Agatha christie - encontro com a morte

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Por que Poirot não impediu o assassinato? Poirot tinha bons motivos para saber que um assassinato seria cometido, que a morte daquela mulher era inevitável. Por que Poirot não o impediu? A resposta está nas páginas deste livro, onde Agatha Christie faz o detetive Poirot superar a si mesmo. Jamais Poirot foi tão brilhante, tão preciso, tão justo e tão lógico.

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I

"Compreendequeelatemdesermorta,nãocompreende?”A pergunta lutuou no parado ar noturno, pairou um momento e

depoisafastou-se,perdeu-senaescuridão,paraosladosdomarMorto.De testa franzida, Poirot deteve-se, com a mão no fecho da janela.

Depoisfechou-acomumgestodecisivo,aimpediraentradaaosmale íciosdo ardanoite.A educaçãoque levara convencera-odequeo ar exterioricava melhor fora de casa e de que o ar noturno era especialmenteperigoso para a saúde. Correu o reposteiro da janela, com cuidado, eencaminhou-separaacama,sorrindodemodotolerante.

“Compreendequeelatemdesermorta,nãocompreende?” Curiosas palavras para o detetiveHercule Poirot ouvir na sua primeiranoiteemJerusalém! “Aondequerquevá,hásemprequalquercoisaamelembrardaexistênciadocrime!”,pensou.Continuouasorrir, ao lembrar-se de uma história que ouvira uma vez, acerca do romancista AnthonyTrollope. Trollope viajava pelo Atlântico, nessa altura, e ouvira doispassageirosdiscutindoaúltimapartedeumdosseusfolhetins.

“Muitobem”,disseumdospassageiros,“maseledeviamataraquelavelha chata”. O romancista sorrira e se dirigira a ele: “Agradeço muito,cavalheiros.Voumatá-laimediatamente!”

Hercule Poirot perguntou-se o que teria originado as palavras queele próprio acabara de ouvir. Seriam possivelmente duas pessoas queescreviamumapeçaouumlivroemparceria.“Aquelaspalavrastalvezumdia sejam recordadas com um signi icado mais sinistro”, pensou, semdeixardesorrir.

Recordou que a voz tinha curiosa intensidade nervosa, um tremorque denunciava forte tensão emocional. Era uma voz de homem ou derapaz.

Ao apagar a luz da mesa de cabeceira, Poirot pensou, ainda:“Reconheceriaaquelavoz,seavoltasseaouvir...

Comoscotovelosnoparapeitoeascabeçasunidas,RaymondeCarolBoyntonmergulhavamoolharnoabismoazuldanoite.Raymondrepetiu,nervosamente:

–Compreendesqueelatemdesermorta,nãocompreendes?CarolBoyntonmudouumpoucodeposiçãoemurmurou,emvozroucae

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nervosa:–Éhorrível!–Nãoémaishorríveldoqueisto!–Creioquenão...– As coisas não podem continuar assim, não podem! – exclamou

Raymond,violentamente.–Temosde fazerqualquercoisa... eeunãovejooutrasolução.

–Senospudéssemoslibertar...–disseCarol,masasuavoznãotinhaconvicção,eelasabia-o.

–Não podemos. –O tomdeRaymond era vazio e sem esperança. –Sabesquenãopodemos,Carol.

Amoçaestremeceu.–Eusei,Ray...eusei.Raymondsoltouumagargalhadacurtaeamarga.–Aspessoas julgar-nos-iam loucos, se soubessemquenãopodemos

ir-nospuraesimplesmenteembora...–Talvezsejamosloucos–redarguiuCarol,muitodevagar.–Suponhoquesim...ou,pelomenos,nãotardaremosasê-lo.Tenhoa

certeza de que não faltaria quem a irmasse que já o éramos. E nós aplanejarcalmamente,asangue-frio,amortedanossaprópriamãe!

–Elanãoéanossamãe!–emendouCarol,ríspida.– Tens razão. – Seguiu-se uma pausa, inda a qual Raymond

perguntou,emvozquesetornaracalmaeprática:–Concordas,Carol?–Sim...pensoqueeladevemorrer–respondeuamoça,semhesitar.

