda esta trabalheira é idéiadePagett.Ele

me mata com tanto trabalho. Estou providenciando para que

fiquenaCidadedoCabo.

—Elevaificaraqui?

— Vai, sim; diverte-se imensamente em andar atrás das

pegadasdeRayburn.Gostadessascoisaseadora fazer intrigas.

Maseuestavafalandoasériosobreotrabalho.Aceita?Mrs.Blair

é ótima companheira e a senhorita terá meio dia, de vez em

quando,paraandaràprocuradeossos.

—Muitoagradecida,SirEustace—dissecautelosamente—

Page 185: Agatha christie - o homem do terno marrom

sigohojeànoiteparaDurban.

—Ora!Nãosejateimosa.Elembre-se,existeminúmerosleões

naRodésia.Vaigostardevê-los,poistodasasmoçasgostam.

—Quandoestãopraticandosaltinhos?—pergunteiarir.—

Não,muitoobrigada,masprecisomesmoiraDurban.

SirEustacefitou-me,deuprofundosuspiroe,abrindoaporta

dasalacontígua,chamouPagett.

—Sejátiverterminadoasesta,meucarorapaz,talvezqueira

trabalharumpouco,paravariar.

GuyPagettapareceuàporta.Cumprimentoucomumaceno

de cabeça e estremeceu levemente quando me viu. Então

respondeucomvozmelancólica:

—Estiveatardetodapassandoàmáquinaosmemorandos,

SirEustace.

— Pois pare com isso. Vá à Câmara de Comércio, ou ao

DepartamentodeAgricultura,ouaoDepartamentodeMineração,

ouaqualqueroutrolugar,epeçaemprestadaumasecretáriaque

possa acompanhar-me à Rodésia. É imprescindível que tenha

olhosbrilhantesenãofaçaobjeçãoemsegurar-measmãos.

— Pois não, Sir Eustace. Vou pedir uma taquígrafa

competente.

—Pagettémalicioso—disse,depoisqueosecretariosaiu.—

Sou capaz de apostar que ele vai escolher d propósito, uma

criatura horrorosa só para me aborrecer Esqueci-me de

mencionarqueeladeveterbonitospezinhostambém.

Page 186: Agatha christie - o homem do terno marrom

AgarreiamãodeSuzanneequaseaarrasteiatéoquarto.

— E então, Suzanne, vamos preparar os planos bem

depressa.Pagettvaificaraqui;vocêouviu?

— Ouvi. Quer dizer que não posso ir à Rodésia; fiquei

contrariadaporqueeuqueroir.Quecaceteação!

—O que é isso!?Você vai, sim.Umadesistência noúltimo

momentodámargemasuspeitas.E,alémdisso,SirEustacepode

mudardeidéiasobrePagett.Edaí,comoéquevocêvaiarranjar

novamenteparairnocarroreservado?

—Bem— disse Suzanne sorrindo.— A única desculpa—

não muito louvável, é verdade — seria confessar-me

irremediavelmenteapaixonadaporele.

—Alémdisso, seráperfeitamentenatural que você esteja lá

na ocasião em que Pagett chegar. E depois, não me parece

convenienteperderdevistaosoutrosdois.

—Ora,Anne!NãoépossívelsuspeitardoCoronelRaceoude

SirEustace.

—Suspeitodetodos—afirmeiemtomsombrio—,esetiver

lido histórias policiais, deve saber, Suzanne, que geralmente o

vilãoéomenosvisado.Inúmeroscriminosossãohomensgordos,

alegrescomoSirEustace.

— Não se pode dizer que o Coronel Race seja gordo, nem

muitoalegre.

— Às vezes sãomagros emelancólicos— repliquei.— Não

digo que tenha graves suspeitas contra eles. mas, afinal de

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contas,amulherfoiassassinadanacasadeSirEustace...

—Sei,sei,nãoéprecisorepetirtudooutravez.Vouficarde

atalaia, Anne, e, se por acaso ele engordar ou se tornar alegre,

envio-lhe um telegrama imediatamente: "Grande suspeita Sir E

engordando.Venhaimediatamente".

—Ora,Suzanne—exclamei—,parecequevocêestalevando

tudonabrincadeira!

—Seiqueestou—disseSuzanneimpassível.—-Eaculpaé

sua,Anne.Vocêmeinfluenciou,lembra-se?"Éprecisoterespírito

aventureiro.Nadadissoseparececomarealidade."MeuDeus!Se

ClarencesoubessequeestourodandopelaÁfricaatrásdetemíveis

criminosos,teriaumataquenacerta.

—Porquenãolhetelegrafa?—pergunteiemtomsarcástico.

OsextosentidodeSuzannesemprefalhavaquandosetratava

deenviartelegramas;porissoaceitoudeboaféasugestão.

— É mesmo. Vou mandar um bem longo. — Seus olhos

brilharam.—Pensandobem,émelhornãomandar.Osmaridos

sempreinterferemnosdivertimentosmaisinocentes.

Volteiaoassunto:

— Bem — você fica de olho em Sir Eustace e no Coronel

Race...

— Sei por que temos de vigiar Sir Eustace— interrompeu

Suzanne—,éporcausadaaparênciaedaconversahumorística.

MassuspeitardoCoronelRaceélevaracoisamuitoadiante;eu

Page 188: Agatha christie - o homem do terno marrom

pelo menos acho. Ora, pois se ele pertence ao serviço secreto!

Sabe,Anne,omelhorquetemosafazeréconfiarneleecontar-lhe

todaahistória.

Fui contrária à proposta; não me parecia conveniente.

Saltavam aos olhos os efeitos desastrosos a que o matrimônio

conduz. Quantas vezes não ouvi mulheres inteligentíssimas

porem um ponto final no assunto, dizendo:"Edgar acha... " E

sabíamos muito bem que Edgar não passava de um perfeito

simplório.Suzanne,porsercasada,sentianecessidadedeapoio

masculino.

Prometeu-me,porém,nãorepetirumasópalavraaoCoronel

Race.Continuamos,pois,aelaborarplanos.

— É evidente que preciso ficar para manter Pagett sob

vigilância. Finjo que vou a Durban esta noite, mando descer a

bagagem, mas na realidade vou para um holtezinho aqui na

cidade. Mudando um pouco de aparência — é só colocar uma

perucaeunsvéusbrancosrendados—,seráfácilveroquePagett

estámaquinando,seacreditarqueestouforadoseucaminho.

Suzanne aprovou o plano, sem restrição. Preparamos o

ambientedemaneiraadarnavista:indagamosmaisumavezna

portariaohoráriodotremefizemosasmalas.

Jantamosnorestaurante.OCoronelRacenãoapareceu,mas

Sir Eustace e o secretário ocupavam a mesa perto da janela.

Pagettretirou-sequandoarefeiçãoiaemmeio.Fiqueiaborrecida,

poisplanejaradespedir-medele.Terminadoo jantar,dirigi-mea

SirEustace.

—Atéavista,SirEustace—disse.—SigohojeparaDurban.

Page 189: Agatha christie - o homem do terno marrom

Eledeuumprofundosuspiro.

—Jásabia.Gostariaqueeuaacompanhasse,gostaria?

—Seriasimplesmenteadorável.

— Que amor de menina! A senhorita não mudaria de

opinião?NãoquermesmoirverosleõesdaRodésia?

—Não,mesmo.

— Ele deve ser um belo rapaz — continuou em tom

lamentoso.—Algumpretensioso ládeDurbanqueestá fazendo

sombraaosmeusatrativosdehomemdemeia-idade.Pagettdaqui

apoucovaisairdecarro.Poderálevá-lasàestação.

—Oh!não,muitoobrigada—faleidepressa.—Mrs.Blaire

eujáencomendamosumtáxi.

Ir na companhia de Pagett seria a última coisa que eu

desejava!SirEustacefitava-mecominsistência.

— Parece não gostar de Pagett. Não a censuro. É o maior

cretino; leva a vida como um mártir, fazendo tudo para me

aborrecerecontrariar!

—Eagora,oquefoiqueelefez?—indagueicuriosa.

—Precisavaverasecretáriaquemearranjou!Quarentaanos,

pince-nez, botinas e uns ares de grande eficiência. Vai ser um

horror!Emresumo:umamulherpavorosa.

—Nãoquerqueelapeguenassuasmãos?

— Deus me livre! — exclamou. — Seria o fim do mundo.

Page 190: Agatha christie - o homem do terno marrom

Então, adeus,menina dos olhos bonitos. Se eu caçar um leão,

nãolhedareiapele,porqueasenhoritameabandonou.

Partimosdepoisdeumapertodemãomuitocordial.Suzanne

esperava-menovestíbulo,paraacompanhar-meàestação.

— Vamos imediatamente — disse depressa, e pediu a um

empregadoquelhearranjasseumtáxi.

Umavozportrásdemimpregou-meumsusto:

126

—Com licença,MissBeddingfield, vou sair de carro agora.

Possodeixá-lasnaestação.

—Oh!agradecida,émuitotrabalho.Eu...

— Não é trabalho nenhum, pode ficar descansada.

Carregador,ponhaabagagemnocarro.

Fiqueidesesperada. Iaprotestar, quandoSuzanne, tocando-

mecomocotovelo,fezsinalparaquemecalasse.

—Obrigada,Mr.Pagett—agradeci friamente.Entramosno

carro.Enquantodeslizávamospelaestrada

em direção à cidade, eu quebrava a cabeça procurando

alguma coisa que dizer. Por fim, o próprio Pagett rompeu o

silêncio.

— Arranjei uma secretária muito competente para Sir

Eustace—observou.—MissPettigrew.

Page 191: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Ele não estava muito entusiasmado. O moço lançou-me

umolhargélido.

— É ótima taquígrafa — disse sufocado. Descemos na

estação.Naturalmente,tinhachegadoomomentodedeixar-nos;

entãovoltei-meparaelecomamãoestendida,masasituaçãoera

bemdiferente.

—Vouassistiràsuapartida.Sãooitoempontoeotremsai

dentrodeumquartodehora.

Ecomeçouadarordensaoscarregadores.Desesperada,nem

ousava olhar para Suzanne. O homem suspeitava. Decidira ver

comosprópriosolhosaminhapartida.£eu,quepoderiafazer?

Absolutamente nada. Imaginava o trem saindo dali a quinze

minutos e Pagett plantado na estação a dizer-me adeus.

Transtornara-me os planos com habilidade. Repugnava-me

aquela astúcia cheia de maldade. Tentara matar-me e agora

desfazia-se em gentilezas! Supunha, porventura, que eu não o

reconhecera naquela noite no navio? Impossível! Estava

disfarçando e com isso forçava-me à conivência. E disfarçava o

risootempotodo,também.Obrigava-meaagirsegundoassuas

ordens,comoseeufosseumcarneiroindefeso.

Abagagemestavaempilhadanovagão-dormitório.Reservara

só para mim um compartimento com dois beliches. O relógio

marcavaoitoedoze;portanto,emtrêsminutosotremestariade

partida.

MasPagettesquecera-sedeincluirSuzannenosseusplanos.

—Odiavaiserquentíssimo,Anne—disseela,derepente.—

Principalmente quando você passar por Karoo amanhã. Trouxe

Page 192: Agatha christie - o homem do terno marrom

água-de-colôniaoulavanda,não?

Aintençãoeraclara.

— Oh! Meu Deus! — exclamei. — Esqueci-me da água-de-

colôniaemcimadotoucador,lánohotel.

Suzannetambémtinhaohábitodemandar;porisso,comar

autoritário,voltou-separaPagett,dizendo:

—Mr.Pagett,depressa.Estáquasenahora.Váàdrogaria,

emfrenteàestação,ecompreumvidrodeágua-de-colôniapara

Anne.

Elehesitou,masaatitudeautoritáriada jovemvenceu-o.E

bateu em retirada.Minha amiga seguiu-o com o olhar, até que

desaparecesse.

—Depressa,Anne,váparaooutrolado,talveznãotenhase

afastadoe estejanosobservandodaextremidadedaplataforma.

Não se importe com a bagagem. Amanhã você telegrafa para a

companhia.Oh!Seaomenosotrempartirnohorário!

Abrioportãozinhodoladoopostoeescondi-me.Ninguémme

observava. Vi Suzanne, de pé nomesmo lugar onde a deixara,

olhandoparaajaneladotrem,comoseconversassecomigo.Um

apito agudo e o trempôs-se emmarcha.Então, ouvi passos de

alguém que corria na plataforma. Procurei a proteção de uma

bancadelivroseespiei.

Suzanne,deixandodedizeradeuscomolenço,voltou-se.

—Tarde demais,Mr. Pagett—disse alegremente.—Ela já

Page 193: Agatha christie - o homem do terno marrom

partiu. Trouxe a água de colônia? Pena não nos lembrarmos

antes!

Passarampertodemimquandosaíramdaestação.Viu-seque

Guy Pagett estava acalorado.Decerto tinha corrido no percurso

atéadrogaria.

—Vaitomartáxi,Mrs.Blair?

Suzanne continuouadesempenharmuito bemopapel que

lhecabia.

—Vou.Quervoltarcomigo?EstátrabalhandomuitoparaSir

Eustace? Queria tanto que Anne Beddingfield fosse conosco

amanhã! Não aprovo a idéia de umamoça viajar sozinha para

Durban.Maselaéteimosa.Interessadaporalguém,talvez...

Não consegui ouvir mais nada. Suzanne é um colosso. Foi

quemsalvouasituação.

Esperei um pouquinho e, quando saía, dei um encontrão

num homem de aparência muito desagradável, com um nariz

enorme,quedestoavadafisionomia.

Page 194: Agatha christie - o homem do terno marrom

21

Nãofoidifícilprosseguirnarealizaçãodosplanos.Tomeium

quartonumhotelzinhodecertaruasossegada.Comonãotrazia

bagagem, não tive de pagar depósito e tranqüilamente fui me

deitar.

No dia seguinte, levantei-me cedo para ir à cidade comprar

algumaroupa.Nãopretendiaagirantesdapartidado tremdas

onzeparaaRodésia,quelevavaamaiorpartedogrupo.Omais

prováveleraPagettentrarnassuasatividadesnefastassódepois

que ficasse sozinho. Tomei um ônibus, ansiosa por umpasseio

campestre.Atemperaturabaixaraumpouco,massentia-mefeliz

em poder andar livremente. Também, depois daquela longa

viagemedaprisãoemMuizenberg!

Muitasvezes,coisasimportantesdependemdeninharias.Ao

sairdeumacurvadaestrada,noteiqueo laçodosapatoestava

desfeito. Curvei-me para atá-lo, quando um homem quase caiu

porcimademim.Tirouochapéu,murmurandoumadesculpa,e

prosseguiu o caminho. A fisionomia nãome era estranha,mas

nãomedetiveapensarnisso.Olheiashorasnorelógiodepulso.

Otempopassavarapidamente.Fizmeia-voltaeseguiemdireçãoà

CidadedoCabo.

Apressei-me em alcançar o ônibus já quase de partida,

quando principiei a ouvir passos atrás de mim. Entrei

apressadamente, mas percebi que meu seguidor me

acompanhava.Reconheci-oimediatamente:tratava-sedohomem

queencontraránaestradanomomentoemquerefaziaolaçodo

Page 195: Agatha christie - o homem do terno marrom

sapato. De repente, verifiquei que o seu rosto me era familiar.

Tratava-sedohomenzinhodenarizenorme,quenanoiteanterior

mederaumesbarrãoquandoeusaíadaestação.

A coincidência dava o que pensar. Seria possível que o

homem deliberadamente me seguia? Decidi tirar a prova

imediatamente.Toqueiacampainhaedescinoprimeiroponto.O

desconhecido continuou no ônibus. Pus-me a observá-lo,

abrigada na porta de uma loja. Apeou no ponto seguinte e

caminhounaminhadireção.

O caso se esclarecia: vigiavam-me os passos. Minha alegria

duroupouco,poisavitóriaque imaginara terobtidosobreGuy

Pagett tomou aspecto diverso. Entrei no ônibus seguinte e,

exatamente como eu esperava,meu seguidor imitou-me.Desisti

depensarseriamentenocaso.

Segundotudoindicava,osacontecimentosdequeparticipava

erammais importantes do que julgava. Não podia considerar o

crimenacasadeMarlowumincidenteisolado,deautoriadeum

único indivíduo.Percebiqueenfrentavaumgrupodepessoase,

graçasàsrevelaçõesdoCoronelRacefeitasaSuzanne,etambém

pelo que ouvira na vila, em Muizenberg, estava apta a

compreender algumas das diversas atividades em que se

ocupavam.Eraocrimeorganizado.Eporquem?Pelohomema

quem seus asseclas tratavam de Coronel. Lembrei-me das

conversasqueouviraabordosobreagrevenoRand,suascausas

— verdadeiras raízes ocultas — e os boatos de que uma

organizaçãosecretaagiacomopropósitodefomentaraagitação.

Era obra do Coronel, cujos emissários trabalhavam

mancomunados. Segundo diziam, ele próprio não participava

dessas atividades; limitava-se apenas a dirigir a organização.

Page 196: Agatha christie - o homem do terno marrom

Idealizava o plano, mas a parte perigosa, ou melhor, a sua

realização, recaía sobre terceiros. Bem podia ser que estivesse

agora por ali, agindo como o cérebro pensante do grupo,

escudadoporémnumaposiçãosólida.

ApresençadoCoronelRaceabordodoCastelodeKilmorden

explicava-se perfeitamente: vinha em perseguição do grande

criminoso. Ahipótese confirmava-se.Race desfrutava de grande

prestígionoserviçosecreto,cujafinalidadeeraagarraroCoronel.

Os fatos tornavam-se cada vez mais claros. E a mim, que

parte tocava? Afinal, por que participava disso? Seria pelos

diamantes?Abaneiacabeçanegativamente.Pormaiorquefosseo

valor das gemas, não eramenor o esforço despendido parame

tiraremforadajogada.Eupossuíavalorinestimávelaosolhosdo

bando criminoso. De qualquer forma, sem que o soubesse,

tornara-meumaameaça,umverdadeiroperigo!Oconhecimento

dos fatos — ou o que supunham que eu tivesse — deixava-os

desesperadosparaafastar-meaqualquerpreço.Deduziqueesse

conhecimento se ligava de uma ou de outramaneira às pedras

preciosas.Umaúnicapessoapoderiaelucidar-me!O"homemdo

ternomarrom",HarryRayburn.Eleconheciaasegundametade

dahistória. Sumira comouma sombra, não passava deum ser

acuadocomoumanimal, fugindodeumcerco cerrado.Eunão

viaaprobabilidadedeumdianosencontrarmosoutravez...

Esforcei-me por retornar à realidade do momento. Não

adiantavapensarcomternuraemHarryRayburndepoisdaquela

ostensiva demonstração de antipatia pela minha pessoa. Ou,

quemsabe... Já estavanovamente... sonhando!Urgia resolver o

problemaatual—imediatamente!

Page 197: Agatha christie - o homem do terno marrom

Eu,tãoorgulhosadomeupapeldevigilante,passaraagoraa

servigiada.Esentia-meamedrontada!Pelaprimeiravezperdio

controledosnervos.Eraopequeninogrãodeareiaqueimpediao

funcionamentonormaldagrandemáquina.Imagineiquãopouco

tempo de vida lhe restaria funcionando fora do ritmo, só por

causadepequeninosgrãosdeareia.Deumafeita,HarryRayburn

salvara-me;deoutra,eumesmaconseguirafugiraoperigo;mas,

de repente, senti que a fatalidade trabalhava contra a minha

pessoa. Encontrava inimigos por toda parte, em. todas as

direções, e assim o cerco apertava. Se continuasse sozinha no

jogo,perderia.

Esforcei-me por readquirir ânimo. Afinal, que poderia

acontecer? Achava-me numa cidade civilizada, muito bem

policiada.Eramisteracautelar-medaíemdiante.Nadadeciladas

comoadeMuizenberg.

Enquanto meditava, o ônibus alcançou a Adderley Street.

Desci.Indecisa,pus-meacaminharnacalçadadoladoesquerdo

da rua, sem dar-me ao trabalho desnecessário de observar se

estavasendoseguida.EntreinoCartwright'sepedidoissorvetes

decafécomsodapararevigorarosnervos.Umhomemnamesma

situaçãopediriaumaperitivobemforte;masasmulheresobtêmo

mesmoresultadocomsorvetes.Gostosamente,pus-meatomá-los

com o canudinho de palha. O líquido gelado, descendo pela

garganta, produzia agradável sensação. Afastei o primeiro copo

vazio.

Estava sentada num desses banquinhos altos, frente ao

balcão. Com o rabo do olho, observei que o homem entrava,

dirigindo-sediscretamenteparaumamesinhapertodaporta.Sou

capazdetomarumnúmeroilimitadodesorvetescomsoda.

Page 198: Agatha christie - o homem do terno marrom

Fiquei surpresa quando, inopinadamente, ele se levantou e

saiu.Sepensavaemesperar-me fora,porquenãoagirasempre

dessa forma?Saltei do banquinho e com cuidado aproximei-me

daporta,masvolteidepressa.Ohomemestavaconversandocom

GuyPagett!

Seaindamerestassemdúvidas,ter-se-iamdesvanecidonesse

momento. Pagett estava alerta, mantendo vigilância. Trocaram

rapidamentealgumaspalavrase,emseguida,osecretáriodesceu

a rua rumo à estação. Fora, claro estava, transmitir as ordens

recebidas.Masquais?

Derepente,pareceu-mequeocoraçãoqueriasaltarpelaboca:

o homem atravessou a rua e dirigiu-se a um policial. Falou

durante algum tempo, apontando diversas vezes para a

confeitaria,comoseestivessedandoexplicações.Percebioplano

imediatamente. Queria mandar me prender, sob a alegação de

algum motivo, qualquer que fosse — roubo de carteira, talvez.

Nadamaisfácilparaobandocriminosodoquelevaravanteum

problematãocorriqueiro.Denadaadiantariaprotestarinocência.

Comcertezajátinhamestudadoospormenores.Hámuitotempo

nãotinhamlançadosobreHarryRayburnaculpadoroubodos

diamantes deDeBeers?E omoçonão conseguira eximir-se do

crime, se bem que a meus olhos fosse inocente. Com que

probabilidadeeupoderiacontarnuma"tramóia"maquinadapelo

Coronel?

Automaticamente ergui os olhospara o relógio enomesmo

instante esclareceu-se o outro lado da questão. Vi Pagett olhar

paraorelógiodepulso.Eramonzehorasemponto.Otremcom

Page 199: Agatha christie - o homem do terno marrom

destino à Rodésia devia estar de partida, levando os amigos

influentesquepoderiamviremmeuauxílio.Essaarazãoporque

aindagozavadeimunidade.Estava

a salvo, desde a noite anterior até as onze horas do dia

seguinte;mas,agora,ocercofechava-seaomeuredor.

Quandoapressadamenteabriabolsaparapagarossorvetes,

encontreidentrodelaumacarteiradehomemrecheadadenotas!

Só podia ter sido colocada ali pormãos ágeis, nomomento em

quesaídoônibus.

Perdi a cabeça. Saí do Cartwright's quase correndo. O

homenzinhodenarizdisformeeopolicialestavamatravessandoa

rua.Quandomeviram,ohomem,muitoagitado,meapontouao

guarda.Dispareinumacorridadesabalada, coma impressãode

que o policial não me seguia com muita rapidez. Até aquele

momentonãotinhaarquitetadonenhumplano.Parasalvarapele

corri até a Adderley Street. Os transeuntes olhavam-me,

assustados.Receeiquemedetivessemaqualquermomento.

Umaidéiaatravessou-meocérebro.

—Aestação?—pergunteiofegante.

—Àdireita.

Continueiacorrer,porqueemsetratandodealcançarotrem

issoénatural.Ohomenzinhodonarizdisformeeracampeãode

corrida.Calculei que seria detida antes de chegar à plataforma.

Olhei as horas; faltava um minuto para as onze. Talvez ainda

conseguisserealizaroplano.

Page 200: Agatha christie - o homem do terno marrom

Eu entrara na estação pela porta principal, na Adderley

Street. Como uma flecha, segui pela saída lateral. Por

coincidência, no edifício do correio também havia uma porta

lateral,fronteiraàdaestação;eaprincipaldavaparaaAdderley

Street.

Comoimaginara,ohomem,emvezdeiratrásdemim,correu

pelarua,comointuitodecortar-measaída,casoeusurgissena

entradaprincipal;ouentãotalvezquisessepreveniropolicialda

minhapresença.

Num abrir e fechar de olhos atravessei a rua e em seguida

voltei à estação. Corria como uma desesperada. Eram onze em

ponto. Quando cheguei à plataforma, o trem estava de partida.

Umcarregadortentousegurar-me,mascomumsafanãolivrei-me

deleesalteiparaoestribodovagão.Subiosdoisdegrauseabria

porta.Salva,enfim!Ocomboioganhavavelocidade.

Ao passar por um homem em pé -na extremidade da

plataforma,acenei-lhecomamão.

—Adeusinho,Mr.Pagett—gritei.

Nuncavininguémmaisatônitoemtodaaminhavida.Davaa

impressãodeestarvendoalmadooutromundo.

Daíapoucotiveumatritocomochefedotrem.Aúnicasaída

seriaassumiratitudearrogante.

—SouasecretáriadeSirEustacePedler—expliqueiemtom

altivo.—Façaofavordemeinformarondeéocarroreservado.

Suzanne e oCoronel Race estavamde pé na plataforma de

Page 201: Agatha christie - o homem do terno marrom

trás do vagão. Ao ver-me, ambos soltaram uma exclamação de

surpresa.

— Olá, Miss Anne — disse o Coronel Race. — De onde

surgiu? Pensei que tinha ido a Durban. É a criatura das

surpresas!

Suzannenadadisse,mascomoolharfazia-memil

perguntas.

— Preciso apresentar-me ao meu patrão — falei com

gravidadeafetada.—Ondeestá?

—Noescritório;éocompartimentocentral.Continuaditando

comoumatorrenteparaacoitadadaMissPettigrew.

—Esseentusiasmopelotrabalhoénovidadeparamim

—comentei.

— Humm! — murmurou o Coronel Race. — Creio que

pretende sobrecarregar de trabalho a secretária de maneira a

acorrentá-la à máquina de escrever, no escritório dela, para o

restododia.

Rigostosamente.AcompanhadadeSuzanneedocoronel,fui

procurarSirEustace.Elepercorriadeumladoaoutroopequeno

compartimento, ditando aos borbotões para a infeliz secretária.

Vi-apelaprimeiravez.Alta,deombroslargos,trajavaumvestido

decorpardacentaeusavapince-nez.Pareciasermuitoeficiente,

masaomesmotempodeu-meaimpressãodeestarencontrando

dificuldadeemviverempazcomSirEustace.Defato,enquantoo

lápisvoavasobreopapel,elafranziahorrivelmenteossobrolhos.

Page 202: Agatha christie - o homem do terno marrom

Entreinocompartimento.

—Otremvaipartir,sir—faleicomaratrevido.

Sir Eustace fez uma pausa em meio a uma sentença

complicadasobreasituaçãotrabalhistaeencarou-me.Apesarde

ter fisionomia de pessoa resoluta, Miss Pettigrew devia ser

criaturanervosíssima,porquantodeuumsaltonacadeiracomo

setivesselevadoumtiro.

—BenditosejaDeus!—exclamouSirEustace.—Eomoço

deDurban?

—Prefiroasuacompanhia—murmureicomdoçura.

—Querida, pode começar imediatamente a segurarminhas

mãos.

MissPettigrewtossiu,ebemdepressaSirEustaceafastou-se.

—Muitobem!—disse.—Vejamos,ondeestávamos?Ah!Já

sei.Nodiscursoqueproferiu,TylmanRoos...Oqueaconteceu?

Porquenãoestátomandonota?

—Creio—interrompeuoCoronelRace—queMissPettigrew

quebrouapontadolápis.

Ocoroneltomou-lheolápisepôs-seafazer-lheapontacom

o canivete. Sir Eustace e eu observávamos a cena, ambos

admirados. Havia no tom de voz do Coronel Race algo queme

escapouacompreensão.

Page 203: Agatha christie - o homem do terno marrom

22

(FragmentosdodiáriodeSirEustacePedler)

Estou pensando em deixar de lado temporariamente as

minhasReminiscências para escrever um pequeno artigo

intitulado "Meusex-secretários".Por falaremsecretários,parece

quemerogarampraga.Háocasiõesemquenãotenhonenhum,

noutrastenho-osdesobra.

EstoudeviagemparaaRodésia,acompanhadodeumbando

de mulheres. Race está continuamente ao lado das duas mais

bonitas, e, quanto amim, sobra-me o restolho. Isso sempreme

aconteceu; afinal de contas, estou nomeu vagão reservado, não

nodeRace.