–Élouca,tenhoacertezadequeélouca!Seonãofossenãonostorturariacomo tortura. Há anos que dizemos: Isto não pode continuar! E, contudo,tem continuado. Ela há-de morrer, um dia!, pensávamos. Mas ela nãomorreu.Suponhoatéquenuncamorrerá,anãoser...

–Anãoserquenósamatemos!–concluiuRaymond,comfirmeza.– Sim. – Carol cerrou os punhos, no parapeito da janela, e o irmão

continuou,emtomfrioeprático,apenascomumlevetremoradenunciarasuaprofundaexcitação:

– Compreendes por que motivo terá de ser um de nós, nãocompreendes?NocasodeLennox,temosdeterNadineemconsideração...enãopodemosenvolveraJinnynoassunto.

–PobreJinny!Tenhotantomedo...–Bemsei.Estáatornar-segrave,nãoestá?Épor issoquetemosde

fazerqualquercoisadepressa,antesqueelapercadetodoarazão.

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Carol endireitou-se bruscamente e afastou da testa o cabelo castanhorebelde.

–Ray,nãocrêsquesejarealmenteerrado,poisnão?– Não – respondeu o rapaz, no mesmo tom aparentemente

desapaixonado. – Creio que é o mesmo que matar um cão raivoso... queafastaralgoqueestáaprejudicaromundoetemdeserdetido.Sóháumamaneiradeodeter.

–Mas...masmandar-nos-ãoparaacadeiraelétricadomesmomodo–gaguejou Carol. – Quero dizer, não poderíamos explicar como ela é.Pareceriatãofantástico!Decertomodo,estátudononossoespírito.

–Mas ninguém saberá, jamais. Tenho umplano, estudei tudomuitobem.Procederemoscomtodaasegurança.

Carolvoltou-se,desúbito,paraoirmãoefitou-o.–Ray, acho-tediferente, não sei como.Aconteceu-tequalquer coisa!

Quemtemeteutudoissonacabeça?–Porqueteriademeacontecerqualquercoisa?–redarguiuorapaz,

masolhouparaolado.–Porquesim!Ray,foiaquelamoçadocomboio?– Claro que não! Por que pensa semelhante coisa?Não diga tolices,

Carol.Voltemosa...a...–Aseuplano?Tensacertezadequeéumbomplano?– Suponho que sim. Evidentemente que teremos de esperar pela

oportunidadeconveniente.Edepois, se tudocorrerbem,estaremos todoslivres!

–Livres?Carol suspirou e olhou para as estrelas. De súbito, uma onda de

chorosacudiu-lhetodoocorpo.–Quetens,Carol?– A noite, o azul do céu e as estrelas... é tudo tão belo! – exclamou,

entre soluços. – Se ao menos pudéssemos compartilhar essa beleza, sepudéssemos ser comoasoutraspessoasemvezde sermos comosomos...criaturasestranhas,nevróticas...erradas!

– Mas tudo se recomporá, seremos pessoas normais... quando elamorrer.

–Tensacerteza?Nãoserátardedemais?–Não,não!–Duvido...–Carol,sepreferesnão...Ajovemafastouobraçoemqueelequisenvolvê-la,paraaconfortar,

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erespondeu:– Não, estou contigo... estou de initivamente contigo! Por causa dos

outros...sobretudoporcausadaJinny.Temosdeasalvar!–Então...seguiremosparaafrente?–Sim!– Óptimo. Vou-te explicar omeu plano... – inclinou a cabeça para a

dela.

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II

MissSarahKing,bacharelemMedicina,estavajuntodamesadasalado Solomon Hotel, em Jerusalém, a folhear distraidamente jornais erevistas.Tinhaocenhofranzidoepareciapreocupada.

Ofrancêsaltoedemeia-idadequeentrounasala,vindodovestíbulo,observou-aummomento, antesde sedirigir parao ladoopostodamesa.Quando os seus olhos se encontraram, Sarah esboçou um sorriso dereconhecimento.