Anne Beddingfield também vai à Rodésia, como minha

secretária.Nãoobstante,passouatardeinteiranaplataformado

carro,emcompanhiadeRace,admirandoabelezadodesfiladeiro

dorioHex.Asuaprincipalobrigaçãoésegurarasminhasmãos;

noentanto,nemissofaz.TalvezsejaportemoraMissPettigrew.

Masnãomerececensuraporisso.Nadaexistemenosatraentedo

que Miss Pettigrew; é simplesmente repulsiva. Os pés enormes

maisparecemdehomemquedemulher.

PairagrandemistérioaoredordeAnneBeddingfield.Tomou

otremdeumsalto,noúltimoinstante,bufandocomomáquinaa

vapor. Parecia até que estava apostando corrida. Além disso,

Pagettassegurou-metê-lavistopartirparaDurbanontemànoite!

Page 204: Agatha christie - o homem do terno marrom

Ouorapazandoubebendooutravezouentãoajovempossuio

domdaubiqüidade.Eelanadaexplicaarespeito.Aliás,ninguém

meexplicanada.

Ah!"Meusex-secretários!"Onúmero1,assassino,fugitivoda

justiça; onúmero2,umhomemquebebe às escondidas, e, na

Itália, imiscui-se em casos amorosos infamantes. O número 3,

ainda jovem,possuia faculdadebastantevantajosadeestar em

dois lugares ao mesmo tempo; o número 4, Miss Pettigrew, é

certamenteumperigosíssimo escroquedisfarçado em secretária!

É provavelmente um dos amigos italianos que Pagett teve a

ousadiademeimpingir.Rayburnfoiomelhordobando.Nunca

me causou aborrecimentos nem interferiu na minha vida. Guy

Pagett teve a impertinência de colocar a mala de material de

escritório no meu compartimento. Por causa dela ninguém se

movesemlevarumtropeção.

Há pouco fui à plataforma. Julguei que saudariam minha

chegadacomexclamaçõesdealegria.Ambasassenhorasouviam

atentas uma daquelas histórias de Race. Vou colocar uma

tabuleta neste carro; em vez de "Sir Eustace Pedler e amigos",

escreverei"CoronelRaceeseuharém".

Em seguida, Mrs. Blair começou a tirar fotografias

desprovidasdesignificação;cadavezqueotremfaziaumacurva

fechada,elatiravauminstantâneo.

— Estão percebendo a minha intenção? — perguntou

encantada.— Tirando a foto do último vagão, nomomento em

queamáquinafazacurvaecomamontanhaaofundo,vouobter

umabelavisãodaprofundidadedodespenhadeiro.

Page 205: Agatha christie - o homem do terno marrom

Fiz-lhe notar a possibilidade de as pessoas não perceberem

queafotografiatinhasidotiradadointeriordotrem.Elafitou-me

consternada.

—Escrevoembaixo:"Tiradadointeriordotrem.Máquinana

curva".

—Devia escrever embaixode todas—afirmei. Por que será

queasmulheresnuncapensamnessascoisastãosimples?

— Estou contente por fazermos a viagem durante o dia —

exclamouAnneBeddingfield.—Setivesseseguidoontemànoite

paraDurban,teriaperdidotodasestasmaravilhas,nãoémesmo?

—É,sim—disseoCoronelRace,sorrindo.—Teriaacordado

amanhãcedonoKaroo.Éumdesertotórrido,poeirento,cheiode

pedraserochas.

— Foi bom ter mudado de idéia — continuou Anne,

suspirandoalegremente.Econtinuouacontemplarapaisagem.

A vista era belíssima. O trem serpenteava, contornando as

grandesmontanhas,easubidatornava-secadavezmaisdifícil.

—É este oúnico diurnopara aRodésia?— indagouAnne

Beddingfield.

—Diurno?—repetiuRace,dandoumarisada.—Ora!Minha

caraMissAnne,existemtrêsporsemana.Àssegundas,quartase

sábados.Sóchegaremosàscataratasnosábado.

— Há tempo para ficarmos nos conhecendo bem! — falou

Mrs.Blaircommalícia.—Vamosnosdemorarnascataratas,Sir

Eustace?

Page 206: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Depende—respondiressabiado.

—Dequê?

—DecomoencontrarascoisasemJohannesburg.Meuplano

inicial era ficar uns dois dias nas cataratas, porque não as

conheço,emborajátenhavindotrêsvezesàÁfrica,edepoisira

Jo'burg examinar a situaçãodoRand.Na Inglaterra, a senhora

sabe, sou tido comoautoridade emmatériadepolíticaafricana.

Mas,peloqueédemeuconhecimento,Jo'burgestásetornando

um lugarmuitodesagradávelparaumaestadademaisdeuma

semana.Nãotenhoamenorintençãodefazerestudosemmeioa

umarevoluçãodesenfreada.

Racesorriucomaresdesuperioridade.

—Creioqueseutemoréexagerado,SirEustace.Nãocorrerá

grandeperigoemJo'burg.

Assenhorasimediatamentefitaram-nocomumolharondese

traduzia a expressão: "Que grande herói!" Fiquei

contrariadíssimo,poismeconsiderotãocorajosoquantoRace.O

que me falta é a sua estampa. Os homens altos, elegantes e

morenostêmtudoaseufavor.

—Vocêpassaráporlá—dissefriamente.

—Émuitoprovável.Poderemosviajarjuntos.

—Nãotenhocertezadeficarnascataratas—respondi,para

não assumir compromisso. Por que esta ansiedade de Race em

quererqueeuváaJo'burg?CreioqueestádeolhoemAnne.—

Page 207: Agatha christie - o homem do terno marrom

Quaissãoosseusplanos,MissAnne?

—Depende—respondeucomreserva,irritando-me.

—Penseiqueeraminhasecretária—objetei.

— Ora, o senhor me dispensou... Miss Pettigrew acariciou

suasmãosatardeinteira...

—Fizmuitascoisas,masjuroqueissonão—garanti.

Quinta-feiraànoite

Deixamos Kimberley há poucos momentos. Novamente

obrigaramRaceacontarocasodosdiamantes.Porqueseráque

asmulheresficamtãoalvoroçadasquandoouvemfalarempedras

preciosas?

Finalmente! Caiu o véu de mistério que envolvia Anne

Beddingfield. Ela é correspondente de um periódico, e hoje de

manhã enviou telegrama longuíssimo de De Aar. A julgar pelo

rumordevozesqueperdurouquaseanoiteinteiranacabinade

Mrs. Blair, ela devia ter lido em voz alta todos os artigos que

pretendemandarpublicar.

Ninguémmetiradaidéia:ajovemestáàprocurado"homem

do ternomarrom".Peloquemeédadoobservar,nãoconseguiu

descobri-lo noKilmorden. Realmente, não houve oportunidade;

noentanto,telegrafouparaaInglaterra:"Viajeiemcompanhiado

assassino"—einventouhistóriastaiscomo"Oqueelemedisse,

etc." Conheço essas coisas. Eu próprio as pratico nas

Reminiscências, quando Pagett não se opõe. Com detalhes

floreadospelopessoalde

Page 208: Agatha christie - o homem do terno marrom

Nasby,nemRayburnvai se reconhecernosartigosdoDaily

Budget.

Amoçaé inteligente.Pelo jeito,andouesquadrinhando,por

conta própria, a identidade da mulher assassinada em minha

casa.Trata-sedeumabailarinarussachamadaNadina.Indaguei

de Anne se tinha certeza disso. Respondeu-me que era pura

dedução — à maneira de Sherlock Holmes. Julgo, porém, que

telegrafou aNasby como se fosse fato consumado. Asmulheres

sãodotadasdessasintuições.NãoduvidoqueAnneBeddingfield

estejacertanassuasconjeturas,maschamar issodededuçãoé

simplesmenteabsurdo.

Nãopossoimaginarcomoconseguiufazerpartedocorpode

redatoresdoDailyBudget,emboraseenquadreentreasmulheres

capazes de audácias na consecução do que desejam. Impossível

opor-lhe resistência. Tem um jeitinho todo especial de agradar,

que encobre uma invencível força de vontade. Haja vista a

maneiracomoentrounomeuvagãoreservado!

Soubeumboato. SegundoRace, a polícia desconfia de que

Rayburn seguiu para a Rodésia. Decerto partiu no trem de

segunda-feira. Telegrafaram o tempo todo, suponho, sem

encontrar ninguém do tipo que corresponda ao do rapaz.

Rayburnéastutoe,alémdisso,conheceaÁfrica.

Provavelmente, já se disfarçou em negra banto e a polícia

ainda continua procurando um bonito rapaz com uma cicatriz

segundooúltimofigurinoeuropeu.Jamaisacrediteinacicatriz.

Anne Beddingfield, porém, insiste em persegui-lo. Quer

desfrutar da glória de tê-lo descoberto sozinha, para oDaily

Page 209: Agatha christie - o homem do terno marrom

Budget. Hoje em dia, as jovens são muito cruéis. Dei-lhe a

entenderquepraticavaumaaçãodesumana.Riunaminhacarae

garantiu-me que eramuito feliz, mesmo que tivesse de ir atrás

deleatéofimdomundo.BemvejoadesaprovaçãodeRace.Talvez

Rayburnestejanestetrem.Seassimfor,corremosoriscodeser

assassinadosnos.própriosleitos.ExterneiminhahipóteseaMrs.

Blair;elaachouplausívelaidéia,acrescentandoque,seeufosse

assassinado, Anne teria um formidável furo jornalístico! Com

efeito!

Amanhã chegaremos à Bechuanalândia. Lá, a poeira é

simplesmente atroz. Em todas as estações aparecem crianças

vendendo figuras de animais que elas mesmas talham em

madeira.Vasilhasecestosdepalhademilhotambém.Receioque

Mrs.Blairfiquefuriosa,porquantoessesbrinquedosexercemum

encanto selvagem sobre certas pessoas. Temo que isso lhe

aconteça.

Sexta-feiraàtarde

Exatamente como eu previa, Mrs. Blair e Anne adquiriram

quarentaenoveanimaizinhosdemadeira!

Page 210: Agatha christie - o homem do terno marrom

23

(ResumodanarrativadeAnne)

A viagem à Rodésia foi simplesmente adorável. Diariamente

aconteciamcoisasnovaseemocionantes.Aprimeirafoiocenário

maravilhosoondeseestendeovaledorioHex;depois,osuntuoso

e desolado Karoo, e, por fim, a belíssima reta que conduz à

Bechuanalândia. E que dizer dos bichinhos esculpidos pelos

nativos!Suzanneeeuatrasamo-nosemquasetodasasestações

—seéqueaquilomereceonomedeestação!Tinhaaimpressão

de que o trem parava por quanto tempo lhe aprazia, enquanto

verdadeira horda de nativos surgia da paisagem nua, trazendo

vasilhasconfeccionadascompalhademilho,oucana-de-açúcar,

mantosdepelesdeanimaiseadoráveisbichinhosesculpidosem

madeira. Sem perda de tempo, Suzanne iniciou uma coleção.

Imitei-lheoexemplo.Amaiorpartecustavaumtiki(trêspence),e

avariedadeeraenorme:girafas,tigres,serpentes,umantílopede

expressão melancólica e incríveis guerreiros, bem pequeninos.

Divertimo-nosagranel.

Sir Eustace procurou conter-nos, mas em vão. Foi milagre

nãotermosficadoemalgumoásispertodaestrada.Ostrenssul-

africanosnãoapitamnem fazem ruídonomomentodapartida;

apenasdeslizamtranqüilamente.Interrompíamosoregateioeera

umsalve-se-quem-puder.

ImaginoosustodeSuzannequandosubinotremnaCidade

do Cabo. Estudamos a situação minuciosamente. Ficamos a

Page 211: Agatha christie - o homem do terno marrom

conversarmetadedanoite e decidi-me ausarnão só táticas de

defesacomodeataque.EstavaasalvoenquantoviajassecomSir

Eustace e o grupoque o acompanha.Ele e oCoronelRace são

protetorespoderososemeusadversáriosnãoserãotolosaponto

de querer mexer em vespeiro. Enquanto permanecesse na

companhiadeSirEustace,estariaemcontactocomGuyPagett—

opivôdomistério. Perguntei aSuzanne se via possibilidadede

ser ele omisteriosoCoronel.Aposiçãode subordinado era, por

certo,contráriaàhipótese.Umaouduasvezes,noentanto,deu

para perceber como suas maneiras autoritárias exerciam

influência sobre Sir Eustace. Dada a natureza indolente do

patrão, não era difícil ao secretário manobrá-lo com o dedo

mindinho. O cargo, relativamente obscuro, podia ser-lhe útil,

umavezquelheconvinhamanter-seforadaribalta.

Suzanne, porém, discordouin totum das minhas idéias.

Recusava-seaacreditarqueGuyPagetteraoespíritodirigentedo

negócio.O verdadeiro cérebro— oCoronel—devia ser alguém

queficavanosbastidoresejáestariaemterritórioafricanoantes

danossachegada.

Essepontodevistanãodeixavadeserdignodeconsideração,

mas não me satisfazia, pois em todos os momentos suspeitos

Pagett surgia como dirigente. À sua personalidade faltavam a

segurançaeadecisãoprópriasdeumpotentadodocrime;afinal

de contas, de acordo com o Coronel Race, ao líder misterioso

competiaunicamenteotrabalhocerebral.E,comosóiacontecer,

aogêniocriadorfreqüentementesealiaumaconstituiçãofracae

timorata.

—Falaafilhadoprofessor—interrompeuSuzanne,quando

Page 212: Agatha christie - o homem do terno marrom

chegueiàsconclusõesdosmeusargumentos.

— De qualquer maneira, essa é a verdade. Por outro lado,

podedar-seocasodePagettserogrão-vizirdotodo-poderoso.

Nadamaisacrescenteidurantealgunsinstantes;depois,falei

pensativa:

—GostariadesaberaorigemdafortunadeSirEustace!

—Duvidadeleoutravez?

—Suzanne,chegueiaumpontoemquenãopossodeixarde

desconfiar de quem quer que seja! Não levanto suspeitas

propriamente,mas, afinal de contas, ele é o patrão de Pagett e

proprietáriodaCasadoMoinho.

—Sempreconstouqueadquiriu fortunapormeiossobreos

quaispreferesilenciar—disseSuzanneemtommeditativo.—No

entanto, isso não significa que sejam meios criminosos; tanto

poderiaserfabricantedepregoscomodetônicoparacabelo!

Concordeitristemente.

— Será — continuou Suzanne — que estamos perdendo

nossotempo?Nãoestaremoscompletamenteforadarota, istoé,

admitindo a cumplicidade de Pagett? E se ele for um homem

honesto?

Considereiosargumentose,emseguida,abaneiacabeçaem

sinalnegativo.

—Nãoacredito.

Page 213: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Afinal,eletemexplicaçõesparatudo.

—Sim...mas não convence. Por exemplo, na noite em que

tentouatirar-mepela amuradadoKilmorden,alegouterseguido

RayburnaoconvésequeopróprioRayburnsevoltouedeu-lhe

umsoco.Sabemosqueessanãoéaexpressãodaverdade.

— Não — concordou Suzanne a contragosto. — Mas

soubemos dessa história por intermédio de Sir Eustace. Se a

contasse o próprio Pagett, quem sabe teria sido diferente. Bem

sabequequemcontaumcontoaumentaumponto.

Fiqueiruminandooassunto.

—Não—disseporfim—,nãovejosaídaparaocaso.Pagetté

culpado.Nãovejocomomenosprezarofatodetentaratirar-meao

mar.E,alémdisso, tudoomaiscombina.Porquevocêpersiste

nessaidéia?

—Porcausadafisionomiadele.

—Fisionomia?Mas...

— Sim, sei o que vai dizer. Tem uma fisionomia sinistra,

apenasisso.Anaturezapregou-lheumapeçademaugosto.

NãoacrediteinoargumentodeSuzanne.Conheçomuitobem

osmétodosdanatureza,desdeosseustemposprimevos,e,seela

tiverrealmentesensodehumor,nãoodemonstracomonocaso

deSuzanne,comtodososatributosquelheprodigalizou.

Passamos a discutir os planos de ordem imediata. Urgia

firmar minha situação. Não podia continuar evitando as

explicações.A soluçãodoproblemaestavaaomeualcance, sem

Page 214: Agatha christie - o homem do terno marrom

que dela me lembrasse. ODaily Budget! Falasse ou não, nada

maisprejudicariaHarryRayburn.Todosacreditavamqueeleera

o"homemdoternomarrom".Nãoporminhaculpa.Julgueiqueo

auxiliaria se conseguisse dar a impressão de estar contra ele.

Fazia-semisterqueoCoroneleseubandonãosuspeitassemdas

boas relaçõesexistentesentremimeoassassinodeMarlow.Ao

que eu sabia, a vítima ainda não tinha sido identificada. Achei

bomtelegrafaraLordeNasby,nessesentido,esclarecendoquese

tratavanemmaisnemmenosdeNadina,famosabailarinarussa

que fascinara toda Paris. Parecia-me incrível que ainda não a

tivessem identificado. Quando, porém,muitomais tarde, soube

pormenoresdocaso,acheitudomuitonatural.

NadinanuncaforaàInglaterranaépocadabrilhantecarreira

querealizavaemParis.Nadamaisnaturalqueopúblicolondrino

não a conhecesse. As fotografias nos jornais, publicadas na

ocasiãodocrime,tornavam-nairreconhecível.Alémdisso,Nadina

guardarasegredoquantoàintençãodevisitaraInglaterra.Nodia

seguinteaodocrime,oempresáriorecebeuumacartaforjada,na

qual a bailarina explicava que motivos urgentes e de ordem

pessoal a obrigavam a voltar à Rússia e solicitava desfazer o

contratodamelhorformapossível.

Todosessesfatos,comojámencionei,sóchegarammaistarde

ao meu conhecimento. De De Aar enviei, com a aprovação

irrestritadeSuzanne,umlongotelegramaaLordeNasby,oqual

chegou no momento psicológico exato (é claro que só o soube

depois). ODaily Budget ansiava por assuntos sensacionais.

Depois de estudada e aprovada, minha hipótese constituiu o

maior furo jornalístico publicado por essematutino: "Vítima da

Casa do Moinho identificada por enviado especial doDaily

Page 215: Agatha christie - o homem do terno marrom

Budget"'. E a notícia continuava: "Nosso repórter viaja com o

assassino,o'homemdoternomarrom'".

Os principais fatos retornavam por cabograma à África do

Sul. È eu só tive conhecimento deles muito tempo depois! Em

Bulawayo, recebi congratulações e instruções completas, pois

passaraafazerpartedoDailyBudget.LordeNasbyenviou-meum

bilhetedecongratulações,escritodoprópriopunho,noqualme

autorizavadefinitivamenteaprosseguirnacaçaaoassassino.E,

noentanto,euesomenteeusabiaqueocriminosonãoeraHarry

Rayburn! Mas deixemos todo mundo pensar o contrário; no

momentoéamelhorsolução.

Page 216: Agatha christie - o homem do terno marrom

24

Sábado de manhã chegamos a Bulawayo. Fiquei

desapontada. Era uma cidade quentíssima e o hotel,

simplesmente detestável. E Sir Eustace, então? Cada vez mais

rabugento. A causa talvez fossem os bichinhos de madeira,

principalmente a girafa. De fato, era enorme, com um pescoço

incrível, de olhar manso e cauda pendurada. Mas, não posso

negar, tinha personalidade, possuía encanto. Entre mim e

Suzanne surgiuumadúvida.Aquempertencia o animalzinho?

Cada uma de nós contribuíra com umtiki. Minha amiga

reivindicouodireitodeprioridadeeoseuestadocivil; eu fiquei

firme,alegandotê-lovistoemprimeirolugar.

Entrementes — confesso —, ela ocupava grande parte do

espaçotridimensionaldequedispúnhamos.Viajarcomquarenta

enovebichinhosdevariadasformas,confeccionadosemmadeira

quebradiça, é realmente um problema. Para o transporte, foi

necessário o auxílio de dois carregadores, sobraçando um

punhadodelescadaum.Assimmesmo,deixaramcairumgrupo

de encantadores avestruzes, e todas ficaram com a cabeça

quebrada.Suzanneeeu,desobreaviso,decidimoscarregar,nós

mesmas, todososquepudéssemos.OCoronelRaceprestou-nos

grandeauxílio.Eeuempurreiagirafa,queeraomaiordetodos,

paraosbraçosdeSirEustace.Nemasisudasecretáriaescapou:

coube-lhe o transporte de um enorme hipopótamo e de dois

guerreiros negros. Miss Pettigrew dava-me a impressão de que

nãomeapreciava.Talvezmeachassecomjeitodemoçasapecae

atrevida. De qualquer forma, evitava-me ao máximo. Coisa

engraçada! A sua fisionomia não me era estranha, mas não

Page 217: Agatha christie - o homem do terno marrom

conseguiaidentificá-la.

Passamosemrepousoamaiorpartedamanhã.Àtardefomos

aoMatopposvisitaro imponenteRodes.Oumelhor,deveríamos

ter ido,mas, no último instante, Sir Eustace arrepiou carreira.

Estava quase tão mal-humorado como na manhã em que

chegamosàCidadedoCabo,quandoatirouospêssegosnochãoe

eles se esborracharam! Levantar-se demanhãzinha é nocivo ao

seu temperamento. Amaldiçoou os carregadores, o garçom, os

administradoresdohotel,ecertamenteteriagostoemamaldiçoar

Miss Pettigrew, que, de papel e lápis empunho, andava deum

lado para o outro. No entanto, não acredito que Sir Eustace

tivesse a ousadia de amaldiçoá-la. A secretária é a eficiência

personificada, talcomonosromances.Felizmentesalveiagirafa

aindaatempo.PressentiqueSirEustaceeracapazdelançá-laao

solo.

Voltoacontarsobreaexpedição:

Miss Pettigrew ofereceu-se para ficar no hotel. Sir Eustace

poderianecessitardosseusserviços.Noúltimoinstante,Suzanne

mandou um recado, dizendo estar com forte dor de cabeça.

Diantedisso,oCoronelRaceeeupartimossozinhos.

Que homem esquisito! Numa conversa em grupo, isso pode

passardespercebido,mas,quandoseestáasóscomele,nota-se

que tem uma personalidade realmente dominadora. Mostra-se

taciturno e, no entanto, o seu silêncio parece exprimirmais do

queaspalavras.

Naquelediatambémsemostrousombrio,duranteopercurso

aoMatoppos, através da planície cheia de arbustos cobertos de

Page 218: Agatha christie - o homem do terno marrom

uma folhagemdourada.Tudopareciaestarenvoltoemestranho

silêncio,exceçãofeitaaonossocarro;pareciaseroprimeiroFord

que apareceu sobre a terra! O estofamento dilacerado dava a

impressãodetersidoconfeccionadoemtiras,e,apesardaminha

ignorância em relaçãoamáquinas,podia imaginarqueomotor

nãofuncionavacomonaépocadasuamontagem.

Aos poucos, o aspecto da região mudou. Começaram a

aparecer grandes pedras arredondadas, empilhadas de modo

fantástico.Sentiquepenetravanumaeraprimitiva.Duranteum

instante, os homens de Neandertal tornaram-se-me tão reais

como tinham sido também aos olhos de meu pai. Tudo aquilo

assemelhava-se a um sonho. Voltei-me para o Coronel Race e

disse:

—Certamente existiramgigantespor aqui.E os seus filhos

deveriam ter sido como as crianças de agora; brincavam com

punhados de seixos, que empilhavam para depois deitá-los

abaixo.Equantomaisatorreoscilasse,maisgraçaachavamno

brinquedo.Semefossedadoescolherumnomeparaeste lugar,

euochamariaoPaísdosFilhosdosGigantes.

— Talvez estejamais próxima da verdade do que realmente

imagina — respondeu o Coronel Race. — Simplicidade,

primitivismo,grandiosidade—assiméaÁfrica.

—Gostadaqui,nãoéverdade?

—Gosto.Eaquigostariadeviverparasempre.Noentanto,

estepaístornaaspessoascruéis.Poucoapreçosedátantoàvida

comoàmorte.

—É issomesmo—disse, pensando emHarryRayburn.—

Page 219: Agatha christie - o homem do terno marrom

Massãocruéiscomosseresfracos?

—Asopiniõesdiferemquantoaoquechamade"seresfracos",

MissAnne.

Haviaumanotadetristezanasuavozquemesobressaltou.

Percebiquãopoucosabiaarespeitodessehomem.

—Referia-meacriançasecães.

—Digosinceramentequejamaisfuicruelcomascriançasou

com os cães. Quer dizer que não classifica as mulheres como

"seresfracos"?

Depoisderefletiralgunsinstantes,respondi:

—Não,nãoasclassificocomotal,emboratalvezosejam,pelo

menosatualmente.Papaisemprediziaquenocomeçooshomens

easmulherespercorriamomundo,perfeitamenteunidos,iguais

emforça,comoosleõeseostigres.

—Easgirafas?—interrompeuorapaz,maliciosamente.

Não pude deixar de rir. Ninguém perdia a oportunidade de

gracejararespeitodoanimalzinho.

—Easgirafastambém.Eramnômades,comosabe,atéodia

em que se fixaram em comunidades, vivendo em grupos. As

mulhereseoshomens,porém,passaramaatividadesdiferentes;é

porissoqueasmulheressetornaramfrágeis.Masaestruturade

base é a mesma,percebemos que é igual, sendo esse omotivo

pelo qual as mulheres adoram a força física nos homens, essa

forçaqueumdiajápossuíramequedepoisperderam.

Page 220: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Emconclusão,équaseumaadoraçãodosancestrais?

—Maisoumenosisso.

—A senhorita também acredita nisso?Quero dizer, que as

mulheresadoramaforça?

— Acredito piamente. O senhor julga que admira as

qualidades morais; no entanto, se se apaixonar, reverterá ao

primitivismo,istoé,levaráemconsideraçãosomenteaaparência

física. Ainda não expliquei tudo; se o senhor vivesse numa

sociedadeprimitiva,entãoestariacerto,masnãovive;e,afinalde

contas,aprimeiraidéiavence.Oqueimportaéoquerealmente

conquistamos.ABíbliafalaemperdereencontraravida.

— Afinal — disse o Coronel Race, pensativo —, alguém se

apaixonaedepoisrenunciaaesseamor;éaissoqueserefere?

—Nãoexatamenteaisso;mas,sepreferir,podeconsideraro

assuntodessepontodevista.

— Não creio que já tenha renunciado a algum amor, Miss

Anne.

—Éverdade,nãorenunciei.

—Nemquejátenhaamado.Nadarespondi.

Ocarrocontinuouasubiraestrada íngremeatéchegarmos

aonossodestino.Eaconversaparouaí.Descemosepusemo-nos

a caminhar numa lenta ascensão à World's View. Não era a

primeiravezquemesentiaumtantoconstrangidanacompanhia

doCoronelRace. Percebia que ele ocultava ospensamentospor

trásdosimpenetráveisolhosnegros.Intimidadanasuapresença,

Page 221: Agatha christie - o homem do terno marrom

tinhaaimpressãodequepisavaemterrenoincerto.

Subimos em silêncio, até nos aproximarmos de Rodes,

resguardado por gigantescas pedras. Era um lugar estranho,

misterioso, isolado da presença do homem, e parecia entoar

ininterruptamente uma canção de alegria e triunfo, plena de

beleza.

Sentamo-nos durante algum tempo, sempre em silêncio.

Depois,descemosaencosta,afastando-nosdaestrada.Ochãoera

acidentado,echegamosadescerumaescarpaquaseíngreme.

OCoronelRaceseguianafrentee,emdadomomento,voltou-

separamim:

— Vou ajudá-la — disse, de repente, erguendo-me num

rápidomovimento.

Quandomecolocounochão,percebiaforçadosseusbraços,

dosseusmúsculosdeaço.Outravezsentimedo,principalmente

porque elenão semovia, fitando-mediretamente comumolhar

penetrante.

— Falando com franqueza, Anne Beddingfield, que está

fazendoaqui?—perguntou-meabruptamente.

—Souumaciganaquesaiuporestemundoafora.

— Sim, essa é a verdade, e as notícias que manda para o

jornal são um pretexto. A senhorita não tem veia jornalística.

Estádesorientada,procurandoagarrar-seàvida.Enãoésóisso.

Estaria forçando uma explicação? O medo tornou a me

Page 222: Agatha christie - o homem do terno marrom

assaltar; não obstante, encarei-o de frente.Meus olhos não são

comoosdele,nãosabemguardarsegredos,massãocapazesde

conduziraguerraatéocampoinimigo.

— O que estárealmente fazendo aqui, Coronel Race? —

pergunteidepropósito.

Por um instante julguei que ele ia responder. Mostrou-se

surpresoe finalmente falou,comoseaspalavras lhe fossemum

desagradáveldivertimento:

—Porambição.Apenas isso,porambição.Asenhoritadeve

estarlembradadeque"porcometeressepecadoosanjoscaíram",

etc.

—Dizem— continuei vagarosamente— que o senhor está

ligadoaogoverno,quefazpartedoserviçosecreto.Éverdade?

Foi obrade imaginaçãoou teria elehesitadouma fraçãode

segundo,antesderesponder?

— Garanto-lhe, Miss Beddingfield, que estou viajando em

caráterexclusivamenteparticular,emviagemderecreio.

Maistarde,aorecordaressaspalavras,elaspareceram-meum

tantoambíguas.Talvezfosseessaasuaintenção.

Voltamosparaocarroemsilêncio.Emmeioaopercursopara

Bulawayo, paramos para tomar chá numa casa de construção

primitiva,juntoàestrada.Oproprietário,distraídocomtrabalhos

de jardinagem, deu-nos a impressão de ficar aborrecido com a

interrupçãodassuasatividades.Todavia,prometeuamavelmente

fazer o que estivesse ao seu alcance. Após uma espera

Page 223: Agatha christie - o homem do terno marrom

interminável, serviu-nos fatias de bolo seco e chá morno. Em

seguida,desapareceunovamentenojardim.

Tão logo nos deixou, seis gatos nos rodearam, miando em

coro,desesperadamente.Paraacalmaraalgazarraensurdecedora

dei-lhesalgunsbocadosdebolo,queosanimaisdevoraramnum

instante.Despejei todo o leite numpires e puseram-se em luta

paraconsegui-lo.

—Oh!—exclamei indignada—estãomorrendode fome!É

horrível!Porfavor,peçamaisleiteeoutropratodebolo.

Atendendo àminha solicitação, o Coronel Race levantou-se

sem dizer palavra. Os gatos novamente começaram a miar. O

grande jarro de leite que ele trouxe foi devorado num abrir e

fechardeolhos.

Ergui-me.Tinhatomadoumadecisão.

—Voulevarosgatos;nãoosdeixareiaqui.

—Não seja absurda,menina.Nãopode levar seis gatos tão

facilmentecomooscinqüentabichosdemadeiraquecomprou.

— Não se importe com os bichos de madeira. Estes gatos

estãovivosevoulevá-loscomigo.

—Nãovaifazernadadisso.Fitei-o,cheiaderessentimento.

—Julga-mecruel—prosseguiu—,masnãoépossívelviver

encarando com sentimentalismo coisas triviais como essas. Não

adianta insistir;nãoconsentireiqueos leve.Estamosnumpaís

primitivo,bemsabe,eeusoumaisfortedoqueasenhorita.

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Sempreperceboquandoestouderrotada.Desciparaocarro

comosolhosmarejadosdelágrimas.

—Éprovávelque justamentehoje tenhamcomidopouco—

explicou-meaguisadeconsolação.—Adonadelesdeveteridoa

Bulawayo para fazer compras. Quando voltar, não haverámais

problema.Demaisamais,omundoestácheiodegatosfamintos;

sabedisso,nãoéverdade?

—Não,nãoestá—repliqueicomarrogância.

—Estouprocurandoensiná-laainterpretaravidacomoela

é.Euaestouensinandoaserduraeinsensívelcomoeu.Aíreside

osegredodaforçaeosegredodosucesso.

— Prefiro morrer a ser desumana — concluí

apaixonadamente.

Partimos. Aos poucos fui readquirindo calma. Subitamente,

comgrandeadmiraçãominha,eletomou-meamão.

—Anne—faloudocemente.—Quero-amuito.Quercasar-se

comigo?

Aminhasurpresaatingiuoauge.

—Oh!Não—murmurei.—Nãoposso.

—Porquê?

—Quero-o demaneira diferente. Sempre pensei no senhor

comamizade.

—Eusabia.Éesseoúnicomotivo?Acheiquedeviadaruma

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respostasincera.

—Não,nãoé.Osenhorcompreende...eu...gostodealguém.

—Eusabia—disseelepelaterceiravez.Agorahavianasua

vozumanotadissonante,quefezcomquemevoltasseparafitá-

lo.Tinhaumaexpressãosombriacomojamaisvira.

—Que...quequerdizer?—balbuciei.Olhou-medemaneira

impenetráveledominadora.

—Apenas...seiagoraoquetenhoafazer.

Essas palavras fizeram-me estremecer. Por trás delas havia

umaintençãoalémdomeualcance,quemesobressaltou.

Nada mais dissemos até a chegada ao hotel. Segui

diretamente para o quarto de Suzanne. Ainda estava deitada,

lendo,enãodavaaimpressãodeestarcomdordecabeça.

—Aquirepousaaperfeitacompanheira—observou.—Aliás,

aamigadiplomata.Queéisso,Anne?Queaconteceu?

Eutinhacaídoempranto.

Contei-lhe somente o caso dos gatos, porquanto não me

pareciadelicadomencionaroquesepassaracomoCoronelRace.

Como Suzanne é muito observadora, é bem possível que

percebessealgodeanormalnaminhaatitude.

—Nãoapanhoualgumresfriado,não,Anne?Comestecalor

seriaabsurdo,masvocêestátremendo.

— Não é nada — respondi. — Estou com um mau

Page 226: Agatha christie - o homem do terno marrom

pressentimento. Tenho a impressão de que vai suceder uma

desgraça.

— Deixe de tolice — falou-me, num tom peremptório..—

Vamos mudar de assunto, conversar sobre alguma coisa

interessante.Anne,osdiamantes...

—Aconteceualgumacoisa?

— Não sei se estarão seguros comigo. Anteriormente, sim,

porqueninguémpoderiaimaginarqueosguardavaentreosmeus

pertences. Agora todos sabem que somos amigas e poderão

suspeitardemimtambém.

—Toda gente ignora que estãonuma caixinhade filmes—

argumentei. — O esconderijo é seguro e não acredito que

possamosconseguiroutromelhor.

Suzanne concordou em parte, mas propôs voltarmos ao

assuntoquandochegássemosàscataratas.

Otrempartiuàsnovehorasdanoite.SirEustacecontinuava

mal-humorado.MissPettigrew,noentanto,pareciamaistratável.

QuantoaoCoronelRace,mantinha-sesenhordesi, fazendo-me

crerqueforaumsonhotodaaquelaconversaquetivéramos.

Nessanoitedormiumsonoprofundo,agitadoporpesadelos

terríveiseconfusos.Comodespertassecomdordecabeça,resolvi

tomararnaplataformadeobservação,ondeatemperaturaestava

fresca e agradável. De todos os lados divisavam-se montanhas

onduladas cobertas de árvores. O belíssimo panorama que se

descortinavaaosmeusolhosfoiomaislindoquejávi. Imaginei

comoseriabomterumacabananocoraçãodafloresta,eláviver

Page 227: Agatha christie - o homem do terno marrom

parasempre...sempre.

Antes das duas e meia, o Coronel Race chamou-me do

"escritório"e,apontandoparaonevoeirosuspensoacimadeum

grupodearbustos,disse:

—Anévoaquesedesprendedas cataratas.János estamos

aproximandodelas.

Envolvia-meaindaaestranhasensaçãodeumsonhoagitado

que sucede àsnoitesmal dormidas, e parecia-meque estavade

voltaàcasa...aolar!Masnuncaestiveraaí...emsonhotalvez?

Caminhamos até o hotel, um grande edifício de paredes

brancas, com redes de arame para proteção contra mosquitos.

Nãose viamestradasnemcasas.Subimosnumstoep e,ameia

milha de caminhada, não contive uma exclamação, ao

defrontarmos as cataratas. Nunca presenciara espetáculo tão

grandiosoetãobelo.Acreditoquejamaisvereioutroigual.

— Anne, você está infeliz — disse Suzanne, quando nos

sentávamosparaalmoçar.—Nuncaavidessejeito.

Efitava-mecomcuriosidade.

—Seráqueestou?—respondirindo,cientedequemeuriso

soava falso. — É apenas porque me sinto encantada com o

passeio.

—Nãoésóisso.

Franziulevementeassobrancelhas,apreensiva.

Realmente, eu estava feliz,mas, além disso, assaltava-me o

Page 228: Agatha christie - o homem do terno marrom

estranho sentimento de que esperava por mais alguma coisa...

algo que logo aconteceria e que me tirava o sossego e me

inquietava.

Depois do lanche, negros sorridentes conduziram-nos até a

ponte,emvagonetesquedeslizavamsobretrilhos.

Era um quadro maravilhoso: o abismo profundo, a água

despencando do alto, o véu de névoa que se partia de vez em

quando, por um breve instante, deixando entrever as cataratas

paradepoisfechar-senoseuimpenetrávelmistério.Eraoqueme

pareceu ser a grande fascinação das cataratas: o seu aspecto

ilusório.Julgamosquevamosver,enuncaoconseguimos.

Atravessamosapontee,caminhandovagarosamenteporuma

vereda delimitada por seixos brancos, atingimos a beira do

precipício.Porfim,alcançamosumagrandeclareira,ondesevia,

àesquerda,umestreitocaminhoquedesciaparaoabismo.

—Adescidaparaoprecipício—exclamouoCoronelRace.—

Vamos? Ou preferem deixar para amanhã? É demorada e a

subidaéíngreme.

— Deixemos para amanhã — disse Sir Eustace,

resolutamente,tomandoadianteiradocaminhodevolta.

Jánoteiquedetestaosexercíciosfísicosextenuantes.

Enquanto caminhávamos, um elegante nativo passou por

nós,pavoneando-se;atrásseguiaumamulherquepareciatrazer

todos os utensílios caseiros à cabeça! A coleção incluía uma

frigideira.

Page 229: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Nunca trago a máquina fotográfica nos momentos

oportunos—resmungouSuzanne.

—Essasocasiõesse repetirão freqüentemente,Mrs.Blair—

disseoCoronelRace.—Nãohárazãoparalamentar-se.

Chegamosàponte.

— Vamos à floresta dos arco-íris? — continuou. — Ou

receiammolhar-se?

Suzanne e eu o acompanhamos eSirEustace regressou ao

hotel.Aflorestadeixou-medesapontadíssima.Vimosalgunsarco-

íris e ficamos encharcadas até os ossos. De vez em quando

vislumbrávamosoladoopostodascataratas,oquenospermitiu

fazer uma idéia da sua grandiosidade. Santo Deus! Como são

belas!Quantoasadmiro!

Regressamosaohotelnoexatomomentodenosprepararmos

paraojantar.SirEustacepareciaantipatizarsolenementecomo

Coronel Race. Suzanne e eu pusemo-nos a zombar

carinhosamentedele,masinutilmente.

Depoisdojantar,retirou-separaasaladeestar,levandoMiss

Pettigrewemsuacompanhia.Suzanneeeuficamosconversando

durantealgumtempocomoCoronelRace.Comoeladeclarasse,

em meio a um grande bocejo, que ia se deitar, não quis

permanecer sozinha com o rapaz e subi também para osmeus

aposentos.

Eratalaminhaemoçãoquenãopodiadormir;porissonão

me despi. Sentei-me numa poltrona, entregando-me aos

devaneios, cônscia porém de que algo se aproximava cada vez

Page 230: Agatha christie - o homem do terno marrom

mais...

Ao ouvir uma batida à porta, estremeci. Levantei-me e fui

abri-la,deparandocomumnegrinhoqueseguravaumenvelope

sobrescritadonumacaligrafiadesconhecida.Peguei-oevolteiao

quarto.Fiqueiacontemplá-loepor fimabri-o.Continhapoucas

palavras!

"Precisovê-la.É-meimpossívelprocurá-lanohotel.Querirà

clareirapróximaaocaminho-quedesceparaascataratas?Peço-

lhe, invocando a lembrança dos acontecimentos ocorridos na

cabina17.AqueleaquemvocêchamavadeHarryRayburn."

Aspulsaçõesdomeucoraçãosufocavam-me.Eraele!Oh!Eu

osabia,soube-osempre!Tinhapressentidoasuapresençajunto

a mim. Involuntariamente fora ao seu encontro no seu

esconderijo.

Cobriacabeçacomumaécharpeesaísorrateiramente.Urgia

tomar toda a cautela, pois ia avistar-me com um condenado à

morte e ninguém deveria ver-me ao seu lado. Passando

furtivamente pelo quarto de Suzanne, verifiquei que dormia e

pudeatéouvirasuarespiraçãoregular.

E Sir Eustace? Parei junto à porta da sua sala de estar.

Felizmente continuava a ditar paraMiss Pettigrew com sua voz

monótona, repetindo a frase: "Portanto, tomo a liberdade de

sugerirque,aotentarresolveresseproblemadotrabalhoconfiado

aos negros..." A taquígrafa fez uma pausa para que ele

continuasse;percebiqueovelho resmungavaalgumaspalavras,

furioso.

Prosseguiopercurso,andandosemprenaspontasdospés.O

Page 231: Agatha christie - o homem do terno marrom

CoronelRacenãoestavaemseusaposentosnemnovestíbulo.E

erajustamenteaquemeumaistemia!Nãopodia,contudo,perder

tempo.Esgueirei-mepelaportadohoteleseguipelaveredaque

conduziaàponte.

Atravessei-a, ficando à espera, imersa na escuridão. Se

alguém me tivesse seguido, eu o veria quando atravessasse a

ponte.Osminutosseescoavameninguémaparecia.Ninguémme

acompanhara. Voltei-me, tomando o caminho que levava à

clareira.Andei algunspassos e estaquei ao ouvirum leve ruído

junto a mim. Eu saíra do hotel sem ser seguida; portanto só

podiaseralguémquejáestavaali,deemboscada.

Repentinamente, sem o menor motivo, mas com uma

segurançainstintiva,percebiquecorriaperigo.Eraumasensação

idênticaàqueexperimentaranaquelanoite,noKilmorden—um

avisodeperigopróximo.

Vireiacabeça.Silêncio.Andeialgunspassos.Novamentefez-

seouviroleveruídoeumvultodehomemsurgiudaescuridão.

Percebendoqueeuovira,aproximou-sedeumsaltoportrásde

mim.

Anoiteestavamuitoescuraparaqueeupudessereconhecê-

lo. No entanto, consegui ver que era um europeu de grande

estatura;nãopodiasernativo.Fugiomaisdepressapossível,sem

deixardeperceberqueelevinhaaomeuencalço,ecorricomos

olhosfixosnaspedrinhasbrancasquemeserviamdeguia.

De repente,meuspés falsearam.Ouviohomemrirumriso

mauesinistro,aomesmotempoemquecaíaestendidanochão,

parecendo que me afundava, aos poucos, até a completa

Page 232: Agatha christie - o homem do terno marrom

destruiçãodomeuser.

Page 233: Agatha christie - o homem do terno marrom

25

Volteiamimlentamente,comfortedordecabeça,equando

tentei mover-me meu braço esquerdo também doía. Tudo me

pareciairrealcomonumaatmosferadesonho.Visõesdepesadelo

desfilavam ante meus olhos. Novamente as coisas se

desvaneceram,efoicomoseaospoucosmeestivesseafundando

novácuo.Pareceu-me,poruminstante,divisarorostodeHarry

Rayburnaproximando-seemmeioànévoaparadepoisafastar-se,

comumaexpressãodezombaria.Lembro-metambémquealguém

mechegouumaxícaraaoslábios,dando-medebeber.Umrosto

negro, um rosto demoníaco sorria paramim.Gritei. Os sonhos

voltaram, longos e inquietadores, e em todosdebalde procurava

HarryRayburnparaavisá-lo...avisá-lo...dequê?Dealgumacoisa

queeumesmaignorava.Nãoobstante,sabiadaexistênciadeum

perigo, de um grande perigo, e só eu podia salvá-lo.Mergulhei

maisumaveznaescuridão,abenfajezaescuridãoacompanhada

deumsonoreparador.

Afinalacordei.Opesadeloacabara.Lembrei-menitidamente

de todos os acontecimentos: da fuga apressada do hotel para

encontrar-mecomHarry,dohomemescondidonassombrasedo

últimoeterrívelmomentoemquetudosedesvaneceu...

Um milagre salvara-me de ser assassinada. Estava muito

fraca, com o corpo dolorido e cheio de contusões,mas vivia. E

onde me encontrava? Olhei em torno, movendo a cabeça com

dificuldade.Oquartoerapequeno,comparedesdemadeiratosca,

ondeseviampenduradaspelesdeanimaisediversaspresasde

elefantes.Estavadeitadanumaespéciedesofá, tambémcoberto

Page 234: Agatha christie - o homem do terno marrom

de peles.O braço esquerdo, firmemente enfaixado, incomodava-

me.Noprimeiromomento,julgueiestarsozinha;depois,diviseio

vulto de um homem sentado entremim e a luz, com a cabeça

voltadaparaajanela.Eratamanhaasuaimobilidadequepoderia

passarporumafiguratalhadaemmadeira.Haviaalgonosseus

cabelosnegrosquemepareceufamiliar,masnãoquisdarlargas

àimaginação.Desúbitoelevirou-seeeufiqueicomarespiração

emsuspenso.EraHarryRayburn.HarryRayburnempessoa.

Levantando-se,aproximou-sedemim.

—Estámelhor?—indagou,meiodesajeitado.

Nãoconseguiresponder.Lágrimasescorriam-mepelasfaces,

aomesmotempoemqueseguravaassuasmãosnasminhas.Se

aomenos pudessemorrer assim, enquanto eleme contemplava

comumolharqueeununcaviraantes...

—Nãochore,Anne.Porfavor,nãochore.Estáasalvo,agora.

Ninguémvaimagoá-la.

Afastou-separairbuscarumaxícara.

—Tomeumpoucodeleite.

Obedeci-lhepassivamente.Continuouafalarbaixinho,num

tomcarinhoso,comoofariaaumacriança:

— Não me faça perguntas. Procure dormir outra vez. Aos

poucosficarámaisfortee,sepreferir,saireidaqui.

—Não,não—repeti.—Nãosaia.

—Então,ficarei.

Page 235: Agatha christie - o homem do terno marrom

Colocouumbanquinhoaomeu lado e sentou-se. Pousoua

mãosobreaminha,e,calmaereconfortada,torneiaadormecer

profundamente.

Creio que adormeci à tarde, mas, quando acordei, o sol

brilhavaalto.Estavasozinhanacabana;noentanto,aoperceber

que me movia, uma nativa idosa aproximou-se, correndo. Era

medonha como o pecado, mas sorriu como que para me

encorajar.Trouxeáguanumabaciaeajudou-mea

lavaro rosto easmãos.Emseguidaserviu-meumagrande

tigela de uma sopa deliciosa! Fiz-lhe diversas perguntas. Ela

limitava-se a sorrir, a acenar com a cabeça, tagarelando numa

linguagemgutural,aúnicaqueconhecia.

De repente ergueu-se e afastou-se respeitosamente, no

momentoemqueHarrydavaentradanacabana.Elefez-lheum

sinal,dispensando-a.Anegrasaiu,deixando-nosasós.

—Estámelhorhoje!—exclamousorrindo.

—Éverdade,emboraumtantoconfusa.Ondeestou?

— Numa pequena ilha do rio Zambeze, mais ou menos a

quatromilhasdascataratas.

—E...meusamigossabemqueestouaqui?Harrysacudiua

cabeça.

—Éprecisoavisá-los.

— Fará como quiser, é claro, mas, se eu estivesse em seu

lugar,esperariaatéficarumpoucomaisforte.

Page 236: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Porquê?

Elenãorespondeuimediatamente.Entãocontinuei:

—Háquantotempoestouaqui?Arespostaassustou-me:

—Háquaseummês.

—Oh!PrecisoavisarSuzanneparaquenãosepreocupe.

—QueméSuzanne?

—Mrs.Blair.EstávamoshospedadasnomesmohotelqueSir

EustaceeoCoronelRace.Sabiadisso,nãoéverdade?

Harrysacudiunegativamenteacabeça.

—Nada sei, exceto que a encontrei inconsciente, enroscada

nosgalhosdeumaárvoreecomumaluxaçãonobraço.

—Ondeficaessaárvore?

— Inclinada sobre o despenhadeiro. Se suas roupas não se

tivessem enroscado nos galhos, certamente você estaria

esfacelada.

Umpensamentofez-meestremecer.

—Vocêdissequenãosabiaqueeuestavalá.Eobilheteque

recebi?

—Quebilhete?

—Oquememandou,pedindo-meque fosseencontrá-lona

clareira.

Page 237: Agatha christie - o homem do terno marrom

Harryfitava-me,semcompreender.

—Nãomandeibilhetenenhum.

Oruborsubiu-meaorostoatéaraizdoscabelos.Felizmente

pareceu-mequeelenadanotara.

— Então foi por mera casualidade que estava lá? —.

perguntei,assumindoumardeindiferença.—Equerexplicaro

queandafazendoporestasparagens?

—Moroaqui—respondeucomsimplicidade.

—Nestailha?

—Exatamente.Vimparacádepoisdotérminodaguerra.Às

vezes faço excursõesnomeubarco comgruposdehóspedesdo

hotel,e,comolevovidasimples,vivofolgadamente.

—Morasozinho?

—Nãolamentoviverafastadodasociedade,podeestarcerta

disso—respondeucomrispidez.

—Poiseu lamento impor-lheaminhapresença—repliquei

—,masparecequepequenaculpamecabenessaquestão.

Surpresa,viseusolhosbrilharem.

—Não lhecabenenhuma.Partedocaminhoveionosmeus

ombros,comoumsacodecarvão,edepoisnobarco,comoofaria

umhomemprimitivodaIdadedaPedra.

—Maspormotivobemdiverso.

Page 238: Agatha christie - o homem do terno marrom

Dessa vez,ele enrubesceu, e a cor morena de seu rosto

escondeu-sesobesserubor.

—Atéagoranãomecontouqualfoiomilagreque,felizmente

para mim, o levou ao local onde eu estava — indaguei muito

depressa,paradisfarçarasuaconfusão.

—Nãoconseguiadormir.Estavainquieto...perturbado...com

aimpressãodequealgumacoisaiaacontecer.Resolviremarum

pouco;depoisdesciecaminheiatéascataratas.Estavajuntoao

precipícioquandoouvioseugrito.

—Porquenãopediuauxílioaopessoaldohotel,aoinvésde

trazer-meparacá?

Novamenteeleenrubesceu.

— Suponho que, na sua opinião, tomei uma liberdade

imperdoável...masjulgoqueaindanãocompreendeoquantose

arriscou! Informar os seus amigos! Bons amigos esses, que a

deixamiraoencontrodamorte!Dou-lheminhapalavra:soumais

capazdecuidardevocêdoquequal-

queroutrapessoa.Nestailhanãoapareceninguém.Trouxea

velhaBatani,aquemhátemposcureideuma febre,paraolhar

porvocê.Éumacriaturamuitofiel,semprecalada.Vocêpoderia

ficaraqui,sobminhaproteção,durantemeses,semqueninguém

jamaissuspeitasse.

Vocêpoderia ficaraqui,sobminhaproteção,durantemeses,

semqueninguémjamaissuspeitasse!Quepalavrasagradáveisde

ouvir!

Page 239: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Fez muito bem — murmurei. — Não mandarei avisar

ninguém. Mais alguns dias de preocupação não farão muita

diferença. Não são amigos, propriamente, apenas conhecidos...

mesmo Suzanne. Quem escreveu o bilhete deveria saber muito

sobremim.Nãopodeserumestranho.

Dessavez,mencioneiacartinhasemcorar.

—Sevocêseguiassepormim...—disseele,hesitando.

— Não poderia — respondi francamente. — Mas não vejo

inconveniênciaemouvi-lo.

—Semprefazoquequer,MissBeddingfield?

— Geralmente — respondi com cautela. A qualquer outra

pessoateriadito:"Sempre".

— Tenho pena do seu marido — continuou de modo

inesperado.

—Nãoénecessário—retorqui.—Jamaispensariaemcasar-

me, a não ser que ficasse perdidamente apaixonada. E

certamente,oquemaisumamulherapreciaéfazeroquenãolhe

agradaporamordequemelagosta.Equantomaisteimosa for,

maisprazerteránisso.

—Pois eudiscordo.Muitas vezesa verdade estánadireção

inversa daquilo que se afirmou— disseHarry, comum sorriso

irônico.

—Deveras—exclamei impulsivamente.—Eé essaa razão

por que existem tantos casamentos infelizes. A culpa é dos

homens; ou se deixam dominar pelas esposas, e elas passam a

Page 240: Agatha christie - o homem do terno marrom

desprezá-los; ou então se mantêm fechados no seu egoísmo,

firmes na maneira de agir, sem ao menos dizer um "muito

obrigado".Osmaridosqueseconsiderambem-sucedidosobrigam

asmulheresaprocederconsoanteavontadedeles,masfazemum

verdadeiroestardalhaçoquandoelasagemporcontaprópria.As

mulheres gostam de ser dominadas, mas detestam que não

reconheçam os seus sacrifícios. Por outro lado, os homens

realmente não apreciam as mulheres submissas. Quando me

casar,sereiumapeste;mas,vezporoutra,quandomeumarido

menosesperar,mostrar-lhe-eiqueperfeitoanjopossoser!Harry

deuumagargalhada.

—Vãovivercomocãoegato!

— As pessoas que se amam sempre brigam, porque não se

entendem.Nomomento,porém,queseentenderem,deixarãode

seamar.

—Oinversotambémécerto?Semprequeduaspessoasvivem

brigandoissoquerdizerqueseamam?

— Não... não sei — respondi, confusa. Voltando-se para o

fogãozinho,perguntou-menumtomindiferente:

—Quermaissopa?

—Aceito,obrigada.Sinto tamanha fomequeseria capazde

engolirumhipopótamo.

—Bomsinal.

Enquantoeleatiçavaofogo,pus-meaobservá-lo.

Page 241: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Quandoestivermaisforte,voucozinharparavocê

—prometi.

—Nãoacreditoqueentendadessesassuntos.

—Soucapazdeaquecerlatariastãobemquantovocê

— disse, apontando para as latinhas enfileiradas na

prateleira.

—Touché—disse-merindo.

Quandoria,suafisionomiamudava.Pareciaummenino.

Tomei a sopa com prazer. Em seguida, lembrei-lhe que,

afinal,nãomepuseraapardasuaopinião.

—Ah!Éverdade;oquetenhoparadizeréoseguinte:emseu

lugar,eu ficariacalmamenteperduporaquiatémerestabelecer.

Osseus inimigosvãopensarquemorreu.Ficarãoadmiradosde

nãoencontrarocorpo,masacreditarãoquevocêsedespedaçou

nasrochasefoilevadapelacorrenteza.

Estremeci.

—Quandoestiverbastanteforte,viajarásossegada-menteaté

Beira,eumvaporalevarádevoltaàInglaterra.

—Nãosoutãodócilassim—objetei,numtomdedesprezo.

—Vocêfalacomoumacriançasemjuízo.

—Nãosoucriançasemjuízo—exclamei indignada.—Sou

mulher.

Page 242: Agatha christie - o homem do terno marrom

Elefitou-mecomumaexpressãoindefinível,enquantoeume

sentava,muitoirritada,orostoemfogo.

— Que Deus me ajude; disso sei eu—murmurou, saindo

abruptamentedoquarto.

Restabeleci-me rapidamente. A pancada na cabeça não fora

grave, mas o braço incomodava-me muito. A princípio, meu

protetorjulgouquehouvessefratura.Apósumexamecuidadoso,

porém,concluiutratar-sedeviolentadistensãodosligamentosde

uma articulação. Embora sentisse muita dor, dentro de pouco

temporecobreiosmovimentos.

Vivi nessa ocasião dias realmente singulares. Estávamos

segregadosdomundo,sozinhoscomoAdãoeEva,masaomesmo

tempo, que diferença! A velha Batani andava de um lado para

outro, à maneira dos cães. Insisti em preparar eu mesma as

refeições,oumelhor,emajudarnoquepudesseserfeitocomuma

só mão. Harry ausentava-se grande parte do dia, mas sempre

sobravamhorasquepassávamosestendidossobocéuaberto,à

sombradaspalmeiras,oraconversando,oraabordandoosmais

variados assuntos. Discutíamos muito também, mas entre nós

nascia uma sólida e duradoura camaradagem, como nunca

imagineiquepudesseexistir.Haviaisso...emaisalgumacoisa.

Amargurada, pensava no momento em que, inteiramente

restabelecida,teriadedeixá-lo.Eele?Deixar-me-iapartirsemme

dizer umapalavra? Semuma levemanifestação de carinho?Às

vezesHarryficavasilenciosodurantegrandeslapsosdetempo,e,

subitamente, levantava-se e saía sozinho, caminhando sem

destino.Uma tarde,mergulhou numa dessas crises de silêncio.

Terminada a nossa frugal refeição, sentamo-nos à porta da

Page 243: Agatha christie - o homem do terno marrom

cabana.Osoldesaparecianohorizonte.

ComoHarrynãoconseguissearranjargrampos,meuscabelos

lisosenegrospendiam,soltos,atéosjoelhos.Apoieioqueixonas

mãose fiqueiameditar,sentindooolhardeHarrypousadoem

mim.

—Pareceumafeiticeira,Anne—disseporfim.Havianasua

vozalgoqueaindanãonotara.

Estendeuamão,tocandodeleveosmeuscabelos.

Estremeci. De repente, levantou-se de um salto, dizendo

violentamente:

—Vocêtemdeiremboraamanhã,estáouvindo?Eu...eunão

suportomaisestasituação.Afinaldecontas,souhomem.Temde

ir,Anne.Épreciso.Vocênãoétolaebemsabequeistonãopode

continuar.

—Tambémacho.Mas...foramdiasfelizes,não?

—Felizes?Foiuminferno!

—Achoutãoruimassim?

—Porquemeatormenta?Porquecaçoademim?Porquediz

isso...rindoeescondendo-seportrásdoscabelos?

—Nãoestavarindoenãoestoucaçoando.Sequerqueeuvá

embora,irei.Massequiserquefique...ficarei.

—Não!— exclamou com veemência.—Não, nãome tente,

Anne. Avalia o que sou? Duas vezes criminoso. Um homem

Page 244: Agatha christie - o homem do terno marrom

perseguido.AquimeconhecemcomoHarryParker;pensamque

estoupercorrendoopaís;masqualquerdia vãomedescobrir, e

entãoanotíciaseespalha.Vocêéjovem,Anne,etãolinda;possui

umabelezacapazdeenlouqueceroshomens.Temamor,vida,o

futuro diante de si. Para mim, tudo passou; minha vida está

arruinada,destruída,vivoamargurado.

—Senãomequiser...

—Sabemuitobemqueaquero,comosabetambémquedaria

tudoparaqueficasseaqui,nosmeusbraços,afastada,escondida

domundopara sempre.E você procurandomedemover, Anne.

Você,comesses longoscabelosde feiticeira,essesolhosquesão

cor de ouro, e castanhos, e verdes, sempre risonhos, mesmo

quandoseuslábiosestãosérios.Masvousalvá-ladesimesmae

demim.Partiráhojeànoite.VaiparaBeira...

—ParaBeira,não—interrompi.

—Vai,sim.VaiparaBeiranemqueeutenhadelevá-la,esóa

deixareidepoisquetiverembarcadononavio.Dequepensaque

sou feito? Sabe que acordo noite após noite, temendo que a

descubram aqui? Não podemos contar com milagres. Tem de

voltarparaaInglaterra,Anne...e...case-se.Sejafeliz.

—Com um homem de sólida posição queme dê uma vida

confortável!

—Épreferívelà...desgraçacompleta.

—Evocê?

— Já posso levar avante o meu trabalho — disse, com as

Page 245: Agatha christie - o homem do terno marrom

feiçõescontraídas.—Nãomefaçaperguntas.Suponhoquesaiba

doquesetrata.Umacoisa,porém,possodizer:voureabilitarmeu

nome, nem que tenha de esperar até o último dia de vida, e

estrangularomiserávelquetentoumatá-lanaquelanoite.

— Temos que ser justos— repliquei.— Afinal, ele nãome

empurrounoprecipício.

— Não era preciso, pois maquinara habilmente o plano.

Quando subi até o caminho que vai dar no abismo, tudo me

pareceu normal, mas asmarcas existentes no terreno davam a

perceberquealguémmudaradelugaraspedrasqueodelimitam.

Alémdisso,essapessoacolocoumaisalgumassobreomaciçode

árvores que crescem à beira do abismo. Julgando pisar em

terrenofirme,vocêiriarolarpelaencostaabaixo.QueDeustenha

piedadedele,selhepuserasmãosemcima!

Calou-se durante alguns momentos e depois prosseguiu,

falandonumtomcompletamentediferente:

—Nuncatocamosnesseassunto,Anne,nãoéverdade?Agora

éoportuno.Queriaquevocêouvisseahistóriacompleta,desdeo

princípio.

— Se falar no passado o entristece, nada me conte —

murmurei.

—Masqueroquevocêsaibatudo.Nuncapenseiqueumdia

pudessefalaraalguémsobreessapartedaminhavida.Comosão

engraçadasaspeçasqueodestinonosprega,nãoacha?

Enovamenteguardousilêncio.Osoldescambaraeonegror

aveludadodasnoitesafricanasenvolvia-noscomoummanto.

Page 246: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Jáseialgumacoisa—dissesuavemente.

—Sabeoquê?

— Que o seu verdadeiro nome é Harry Lucas. Hesitou um

momentoenãomefitouumavezsequer;

continuava olhando fixamente para umponto à sua frente.

Eunãofaziaamenoridéiadoquesepassavanasuamente;mas

ele,porfim,lançandoacabeçanummovimentobrusco,

comoseaquiescesseaumadecisãomuda,começouacontar

asuahistória.

Page 247: Agatha christie - o homem do terno marrom

26

—Vocêacertou.Realmente,chamo-meHarryLucas.Meupai

era um soldado reformado que veio para a Rodésia e aqui

comprou uma fazenda. Morreu quando eu cursava o segundo

ano,emCambridge.

—Vocêgostavadele?—pergunteisubitamente.

—Não...nãosei.

Corou,prosseguindocomsúbitaveemência:

— Por que me pergunta?Gostava muito de meu pai. Na

últimavezquenosvimos,trocamospalavrasdurasporcausado

meu temperamento violento e das dívidas que contraí,masnão

deixeidegostardovelho.Tenhoconsciênciadisso,masagoraé

tarde.

"Em Cambridge encontrei um rapaz...", prosseguiu mais

calmamente.

—Eardsley?

—Issomesmo,Eardsley.Seupai,comosabe,gozavadeuma

situação das mais destacadas na África do Sul. Imediatamente

ficamosíntimosamigos.Tínhamosemcomumoamorpelaterra

sul-africana e o desejo de conhecer regiões do mundo ainda

inexploradas. Depois de sair de Cambridge, ele teve uma

altercaçãodefinitivacomopai.Duasvezesovelholhepagaraas

dívidas,mas se recusava a fazê-lo novamente. Houve entre eles

uma cena violenta. Sir Laurence, com a paciência esgotada,

Page 248: Agatha christie - o homem do terno marrom

afirmouquenadamais fariaem favordo filho.Eardsleydeveria

cuidardemanter-seàssuascustas.Oresultadofoique,comojáé

sabido, os dois partiram juntos para a América do Sul, com o

projeto de explorar minas diamantíferas. Não vou entrar em

pormenores;mas,apesardospesares,passamosumatemporada

maravilhosa.Dificuldadessurgiamfreqüentemente,éverdade;em

compensação a vida era boa; lutávamos pela subsistência,

isoladosdoconvíviohumano,masDeussabecomosepodeficar

conhecendoumamigo.Formou-seumlaçodeamizadeentrenós

que só amorte podia desfazer. Pois bem, comodisse oCoronel

Race,osnossosesforçosforamcoroadosdeêxito.Deparamoscom

umasegundaKimberleynocoraçãodasselvasdaGuianaInglesa.

Onossoentusiasmofoiindescritível,nãopelovalormaterialque

a descoberta representava, pois Eardsley sempre viveu na

abastança,esabiaquepormortedopaiherdariamilhões.Lucas

crescera na pobreza, estava habituado à vida simples. Não, era

puraalegriaprovocadapeladescoberta.

Fez uma pausa, acrescentando depois, quase como se fosse

umpedidodedesculpa:

—Nãoficouaborrecidacomamaneiracomoconteitodaesta

história,não?Écomoseeunãotivessetomadopartenela.Assim

me parece, quando olho para o passado e vejo aqueles dois

rapazes.Quasejáesqueciqueumdelesera...HarryRayburn.

— Conte da maneira que preferir — disse eu, e então ele

prosseguiu:

—VoltamosaKimberleymuitoorgulhososdonossoachado,

trazendo magníficos diamantes selecionados, para serem

submetidosàapreciaçãode técnicos.Nessaocasião,nohotelde

Page 249: Agatha christie - o homem do terno marrom

Kimberley,encontramos...

Reteseiosmúsculoseamãoqueseapoiavanaombreirada

portacontraiu-seinvoluntariamente.

— Anita Grünberg, assim se chamava. Era atriz, bastante

jovem e muito bonita. Nascera na África do Sul, filha de mãe

húngara,sebemmelembro.Pairavacertomistérioemtornodela,

aumentandoaatraçãoqueexerciasobreosdois rapazes recém-

chegadosdaselva.Deveter-sedesincumbidofacilmentedatarefa.

Ambosnosapaixonamosporelae levamosocasoasério.Foia

primeira sombraque surgiu entrenós;mas,mesmoassim,não

turvou a nossa amizade. Cada um, sinceramente falando,

procurava afastar-se para que o outro tivesse oportunidade de

conquistá-la.Dapartedela,porém,ojogoeraoutro.Àsvezes,eu

ficava intrigado por não compreender como podia ela não se

entusiasmar pelo ótimo partido, o filho único de Sir Laurence

Eardsley. A verdade é que era casada com um classificador de

diamantes de De Beers, mas ninguém sabia. Simulava enorme

interesse pela nossa descoberta, e, diante disso, não só lhe

contamostudocomotambémlhemostramosaspedras.Dalila—

assimdeveriachamar-se.Comorepresentavabemopapel!

"Descoberto o roubo de que De Beers fora vítima, a polícia

caiu como um raio sobre nós e apoderou-se dos diamantes. A

princípio,rimos,taloabsurdodofato.Aspedrasapresentadasno

júri eram, sem a menor sombra de dúvida, os diamantes

pertencentesaDeBeers.AnitaGrünbergdesapareceradepoisde

efetuarhabilmenteasubstituição.Ahistóriadeseremnossosos

diamantesprovocouazombariadetodagente.

"Devidoàenormeinfluênciadequedesfrutava,SirLaurence

Page 250: Agatha christie - o homem do terno marrom

Eardsley conseguiu impedir o andamento do processo judicial.

Dois moços, porém, ficaram com a reputação arruinada,

desonrados perante a sociedade e com o estigma de ladrões

conspurcandoseusnomes.Alémdisso,SirLaurencesofreuuma

crise cardíaca,apósumaconversa violenta como filho,naqual

cumulou-o de acerbas censuras. Fizera o possível para salvar o

nome da família, mas desse dia em diante não mais o

consideraria como seu filho. Expulsou-o de casa, e o rapaz,

orgulhoso como era, guardou silêncio, deixando de protestar

inocênciaanteaatitudededescrençadopai.Saiuindignadoao

encontro do companheiro que o esperava. Uma semana mais

tarde foi declarada a guerra. Os dois moços alistaram-se. Você

sabeoqueaconteceu.Morreuomelhoramigoqueumhomemjá

teve.Semnecessidade, ele avançou temerariamentede encontro

aoperigo,morrendocomonomemaculado.

"Dou-lhe minha palavra, Anne, de que, principalmente por

causadele,foiqueguardeitantorancorporessamulher.Atingiu-

o muito mais do que a mim. Naquela ocasião, apaixonei-me

loucamente, mas julgo que às vezes eu a intimidava; para

Eardsley, foi um sentimento mais calmo e profundo. Anita

tornou-seocentrodoseuuniverso,eatraiçãodequefoivítima

tirou-lhea vontadede viver.O golpe sofridodeixou-o confuso e

indiferenteatudo."

Harryfezumapausae,apósalgunsmomentos,prosseguiu:

— Como é do seu conhecimento, fui considerado

"desaparecido,mortotalvez".Nuncamedeiotrabalhodecorrigir

oerro.AdoteionomedeParkerevimparaestailha,minhavelha

conhecida.Noiníciodaguerra,tinhaesperançasdepoderprovar

aminhainocência;agora,porém,essaambiçãodesapareceupor

Page 251: Agatha christie - o homem do terno marrom

completo. Às vezes pergunto a mim mesmo: para quê? Meu

companheiro está morto, e nenhum de nós tem parentes vivos

que possam importar-se com o caso. Todos supõem que morri

também;deixemosascoisascomoestão.Leveiumavidatranqüila

aqui;nãoerafelizneminfeliz,nesseentorpecimentodetodosos

sentidos.Sóagoraperceboque,emparte,sofriaasconseqüências

daguerra.

"Certo dia, porém, aconteceuum fato queme fez despertar.

Nomeubarco,levavarioacimaumgrupodepessoas.Estavana

plataforma de embarque, auxiliando os passageiros, quando

alguém soltou uma exclamação de espanto, atraindo-me a

atenção.Umhomembaixo,magro,debarbas,fitava-mecomose

eufossealmadooutromundo.Eratamanhaasuaemoção,que

medespertoua curiosidade. Indaguei a respeitodelenohotel e

fiquei sabendo que se chamava Carton, viera de Kimberley e

trabalhava no comércio de diamantes como empregado de De

Beers.Empoucosinstantestodaalembrançadopassadovoltou-

meàmemória.Deixandoailha,partiparaKimberley.

"Poucacoisa,porém,conseguidescobrira respeitodele.Por

fim,resolviobrigá-loaencontrar-secomigo.Leveiorevólver,mas,

numrelance,percebi que estavadiantedeumcovarde.Bastou-

medefrontá-loparacertificar-medequeohomemsentiamedode

mim.Semdemoraconsegui fazê-locontar tudooquesabia.Ele

própriotraçarapartedoplanodorouboparasuamulher,Anita

Grünberg.Vira-nos juntosumavezduranteo jantarnohotele,

comohavia lidoanotíciadaminhamorte,omeuaparecimento

emcarneeossonascataratasdeixara-osimplesmenteapavorado.

Haviam-se casado ainda muito jovens, mas logo depois ela o

deixou, pois se imiscuíra com gente demá fama, assim eleme

Page 252: Agatha christie - o homem do terno marrom

disse. Pela primeira vez ouvi falar no Coronel. Carton afirmou

jamaister-seenvolvidoemcasosescusos,anãoseresse,aquejá

me referi. Pareceu-me sincero e digno de crédito. Não tem o

aspectocaracterísticodoshomensquefizeramcarreiranocrime.

"Apesar disso, fiquei com a impressão de que me ocultava

algumacoisa.Ameaceidar-lheunstiros,afirmandoquepoucome

importavam as conseqüências. Aterrorizado, contou-me, de um

jato,maisumahistória.DeuaentenderqueAnitaGrünbergnão

confiava inteiramentenoCoronel.Simulandoentregar-lhe todas

as pedras que subtraíra do hotel, ficou com algumas em seu

poder. Carton, técnico no assunto, aconselhou-a sobre as que

deviaguardar.Osdiamanteseramdecoloraçãoequalidaderaras,

de maneira que, caso fosse necessário exibi-las, seriam

prontamente identificáveis. Os técnicos de De Beers

imediatamente concordariamemque jamais teriampassadopor

suasmãos.Dessemodo,ahistóriadasubstituiçãoteriarazãode

ser,e,comareputaçãosalva,asuspeitarecairiasobreopróprio

grupo.Deduzi que, contrariamente aos seus hábitos, o Coronel

empessoatomarapartenonegócio,e,assimsendo,Anitasabia

queotinhaemsuasmãos.Cartonpropôs-meprocurarAnitaou

Nadina, seu nome atual, para entrarmos em acordo, julgando

que, por uma quantia razoável, ela desistiria dos diamantes e

trairia o seu antigo patrão. Ofereceu-se para telegrafar-lhe

imediatamente.

"EuaindasuspeitavadeCarton.Erafácilamedrontá-lo,mas,

quandodominadopelopavor,mentiatantoquesetornavadifícil

descobriroverdadeiroeofalsonassuaspalavras.Volteiaohotel

e fiquei à espera, imaginando que na tarde seguinte teria

conhecimento da resposta ao seu telegrama. Indaguei nas

Page 253: Agatha christie - o homem do terno marrom

vizinhançasdasuacasaefiqueisabendoqueMr.Cartonviajara,

devendoestardevoltanamanhãseguinte.Fiqueidesconfiado.No

últimomomento,descobrique,narealidade,eleestavadepartida

para a Inglaterra.OCastelodeKilmordenzarpavadaCidadedo

Cabodentrodedoisdias.Chegueinomomentoexatodealcançar

omesmovapor.

"Não pretendia revelar minha presença a bordo para não

alarmar Carton. Em Cambridge, representei muitas vezes no

teatro da universidade e por isso não tive dificuldade em

desempenhar o papel de um circunspecto senhor barbudo, de

meia-idade. Evitei a presença de Carton, e, pretextando

indisposição,passeiamaiorpartedaviagemfechadonacabina.

"Em Londres, nãome foi difícil acompanhar-lhe os passos.

Seguiudiretamenteparaohotel,esósaiunodiaseguinte,pouco

antesdaumahora.Eucontinuavavigilante.EmKnightsbridge,

dirigiu-seaumaimobiliáriaeinformou-sesobreprédiossituados

àmargemdorio.

"Postei-menamesaaolado,indagandotambémsobrecasas.

Derepente,entrouAnitaGrünberg,Nadina,ououtronomeque

tenha, não me importa. Arrogante, insolente e quase tão bela

como antes. Meu Deus! Que ódio senti por aquela mulher, a

causadoradaruínadaminhavidaedeoutraaindamaisvaliosa.

Nessemomento tive vontade de agarrá-la pelo pescoço, fazendo

destilarsuavidagotaagota!Viatudovermelhoemtornodemim.

Malcompreendiaspalavrasdocorretor.Ouviaavozdela,altae

nítida,comumsotaqueestrangeirocarregado:'CasadoMoinho,

Marlow.PropriedadedeSirEustacePedler.Creioquemeconvém.

Dequalquermodo,vouvê-la'.

Page 254: Agatha christie - o homem do terno marrom

"Orapazentregou-lheaautorizaçãoeelasaiucomaquelear

altaneiro,comoumarainha.Nemporumapalavra,nemporum

sinal, deu a perceber que conhecia Carton; no entanto, fiquei

certo de que aquele encontro fora premeditado. Comecei a tirar

conclusões. IgnoravaqueSirEustaceseachavaemCannes,por

issojulgueiseracasameropretextoparaumencontro.Sabiaque

estivera naÁfrica do Sul, na época do roubo, e, comonunca o

tivesse visto antes, cheguei à conclusão de que ele era o

misteriosoCoroneldequetantoouvirafalar.

"SeguiosdoissuspeitosatéKnightsbridge.Nadinaentrouno

Hyde Park Hotel, dirigiu-se ao restaurante, e eu, apressando o

passo, acompanhei-a. Como achasse mais prudente não me

arriscaraserreconhecidonaquelemomento,pus-menoencalço

de Carton. Aminha esperança era que ele fosse em busca dos

diamantes e o meu aparecimento inesperado lhe provocasse a

confissão da verdade. Segui-o passo a passo até a Estação de

HydeParkCorner.Estavasozinhonaextremidadedaplataforma,

e a pequena distância havia uma moça. Sem mais delongas,

resolvi abordá-lo. Você sabe o que aconteceu. Apavorado ao ver

umhomemquesupunhaestarnaÁfricadoSul,perdeuacabeça

e,dandounspassosparatrás,caiunostrilhoselétricos.Sempre

foracovarde.Alegandosermédico,tiveoportunidadederemexer-

lhe os bolsos. Encontrei uma carteira com alguns papéis, que

depoisperdi,duascartasdesprovidasdeinteresseparamim,um

rolodefilmeseumpedaçodepapelemqueanotaraadatadeum

encontro: dia 22 noCastelo de Kilmorden. Preocupado em me

afastarantesquealguémmedetivesse,perdi-otambém;porsorte,

lembrava-medadata.

"Corri ao vestiário mais próximo e rapidamente tirei o

Page 255: Agatha christie - o homem do terno marrom

disfarce, pois não tinha a menor vontade de ser preso por ter

mexido nos bolsos de um cadáver. Voltando imediatamente ao

Hyde Park Hotel, encontrei Nadina ainda almoçando. Não vou

contarospormenoresdaminhaviagemaMarlow.Elaentrouna

casa. Falando com a caseira, pretextei estar na companhia da

visitanteefácilmefoientrartambém."

Harryfezumapausa.Osilênciopesava.

— Anne, você acredita emmim, não é? Juro perante Deus

como vou dizer a verdade. Entrei na casa,muito exaltado, com

vontadedematá-la,eelaestavamorta!Encontrei-anoprimeiro

andar. Meu Deus! Que coisa horrível! Morta — e eu havia

chegado não mais do que três minutos depois! Não percebi o

menor indício da presença de outra pessoa na casa!

Imediatamente tomei consciência da situação crítica emqueme

encontrava. Com um golpe de mestre, a vítima da chantagem

livrara-se da chantagista, e ao mesmo tempo inculpava um

inocente do crime que cometera. O método do Coronel estava

patente.Fuisuavítimapelasegundavez.Quetoliceaminha,cair

tãofacilmentenaarmadilha!

"Mal me lembro do que fiz então. Procurei aparentar

tranqüilidade, e tratei deme afastar daquele lugar. No entanto,

bem sabia que não iriam demorar a descobrir o crime e que

telegrafariamportodoopaísdescrevendoaminhapessoa.

"Escondi-me durante alguns dias. Por fim surgiu uma

oportunidade favorável. Sem ser pressentido, ouvi na rua a

conversa entre dois senhores de meia-idade. Um deles era Sir

EustacePedler.Otrechododiálogoqueouviradeu-meaidéiade

empregar-me como seu secretário. Nessa altura dos

Page 256: Agatha christie - o homem do terno marrom

acontecimentos,jánãotinhacertezadequeSirEustace

Pedler fosseoCoronel.Pormeracasualidade,oupormotivo

forademinhascogitações,suacasaforaescolhidapara localdo

encontro."

— Você sabia — interrompi — que Guy Pagett estava em

Marlownaocasiãodocrime?

— Isso esclarece muita coisa. Julguei que estivesse em

Cannes,comSirEustace.

— Supunham que ele estivesse em Florença, mas sei que

nuncapôsospéslá.GarantoqueseencontravaemMarlow,mas

nãotenhoprovasdisso.

— E pensar que jamais suspeitei de Pagett, um minuto

sequer, até anoite emque tentouagarrá-la.Essehomeméum

magníficoator.

—Nãoémesmo?

—IssovemconfirmarporqueescolheramaCasadoMoinho,

onde Pagett, sem chamar a atenção, deve ter livre entrada.Não

objetouaqueeuacompanhasseSirEustacenaviagem.Aminha

prisão imediatanão lhe interessava.É fácil deduzir queNadina

nãotraziaasjóiasnaocasiãodoencontro,comoimaginaramque

o fizesse. Penso que Carton as guardara, escondendo-as no

CastelodeKilmorden.Julgavamqueeusoubessealgumacoisaa

respeito do local onde estavam ocultas. O Coronel estaria em

perigo enquantonão conseguisse ficarnaposse dosdiamantes;

por isso apressava-se em consegui-los, custasse o que custasse.

EmquemalditolugarCartonosescondera—seéquefoiocaso

Page 257: Agatha christie - o homem do terno marrom

—eunãoseidizer.

—Essaéoutrahistória—murmurei—quevoucontar.

Page 258: Agatha christie - o homem do terno marrom

27

Harry ouviu atentamente a narração dos acontecimentos já

descritosnestaspáginas.Ficouadmiradíssimoemsaber

171

quedurantetodoessetempoeu,oumelhor,Suzanne,foraa

guardiãdosdiamantes,poisdissonuncadesconfiara.Apósouvir

sua história, fiquei ciente das maquinações de Carton, ou,

preferivelmente, deNadina, o cérebro idealizador do plano. Não

surpreendia, portanto, que pusessem em prática contra ela e o

marido táticas destinadas a recuperar os diamantes. Nadina

ocultavaosegredosozinha.ComopoderiaoCoronelsuporqueas

pedrashaviamsidoconfiadasaumsimplescamareirodebordo?

A reabilitaçãodeHarrypareciaassegurada,masa culpado

homicídio tolhia-nos a liberdade de ação. Como poderia ele, na

situaçãoatual,defender-sediantedasociedade?

Preocupávamo-noscontinuamenteemdescobriraidentidade

doCoronel.EraounãoGuyPagett?

—Háumfatoquemepõeemdúvida—disseHarry.—Estou

quasecertodetersidoPagettquemassassinouAnitaGrünberg,

emMarlow,eissoconfirmaahipótesedequeelesejarealmenteo

Coronel.OcasodeAnitanãoédenaturezaaserdiscutidocom

subordinados.Oúnicoargumentocontrárioàteoriaéoatentado

dequevocêfoivítimananoitedasuachegadaaqui.Pagettficou

naCidadedoCabo;demodonenhumpoderiaterchegadoantes

dequarta-feiradasemanaseguinte.Époucoprovávelquetenha

Page 259: Agatha christie - o homem do terno marrom

agentesnestapartedomundoe,alémdisso,todososseusplanos

foramconcebidosparaserrealizadosnaCidadedoCabo.Poderia,

é claro, dar ordens aum subordinado, emJohannesburg; este,

porsuavez,tomariaotrememMafeking.Deveriatercartabranca

paraagir;bastaverobilhetequelheescreveu.

Guardamos silêncio. Momentos depois Harry continuou

falandopausadamente:

— Você disse que quando saiu do hotel Mrs. Blair estava

dormindo e que ouviu a voz de Sir Eustace ditando paraMiss

Pettigrew?EoCoronelRace,ondeestava?

—Nãooencontreiempartealguma.

—Eletemmotivosparasuporque...vocêeeusomosamigos?

—Épossível—respondi,pensativa, lembrandodaconversa

que tivemos quando voltávamos do Matoppos. —-Ele tem uma

personalidade marcante — continuei —, mas não é

absolutamentea idéiaque façodoCoronel.Alémdomais, seria

absurdo.OCoronelRacefazpartedoserviçosecreto.

— Tem certeza? É facílimo espalhar uma notícia dessas.

Ninguém a contradiz, e enquanto isso o boato toma vulto até

merecer a crença de todo mundo, como se fosse uma verdade

evangélica, servindo de desculpa para toda espécie de fatos

duvidosos.Anne,vocêsimpatizacomRace?

— Sim... e não. Causa-me aversão e ao mesmo tempo me

fascina;deumacoisaestoucerta:tenhomedodele.

—EleestavanaÁfricadoSul,vocêsabe,naocasiãodoroubo

Page 260: Agatha christie - o homem do terno marrom

emKimberley—disseHarrycomvozpausada.

—MasfoiquemcontoutudoaSuzannesobreoCoronelea

viagemquefezaParisparatentaragarrá-lo.

—Camouflage...depessoamuitointeligente.

—EPagett?Quandoentranojogo?EstaráasoldodeRace?

—Talvez,massementrarnojogo.

—Oquê?

—Pensebem,Anne.Vocêouviuo relatodePagett sobreos

acontecimentosdaquelanoitenoKilmorden?

—Já,contadoporSirEustace.

Repetiahistória.Harryouvia-meatentamente.

—ViuumhomemcaminhandonadireçãodacabinadeSir

Eustaceeseguiu-oatéotombadilho.Nãofoiissooquecontou?E

quem estava na cabina fronteira à de Sir Eustace? O Coronel

Race.Suponhamosque tenhasubidosorrateiramenteaoconvés

e, falhando o golpe que preparava contra você, saiu correndo e

encontrou Pagett na porta do salão. Derrubou-o com um soco,

passou e fechou a porta. Quando chegamos, Pagett estava

estendidonochão,inconsciente.Oqueachadisso?

—Nãoseesqueçadequeeleafirmacategoricamentetersido

vocêquemlhedeuosoco.

—Ora,suponhamosque,nomomentoexatoemquerecobrou

os sentidos, tenhame visto desaparecendo, já longe. Não seria

Page 261: Agatha christie - o homem do terno marrom

capazdejurarsereuoassaltante?Principalmenteseimaginasse

queeraamimqueseguiu?

— É provável — respondi pausadamente. — Mas isso não

alteraaseqüênciadasnossasidéias.Alémdisso,háoutrosfatosa

considerar.

—Amaiorpartedelesédefácilexplicação.Ohomemquea

seguiunaCidade doCabo falou comPagett e ele olhou para o

relógio.Ohomempodiaestarapenasperguntandoashoras.

—Querdizerquefoimeracoincidência?

—Não é bem isso.Háuma seqüência, nisso tudo, que liga

Pagett ao negócio. Por que escolheram a Casa doMoinho para

cometeroassassinato?FoiporquePagettestavaemKimberleyna

ocasiãodoroubodosdiamantes?Teriasidoeleobodeexpiatório,

casoeunãoaparecesseprovidencialmenteemcena?

—Entãoacreditatotalmentenainocênciadorapaz?

— É o que parece, e, se assim for realmente, temos de

descobriroqueorapazestavafazendoemMarlow.Seapresentar

umaexplicaçãosatisfatória,estaremosnatrilhacerta.

Harrylevantou-se.

— Passa da meia-noite. Entre, Anne, vá dormir. Levo-a no

barco pouco antes de clarear o dia. Tenho um amigo em

Livingstone.Ficaráescondidanacasadeleatéahoradeo trem

partir. EmBulawayo você passará para o tremque vai aBeira.

Indagareidomeuamigooqueaconteceunohotelduranteasua

ausênciaeondeseencontramosseuscompanheirosdeviagem.

Page 262: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Beira—disseeupensativamente.

— Anne, você tem que ir para Beira. Só um homem pode

resolveressecaso.Deixeissoparamim.

Analisávamoscalmamenteasituação,quandomaisumavez

ficamos dominados pela emoção. Não ousávamos trocar sequer

umolhar.

—Está bem— concordei, entrandona cabana.Estendi-me

sobre a cama coberta de peles de animais, porém o sono não

vinha.OuviaospassosdeHarry,andandodeumladoparaoutro,

durantelongotempo.Porfim,chamou-me:

—Vamos,Anne,estánahora.Obedientementelevantei-mee

saí.Aindaestavaescuro,masjádespontavamosprimeirosraios

daaurora.

—Vamosnacanoa,épreferívelàlancha...—começouHarry

afalar,quandorepentinamenteficouimóvel,comamãoerguida.

—Silêncio!Oqueéisso?

Prestei atenção,masnadapercebi.Seusouvidos erammais

apuradosqueosmeus;eramouvidosdequemviveumuitotempo

nasselvas.Comeceitambémaouvirumruído,umlevebaterde

remos na água, que vinha da margem direita do rio,

aproximando-serapidamentedapequenaplataformaemquenos

encontrávamos.

Aguçamos a vista em meio à escuridão e divisamos uma

manchanasuperfícielíquida.Eraumacanoa.Vimosumrápido

clarão.Alguémacenderaumfósforo.Foiobastanteparaqueeu

Page 263: Agatha christie - o homem do terno marrom

reconhecesse um dos vultos: era o holandês da casa de

Muizenberg,acompanhadodenativos.

—Depressa,entrenacabana.

Harry arrastou-me com ele. Pegou duas carabinas e um

revólverpendentesdaparede.

—Sabecarregarcarabinas?

—Não.Mostre-mecomosefaz.

Aprendirapidamente.FechamosaportaeHarrypostou-seà

janelaqueabriaparaaplataforma,noexatomomentoemquea

canoapassava.

—Quemvemlá?—gritou.

Se tivéssemos dúvidas quanto à intenção dos nossos

visitantes, nesse momento elas se dissipariam. Uma rajada de

balas espalhou-se ao nosso redor. Felizmente não fomos

atingidos.Harryapontouacarabina,disparandodiversasvezes.

Ouvigemidoseoruídodeumcorpocaindonaágua.

— Isso vai acalmá-los — murmurou zangado, enquanto

pegavaa outra arma.—Afaste-se,Anne, pelo amordeDeus!E

trabalhedepressa.

Os tiros seguiam-se.Umdeles raspouo rostodeHarry.Ele

respondeu ferozmente aos inimigos. A carabina já estava

novamentecarregadaquandoHarryapegou.Enlaçando-mecom

o braço esquerdo, beijou-me com violência, antes de voltar à

janela.Derepentesoltouumgrito.

Page 264: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Estão indo embora... já receberamo seu quinhão. Láno

rio, eles são uma esplêndida mira, mas não sabem quantos

somos. Fugiram, mas com certeza voltarão. Vamos ficar de

atalaia.

Colocouacarabinanochãoe,voltando-separamim,disse:

—Anne!Tãolinda!Maravilhosa!Eportou-secomacoragem

deumleão!Belafeiticeiradecabelosnegros!

Harryenvolveu-meemseusbraços.Beijou-meoscabelos,os

olhos,oslábios.

— E agora, voltemos ao trabalho — disse subitamente,

afrouxandooabraço.—Tragaaquelaslatasdequerosene.

Obedeci.Eleestavaocupadono interiordacabana.Vi-oem

seguidaarrastando-sesobreacoberturadachoupana,segurando

algumacoisanosbraçosevoltandologodepois.

—Váparaacanoa.Temosquelevarissoparaooutroladoda

ilha.

Pegouaslatasdequeroseneenquantoeumeafastava.

— Estão de volta — disse baixinho. — Vi uma mancha

movendo-sedooutroladodapraia.

Harrycorreuparajuntodemim.

— Chegamos na hora. Olhe... que fim levou a canoa?

Estávamosaoabandono.Harryassobioubaixinho.

—Asituaçãonãoéparabrincadeira,percebeu,querida?

Page 265: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Nãonasuacompanhia.

—Ora!Nãoachomuitagraçaemmorrermos juntos.Vamos

fazer alguma coisamais aproveitável. Olhe... voltaram em duas

canoas e seguem em rumos diferentes. Agora, vamos ao efeito

cênico.

Mal terminara de pronunciar essas palavras, longa chama

elevou-sedo tetodacabana, iluminandodois vultosagachados,

juntosumdooutro.

— Com os tapetes fiz um enchimento das minhas roupas

velhas; isso vai iludi-los durante algum tempo. Venha, Anne,

temosquetentartudo.

Demãosdadas, saímosnuma corridadesabaladapela ilha.

Deumlado,elaseseparavadapraiaporumestreitocanal.

— Vamos atravessar a nado. Sabe nadar, Anne? Se não

soubernão importa,porqueeuposso levá-la.Édifícilpassarde

barcoporeste lado;hámuitaspedras,masparanadaréótimo,

comavantagemdequevamosnadireçãodeLivingstone.

—Soucapazdenadarumadistânciaumpoucomaiordoque

esta. Estamos correndo perigo, Harry? — Vira a expressão

preocupadadoseurosto.—Tubarões?

— Não, tolinha. Os tubarões vivem no mar. Mas quase

acertou,Anne.Sãooscrocodilosquenosatrapalham.

—Crocodilos?

—Sim,masnãosepreocupecomeles...ouentãoreze;façao

queacharmelhor.

Page 266: Agatha christie - o homem do terno marrom

Mergulhamos.Minhasprecesdevemtersidomuitoeficientes,

pois chegamos incólumes à praia. Saímos molhados,

completamenteencharcados.

— Vamos direto a Livingstone. O trajeto vai ser duro; e

roupasmolhadasemnadaajudam.Mastemosdeir.

O percurso foi um pesadelo.O vestuário encharcado colava

nas pernas e as meias rasgaram-se nos espinhos. Estaquei,

afinal,vencidapelaexaustão.Harryaproximou-se.

—Tenhaânimo,querida.Vouajudá-la.

E foi assimque cheguei aLivingstone,penduradanos seus

ombroscomoumsacodecarvão.Nãoseicomoelepôdedistinguir

ocaminho.Viam-seosprimeirosruboresdaaurora.Oamigode

Harryeraumrapazdevinteanos,donodeumalojadesouvenirs.

Chamava-seNed.Talvezseuverdadeironomefosseoutro,maseu

sófiqueiconhecendoesse.Nãodemonstrouamenorsurpresaao

ver Harry chegar completamente ensopado, trazendo pela mão

uma mulher igualmente encharcada. Os homens são

maravilhosos.

Serviu-nosumarefeição,caféquente,pôsasnossasroupasa

secar.Envolvemo-nosemcobertoresdevistososmatizeseficamos

na saleta da cabana, a salvo de olhares curiosos, enquanto ele

partia em busca de informações sobre Sir Eustace e os

companheiros.Indagariatambémsealgumteriaficadonohotel.

Nessaocasião informeiHarrydequenadameconvenceriaa

seguirparaBeira.Nuncativeraessaintenção,quantomaisagora

que esse procedimento me parecia inteiramente descabido. O

Page 267: Agatha christie - o homem do terno marrom

pontochavedoplanoera fazerosmeus inimigospensaremque

eu tinha morrido. Mas já sabiam que isso não acontecera;

portanto,minhaidaaBeiradenadaadiantaria.Poderiamseguir-

meatéláparacalmamenteassassinar-me,ealémdissonãoteria

quem me protegesse. Finalmente, combinamos que eu iria ao

encontro de Suzanne, onde quer que ela estivesse. Prometi não

pouparesforçosafimdeevitaracidentes,bemcomonãointentar

demaneiranenhumairembuscadeaventuras,nemdaroxeque-

matenoCoronel.

Deveria ainda permanecer tranqüila junto à minha amiga

enquantonão recebessenovas instruçõesdeHarry.Quantoaos

diamantes,seriamdepositadosnoBancodeKimberley,emnome

deParker.

— Esquecia-me de uma coisa — falei, pensativa. — É

conveniente usarmos um código. Nada de ir novamente um ao

encontrodooutroenganadospormensagensfalsas.

—Émuitosimples.Qualqueravisoqueprovenharealmente

demimteráapalavra"e"comdoistraçoscruzadosporcima.

— Se não tiver marca registrada, não será genuína —

murmurei.—Eostelegramas?

—Usareionome"Andy"emtodoseles.

—Otremchegalogo,Harry—disseNed,enfiandoacabeça

pelaaberturadaportaesaindoimediatamente.

Levantei-me.

— E se eu encontrar um homem simpático, numa sólida

Page 268: Agatha christie - o homem do terno marrom

situação,caso-mecomele?—pergunteicomarafetado.

Harryaproximou-sedemim.

— Meu Deus, Anne! Só se casará comigo, senão torço o

pescoçodoseupretendente.Evocê...

—Oquê?—perguntei,agradavelmenteemocionada.

— Vou levá-la para bem longe e moer-lhe os ossos com

pancadas!

—Quemaridomaravilhosofuiarranjar!—disseemtomde

zombaria.—Seráqueelenãopretendemudardeopinião?

Page 269: Agatha christie - o homem do terno marrom

28

(ExtratosdodiáriodeSirEustacePedler)

Jáfiznotaranteriormentequesouessencialmenteamigoda

paz.Ambicionolevarumavidatranqüila,mas,peloquevejo,não

conseguireirealizaresseobjetivo.Sempremeencontroemmeioa

tumultosesobressaltos.Foiumgrandealíviolivrar-medePagett,

com os seus constantes mexericos. Quanto a Miss Pettigrew, é

realmenteumacriaturaserviçal.Emboradesprovidadeencantos,

possuiumainvejávelcapacidadedeação.EmBulawayosofriuma

crise hepática e, por conseqüência, comportei-me como um

animal. Não era para menos, pois passara uma noite agitada

durante a viagem de trem. Às três da madrugada, entrou na

minha cabina um moço vestido de maneira extravagante,

parecendoartistadevariedadesderegiõesselvagens,eperguntou

qualomeudestino.Quandomurmurei: "Chá... e,peloamorde

Deus, sem açúcar", não tomou conhecimento e insistiu na

pergunta, dizendo que não era garçom, mas funcionário da

Imigração. Consegui por fim explicar-lhe que não sofria de

moléstiainfecciosa,queiaviajarpelaRodésiapormotivososmais

inocentes. Depois, tive a bondade de dizer-lhe o meu nome

completo e o lugar de nascimento. Em seguida, tentei tirar um

cochilo, mas um cretino acordou-me às cinco e meia para

oferecer-meumaxícaradeumlíquidoaçucarado,aoqualdavao

nomede chá.Nãome lembro se a atireino intruso;mas tenho

certezadequeassimdeveriaterprocedido.Àsseishoras,trouxe-

me outra xícara de chá, desta vez sem açúcar, porém

Page 270: Agatha christie - o homem do terno marrom

completamente frio. Exausto, peguei no sono, despertando na

hora da chegada. Desci do trem, sobraçando uma abominável

girafademadeira,queerasópernasepescoço!

A não ser esses contratempos insignificantes, tudo correu

bem,atéomomentoemquesobreveioumadesgraça.

Aconteceunanoiteemquechegamosàscataratas.Estavana

minha sala de estar, ditando para Miss Pettigrew, quando

subitamente Mrs. Blair irrompeu porta adentro, sem pedir

licença,emtrajesmuitocomprometedores.

—OndeestáAnne?-—gritou.

Bela pergunta! Como se eu fosse o responsável pela moça.

QuepensariaMissPettigrew?QueerafatocorriqueirotirarAnne

Beddingfield do bolso à meia-noite ou a qualquer hora da

madrugada?Muito comprometedor para uma pessoa daminha

posiçãosocial.

—Presumo—respondifriamente—queelajásedeitou.

Pigarreei,olhandodesoslaioparaMissPettigrew,sugerindo

dessaformaaconveniênciadevoltarmosaoditado.

Esperava também que Mrs. Blair compreendesse a

insinuação.Mas foi inútil.Afundou-senumapoltronae,muito

agitada, começou a balançar o pé calçado apenas com uma

chinelinha.

—Elanãoestánoquarto.TiveumsonhohorrívelSonheique

ela corriaumgrandeperigo; levantei-mee fui até oquartodela

apenasparatranqüilizar-me.Annenãoseencontravaláeacama

Page 271: Agatha christie - o homem do terno marrom

estavafeita.

Olhou-mecomoapedirsocorro.

—Quefarei,SirEustace?

Reprimiodesejoderesponder:"Vádormirenãosepreocupe.

Uma jovem desenvolta como Anne Beddingfield é perfeitamente

capazdecuidardesimesma".Franziossobrolhoseperguntei:

—ERace,oqueachadisso?

Por que ficaria à parte do caso? Participasse também das

desvantagens, assim como das vantagens da companhia

feminina.

—Nãoconsigoencontrá-loempartealguma.

Ela estava evidentemente fazendo um drama do caso.

Suspirando,sentei-menumacadeira.

— Não percebo a causa da sua agitação — disse

pacientemente.

—Osonho...

—Ah!Aquelecurryquecomemosnojantar!

—Oh!SirEustace!

A jovem senhora ficou indignada. No entanto, todomundo

sabequeospesadelossãooresultadodiretodeumaalimentação

inadequada.

—Afinal—continuei,procurandoacalmá-la—,nãovejopor

Page 272: Agatha christie - o homem do terno marrom

que Anne Beddingfield e Race não poderiam dar um

passeiozinho, sem que o hotel inteiro se alarmasse por causa

disso.

—Achaquesaíramjuntos?Jápassadameia-noite.

—A gente procede tolamente quando é jovem—murmurei

—,apesardeRacejáteridadebastanteparadiscernir.

—Acreditarealmentenisso?

— Suponho que fugiram— continuei mais calmo, embora

perfeitamente cônscio de estar fazendo uma sugestão idiota.—

Afinaldecontas,numlugarcomoeste,paraondesepodefugir?

Nãomelembroporquantotempocontinuaria fazendoessas

ineficientesobservações,seRacenãodesseentradanasala.Seja

como for, pelo menos em parte, falei com razão:ele saíra para

andarumpouco,semlevarAnneemsuacompanhia.Euestava

enganado; a situação era bem diferente, e dentro de poucos

momentos tive a prova disso. Em trêsminutos, Race revirou o

hoteldealtoabaixo.Nuncavialguémtãodescontrolado!

O caso é realmente extraordinário. Para onde foi a moça?

Saiuvestidadohotel,maisoumenosàsonzeedez,eninguém

mais a viu. A idéia de suicídio não procede. Era uma dessas

pessoasdotadasdegrandevitalidade,queamamavidaenãotêm

amenorintençãodeabandoná-la.Nenhumtrempartiaantesdas

doze horas do dia seguinte, portanto, ela não pode ter saído

daqui.Então,quediaboalevou?

Raceestáforadesi,coitado!Remexeutudo!Movimentoutoda

apolícianumraiodecentenasdemilhas.Oscaçadoresnativos

Page 273: Agatha christie - o homem do terno marrom

percorreramosquatrocantosdaregião;tudofizeram,namedida

dopossível,e...nemsinaldeAnneBeddingfield.Aopiniãogeralé

dequesetratadeumcasodesonambulismo.Comohávestígios

de pegadas na trilha próxima à ponte, conclui-se que ela se

dirigiu propositadamente para o precipício. Se foi o que

aconteceu, Anne deve estar lá embaixo, espatifada nas pedras.

Infelizmente, a maior parte dos rastros alterou-se, visto ter

passadoporaliumgrupodeturistasquesaiucedo,segunda-feira

demanhã.

Nãoachoaexplicaçãomuitosatisfatória.Quandoeramoço,

sempreouvi falarqueossonâmbulossepõemasalvodoperigo

graçasaoseusextosentido,oqualvelaporeles.Mrs.Blairnão

vaicontentar-secomessaexplicação.

Não consigo entender essa mulher. Mudou completamente

emrelaçãoaoCoronelRace.Observao rapazcomose fosseum

gatoàespreitadorato,epercebe-sequeseesforçaparamanter-se

cortês.Elaprópria tambémestádiferente:nervosa, assustadiça,

estremecendo ao menor ruído. Começo a achar que já está na

horadepartirparaJo'burg.

Ontemcorreuoboatodaexistênciadeuma ilhamisteriosa,

habitada por um rapaz e uma moça. Race ficou agitadíssimo.

Afinal,tudonãopassoudemeroequívoco.

Há anos o homem vive lá e o gerente do hotel o conhece

muitobem.Naépocadeestação,levagruposdeturistasapasseio

pelo rio, mostrando-lhes crocodilos e um hipopótamo

domesticado, ou coisa que o valha, que se desgarrou por aqui.

Acreditomesmoquetenhaumdessesexemplaresaoqualensinou

a arrancar pedacinhos do barco, nos momentos oportunos.

Page 274: Agatha christie - o homem do terno marrom

Então,munidodeumcroque,eleoafasta,dandoaosturistasa

impressão de se acharem nos confins do mundo. Ignora-se há

quanto tempo amoça está na ilha; é evidente, porém, que não

pode tratar-sedeAnne.Eéprecisocertasutilezapara interferir

emnegóciosalheios.Seeu fosseomoço,chutariaRaceda ilha,

casoviesseaindagaracercadosmeusamores.

Maistarde

Resolvi definitivamente partir para Jo'burg amanhã. Race

insiste nisso. Pelo que percebi, as coisas por aqui estão se

tornando desagradáveis,mas pretendo partir antes que piorem.

Receio levar um tiro de algum grevista. Mrs. Blair tinha

combinado iremminhacompanhia;noúltimo instante,porém,

mudoudeopiniãoeresolveuficarnascataratas.Parecequenão

consegue tirarosolhosdeRace.Veioprocurar-meestanoite,e,

hesitante, pediuque eu lheprestasseum favor.Consentiria em

guardar-lhealgunsobjetosdeestimação?

—Osbichos?—indaguei,realmentealarmado.Sempretiveo

pressentimento de que mais cedo ou mais tarde teria de ficar

agarradoaessesincômodosanimais.

Por fim,realizamosumacordo.Eumeencarregariadeduas

caixinhas de madeira, contendo artigos frágeis. Os animais

seguirãoemengradadosporviaférrea,comdestinoàCidadedo

Cabo,ondePagettprovidenciaráparaquefiquemnumdepósito.

As pessoas encarregadas dizem que, devido aos variados

formatos dos animais (!), será necessário confeccionar caixas

especiaisparaoseuacondicionamento.ChameiaatençãodeMrs.

Blairparaofatodeque,quandoosanimaischegaremàsuacasa,

Page 275: Agatha christie - o homem do terno marrom

estarãocustandopelomenosumalibracadaum!

Pagett insiste em vir ao meu encontro em Jo'burg. Os

engradados de animais deMrs. Blair servirão de desculpa para

retê-lo na Cidade do Cabo. Escrevi-lhe que providencie o seu

recebimento e que os deixe depositados em algum armazém de

confiança,vistoconteremcuriosidadesrarasdeimensovalor.

Bem, já que tudo se resolveu, eu e Miss Pettigrew vamos

embora juntos. Quem quer que a conheça de vista admitirá

perfeitamentearespeitabilidadedocaso.

Page 276: Agatha christie - o homem do terno marrom

29

Johannesburg,6demarço

Asituação localnãoestánada favorável.Citandouma frase

corriqueira,tantasvezeslida,direiqueestamosvivendoàbeirade

um abismo. Grupos de grevistas, ou melhor, dos chamados

grevistas, patrulham as ruas, com ares carrancudos e

ameaçadores. Suponho que estejam de olho nos capitalistas

empafiados para massacrá-los quando chegar o momento

oportuno.Éimpossíveltomartáxi;seofizermos,osgrevistasnos

puxam para fora. E, nos hotéis, insinuam delicadamente que,

acabandooestoquedealimentos,nãomaisseremosatendidos!

NanoitepassadaencontreiReeves,meuamigodosindicato

dos trabalhadores e companheiro de viagem noKilmorden.

Jamaisvialguémtãoassustadoquantoele,masprocedecomoos

outros, que fazem longosdiscursos inflamadosunicamente com

finalidadepolítica,edepoisarrependem-se.Agora,viveandando

de um lado para outro, explicando que, na realidade, não

pronunciouo tal discurso.Quandonos encontramos, estavade

partida para a Cidade do Cabo, onde pretende demorar-se três

dias, discursando em língua holandesa, a fim de justificar-se.

Provará que o sentido de suas palavras possuía um significado

completamente diverso do que efetivamente poderia parecer.

Sinto-me feliz por não ter que tomar assento na Assembléia da

ÁfricadoSul.ACâmaradosComunsestáemmásituação,mas

aomenos falamos amesma língua e limitamos a extensão dos

Page 277: Agatha christie - o homem do terno marrom

discursos.QuandoestivepresenteàAssembléia,antesdedeixara

Cidade do Cabo, tive oportunidade de "ouvir um senhor de

cabelos grisalhos e bigodes pendentes, muito parecido com a

Mock Turtle deAlice no País das Maravilhas. Desfiava as

palavras,umaauma,numtommelancólico.Devezemquando,

alteava a voz, dizendo frases que me lembraram"Platt Skeet".

Pronunciava-asfortíssimo,numcontrastefrisantecomorestodo

falatório. Nessesmomentos,metade do auditório urrava"Whoof,

whoof!"}queemholandêstalvezsignifique"Apoiado,apoiado".A

outra metade acordava sobressaltada da agradável soneca. Pelo

que me foi dado entender, o orador estava discursando pelo

menoshátrêsdias.NaÁfricadoSulapaciênciaéumfato.

Inventei inúmeros trabalhos com o fito de reter Pagett na

Cidade do Cabo; por fim, esgotou-se a fertilidade da minha

imaginação.Orapazchegaráamanhã,imbuídodoespíritodecão

fiel que vemmorrer junto ao amo.E asminhasReminiscências

estavamemfrancoprogresso!Játinhaimaginadoasfrasesvivas

e sutis que os líderes da greve me haviam dito e como lhes

responderaàaltura.

Esta manhã marquei encontro com um funcionário do

governo.Mostrou-se cortês, aomesmo tempoque convincente e

misterioso. Para começar, aludiu à minha elevada posição e

grande importância, sugerindo queme transferisse, ou que lhe

permitissetransferir-me,paraPretória.

—Háperigodebarulhoporaqui?—indaguei.

Respondeu com palavras desprovidas de sentido; deduzi

então estar iminentea ocorrênciade gravesdistúrbios. Insinuei

que o governo do país estava deixando as coisas irem longe

Page 278: Agatha christie - o homem do terno marrom

demais.

— É o que se chama fornecer corda para uma pessoa se

enforcar,SirEustace.

—Oh!Issomesmo,issomesmo!

— Não são os grevistas que provocam os distúrbios. Existe

umaorganizaçãoqueosinstiga.Armaseexplosivosaparecemem

grande quantidade; descobrimos um maço de documentos e o

código de que se utilizampara a sua importação. "Batatas" são

"detonadores", "couves-flores", "carabinas", outras verduras

significamváriosexplosivos.

—Muitointeressante—comentei.

— Além disso, Sir Eustace, temos motivos de sobra para

pensarqueochefe,ogênioquedirigetodoessemovimento,está

emJohannesburgnomomento.

Ohomemfixou-mecomumolhartãopenetrante,quereceei

estar sob suspeita de ser a pessoa a que se referiu. A esse

pensamento,comeceiasuar frio, lamentandohaverconcebidoa

idéiadeinspecionardiretamenteumarevoluçãoemminiatura.

— A linha entre Jo'burg e Pretória não está funcionando

normalmente — prosseguiu. — Mas posso conseguir-lhe um

vagãoespecialedoispasses,casointerrompaaviagem.Umserá

emitidopelogovernodaUnião,eooutroconteráumadeclaração

dizendoqueosenhoréumvisitantedecidadaniainglesa,isento

dequalquerrelaçãocomaUnião.

—Umparaasuagenteeoutroparaosgrevistas,hein?

Page 279: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Exatamente.

O projeto não me seduzia; bem sei o que acontece nessas

ocasiões. Ficamos aturdidos e começamos a agir

atabalhoadamente.Trocamosopassenahoradeentregá-lo,epor

fimacabamoslevandoumtirodeumrebeldesanguináriooude

umdosmantenedoresdaleiedaordem.Jáosvideguardanas

ruas, de chapéu-coco na cabeça, fumando cachimbo, e com a

carabina debaixo do braço. Além disso, que fazer em Pretória?

AdmiraraarquiteturadosedifíciosconstruídospelaUniãoeouvir

oecodotiroteionosarredoresdeJohannesburg?Vousentir-me

cerceado na minha liberdade e só Deus sabe quanto! Corre o

boatode que a via férrea já foi pelos ares. Lá,não sepode sair

nemparatomaraperitivo.Acidadeestásob leimarcial,hádois

dias.

— Meu caro rapaz — argumentei —, não compreende que

estoufazendoestudossobreasituaçãopolíticadoRand?Porque

cargas d'água devo estudá-la em Pretória? Agradeço o seu

cuidadopelaminhapessoa,masnãohámotivodepreocupação.

Nadameacontecerá.

— Quero avisá-lo, Sir Eustace, de que a questão de

alimentaçãojáémuitograve.

— Um pequeno jejum beneficiará o meu físico — disse

suspirando.

A chegada de um telegrama interrompeu-nos. Li-o muito

assustado:

"Armeestásalva.ComigoemKimberley.SuzanneBlair".

Page 280: Agatha christie - o homem do terno marrom

NuncaacrediteiqueAnnepudesseserdestruída.Essamoça

possui algo de indestrutível; lembra-me as bolas especialmente

confeccionadasparabrinquedodosfoxterriers.Temumjeitinho

desorrir...Aindanãopercebiporquesaiuàquelahoradanoite

parairaKimberley.E,alémdisso,nãohaviatrem.Comcerteza

utilizou-sedasasasdeumanjoparavoaratélá.Enãoacredito

que jamais dê explicações sobre isso, pois ninguémme explica

nada.Tenhosemprequeadivinhar;mas,depoisdealgumtempo,

issotorna-semonótono.Pensandobem,devemserasexigências

impostaspelo jornalismo. "Comodesciàs cataratas",pelonosso

enviadoespecial.

Tornei a dobrar o telegrama e tratei de livrar-me do meu

amigo,membrodogoverno.Desgosta-meaidéiadepassarfome,

mas a minha segurança pessoal não me preocupa. Smuts tem

competênciabastanteparadarumfimnarevolução.Eeudaria

uma elevada quantia por um aperitivo! Gostaria de saber se

Pagett vai ter o bom senso de trazer uma garrafa de uísque

amanhã.

Pus o chapéu e saí com a intenção de comprar alguns

souvenirs. Aqui em Johannesburg as lojas especializadas em

objetos regionais são muito interessantes. Entretinha-me em

olhar uma vitrina, com diversas mantas de pêlos de animais

confeccionadas pelos indígenas, quando um homem, saindo da

loja, deu-me violento esbarrão. Surpreendi-me ao reconhecer

Race.

Nãoposso vangloriar-mededizerqueo encontrooalegrou.

Falandofrancamente,mostrou-seaborrecidíssimo,maseuinsisti

em que me acompanhasse ao hotel. Já estou cansado de

conversarcomMissPettigrew.

Page 281: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Não fazia a menor idéia de que estivesse em Jo'burg.—

disse,procurandodarinícioàconversa.—Quandochegou?

—Ontemànoite.

—Ondeestáhospedado?

—Comunsamigos.

Estava realmente lacônico, parecendo embaraçado com as

perguntas.

—Esperoquehajacriaçãodegalinhasporaqui—observei.

—Oregimedeovosfrescos,edevezemquandocarnemoídade

galovelho,vaiserbemrecebido.Éoquetenhoouvidodizer.

—Apropósito—continuei,quandochegávamosaohotel—

soubequeMissBeddingfieldestásãesalva?

Fezsinalquesim.

—Pregou-nosumsusto—faleialegremente.—Gostariade

saberemquediabodelugarsemeteuaquelanoite.

—Foiparaailha.

—Queilha?Aquelahabitadaporummoço?

—Sim.

—Queatitude inconveniente—exclamei.—Pagettvai ficar

escandalizado. Sempre desaprovou o comportamento de Anne.

Suponhoquepretendiaencontrar-secomesserapazemDurban.

Page 282: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Nãoacreditoquesejaesse.

—Sómeconteoquelheaprouver—disseparaencorajá-lo.

—Imaginoquesetratadorapazquegostaríamosdeagarrar.

—Nãoé...?—exclameimuitoemocionado.Raceconcordou.

— Harry Rayburn,aliás Harry Lucas. Como sabe, esse é o

seu verdadeiro nome. Escapou novamente, mas logo o

prenderemos.

—Oh!MeuDeus!—murmurei.

—Amoçanãoésuspeita.Éapenas...umcasodeamor.

Sempre julguei que Race amava Anne. Agora estou certo

disso;bastou-meouvircomopronunciouasúltimaspalavras.

—ElaestáemBeira—continuoufalandomuitodepressa.

—Nãoépossível!—exclamei,fitando-o.—Comosabe?

—ElameescreveudeBulawayo,dizendoquevoltavaparaa

Inglaterra,viaBeira.Éamelhorcoisaquetemafazer,coitadinha!

—Contudo,nãoacreditoqueestejaemBeira.

—Estavadepartidaquandomeescreveu.

Fiquei intrigado. Alguém estava mentindo descaradamente.

Não refletindo queAnnepoderia ter fortes razõespara falsear a

verdade, entreguei-meaoprazerdederrotarRace.Ésempre tão

segurodesi!Tirandootelegramadobolso,mostrei-o.

Page 283: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Eisto,comoseexplica?—pergunteicomindiferença.

Orapazficouaturdido.

—EladissequeestavadepartidaparaBeira—repetiu,ainda

confuso.

Sei que julgam Race muito inteligente. Na minha opinião,

não passa de um grande imbecil. Jamais lhe ocorreu que as

jovensnemsemprefalamaverdade.

— Para Kimberley também. O que estão fazendo lá? —

balbuciou.

—Éoquemesurpreende.AchoqueMissAnnedeveriaestar

poraqui,coligindomatériaparaoDailyBudget.

— Kimberley — murmurou novamente. Esse nome

perturbava-o.— Nada há de interessante lá... interromperam o

trabalhonasjazidas.

—Vocêsabecomosãoasmulheres—dissedistraidamente.

Race fezumaceno coma cabeça e saiu.Evidentemente, eu

lhederamotivoparapensar.

Mal o rapaz partira, o funcionário do governo voltou outra

vez.

— Peço-lhe que me perdoe aborrecê-lo novamente, Sir

Eustace — desculpou-se. — Mas queria fazer-lhe algumas

perguntas.

— Pois não, meu caro rapaz— disse alegremente. — Pode

Page 284: Agatha christie - o homem do terno marrom

perguntar.

—Éarespeitodapessoaquetrabalhaparaosenhor...

—Nadaseiarespeito—dissebemdepressa.—EmLondres,

aceitei-oquaseà força;depois, roubou-medocumentos valiosos,

peloquevouserrepreendido,enaCidadedoCabodesapareceu

comopor artesmágicas.É certo queaminhapermanêncianas

cataratas coincidiu com a presença dele lá, mas eu estava no

hotel e elenuma ilha.Garanto-lhequenunca lhepusos olhos

emcima,durantetodootempodaminhaestadanesselocal.Fiz

umapausapararespirar.

— O senhor não me entendeu bem. Referia-me a outra

pessoa.

— Quem? Pagett? — exclamei muito admirado. — Está

comigoháoitoanoseéumrapazdignodamaiorconfiança.

Meuinterlocutorsorriu.

—Estáhavendoummal-entendido.Refiro-meòsenhora.

—AMissPettigrew?—exclamei.

— Sim. Viram-na quando saía da loja desouvenirs, de

Agrasato.

—Deusmeajude!—interrompi.—Pretendiairatéláhojeà

tarde.Evocêpodiapilhar-menahoradeeusair.

ParecequeemJo'burgnãosepodepraticarumato,mesmoo

maisinocente,semserconsideradosuspeito.

Page 285: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Ah! Mas ela esteve lá mais de uma vez e... em

circunstâncias suspeitas. Digo-lhe confidencialmente: Sir

Eustace, desconfiam de que a loja seja ponto de encontro dos

membros da organização secreta que apóia a revolução. Daí a

conveniênciadeo senhormecontar tudooque sabea respeito

dessasenhora.

—Quemmecedeuasecretáriafoioseuprópriogoverno.

Omoçoficouarrasado.

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30

(ResumodanarrativadeAnne)

ChegandoaKimberley, telegrafei imediatamenteaSuzanne.

Elaveioaomeuencontrocomamáximarapidez,precedendoos

telegramas enviadosen route. Surpreendeu-me muitíssimo

verificarquemededicaprofundaamizade,pois julgavaserpara

elaapenasumanovasensação.Quandonosencontramos,caiu-

menosbraços,edesatouempranto.

Passados os primeiros momentos de emoção, sentei-me na

camaepus-meacontartodaahistória,docomeçoaofim.

— Você sempre desconfiou do Coronel Race — falou

pensativa, quando terminei o relato.—Eu,não, atéanoite em

que você desapareceu. Gostava tanto dele e, além disso,

imaginava-o um ótimo marido para você. Oh, Anne, não se

zangue,mascomopodetercertezadalealdadedesseoutrorapaz?

Vocêacreditaemtudooqueelediz?

—Éclaroqueacredito—exclameiindignada.

—Oqueaatraitanto?Nadavejoneledeextraordinário;éum

bonitorapazeama-acomoamordeummistodexequemoderno

ehomemprimitivo.

Durantealgunsmomentosdesabafeitodaaminhacólera:

— Só porque fez um bom casamento e está cada vez mais

Page 287: Agatha christie - o homem do terno marrom

gorda,seesquecedequeoromantismoaindaexiste.

—Ora,Anne,nãoestouengordando.Preocupei-metantopor

suacausaultimamente;estousimplesmenteesgotada.

— Está com aparência robusta — disse friamente. — Deve

estarcomalgunsquilosamais.

— E não garanto que tivesse feito um casamento tão bom

assim—prosseguiuSuzannecomumavozmelancólica.—Tenho

recebido telegramas desagradáveis de Clarence, insistindo para

que volte imediatamente. Não respondi a eles, e nestes últimos

quinzediasnadamaissoubedele.

Receionãotercompreendidobemosproblemasmatrimoniais

de Suzanne. Ela voltará para junto do marido quando for

oportuno.Mudeiaconversaparaaquestãodosdiamantes.

Suzanneolhou-meumtantoconstrangida:

— Ainda não lhe contei, Anne. Escute, logo que comecei a

desconfiardoCoronelRace,fiqueipreocupadíssimaporcausados

diamantes.Acheimelhor continuara estadanascataratas,pois

elebempodia tê-la seqüestrado.Masnão sabia o que fazerdas

pedras,ereceavaguardá-lascomigo...

Suzanneolhouemredor,meioressabiada,comose temesse

que as paredes tivessem ouvidos, e então murmurou algumas

palavrasquesomenteeupoderiaouvir.

—Foirealmenteumaboaidéia—aprovei.—Naocasião,pelo

menos.Agora,porém,parece-meumpoucoesquisita.Queéque

SirEustacefezdascaixas?

Page 288: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Despachou asmaiores para a Cidade do Cabo, segundo

informação de Pagett, antes de eu deixar as cataratas. Junto

remeteuaquantiaparapagamentodaarmazenagem.Partiuhoje

da Cidade do Cabo para encontrar-se com Sir Eustace em

Johannesburg.

—Muitobem.Easpequenas,paraondeforam?

—Suponho que estejam comSirEustace.Examinei o caso

durantealgumtempo.

—Bom—disseporfim—,éumlugaresquisito,masseguro.

Serámelhordeixarmoscomoestá,nomomento.

Suzannefitava-me,sorridente.

—Tomarprovidênciasnãoéoseuforte,hein,Anne?

—Não—respondisinceramente.

Aúnicacoisaquefizfoipegarumhoráriodetrensparavera

que horas passaria por Kimberley aquele em que viajava Guy

Pagett.Chegavaàscincoequarentadatardeseguinte,epartiaàs

seis.Queria avistar-me com Pagett omais cedo possível, e essa

oportunidade se me afigurava excelente. A situação no Rand

piorava,podendodar-seocasodepassarmuito temposemque

meaparecesseoutraocasiãofavorável.

Omonótonodecorrerdashorasfoiinterrompidounicamente

pela chegada de um telegrama procedente de Johannesburg,

contendoaparentementeasmaisinocentesnotícias:

“Cheguei bem. Sem novidades. Eric aqui, Eustace também,

Guynão.Porenquantocontinueondeestá.Andy".

Page 289: Agatha christie - o homem do terno marrom

Eric era o pseudônimo com o qual apelidáramos Race.

Escolhi-o porque detesto esse nome. Antes de me avistar com

Pagett, nada posso fazer. Suzanne ocupou-se em mandar um

longo telegrama, acalmando o marido. Tornou-se muito

sentimental,asuamoda,éverdade,muitodiversadaminhaede

Harry.

— Gostaria tanto que ele estivesse aqui — disse muito

depressa.—Háquantotemponãoovejo!

—Passeumpoucodecreme—insinueicarinhosamente.

Suzanneespalhou-onapontadonarizinhoencantador.

—Opotedecremeestánofimedessamarcasóseencontra

emParis.—Suspirou.—Paris!

—LogoestaráfartadaÁfricadoSuledeaventuras,Suzanne.

— É que eu gostaria de comprar um chapéu realmente

bonito.Vouàestaçãocomvocê?

— Prefiro ir sozinha. Receio que ele se sinta ainda mais

tímidoporterquefalarnapresençadeambas.

Combinamosquenatardedodiaseguinteeumepostariaà

porta do hotel, lutando com uma sombrinha recalcitrante que

não queria abrir, enquanto Suzanne ficaria tranqüilamente no

leito,comumlivroeumcestinhodefrutas.

Segundo informação do porteiro do hotel, não houvera

novidades, e o trem estava quase no horário, apesar da

dificuldadenatravessiadeJohannesburg.Ostrilhostinhamido

Page 290: Agatha christie - o homem do terno marrom

pelosares,garantiu-mecomarsolene.Queboanotícia...

O trem chegou dez minutos atrasado. Imediatamente, os

passageiros saíram à plataforma, dispersando-se para todos os

lados às pressas. Nãome foi difícil descobrir Pagett, e dele me

aproximei ansiosamente. Ao ver-me, o rapaz teve aquele

costumeiroestremecimentonervoso.

— Meu Deus, Miss Beddingfield, pensei que ainda estava

desaparecida.

— Tornei a aparecer— disse com ar sério. — E o senhor,

comovai,Mr.Pagett?

— Muito bem, obrigado, pronto para recomeçar o trabalho

comSirEustace.

—Mr.Pagett—prossegui—,desejofazer-lheumapergunta.

Peço-lhequenãoseofenda,masémuitoimportante,muitomais

do que o senhor pode imaginar. Quero saber o que fazia em

Marlow,nodia8dejaneiro.

Pagettestremeceuviolentamente.

—Defato,MissBeddingfield...eu...realmente...

—Estevelá,nãoesteve?

—Estivepertodelá,pormotivosparticulares.

—Quermecontarquaissão?

—SirEustacenãolhecontou?

—SirEustace?Elesabe?

Page 291: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Tenho quase certeza de que sabe. Tomara que não me

reconhecesse, mas, pelas suas insinuações, receio que saiba.

Pretendofalar-lheabertamentesobreoassuntoepedirdemissão.

Eleémuitoesquisito,MissBeddingfield;temumsensodehumor

muitodesagradável.Deixa-mesobrebrasaseissoodiverte.Talvez

estejaapardosfatosháanos.

A minha esperança era que, cedo ou tarde, viesse a

compreenderosignificadodaquelaspalavras.Prosseguiu,falando

espontaneamente:

— É difícil para uma pessoa na posição de Sir Eustace

colocar-se naminha situação. Errei, é verdade, enganei-o, mas

não houve nenhum mal nisso. Julgo preferível agir com mais

sinceridade,emvezdedivertir-meàcustadosoutros.

Ouvimosumapitoeospassageirosprincipiaramaentrarno

trem.

— Concordo — interrompi —, concordo plenamente com o

quedissea respeitodeSirEustace.Maspor que o senhor foi a

Marlow?

—Nãodevia ter ido, apenas pareceu-menatural, de acordo

comascircunstâncias.

— Que circunstâncias? — perguntei, desesperada. Pela

primeiravezPagettcompreendeuqueeulhefazia

umapergunta.DeixoudeladoasesquisiticesdeSirEustace

easjustificativas,voltandoàrealidadedomomento.

—Desculpe,MissBeddingfield—dissecomfirmeza—,não

Page 292: Agatha christie - o homem do terno marrom

vejoquerelaçãoasenhoritapossatercomocaso.

Játinhaentradonovagão,curvando-separafalar-me.

Eu estava aflitíssima. O que se pode fazer em semelhante

situação?

—Compreendo,seachatãodifícilapontodeenvergonhar-se

aotocarnesseassuntocomigo...—falei,usandodemalícia.

Encontraraporfimatrilhacerta.Pagettendireitouocorpoe

corou.

—Difícil?Envergonhar-me?Nãoentendo.

—Entãofale.

Em três curtas sentenças pôs-me a par de tudo. Até que

enfim conhecia o segredo de Pagett! Mas não era nada do que

imaginava.

Vagarosamentevolteiaohotel.Entregaram-meumtelegrama,

que abri imediatamente. Continha instruções completas e

precisasparaquemedirigisse incontinentiaJohannesburg,ou

melhor,aumaestaçãoantesdessacidade,ondeencontrariaum

carroàminhaespera.OtelegramaforaexpedidoporHarry,enão

porAndy.

Page 293: Agatha christie - o homem do terno marrom

31

(DodiáriodeSirEustacePedler)

Johannesburg,17demarço

Pagett chegou apavorado, como sói acontecer. Sugeriu

imediatamente que partíssemos para Pretória. Então, como lhe

afirmasse delicada mas firmemente que aqui ficaríamos, ele

passou de um extremo a outro. Lastimando não ter trazido a

carabina,principiouafalarcommuitoentusiasmoarespeitode

umapontequeestevesobsuaguarda,duranteaGrandeGuerra.

Tratava-sedeumapontedeestradadeferro,situadanoramalde

LittlePuddlecombe,oucoisaqueovalha.

Cortei cerce o assunto, dizendo-lhe que desencaixotasse a

máquina de escrever, a grande, bem entendido, para mantê-lo

ocupado por algum tempo. Amáquina está com defeito, e, por

conseqüência, ele se demoraria em consertá-la. Esqueci-me,

porém,dequePagettéimpecável.

— Já desencaixotei tudo, Sir Eustace. A máquina está

funcionandoperfeitamente.

—Quequerdizercomisso...Tiroutudodoscaixotes?

—Dosdoispequenostambém.

—Seriamelhor que não fosse tão eficiente, Pagett. Aqueles

doiscaixotesnãolhedizemrespeito.PertencemaMrs.Blair.

Page 294: Agatha christie - o homem do terno marrom

Pagettficousucumbido.Detestacometererros.

— É preciso encaixotar tudo novamente — prossegui. —

Depois, se quiser, pode ir dar uma volta. Amanhã, Jo'burg

provavelmenteseráummontãoderuínasfumegantes;estaserá,

portanto,asuaúltimaoportunidade.

Pretendiaficarlivredeledurantetodaamanhã.

— Quero falar com o senhor, logo que tenha tempo

disponível,SirEustace.

— Agora, não — disse muito depressa. — Neste momento,

nãotenhoabsolutamenteumminutosequer.

Pagettiaseretirando.

—A propósito— chamei-o—, que continham as caixas de

Mrs.Blair?

—Algunstapetesdepeleecreioquedoischapéus, também

depele.

— Está certo. Ela os comprou durante a viagem.São

chapéus, realmente... e muito me admira você não os ter

reconhecido.Presumoqueelaváusá-losemAscot.Maisalguma

coisa?

—Algunsfilmesecestinhas,umaporçãodecestinhas...

—Éissomesmo.Mrs.Blaircompratudoàsdúzias.

—Erasóisso,SirEustace,alémdemuitasbugigangas,um

lençodegazeeumaespéciedeluvasesquisitíssimas.

Page 295: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Se você não fosse idiota de nascença, Pagett, teria

percebido que esses objetos demaneira nenhuma poderiam ser

meus.

—PenseiquealgunsfossemdeMissPettigrew.

—Ah!Agoramelembro.Oquedeunasuacabeçadeescolher

umacriaturadeaspectotãoduvidosoparaminhasecretária?

Contei-lheentãoarespeitodointerrogatórioaquemehaviam

submetido.Arrependi-meimediatamente,poisnoteinoseuolhar

umbrilhoquemuitobemconhecia.Trateidemudardeassunto,

maseratarde.Pagettestavaprontoparaentraremcombate.

Começouaaborrecer-mecomumalongahistóriaocorridano

Kilmorden,inteiramentedesprovidadefundamento.Tratava-sede

umacaixinhadefilmesedeumaaposta.Altanoite,acaixinhafoi

atirada pela vigia por um camareiro que devia estar a par do

assunto. Detesto brincadeiras de mau gosto. Foi o que disse a

Pagett,eelepôs-searepetirtodaahistória.Porsinalqueorapaz

se exprimepessimamente.Custou-me conseguir a concatenação

dosfatos.

Nãoovisenãoàhoradoalmoço.Voltouagitadíssimo,como

umsabujofarejandocaça.Nuncameinteresseiporsabujos.Em

conclusão:eletinhavistoRayburn.

—Oquê?

Sim,garantiatervistoRayburnatravessandoaruaeseguiu-

o.

— E parou para falar, adivinhe com quem? Com Miss

Page 296: Agatha christie - o homem do terno marrom

Pettigrew!

—Oquê?

— É, sim, Sir Eustace. Ainda há mais uma coisa. Andei

indagandoarespeitodela...

—Espereumpouquinho.ERayburn?

—EleeMissPettigrewentraramnumalojadesouvenirs...

Involuntariamente soltei uma exclamação. Pagett lançou-me

umolharinterrogativo.

—Nãoénada.Continue.

—Esperei duranteum tempo enorme, enãohaviameio de

saírem. Afinal, resolvi entrar também. Sir Eustace, não havia

ninguémnaloja!Deveexistiroutraporta.

Euolhava-ofixamente.

— Como ia dizendo, voltei ao hotel e fiz umas indagações

sobreMissPettigrew.

Pagett baixou a voz e respirou fundo, como sói acontecer,

quandopretendefazerconfidencias.

— Sir Eustace, viram um homem sair do quarto dela esta

noite.

Erguiassobrancelhas.

—Eeusempreaconsidereiumasenhorarespeitabilíssima—

murmurei.

Page 297: Agatha christie - o homem do terno marrom

Pagettprosseguiusemmedaratenção.

—Fuidarumabuscano seuquarto.Oqueo senhoracha

queencontrei?

Sacudiacabeçanegativamente.

—Isto!

Pagettexibiuumaparelhodebarbeareumpedaçodesabão

parabarba.

—Oquefazumamulhercomisso?

Suponho que Pagett jamais lê os anúncios nas revistas

femininas de alta classe. Eu leio. Embora não pretendesse

discutiroassunto,recusei-meaaceitarobarbeadorcomoprova

definitiva do sexo de Miss Pettigrew. Pagett não acompanha a

evolução dos tempos, por isso não seria de admirar se

apresentasse uma cigarreira em apoio da sua teoria. Tem

mentalidadelimitadíssima.

—Osenhornãoestáconvencido,SirEustace.Eoqueacha

disto?

—Senãomeengano,écabelo—observeiaborrecido.

—Cabelomesmo.Éoquechamamdeperuca.

—Nãodiga—comentei.

—Convenceu-seafinaldequePettigrewéhomemdisfarçado

emmulher?

— Realmente, meu caro Pagett, creio que estou. Devia ter

Page 298: Agatha christie - o homem do terno marrom

reconhecidopelospés.

— Então, é assunto liquidado. Agora, Sir Eustace, queria

falar-lhearespeitodeumcasoquemedizrespeito.Peloqueme

teminsinuadoepelascontínuasalusõesàépocadaminhaestada

em Florença, não tenho dúvidas de que o senhor descobriu a

verdade.

Por fim! Pagett ia revelar o mistério dos dias passados em

Florença!

— Ponha as cartas na mesa, meu caro rapaz — disse

bondosamente.—Éomelhorquetemafazer.

—Muitoobrigado,SirEustace.

— É por causa domarido? Pessoas cacetes, essesmaridos.

Sempresurgemquandomenosseespera.

—Nãoocompreendo,SirEustace.Quemaridos?

—Omaridodessasenhora.

—Quesenhora?

— Benza-me Deus, Pagett, da senhora com quem você se

encontrouemFlorença.Deveexistirumamulher.Nãovámedizer

que você apenas roubou uma igreja ou apunhalou um italiano

pelascostassóporquenãogostoudacaradele.

— Está me deixando confuso, Sir Eustace, não consigo

entendê-lo.Osenhorestábrincando.

— Quando quero sou muito engraçado, mas garanto que

Page 299: Agatha christie - o homem do terno marrom

nestemomentonãoestoufazendograçanenhuma.

—Comoestivemuitotempofora,julgueiqueosenhortalvez

nãomereconhecesse,SirEustace.

—Reconhecer?Onde?

—EmMarlow,SirEustace.

— Em Marlow? Que diabo de coisa estava fazendo em

Marlow?

—Imagineiqueosenhorsabia...

— Cada vez entendo menos. Comece novamente a história

desdeoprincípio.VocêfoiaFlorença...

—Então,osenhornãosabeabsolutamentenada...portanto

nãomereconheceu!

— Então você viajou sem a menor necessidade...

acovardando-sepelopesodaprópriaconsciência.Falarei,porém,

com mais segurança, depois de ouvir toda a história. Vamos,

respirefundoeprincipieoutravez.FoiaFlorença...

—EunãofuiaFlorença.Éjustamenteporcausadisso...

—Muitobem,paraondefoientão?

—Paracasa...emMarlow.

—Commildemônios,comquefimfoiaMarlow?

— Estava com saudades de minha mulher. Ela não tem

muitasaúdeeestáesperando...

Page 300: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Suamulher?Nãosabiaqueeracasado!

—Nãosabia,SirEustace,eéexatamenteissoqueestoulhe

contando.Enganeiosenhor.

—Quandosecasou?

— Há oito anos. Estava casado há seis meses quando vim

trabalhar para o senhor, mas não queria perder o emprego.

Ninguémaceitariaum secretário casadoparamorarna casa do

patrão;porissoacheimelhoromitiressefato.

— Você me deixa atônito — observei. — Onde ficou a sua

esposatodosessesanos?

—Morávamosnumchalezinhoàmargemdorio,emMarlow,

muitopertodaCasadoMoinho,hámaisdecincoanos.

—Deustenhapiedadedemim—murmurei.—Temfilhos?

—Quatro,SirEustace.

Fitei-o meio estonteado. Já devia ter percebido que um

homem como Pagett não poderia ter um segredo culposo. A

honorabilidadedorapazmeaniquila.Eraoúnicosegredodasua

vida:esposaequatrofilhos.

— Mais alguém sabe disso? — indaguei por fim, fitando-o

durantelongotempo,numaespéciedefascinação.

—SóMissBeddingfield.ElaestavanaestaçãodeKimberley.

Continueiaolharfixamenteparaele.Orapazestavapoucoà

vontade.

Page 301: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Espero, Sir Eustace, que o senhor não fique muito

aborrecido.

—Meucarorapaz,sópossodizerquevocêestragoutudo!

Saíirritadíssimo.Aopassarpelaesquinadalojadesouvenirs,

assaltou-me uma irresistível tentação. Entrei. O proprietário

adiantou-seobsequiosamente,esfregandoasmãos.

—Emquepossoservi-lo?Peles,curiosidadesdopaís!

— Alguma coisa original — disse. — Trata-se de um caso

excepcional.Vamosveroquetem.

—Queiraacompanhar-meàoutrasala.Temoscoisasmuito

finas.

Acabavade cometerumerro.No entanto, iriaproceder com

muitainteligência.Segui-oatravésdasportièresdevaivém.

Page 302: Agatha christie - o homem do terno marrom

32

(ResumodanarrativadeAnne)

Suzanne deu-me um trabalho enorme. Discutiu, implorou

porentrelágrimas,antesdeconcordarcomarealizaçãodomeu

plano.Porfimconseguifazeroquequeria..Prometeuobedeceràs

instruções contidas na carta e acompanhou-me à estação,

desatandoempranto,nahoradadespedida.

Cheguei ao meu destino na manhã seguinte, bem cedo.

Recebeu-meumholandêsbaixinho,debarbaspretas,queeunão

conhecia. Um carro, à nossa espera, conduziu-nos ao nosso

destino.Ouvia-se,adistância,umruídoesquisito.Perguntei-lhe

oquesignificavaaquilo.

— Tiros — respondeu laconicamente. Em Jo'burg a luta

continuava.

Percebi que nos encaminhávamos para os lados dos

subúrbiosdacidade.Viramosesquinasemtodasasdireçõesaté

chegarmosaopontodesejado.Estávamoschegandocadavezmais

pertodolocaldotiroteio.Forammomentospalpitantes!Paramos

afinaldiantedeumedifíciomeioemruínas.Umnegrinhobanto

abriuaportaeoguia fez-mesinalparaqueentrasse.Estaquei,

irresoluta,diantedovestíbulosombrio,masohomemadiantou-

seeescancarouaporta.

—AmoçaqueveioverMr.HarryRayburn—falourindo.

Page 303: Agatha christie - o homem do terno marrom

Depois dessa apresentação, entrei. A sala, parcamente

mobiliada,recendiaafumobarato.Umhomemescrevia,sentado

aumaescrivaninha.Fitou-me,erguendoossobrolhos.

—Oraessa!NãomedigaqueéMissBeddingfield!

— Devo estar bêbada— desculpei-me. — Estou vendo Mr.

ChichesterouMissPettigrew?Háumasemelhançaextraordinária

entreambos.

— Ambos estão em inatividade nomomento. Abandonei as

saiase...ostrajeseclesiásticos.Sente-se,porfavor.

Comamaiorcalma,aceiteiumacadeira.

—Parece—observei—quemeenganeideendereço.

—Do seu ponto de vista, bem entendido. Com efeito,Miss

Beddingfield,paracairnaarmadilhapelasegundavez!

—Nãofuimuitointeligente—admiticomsimplicidade.

Haviaalgumacoisaemmimqueointrigava.

— Parece que os acontecimentos não a perturbam —

observoucomfrieza.

—Seeumefizessedevalente,produziriaalgumefeitosobreo

senhor?

—Não,éclaro.

—Minha tia-avó Jane costumavadizer queuma verdadeira

senhora nunca se escandaliza nem se admira de nada —

murmurei, cismadora—, e eume esforço por viver segundo os

Page 304: Agatha christie - o homem do terno marrom

seuspreceitos.

AopiniãodeMr.Chichesterrevelou-setãoclaramentenoseu

rosto,quemeapresseiemcontinuarnofalatório.

— Realmente, como o senhor sabe maquilar-se! Não o

reconheciduranteo tempotodoemque foiMissPettigrew,nem

mesmoquandoquebrouapontadolápis.Decertoassustou-seao

ver-metomarotremnaCidadedoCabo.

O moço pôs-se a tamborilar com a ponta dos dedos na

escrivaninha.

— Tudo isso está muito certo, mas precisamos tratar de

negócios.Talvez imagineporquenecessitamosdasuapresença,

MissBeddingfield.

—Desculpe,massótratodenegócioscomossuperiores.

Tinhalidoessafrase,ououtrasemelhante,numacirculara

respeitodeempréstimosdedinheiroeachei-amagnífica.Ocaso

foiqueMr.Chichester-Pettigrewficouarrasado.Abriuefechoua

boca.Eumerejubilava.

—Oaxiomapreferidopelomeutio-avôGeorge—acrescentei,

como conclusão da minha exposição anterior —, marido da

minha tia-avó Jane, o senhor já sabe, fazia ornamentos para

camasdemetal.

Duvido que alguém já se tivesse divertido à custa de

Chichester-Pettigrew. Somente sei que ele não gostou da

brincadeira.

Page 305: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Acho de bom alvitre que mude-a sua maneira de falar,

senhorita.

Nãorespondi,masbocejei.Foiumlevebocejo,quetraíaum

grandetédio.

— Com todos os demônios... — principiou a falar

impetuosamente.

Interrompi-o.

—Garanto-lhequenãoadiantagritarcomigo,épuraperda

de tempo. Não pretendo absolutamente explicar-me com

subalternos.Levando-mediretamenteàpresençadeSirEustace

Pedler,osenhorevitaráumsem-númerodeaborrecimentos.

—A...

—Issomesmo—afirmei—,aSirEustacePedler.Ohomem

ficouaturdido.

—Eu...eu...comlicença...

Saiucorrendodasalatãorápidocomoumcoelho.Aproveitei

a oportunidadeparaabrir abolsa, e, tirandoo estojodepó-de-

arroz,empoeionariz.Emseguida,ajeiteiochapéu,colocando-o

com mais elegância, e, munindo-me de paciência, pus-me à

esperadomeuinimigo.

Quandoretornou,mudaraamaneiradetratar-me.

—Querfazerofavordeacompanhar-me,MissBeddingfield?

Segui-oescadaacima.Bateuàportadeumasala,e,sódepois

Page 306: Agatha christie - o homem do terno marrom

dereceberaordemdadaemtomseco,abriu-a,afastando-separa

medarpassagem.

Sir Eustace Pedler, amável e sorridente, levantou-se,

cumprimentando-me:

— Vejam só, Miss Anne. — Apertou-me efusivamente as

mãos. — Prazer em vê-la. Sente-se. A viagem não a cansou?

Ótimo!

Sentou-se também, em frente a mim, com a fisionomia

radiante. Eu estava desconcertada ante a naturalidade da sua

atitude.

—Fezmuito bem em insistir para vir àminhapresença—

prosseguiu.—Minkséumtolo.Umbomator,masnãopassade

umtolo.Estoumereferindoàpessoaaquemasenhoritaviulá

embaixo.

—Oh!Nãodiga—murmureimuitobaixinho.

—Eagora—faloualegremente—vamosdiretoaosfatos.Há

quantotemposabiaqueeusouoCoronel?

—DesdequeMr.PagettoviuemMarlow,exatamentequando

todomundoosupunhaemCarmes.

SirEustaceabanouacabeçacomarpesaroso.

—Poisé,eudisseàquelemalucoqueeleestragoutudo,mas

decertoelenãocompreendeu.Asuaúnicapreocupaçãoerasaber

s eeu o reconhecera. Jamais lhe ocorreu indagar o motivo da

minha ida. Foi um azar. Elaborei o plano com tanto cuidado,

mandei-o passear em Florença, disse-lhe em que hotel me

Page 307: Agatha christie - o homem do terno marrom

hospedariaemNice,porumaouduasnoitestalvez.Nomomento

em que descobriram o crime, eu já estava de volta a Cannes.

Ninguém,nememsonhos,imaginariaquemehaviaafastadoda

Riviera.

Continuavafalandocomtodaanaturalidade.Deiumbeliscão

nomeubraço,paratercertezadequetudoaquiloerareal,deque

o homem sentado à minha frente era o astuto criminoso, o

Coronel.Comeceiatirarconclusões:

—Então, foiosenhorquenoKilmordententouatirar-meao

mar.FoiosenhorquePagettperseguiunotombadilho,naquela

noite?

Elesacudiuosombros.

— Peço sinceras desculpas, jovem. Sempre gostei da

senhorita, mas vivia interferindo constantemente no caso, e eu

nãopodiaconsentirqueumamocinhaatrevidainutilizasseomeu

plano.

—Oseuplano,nascataratas, foideverasomais inteligente

—disse,esforçando-meparadara impressãodequeencaravaa

situaçãocomindiferença.—Nãohesitariaemjurarqueosenhor

estavanohotel,quandosaí.Verparacrer.

— É verdade, Minks foi um colosso no papel de Miss

Pettigrewe,alémdisso,imitaperfeitamenteaminhavoz.

—Gostariadesaberumacoisa.

—Oqueé?

—ComoconseguiuquePagettaescolhesse?

Page 308: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Ora,umacoisatãosimples!Foiaoencontrodelenasalade

esperadoescritóriodoencarregadodoMinistériodoComércioou

doConselhodaMineração—seiláqualdeles—,dizendonãosó

terrecebidoumtelefonemasobrepedidodeurgêncianasolução

docaso,comoaindaqueodepartamentoaescolheraparaexercer

as funções de secretária. Pagett engoliu a história como um

cordeirinho.

—Osenhorémuitopositivo—disse,enquantocontinuavaa

observá-lo.

—Nãovejoamenorrazãoparaqueonãofosse.

Não gostei damaneira como pronunciou a frase e tratei de

interpretá-laameumodo.

— Acredita na vitória da revolução? O senhor arrepiou

carreira.

—Essapergunta,feitaporumajovemtãointeligente,parece-

meinteiramentedespropositada.Não,menina,nãoacreditonessa

revolução.Maisunsdoisdiaseela irá fragorosamenteporágua

abaixo.

— Então, desta vez fracassou, não? — perguntei com

maldade.

— Como todas as mulheres, a senhorita não entende de

negócios.Aminhafunçãoerafornecerexplosivosearmas,muito

bempagosporsinal,destinadosafomentaraopiniãopúblicaea

lançar a culpa sobre determinadas pessoas. Obtive grande

sucesso na execução do contrato, pelo qual recebi pagamento

Page 309: Agatha christie - o homem do terno marrom

adiantado.Cuideidonegóciocomomaiordesvelo,poiséoúltimo

deque tratoantesdemeaposentar.Quantoaarrepiarcarreira,

como há pouco disse, não compreendi. Não sou chefe rebelde,

nem coisa parecida, mas um eminente visitante de cidadania

inglesa, que passou pelo infortúnio de bisbilhotar certa loja de

souvenirs, tendo então oportunidade de ver um poucomais do

que esperava. E por isso, coitado de mim, me seqüestraram.

Amanhã ou depois, na primeira circunstância favorável, vão

encontrar-mealgures,completamenteaterrorizadoequasemorto

àmíngua.

—Ah!—dissebaixinho.—Equefarãodemim?

—Éaessepontoqueeuqueriachegar—disseSirEustace

com voz suave. — O que farão? Consegui que você viesse até

aqui...demaneiranenhumaqueropiorarasituação...masestá

nas minhas mãos. O problema é: o que fazer da senhorita? A

solução simples do caso... e, diga-se de passagem, a mais

agradávelparamim...serácasarmo-nos.Comosabe,aesposanão

podedeporcontraomarido,alémdoquê,apreciariaimensamente

terumamulherzinhajovemebonita,quemesegurasseasmãos,

fitando-me com olhos brilhantes... Não me fulmine dessa

maneira! A senhorita me assusta. Vejo que o plano não lhe

convém...

—Absolutamente,não.

SirEustacesuspirou.

— Que pena! Mas eu não sou uma pessoa vil. O caso de

sempre,suponho.Amaoutrohomem,comodizemoslivros.

—Amooutrohomem.

Page 310: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Foi o que imaginei; primeiro julguei que se tratasse de

Race, aquele cretino pernalta, vaidoso; mas agora começo a

pensar no jovem herói que a pescou à noite, nas cataratas. As

mulheres não têm gosto. Nenhum dos dois possui metade da

minhainteligência.Geralmentesubestimamomeuvalor.

Achei que ele tinha razão. Não conseguia enquadrá-lo na

categoriadehomensaqueforçosamentedeviapertencer.Diversas

vezestentaramatar-me;assassinaraumamulhereeraoautorde

inúmeras façanhas que não tinham chegado ao meu

conhecimento.Mesmoassim,era-meimpossívelimaginá-looutro

quenãoonossocompanheirodeviagem,alegreedivertido.Não

meinspiravamedo...emborasoubessequemematariaasangue-

frio, se lheparecessenecessário.Eraunicamentecomparávelao

caso de Long John Silver, de Stevenson. Classificava-se

certamentenamesmaespéciedehomem.

— Ora, ora — disse aquela extraordinária criatura,

recostando-senacadeira.—Épenaquenãolheagracieaidéiade

tornar-seLadyPedler.Asoutrasalternativassãomuitobrutais.

Umasensaçãodefriopercorreu-meaespinhadealtoabaixo.

Não me esquecera de que estava assumindo um grande risco;

contudo, o prêmio não era de se desprezar. As coisas

aconteceriamounãocomoimaginara?

—Narealidade—continuouSirEustace—,sempretiveuma

queda pela senhorita. Sinceramente, não pretendo chegar a

extremos. Se quiser contar toda a história, do princípio ao fim,

veremos o que se pode fazer.Mas nada de fantasia, ouça bem,

querosomenteaverdade.

Page 311: Agatha christie - o homem do terno marrom

Eunãopretendiacometererronessesentido,poisrespeitava

muitíssimoaperspicáciadeSirEustace.Eraomomentoemque

devia falar a verdade, toda a verdade e nada mais do que a

verdade. Narrei-lhe os acontecimentos sem nada omitir, até o

momentoemqueHarrymesalvou.Quandoterminei,elesacudiu

acabeçaemsinaldeaprovação.

—Moçaesperta.Confessoutudo.Masfiquesabendoque,se

não confessasse, euperceberia.Muita gentenãodaria crédito à

sua história, principalmente ao princípio, eu porém acredito. A

senhorita pertence à classe de pessoas que, pelo motivo mais

simples, levam avante um empreendimento no mesmo instante

emquedeletêmnotícia.Quesorte incrível!Contudo,maiscedo

ou mais tarde, o amador dá de encontro com o profissional, e

entãooresultadoéoquejásesabe.Eusouprofissional!Estou

neste negócio desde muito jovem. Depois de muito refletir,

pareceu-me que era um bommodo de enriquecer rapidamente.

Semprefuimeticulosoehábilemimaginarplanosengenhosos...

mas nunca cometi o erro de realizar eu mesmo esses planos.

Fazeruso,sempre,doserviçodetécnicos...esseéomeulema.A

únicavezemquemeafasteidesseprincípiofoiumdesastre...Não

confiava em ninguém para fazer esse trabalho. Nadina sabia

demais.Souumsujeitocalmo,debomcoraçãoebem-humorado,

quando não se atravessam na minha frente, bem entendido.

Nadinanão só tentou obstruirmeu caminho como tambémme

ameaçou, exatamente na ocasião em que eume encontrava no

pontoculminantedaminhacarreira.Vistoqueelaestámortaeos

diamantesvoltarãoaomeupoder,sinto-metranqüilo.Chegueia

pensarquetinhadeitadoonegócioaperder.Pagett,esse idiota,

comahistóriadamulherefilhos!Aculpafoiminha.Masasua

cara de envenenador do Cinquecento com espírito da época

Page 312: Agatha christie - o homem do terno marrom

vitorianadivertia-memuito.Servedeavisoparavocê,Anne:não

sedeixelevarpeloseusensodehumor.Duranteanosoinstinto

mepreveniuda conveniência de afastar Pagett; o rapaz, porém,

era tão trabalhador e consciencioso que, honestamente, não

consegui arranjar uma desculpa para despedi-lo, e deixei as

coisascorrerem.

"Mas estamos divagando. A questão é saber o que fazer de

você.Suanarrativafoicristalina,masumpontoaindameescapa.

Queéfeitodosdiamantes?"

—EstãocomHarryRayburn—respondi,sempreaobservá-

lo.

Com a fisionomia inalterada, Sir Eustace conservava a

expressãodebomhumormescladadeironia.

—Humm...Queroessesdiamantes.

—Nãovejooquepoderáfazernessesentido.

— Não? Pois eu vejo. Não quero ser desmancha-prazeres,

mas,serefletirqueadescobertadocadáverdeumamoçaneste

bairro não provocará a menor surpresa... Lá embaixo está um

homemespecialistanessetipodetrabalho.Vamos,asenhoritaé

sensata.Proponhoo seguinte: escrevaaHarryRayburnepeça-

lhequevenhaaoseuencontro,trazendoosdiamantes...

—Nempensenisso.

— Não interrompa os mais velhos. Troco a senhorita pelas

pedras, ou melhor, os diamantes em troca da sua vida. Estou

falandobemclaro;asuavidaestáemminhasmãos.

Page 313: Agatha christie - o homem do terno marrom

—EHarry?

—Omeubomcoraçãonãomepermitiriaseparardoisjovens

queseamam.Ele também ficaráem liberdade,comacondição,

evidentemente,dequedaquiemdiantenenhumdosdoisinterfira

naminhavida.

— Qual a garantia de que mostrará a sua palavra nesse

contrato?

—Nenhuma,minhacara.Temdeconfiaremmimeesperaro

melhor. Se quiser usar de valentia, e achar preferível ser

destruída,entãoacoisamudadefigura.

Caíraasopanomel.Contudo,tiveocuidadodenãomordera

isca. Aos poucos, deixei que me ameaçasse para depois me

bajular, procurando levar-me à capitulação. Escrevi as palavras

ditadasporele:

"QueridoHarry,

Encontreiagrandeoportunidadeemquepoderáprovarasua

inocência.Porfavor,sigarigorosamenteasminhasinstruções.Vá

àlojadeAgrasatoepeçaquelhemostrealguma'raridade','para

usoemocasiõesexcepcionais'.Odonoentãooconvidaráa'entrar

nasalaaolado'.Acompanhe-o.Láencontraráumguiaqueofará

chegaratéaqui.Procedaexatamentesegundooqueelelhedisser.

Nãodeixedetrazerosdiamantes.Nemumapalavraaninguém".

SirEustaceparou.

Page 314: Agatha christie - o homem do terno marrom

— O final da carta fica entregue à sua imaginação —

observou.—Tomecuidado,nãoprocuremeenganar.

— "Sua para sempre, Anne" é o bastante— falei Escrevi a

frase. Estendendo amão, Sir Eustace pegou a carta e leu-a do

começoaofim.

—Creioqueassimestábem.Agora,oendereço.

Dei o endereço de uma lojinha que recebia cartas e

telegramas,ematençãoaosfregueses.

Com a mão bateu na campainha colocada sobre a mesa.

Chichester-Pettigrew,aliásMinks,atendeuaochamado.

—Mandeestacartaimediatamente...pelasviashabituais.

—Muitobem,Coronel.

Leu o nome escrito no envelope. Sir Eustace observava-o

atentamente.

—Éseuamigo?

—Meuamigo?—Ohomempareciaassustado.

—Você conversoumuito tempo com ele em Johannesburg,

ontem.

—Umhomemaproximou-seefezperguntassobreosenhore

oCoronelRace.Forneci-lheinformaçõesfalsas.

— Ótimo, meu caro rapaz, ótimo — disse Sir Eustace

alegremente.—Enganei-me.

Page 315: Agatha christie - o homem do terno marrom

Casualmente olhei para Chichester-Pettigrew, no momento

emquedeixavaasala.Estavamuitopálidoeaterrorizado.Assim

queseafastou,SirEustace,pegandootelefone,falou:

—Schwart?VigieMinks.Nãoqueroquesaiadestacasasem

minhaordem.

Colocou o aparelho sobre a mesa outra vez, franziu as

sobrancelhas, dando pancadinhas na mesa com as pontas dos

dedos.

—Permiteque lhe façaalgumasperguntas,SirEustace?—

disseeuapósalgunsinstantesdesilêncio.

— Pois não. Tem nervos de aço, Anne! Interessa-se de

maneira inteligente por coisas que fariam amaioria dasmoças

ficarnoaugedaaflição.

— Por que tomou Harry como seu secretário, ao invés de

entregá-loàpolícia?

— Porque queria esses malditos diamantes. Nadina, aquela

diabinha, instigavaHarry contramim.Ameaçou-mede devolver

aspedrasaorapaz,amenosquelhepagasseopreçoestipulado.

Pratiquei mais esse erro ao pensar que trazia consigo os

diamantesnaqueledia.Maselaerabastanteinteligenteparafazer

umacoisadessas.Carton,omarido,tambémjátinhamorrido,e

eu não fazia a menor idéia de onde os diamantes estariam

escondidos. Então, procurei obter a cópia de um telegrama

enviado a Nadina por alguém que viajava noKilmorden. Tanto

podia ser de Carton como de Rayburn, não sei qual dos dois.

Continha os dizeres daquele papelzinho que a senhorita pegou.

"17 1 22", estava escrito lá. Concluí que se tratava de um

Page 316: Agatha christie - o homem do terno marrom

encontrocomRayburn.Quandoovitãodesesperadoparaviajar

noKilmorden,convenci-medequeeutinharazão.Fingiengolira

pílulaeconsentinasuavinda.Fiqueideolhonorapaz,àespera

domomentoemqueficariaapardemaisalgumfato.Foiquando

encontreiMinksinterferindonosmeusprojetos,tentandoganhar

sozinho a jogada. Imediatamente pus um paradeiro nisso,

trazendo-o de volta à disciplina. Fiquei contrariado por não

conseguir a cabina 17, como também me aborreci por não

identificá-la,MissBeddingfield.Seriaounão tão inocente como

aparentava? Quando Rayburn saiu para ir à reunião daquela

noite,Minksrecebeuordemde interceptar-lheospassos,masa

presaescapou.

—Eporqueotelegramamencionava"17"emvezde"71"?

—Jápenseinocaso.Comcerteza,Cartonforneceuosdados

masnãoleuacópia.Otelegrafistacometeuomesmoenganoque

todos nós, lendo "17 1 22" em vez de "1 71 22". Não entendo

como é que Minks foi à cabina 17. Guiou-se talvez por puro

instinto.

— E a mensagem que devia entregar ao General Smuts?

Quemasubstituiu?

— Minha cara Anne, a senhorita acha que eu iria

comprometermeusplanossemfazeromáximoesforçoparasalvá-

los?Comumsecretárioassassino,fugitivodapolícia,nãohesitei

em substituí-la por folhas em branco. Quem suspeitaria do

coitadinhodovelhoPedler?

—EoCoronelRace?

Page 317: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Ah!Essedeu-medordecabeça.QuandoPagettmepôsa

par de que ele pertencia ao serviço secreto, senti um frio na

espinha. Lembrei-me de que durante a guerra andou

bisbilhotando a vida de Nadina, em Paris. Assaltou-me uma

terríveldesconfiançadequeorapazestavaatrásdemim!Nãome

agradaamaneirapelaqualsempredáumjeitodeestaraomeu

lado.Eleédesseshomensfortesecaladosquevivemmaquinando

algumacoisa.

Ouvimos um som semelhante a um assobio. Sir Eustace

pegouotelefone,ouviuatentamentedurantealgunsinstantes,e

depoisdisse:

—Muitobem.Mande-oentrar.

"Negócios", observou. "Miss Anne, vou acompanhá-la até o

seuquarto."

Introduziu-me num apartamento minúsculo e muito mal-

arrumado. Um negrinho trouxe-me a maleta de viagem, e Sir

Eustace,apósinsistiremsabersedesejavaalgumacoisa,retirou-

se. Era a imagem do perfeito anfitrião. Sobre o lavatório havia

umavasilhacomáguaquente.Comeceiatirardamalaobjetosde

usopessoal.Derepente,depareicomumpacotequemeintrigou,

poisnãooreconheci.Desatandoonódobarbante,abri-oafimde

saberdoquesetratava.

Com grande admiração, dele retirei um pequeno revólver

incrustado demadrepérola, que absolutamente não colocara na

mala quando parti de Kimberley. Após examiná-lo

cuidadosamente,verifiqueiqueestavacarregado.

Virei-o nas mãos, sentindo-me bastante reconfortada. Na

Page 318: Agatha christie - o homem do terno marrom

situaçãoemquemeencontrava,apossedaarmadevolvia-mea

tranqüilidade. Mas é difícil esconder um revólver num traje

moderno. Por fim, introduzi-o cuidadosamente demolde a ficar

seguronaliga,emboradeixandoàmostraumasaliênciabastante

volumosa. Fiquei alerta, pois, caso se desprendesse, poderia

disparar, atingindo-me a perna. Mas não havia remédio; era o

únicolugarondepodiaguardá-lo.

Page 319: Agatha christie - o homem do terno marrom

33

Somente à tarde Sir Eustace mandou chamar-me à sua

presença.Serviram-mecháàsonzehoraseumlautoalmoçono

meu apartamento. Sentia-me bastante forte para enfrentar

conflitosfuturos.

SirEustaceestavasozinho.Percorriaasaladeumladopara

outro,oolharbrilhanteepossuídodegrandeinquietação,oque

não me passou despercebido. Estava simplesmente exultante.

Noteitambémalevemodificaçãoquesefizeranamaneirademe

tratar.

— Tenho novidades para a senhorita. O seu querido jovem

estáacaminho.Chegarádentrodepoucosminutos.Contenhao

seuentusiasmo,aindanãoterminei.Asenhoritatentouenganar-

mehoje pelamanhã. Avisei-a de que seriamais prudente dizer

somenteaverdade,eatécertopontofuiobedecido.Depois,tomou

outradiretriz. Induziu-meaacreditarqueosdiamantesestavam

em poder de Harry Rayburn. Naquele momento, aceitei a sua

explicação,pois facilitavaaminhatarefa,oumelhor,atarefade

atrair Harry Rayburn para cá. Mas, minha cara Anne, os

diamantesestãocomigodesdequedeixeiascataratas,apesarde

sóontemtertidoconhecimentodessefato.

—Osenhorsabe!—disse,arquejante.

— Talvez lhe interesse saber que a descoberta se fez por

intermédio de Pagett. Insistia em aborrecer-me, contando uma

longahistória desprovida de sentido, da qual faziamparteuma

apostaeumalatinhadefilmes.Fácilmefoiconcatenarosfatos:a

Page 320: Agatha christie - o homem do terno marrom

desconfiança deMrs. Blair pelo Coronel Race, sua agitação, os

rogos para que eu tomasse conta dossouvenirs... Pagett,

excelente criatura, sempre zeloso das suas obrigações, já tinha

abertoascaixas.Antesdedeixarohotel,passeitodasaslatinhas

defilmesparaomeubolsointerno.Admitoqueaindanãotinha

tidotempodeexaminá-las,masnoteiqueumaeramaispesada,

fazia um ruído diferente, e a tampa, fechada de tal forma, só

poderiaserabertacomoauxíliodeumabridorde latas.Ocaso

está bem claro, não lhe parece? E agora, como vê, tenho-os a

ambospresosnaarmadilha...Épenaquenãoqueiraconsiderara

idéiadetornar-seLadyPedler.

Nadarespondi.Olhava-ofixamente.

Ouviu-seosomdepassosnaescada,aportaescancarou-see

HarryRayburndeuentradanasala.Ladeavam-nodoishomens.

SirEustacelançou-meumolhartriunfante.

—Oplanoseconcretiza—disseemtomsuave.—Amadores

versusprofissionais.

—Quesignificatudoisso?—gritouHarryviolentamente.

—Significaquevocêentrounaminhasaladevisitas,dissea

aranhaparaamosca—observouSirEustacepilheriando.—Meu

caroRayburn,vocênãotemmesmosorte.

—Vocêescreveuquenãohaviaperigo,Anne.

— Não a censure, meu caro rapaz. Ditei o bilhete, e esta

jovem senhora não podia deixar de obedecer. Teria agido com

maisinteligênciasenãoofizesse;mas,comonaocasiãonadalhe

disse a esse respeito... Você seguiu as instruções, foi à loja de

Page 321: Agatha christie - o homem do terno marrom

souvenirs, e,atravessandoapassagemsecretano fundodasala

interna...caiunasmãosdoinimigo!

Harry fitou-me. Compreendi o significado de seu olhar e

aproximei-medeSirEustace.

—Quecoisa!—murmurou.—Decididamente,vocênãoéum

rapazdesorte!Esteé...vejamos...onossoterceiroencontro.

— O senhor tem razão — disse Harry. — É o terceiro

encontro. Duas vezes levei a pior; nunca ouviu dizer que na

terceiraasortemuda?Agoraéaminhavez...Orevólver,Anne!

Estava de prontidão. Num abrir e fechar de olhos, puxei a

armadameia,segurando-aàalturadacabeçadeSirEustace.Os

doishomensquevigiavamHarryderamumsaltoparaa frente,

mastiveramqueparar.

—Maisumpasso... e elemorre!Senãoobedecerem,Anne,

puxeogatilhoimediatamente.

— Eu, não— repliquei dando uma risada.— Tenhomedo

disso.

JulgoqueSirEustacecompartilhavadessemedo,poistremia

comovaraverde.

—Nãosemovam—ordenou,eoshomensobedeceram.

—Mande-osembora—disseHarry.

Sir Eustace deu a ordem. Os homens saíram depressa e

Harryfechouaportaachave.

Page 322: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Agora podemos conversar — falou com ar severo, e,

atravessandoasala,pegouorevólverdaminhamão.

SirEustacesuspiroudealívioelimpouatestacomolenço.

—Estoucompletamenteforadeforma—confessou.—Devo

estarsofrendodocoração.Felizmente,orevólverpassouamãos

competentes.NãotinhaconfiançaemMissAnne.Poisbem,meu

jovemamigo,comodissehápouco,vamosconversar.Estouquase

acreditandoque está emsituação vantajosa.Comoesse revólver

veio parar aqui, não sei. Revistaram toda a bagagem da moça,

assimquechegou.Eagora,deondesurgiu?Aindahápouconão

estavacomele.

—Estavanaminhameia.

— Não conheço muito bem as mulheres. Devia tê-las

estudado um pouco mais — disse tristemente. — Gostaria de

sabersePagettteriapercebido.

Harrydeuumapancadanamesa.

—Nãosefaçadetolo.Senãofossemosseuscabelosbrancos

eu o atiraria pela janela. Miserável! Que me importam os seus

cabelosbrancos,eu...

Como se aproximasse um pouco, Sir Eustace saltou

agilmenteparatrásdamesa.

—Comoosmoçossãoviolentos!—disseemtomdecensura.

— Não usam a cabeça, valem-se unicamente dos músculos.

Conversemos com calma. Nomomento você está por cima,mas

essasituaçãopodenãocontinuar.Omeupessoalestáespalhado

Page 323: Agatha christie - o homem do terno marrom

pelacasatoda.Vocêssãoaminoria.Estavantagemmomentânea

vocêaganhoupormeroacidente...

—Meroacidente?

Sir Eustace fitou-o, atraído pelo tom com que Harry

pronunciouessaspalavras.

—Sente-se,SirEustace,epresteatenção:Apontandoaindao

revólverparaele,prosseguiu:

—Desta vez a jogada está contra o« senhor. Para começar,

ouçaisto!

Isto era uma pesada batida na porta do andar térreo.

Ouviram-segritos, imprecaçõeseemseguidaodisparode tiros.

SirEustaceempalideceu.

—Oqueéisso?

—Race...eopessoal.Osenhornãosabia,nãoé,SirEustace,

que Anne e eu tínhamos feito uma combinação, pela qual

teríamos certeza da legitimidade das nossas comunicações? Os

telegramas seriamassinados por "Andy" e as cartas teriamdois

traços cruzados sobre a palavra "e". Anne percebeu que o seu

telegramaeraforjado.Veioparacádelivreeespontâneavontade,

caindopropositadamentenacilada,comaesperançadeapanhá-

lonaprópriaarmadilhaquepreparou.AntesdedeixarKimberley,

telegrafou-me e a Race também. Mrs. Blair comunicava-se

continuamente conosco. Recebi a carta que o senhor ditou,

exatamente como previa. Conversei com Race sobre a

possibilidade da existência de uma saída secreta na loja de

souvenirsejátinhadescobertoondeselocalizavaaporta.

Page 324: Agatha christie - o homem do terno marrom

Ouviramum grito, o ruído de um desabamento seguido de

forteexplosãoqueestremeceuasala.

— Estão atirando bombas neste bairro. Vou levá-la daqui,

Anne.

Surgiu forte clarão; o prédio fronteiro estava em chamas.

Levantando-se, Sir Eustace pôs-se a andar de um lado para

outro.Harrycontinuavaaapontarorevólvernasuadireção.

—Comovê,SirEustace,ojogoacabou.Foiosenhormesmo

que atenciosamente nos forneceu a pista deste esconderijo. O

pessoal de Race ficou de atalaia junto à passagem secreta e, a

despeito das precauções tomadas pelo seu grupo, conseguiu

seguir-meatéaqui.

Desúbito,SirEustacevirou-se:

—Bempensado.Edignodeencômios.Contudo,aindaquero

dizer uma palavrinha. Perdi a parada, mas você também a

perdeu.Jamaisconseguiráculpar-medamortedeNadina.Estava

emMarlownessedia;éomeuúnicopontodesfavorável.Ninguém

poderáprovarqueeuaconhecia.Masvocê,sim,vocêaconheciae

tinhamotivosparamatá-la...Alémdisso,oseupassadoécontra

você. É ladrão, lembre-se, ladrão. Talvez ignore uma coisa:os

diamantesestãocomigo.Poisentãoveja...

Nummovimentomuitorápido,curvou-#se,ergueuobraçoe

arremessou-oparaafrente.Aosomdeumruídodevidrosquese

partiam, um objeto voou pela janela, desaparecendo na massa

flamejantedoprédiofronteiro.

—Assimseacabaaúnicaesperançaquelherestavadepoder

Page 325: Agatha christie - o homem do terno marrom

provar a sua inocência, no caso de Kimberley. E agora, vamos

conversar.Estounuma situaçãodifícil. Se puder ir-me embora,

ainda tereiumaoportunidadena vida.Se ficar, estareiperdido,

mas você também,moço! Na sala vizinha existe uma clarabóia.

Algunsminutos e estarei a salvo. Já tomei umas providências.

Deixe-me ircomo lhe falei,dê-meessaoportunidade...eeu,por

minhavez,assinareiaconfissãodoassassinatodeNadina.

—Aceite, Harry— exclamei.— Aceite, aceite! Ele voltou-se

paramim,afisionomiamuitoséria.

—Não,Anne,jamais.Nãoavaliaoqueestádizendo.

—Avalio,sim.Issoresolvetudo.

—NuncamaispoderiaencararRace.Queodiabomelevese

estaraposavelhaemanhosaescapar.Éinútil,Anne,nãofareital

coisa.

Sir.Eustaceprocuravadisfarçaroriso,poisaceitavaaderrota

semamenoremoção.

—Ora,vejamsó—observou.—Parece-mequeencontrouo

seu amo e senhor, Anne. Mas garanto-lhes que a retidão de

caráternemsemprecompensa.

Fez-seouvirumestalidodemadeirasobospassosdealguém

que subia a escada. Harry abriu a porta. O Coronel Race foi o

primeiroaentrarnasala.Aover-nos,seurostoiluminou-se.

—Estásalva,Anne.Receava...Voltando-separaSirEustace,

disse:

—Dehámuitoqueandoàsuaprocura,Pedler...Finalmente,

Page 326: Agatha christie - o homem do terno marrom

apanhei-o.

—Parecequetodomundoestácompletamentelouco—disse

meio distraído. — Estes dois jovens vêm me ameaçando com

revólveres e acusando-me de coisas verdadeiramente

estarrecedoras.Eeunemseioqueissosignifica.

— Não sabe? Significa apenas que encontrei o Coronel.

Significaquenodia8dejaneiroúltimoosenhornãoestavaem

Cannes,masemMarlow.SignificaquequandoMmeNadina,sua

auxiliarnessetrabalho,virou-secontraosenhor,planejoumatá-

la...e,porfim,asprovasdocrimesãocontraosenhor.

— São? De quem obteve informações tão interessantes? De

umhomemprocurado pela polícia?O depoimento prestado por

essatestemunhaseráconsideradodemuitovalor...

—Existemaisumatestemunha.AlguémsabiaqueNadinaia

encontrar-secomosenhornaCasadoMoinho.

SirEustaceadmirou-se.AcenandocomamãooCoronelRace

convidou a entrar Arthur Minks,aliás o Reverendo Edward

Chichester,aliásMissPettigrew.Orapazestavapálidoenervoso,

masfaloucomfirmeza:

—Encontrei-mecomNadinaemParisnanoiteanterioràsua

partida para a Inglaterra. Nessa ocasião eu passava por conde

russo.Elacontou-meoseuplano.Conhecendootipodehomem

com quem ia tratar, procurei aconselhá-la, mas ela não deu

ouvidosàsminhaspalavras.Tendolidoumtelegramaqueestava

sobreamesa,acheioportuno tentarapossar-medosdiamantes.

EmJohannesburg,converseicom,Mr.Rayburn,quemeinduziu

apassarparaoseulado.

Page 327: Agatha christie - o homem do terno marrom

Sir Eustace fitava-o, sem nada dizer; Minks, no entanto,

estavavisivelmenteacabrunhado.

—Osratosabandonamonavionomomentoemquevaiao

fundo—observouSirEustace.—Nãoprestoatençãoaosratos;

cedooutarde,destruireiosanimaisdaninhos.

—Queriacontar-lheumacoisa—falei.—Dentrodalatinha

queosenhoratiroupela janelahaviasomentepedrasfalsas.Os

diamantesestãoem lugarseguro.Falando francamente,acham-

se dentro do estômago da girafa. Suzanne esvaziou-o,

acondicionou as pedras dentro dele, emmechas de algodão, de

maneiraanãofazerembarulho,fechando-onovamente.

Sir Eustace olhou-me durante algum tempo e em seguida

falounaquelejeitoquelheerapeculiar:

— Sempre detestei aquela girafa. Devia ser prevenção

instintiva.

Page 328: Agatha christie - o homem do terno marrom

34

Não conseguimos voltar a Johannesburg nessa noite, o

bombardeiotornava-secadavezmaisintenso.

Deduziqueestávamossitiados,vistoqueosrebeldeshaviam

tomadoasáreascircunjacentesdacidade.

Refugiamo-nosnuma fazendaaumas vintemilhasmais ou

menosdeJohannesburg,emplenaestepe.Eumorriadecansaço.

Toda aquela agitação e ansiedade por que passara nesses

dois.últimosdiasdeixaram-mecomoumtrapo.

Repetia amimmesma que as nossas preocupações tinham

chegadoao fim,queHarryeeuestávamos juntosenuncamais

nos separaríamos. Apesar disso, persistia a impressão de que

existiaumabarreiraentrenós,dealgoqueoconstrangiaecuja

razãoeunãoconseguiadescobrir.

Sir Eustace saíra acompanhado por um valente guarda.No

momento da partida, disse-nos adeus, com um aceno de mão,

distraído.

Namanhã seguinte, ao entrarnostoep, olheiparaos lados

deJohannesburg e vi os grandesdepósitosdearmasbrilhando

aosraiospálidosdosol.Ouvia-seorumorlongínquodotiroteio.

Arevoluçãoaindanãotinhaterminado.

A mulher do fazendeiro veio chamar-me para o café da

manhã.Eraumaboa alma,muitomaternal, por quem logome

tomeide simpatia.Segundome informou,Harry tinha saídode

Page 329: Agatha christie - o homem do terno marrom

madrugada e ainda não voltara. Novamente assaltou-me uma

sensação de mal-estar. Que significava aquela sombra que se

interpunhaentrenós?

Depoisdocafé,sentei-menostoep.Levaraumlivro,masnão

conseguia ler. Imersa em pensamentos, não percebi o Coronel

Race chegar, nem quando desmontou do cavalo. Só ao ouvi-lo

dizer"Bomdia,Anne",tiveconsciênciadasuapresença.

—Oh!—murmurei,corando—éosenhor.

—Possosentar-me?

Puxou uma cadeira para perto de mim. Pela primeira vez

encontravamo-nosasós,desdeodiaemquefomosaMatoppos.

Como soía acontecer, tive a mesma impressão, mescla de

fascinaçãoetemorquesempremeinspirava.

—Hánovidades?—indaguei.

—SmutssegueamanhãparaJohannesburg.Nãodoumais

doquetrêsdiasparaquearevoluçãochegueao fim;masnesse

meiotempoalutacontinua.

— Queria ter certeza de que só morreu quem realmente

afrontou a morte, isto é, os que lutaram de livre e espontânea

vontade,enãoosinfelizeshabitantesdasáreasdecombate.

Eleconcordoucomumsinaldecabeça.

— Compreendo o que quer dizer, Anne. Nisso reside a

iniqüidadedaguerra.Mastragooutrasnotícias.

—Traz?

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—Aconfissãodaminhaincompetência.Pedlerarranjouum

jeitodefugir.

—Oquê?

—Éverdade.Ninguémsabe como.Estavapresonumasala

dosobradodeumafazenda,aquinasvizinhanças,ebemvigiado

duranteanoite.Hojedemanhã,a sala estava vazia.Opássaro

tinhabatidoalindaplumagem.

Intimamente,fiqueicontente.Atéessaocasiãonãoconseguira

livrar-me de um sentimento de ternura por Sir Eustace. Sou

digna de censura, mas é verdade. Admirava-o, embora não

passassedeumrematadomalfeitor,maserarealmentesimpático.

Foiapessoamaisdivertidaquejáencontrei.

Ocultei minha maneira de pensar, é claro, ainda mais

sabendoqueaopiniãodoCoronelRacedivergiainteiramenteda

minha. Por ele, Sir Eustace devia ser julgado pela justiça.

Quando nos pusemos a refletir sobre a sua fuga, achamos que

não era caso de admiração. Ele deveria ter inúmeros espiões e

agentespelosarredoresdeJo'burg.IgnoravaaopiniãodoCoronel

Race,mas,quantoamim,duvidavadequeaindaconseguissem

prendê-lo.SirEustacedeviaterumbem-elaboradoplanodefuga.

Aliás,foioquenosdeuaentender.

Não querendo destoar, disse alguma coisa de maneira um

tanto indiferente, e a conversa esfriou. Então, subitamente o

Coronel Race perguntou por Harry. Contei-lhe que saíra de

madrugadaeaindanãootinhavistonaquelamanhã.

— Compreende, não é, Anne? Deixando de lado as

formalidades, ele está inocente. Há a parte técnica,

Page 331: Agatha christie - o homem do terno marrom

evidentemente, mas Sir Eustace não conseguirá eximir-se do

crime.Nadaosseparaagora.

Falousemolhar-me,numavozbaixa,entrecortada.

—Compreendo—disse,agradecida.

—Ejánãoexisterazãoparaquenãovolteausarseunome

verdadeiro.

—Não,claroquenão.

—Sabequalé?

Aperguntasurpreendeu-me.

—Claro,éHarryLucas.

Nãoinsistiu,masalgonoseusilênciochamou-meaatenção.

—Anne, lembra-sedequandovoltávamosdoMatoppos?Eu

lhedissequesabiaoquemecompetiafazer.

—Certamentequemelembro.

—Creioqueexecuteireligiosamenteomeudever.Ohomema

quemamaestáisentodequalquersuspeita.

—Foiissoquequisdizernaquelemomento?

—Semdúvida.

Baixei a cabeça, envergonhada pela minha desconfiança

infundada.Elecontinuouafalar,pensativo:

Page 332: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Quandoeueramuitomoço,apaixonei-meporumajovem,

que rompeu o namoro. Depois disso, só pensei em trabalhar.

Minhacarreiraeratudoparamim.Quandoaencontrei,Anne...

nada mais me interessou. Mas a mocidade atrai a mocidade...

Aindamerestaotrabalho...

Guardei silêncio.Nãosepodeamardoishomensaomesmo

tempo... embora pareça que isso possa acontecer. Emanava de

Raceumgrandemagnetismo.Fitando-o,disse:

—Achoqueosenhorvailonge,poistemtodaapossibilidade

de realizar uma grande carreira. Ainda será figura de destaque

mundial.

Sentiqueessaspalavraseramcomoumaprofecia.

—Masvivereisozinho.

—Assimvivemtodasaspessoasquerealizamgrandesfeitos.

—Acha?

—Tenhocerteza.

Tomouaminhamão,dizendoemvozbaixa:

—Teriasidopreferívelque... fossediferente.Nessemomento

HarrychegoueoCoronelRacelevantou-se.

—Bomdia...Lucas.

NãoseiporqueHarrycorouatéaraizdoscabelos.

—Ora!—continuoualegremente.—Agoraelevemoschamá-

lopeloseuverdadeironome.

Page 333: Agatha christie - o homem do terno marrom

HarrynãotirouosolhosdoCoronelRace.

—Entãoosenhorjásabe—disse,porfim.

—Soumuitobomfisionomista.Euoviquandoeramenino.

— Que significa tudo isso?— perguntei, intrigada, fitando

oraum,oraoutro.

Percebi que tinham tomado resoluções opostas, mas Race

ganhou.Harrydesviouoolhar.

—Creioqueosenhortemrazão.Diga-lheomeuverdadeiro

nome.

— Anne, ele não é Harry Lucas. Harry Lucas morreu na

guerra.OseunomeéJohnHaroldEardsley.

Page 334: Agatha christie - o homem do terno marrom

35

Mal acabara de pronunciar as últimas palavras, o Coronel

Raceafastou-se.Fiqueiaolhá-lo,atédesaparecer.AvozdeHarry

chamou-meàrealidade.—Perdoe-me,Anne.Digaquemeperdoa.

Tomouminhamão entre as suas e em seguida, num gesto

automático,soltou-a.

—Porquemeenganou?

—Nãoseisevocêmecompreenderá.Receavadiversascoisas:

o poder da riqueza e o fascínio que ela exerce.Queria que você

gostassedemimpeloquesouepeloqueera,umrapazsimplese

semdinheiro.

—Querdizerquenãoconfiavaemmim?

—Nãofoiesseomotivo,mastemodireitodepensarassim.

Euviviaamargurado,desconfiadodetodos,vendoemtudouma

segundaintenção.Eachavasimplesmentemaravilhosoquevocê

gostassedemimdamaneiracomogostava.

—Compreendo—dissepausadamente.Revolvianamentea

históriaquemecontara,notandopelaprimeira veza existência

dediscrepâncias: odesprendimentopelodinheiro, a vontadede

reaverosdiamantesempoderdeNadina,porquepreferirareferir-

se aos dois homens como se ele próprio fosse um estranho. E

quando mencionara "meu amigo", não se tratava de Eardsley,

masdeLucas.EraLucasorapazcalado,queamaraNadinatão

profundamente.

Page 335: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Comopôdeacontecerisso?—perguntei.

—Ambosvivíamosdespreocupados...edesejososdemorrer.

Certanoite,porsorte, trocamosaschapasde identificação...No

diaseguinteLucasfoimorto...Ficouestraçalhado.

Estremeci.

—Porquenãomecontouantes?Estamanhã?Jánãopodia

duvidardomeuamorporvocê.

—Anne,eunãoqueriaalterarasituação.Pretendialevá-lade

volta à ilha. De que vale o dinheiro? Não compra a felicidade.

Viveríamos felizesna ilha.Confessoquereceioessaoutravida...

quequasemedestruiuumavez.

—SirEustacesabiadesuaverdadeiraidentidade?

—Oh!Sabia,sim.

—ECarton?

—Não.Viu-nosambosumanoitenacompanhiadeNadina,

emKimberley,masnãosabiaqualdosdoiseraeu.Acreditouque

eu fosse Lucas, e Nadina, por sua vez, deixou-se enganar pelo

telegrama.NuncasentiumedodeLucas.Eleviviasemprecalado,

muitoreservado.Maseusempre fuiexplosivo.Elateriamorrido

demedosesoubessequeressuscitei.

— Se o Coronel Race não tivesse contado, o que você

pretendiafazer,Harry?

—Nada.ContinuarsendoLucas.

Page 336: Agatha christie - o homem do terno marrom

—Eosmilhõesdeseupai?

— Race ficariamuito feliz em recebê-los. Aindamais, acho

que faria deles melhor uso do que eu. Anne, em que está

pensando?Quecarrancaéessa?

—Estou pensando— disse com voz pausada— que talvez

fossepreferíveloCoronelRacenãotercontadonada.

—Não,eleestavacerto.Vocêdeviasaberaverdade.Fezuma

interrupçãoederepentefalou:

— Sabe, Anne, sinto ciúmes do Coronel Race. Ele a ama

tambéme...temmaiorprojeçãodoqueeutenhooupodereivira

ter.

Rindo,voltei-meparaele:

—Quetolice,Harry!Gostodevocê...esóissoimporta.

Instantes depois partimos para a Cidade do Cabo, onde

Suzannemeesperavaparadar-measboas-vindas.Imediatamente

fomos estripar a girafa. Quando finalmente a revolução foi

abafada,oCoronelRacereuniu-seanósesugeriuquefixássemos

residêncianaespaçosavila,emMuizenberg,outrorapertencente

aSirLaurenceEardsley.

Já tínhamosarquitetadoplanos.Eu retornaria à Inglaterra,

emcompanhiadeSuzanne,realizando-semeucasamentoemsua

casa, em Londres. Ainda mais, iria a Paris comprar o enxoval!

Suzannesentiaenormeprazeremplanejartodososdetalhes.Eu

também. Assim mesmo, o futuro me parecia completamente

irreal.Àsvezes,semsaberporquê,sufocava,comosemefaltasse

Page 337: Agatha christie - o homem do terno marrom

arespiração.

Nanoiteanteriorao embarque, sentia-me infelicíssima, sem

todavia atinar com a causa do meu infortúnio. Não podia

suportaraidéiadeabandonaraÁfrica.Quandoregressasse,seria

tudotãobomcomoagora?Continuariaasê-lo?

Sobressaltei-meaoouvirfortesbatidasnaveneziana.Deium

salto.Harryestavafora,nostoep.

—Vista-se,Anne,evenhacá.Querofalarcomvocê.

Enfiei um vestido e saí para a noite fresca, calma e

perfumada, suavecomoo contatodo veludo.Comumacenode

mão,Harrychamou-meparalongedacasa.Estavapálido,comos

olhosbrilhanteseumardequemhaviatomadoumadecisão.

— Lembra-se, Anne, de quando você me disse que, pelo

homemamado,asmulheressesentemfelizesemfazercoisasque

lhesdesagradam?

— Lembro — respondi, perguntando-me o que ele queria

dizercomisso.

— Anne, venha comigo... agora... esta noite — disse,

tomando-menosbraços.—VamosvoltarparaaRodésia,paraa

ilha.Jánãosuportotodasessasbobagens,nemficarmaistempo

semvocê.

Desprendi-medoabraçoporummomento:

— E os meus vestidos franceses? — perguntei em tom de

caçoada.

Page 338: Agatha christie - o homem do terno marrom

A partir desse dia Harry nunca distinguiu quando estou

falandosériooucaçoando.

—Quemeimportamosvestidosfranceses!Achaqueeuquero

pôr..vestidosemvocê?Prefiromilvezes tirá-los,aospedaços,do

seucorpo.Enãováembora,estáouvindo?Vocêéminhamulher.

Se eu a deixar ir, corro o risco de perdê-la. Em se tratando de

você,nuncamesintoseguro.Vamosemboraagora...estanoite...

Quemeimportamosoutros!

Apertou-me fortemente contra si, beijando-me tanto, que eu

malpodiarespirar.

—Nãopossomaisviversemvocê,Anne.Éimpossível.Odeio

essedinheiro.QuefiqueparaRace.Vamos,vamosembora.

—Eaescovadedentes?—objetei.

— Compra-se outra. Sei que sou um esquisitão, mas, pelo

amordeDeus,venha!

Começou a andar apressadamente. Eu o segui, humilde,

comoabarotsiqueviranascataratas,comadiferençadequenão

carregava nenhuma panela na cabeça. Apressou tanto o passo

queeudificilmenteconseguiaseguiraoseulado.

—Harry—disse,porfim,numtommeigo—,nósvamosapé

àRodésia?

Voltou-se subitamente e, dando uma gargalhada, levou-me

emseusbraços.

—Estouficandolouco,minhaquerida,maséporqueaamo

tanto!

Page 339: Agatha christie - o homem do terno marrom

— Somos uns malucos. Oh! Harry! Embora você não me

perguntasse, quero dizer-lhe que não estou fazendo sacrifício

nenhum!Euqueriair!

Page 340: Agatha christie - o homem do terno marrom

36

Dois anos se passaram. Ainda moramos na ilha. Sobre a

mesadetábuatosca,estáacartadeSuzanne.

"Queridosinocenteshabitantesdafloresta.Queridosmalucos

apaixonados.

Nãomesurpreendi.Bempercebiaoseudesinteressetodavez

que falávamossobreParis e vestidos, e quemaisdiamenosdia

você desapareceria inesperadamente para casar-se segundo os

antigoscostumesciganos.Masambossãorealmenteumcasalde

malucos! A idéia de renunciar a tão fabulosa fortuna chega às

raias do absurdo. O Coronel Race pretendia conversar sobre o

assunto com vocês, mas convenci-o a deixar essa questão para

maistarde.Enquantoisso,administrarátodososbensemnome

deHarry.Creioseressaumaboasolução,pois,afinal,lua-de-mel

nãoduraeternamente.Seestoumeexternandocomliberdadeé

porque você não está aqui, Anne; caso contrário, sei que você

reagiriacomoumagataselvagem.Oamornasselvaspoderáser

duradouro; dia virá, porém, em que começarão a sonhar com

casas em Park Lane, peles caras, vestidos parisienses, carros

enormesecarrinhosultramodernosparabebês,criadasfrancesas

e pajens nórdicas! Oh! Tenho certeza que vocês hão de querer

tudoisso!

Por enquanto, desejo-lhes uma feliz lua-de-mel, queridos

maluquinhos, uma longa lua-de-mel! E lembrem-se demim, de

vez em quando, daquela que continua engordando nesta vida

Page 341: Agatha christie - o homem do terno marrom

regalada.

Daamigaquelhesquerbem,SuzanneBlair.

P.S.—Envio-lhescomopresentedecasamentoumabateria

decozinhaeumagrandeterrinedepâtédefoiegrasparaquenão

seesqueçamdemim."

Recebi uma outra carta que releio de vez em quando.

Acompanhada de um pacote volumoso, chegou bem depois da

primeira,procedentedaBolívia.

"PrezadaAnneBeddingfield.

Nãoresistoàtentaçãodeescrever-lhe,nãotantopeloprazer

que isso me proporciona, como pela enorme alegria que, estou

certo,sentiráaoternotíciasminhas.OnossoamigoRace,afinal

de contas, não era tão inteligente como ele próprio imaginava,

nãoéverdade?

Pensei em designá-la minha testamenteira literária, razão

pela qual-lhe envio omeudiário.Não interessa aRace emuito

menos aos seus asseclas, mas julgo que certas passagens a

divertirão.Façadeleousoque lheaprouver.Sugiroapenasque

publiqueumartigonoDailyBudget: 'Criminososqueencontrei'.

Salientaráaminhapessoa,colocando-acomofiguraprincipal.

Não tenho dúvida de que agora você já não é Anne

Beddingfield,masLadyEardsley,umadasrainhasdeParkLane.

Queriadizer-lhequeacreditonãoterhavidodesuaparteamenor

intenção de prejudicar-me. Mas, na minha idade, é deveras

Page 342: Agatha christie - o homem do terno marrom

penoso ser forçado a começar tudo de novo. Cáentre nous, eu

mantinha um fundo de reserva para usar numa contingência,

comoaqueseapresentou.Muitoapropósito,estoureunindoum

grupinho muito simpático. Antes que me esqueça, se um dia

encontraroseuamigotãoengraçado,ArthurMinks,diga-lheque

nãomeesquecidele.Quermefazeressefavor?Tenhocertezade

queelereceberáumchoque.

Demodogeral,creioterprocedidocomespíritocristão,capaz

de tudo perdoar. Até em relação a Pagett. Soube por acaso que

ele, oumelhor,Mrs. Pagett, há poucos dias, deu à luz o sexto

filho. Logo a Inglaterra estará totalmente povoada de Pagetts.

Mandei de presente ao bebêuma canecade prata eum cartão-

postal, afirmando o meu desejo de ser padrinho do pimpolho.

ImaginoperfeitamentePagettdecarafechada,pegandoacanecae

ocartãoparaseguirdiretamenteàScotlandYard!

QueDeusaabençoe,moçadosolhosbrilhantes.Diaviráem

queteráconsciênciadoerroquecometeunãomedesposando.

Atenciosamente,EustacePedler."

Harry ficou furioso. É esse o único ponto em que

discordamos, pois, para ele, Sir Eustace é a pessoa que tentou

matar-mee,aindamais,oresponsávelpelamortedeseuamigo.

Nãoconsigocompreenderacausadosatentadoscontraaminha

vida,praticadosporSirEustace.Soamcomonotasdiscordantes,

se é queme exprimobem.Tenho certezade que semprenutriu

pormimprofundasimpatia.

Então,qualomotivodeatentarcontraaminhavida?Harry

acha que é "por ser uma criatura abominável" e com isso dá o

Page 343: Agatha christie - o homem do terno marrom

assunto por encerrado. Suzanne entra mais em detalhes.

Conversamosdiversas vezes sobreoassunto.Ela explicao caso

comoum"complexodemedo".Minhaamigaédadaaesclarecer

fatosàluzdapsicanálise.Fez-meverqueSirEustace,durantea

vidainteira,foiinfluenciadopelodesejodesegurançaeconforto,

possuindo em alto grau o sentimento de autopreservação. O

assassinatodeNadinanadamaisfoidoqueodesejodelivrar-se

de certas inibições. Em relação àminha pessoa, seus atos não

representavam a verdadeira expressão dos seus sentimentos,

sendosomenteoresultadodograndetemorpelasuasegurança.

AcreditoqueSuzannetemrazão.QuantoaNadina,pertenciaao

tipo de mulher que devia morrer. Por dinheiro os homens

praticam ações de toda espécie,mas asmulheres não deveriam

fingiramorparaatingiroutrasfinalidades.

PerdôoSirEustace,decoração,masNadina,jamais!Jamais,

jamais,jamais!

Há alguns dias, quando desembrulhava algumas latas

envolvidas em folhas de um número antigo doDaily Budget,

deparei com o título de uma notícia: "O homem do terno

marrom". Como tudo isso me pareceu distante! De há muito

cessaram as minhas relações com oDaily Budget, muito antes

queojornalofizesse.Omeu"casamentoromântico"cercou-ode

enormepopularidade.

Meufilhinhoestábrincandosobosraiosdesol.Éo"homem

do ternomarrom",masestas vestes jamais se estragam, e,para

quem vive na África, são as mais convenientes. Está dourado

comoumfrutomaduro,poispassaosdiascavandoaterra.Tenho

a impressão de que saiu ao avô e acabará obcecado pelo barro

plistoceno.

Page 344: Agatha christie - o homem do terno marrom

Quandoelenasceu,Suzannemandouumtelegrama:

"Congratulações eabraçospela chegadado recém-nascidoà

ilhadosLunáticos.Quala formadasuacabeça:dolicocéfalaou

braquicéfala?"

Suzanne não me faria engolir essa. Com uma palavra —

respostaeconômicaeaopédaletra—,respondi:

"Platicéfála!”

FIM

Page 345: Agatha christie - o homem do terno marrom

SobreaAutora

AgathaChristieiniciousuabrilhantecarreiraliteráriacomo

livro “Omisterioso casodeStyles”em1921.Desdeseuprimeiro

romance, revelou uma habilidade fantástica para arquitetar um

mistério policial, engendrando uma série de pistas falsas. Ao

mesmo tempo, demonstrava um notável senso de observação

psicológica.

NascidaemTorquay,na Inglaterra,emsetembrode1891,

Page 346: Agatha christie - o homem do terno marrom

Agatha Mary Clarissa Miller era filha de mãe inglesa e pai

americano, que morreu quando ela ainda era bem criança. Na

infânciae juventude,dedicou-secomentusiasmoàleitura,e logo

descobriu seusautorespreferidos.Emvezdehistóriasdeamor,

seu interessevoltava-separaCharlesDickenseConanDoyle,o

criadordeSherlockHolmes.

Seusconhecimentosdequímica,poçõesevenenos,quetêm

papelrelevanteemquasetodasassuastramas,foramadquiridos

quando trabalhou como voluntária em um hospital da Cruz

Vermelha, durante a Primeira Guerra Mundial, ajudando

especialmenteosrefugiadosbelgas.

Dame Agatha sempre foi excelente cozinheira, gostava da

vidadomésticaeodiavaapublicidadeeasocasiõesemquetinha

de aparecer em público. Construía seus mistérios caminhando

pelos parques ou devorando maças em grande quantidade,

durante seus banhos de imersão. Lia muita poesia moderna e

detestava o revólver e o punhal: “Prefiro as mortes por

envenenamento”,costumavadeclarar.

“Aparticipaçãodo leitorêessencial.Eledevedesvendaro

mistério lentamente, como se estivesse sendo envenenado.” Tão

traduzida quanto Shakespeare, com quase quatrocentosmilhões

deexemplaresvendidos,a“damadocrime”éaresponsávelpela

quarta tiragemmundial de todos os tempos: à sua frente estão

apenasLênin,JúlioVerneeLievTolstói.

Ao falecer, em 1976, deixou uma obra que continua a

mereceraadmiraçãodeleitoresdomundointeiro.