Recordava-se de que aquele homem a auxiliara quando vinham doCairoetransportaraumadassuasmalas.

–Estavapensandoempedircafé–disseoDr.Gerard.–Querfazer-mecompanhia,Miss...?

–King.MeunomeéSarahKing.–Eeu...comlicença–estendeu-lheumcartão.

Aoleronome,osolhosdeSarahdilataram-senumespantoagradável.–DoutorTheodoreGerard?Oh,masencanta-meconhecê-lo!Litodas

as suas obras, evidentemente. As suas opiniões acerca da esquizofreniasãotremendamenteinteressantes.

– Leu todas as minhas obras... evidentemente? – O Dr. Gerardarqueouassobrancelhas,curioso.

–Équetambémvousermédica!–explicouSarah,contente.–Acabodemebacharelar.

–Ah,compreendo!O Dr. Gerard pediu o café e sentaram-se a um canto da sala. O

francêsestavamenosinteressadonosconhecimentosmédicosdeSarahdoquenocabelopretoondulado,penteadoparatrás,enabocavermelha,delindodesenho.Divertia-ooardevisívelrespeitocomqueelaoolhava.

–Demora-seporcámuitotempo?–perguntou-lhe.–Algunsdias.DepoisqueroiraPetra.–Temgraça,mastambémtenhovontadedeirlá,senãofossemuito

demorado.PrecisoestaremParisnodiacatorze.–Suponhoque levacercadeumasemana.Doisdias lá,doisdiasde

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permanênciaedoisdiasparacá.–Estamanhãireiàagênciadeviagensveroquesepodearranjar.

Entrounasalaumgrupodepessoas,quesesentaram.Saraholhou-ascomumcertointeresseebaixouavoz:

– Reparou nas pessoas que entraram e que viajaram no mesmocomboioemqueviajamos?PartiramdoCairoquandonós.ODr.Gerardajustouummonóculoeolhounadirecçãoindicada.

–Americanos?–Sim,éumafamíliaamericana.Mas...muitoestranha,creio.–Estranha?Emquesentido?–Olheparaeles.Sobretudoparaamulherdeidade.ODr.Gerardfez-lheavontade.Reparouprimeironumhomemaltoe

desengonçado, que deveria ter cerca de 30 anos. O rosto era agradável,mas denotava fraqueza e a sua atitude parecia estranhamente apática.Haviatambémdoisjovensinteressantes,umdosquais,orapaz,tinhaumacabeça quase grega. “Mas passa-se também qualquer coisa com ele”,pensou o Dr. Gerard. “Sim, nota-se um estado inequívoco de tensãonervosa”. A moça era, sem dúvida, sua irmã, pois as semelhanças nãoenganavam,etambémdenotavanervosismo.

Haviaaindaoutramoçamaisnova,comumacabeleiraruivo-douradaque lembrava uma auréola e cujasmãos puxavamnervosamente o lençoquetinhanocolo,eumamulherjovem,calma,decabeloescuro,tezbrancaerostoplácido,quelembravaumamadonnadeLuini.Essa,pelomenos,nãodemonstravaqualquernervosismo.Eocentrodogrupo...“Céus!”,pensouoDr. Gerard com a franca repugnância de um francês. “Que pavor demulher!” Velha, inchada, quase a rebentar, parecia um velho Budadesfigurado,umaenormearanhanocentrodeumateia.

–LaMaman não é bonita, pois não? – disse a Sarah e encolheu osombros.–Hánelaalgode...sinistro,nãoacha?

O Dr. Gerard voltou a observá-la, desta vez com um interesseprofissionalenãoestético.

–Hidrópica...cardíaca...–eacrescentououtrafrasemédica.– Ah, sim! – Sarah não ligou importância ao aspectomédico. –Mas

nãonotaalgodeestranhonaatitudedelesparacomela?–Sabequemsão?–Chamam-seBoynton.Mãe, ilhocasado,amulherdeste,outro ilho

maisnovoeduasfilhas.–LafamilleBoyntonandaavermundo.– Pois sim, mas há qualquer coisa estranha no modo como o vê.

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Nuncafalamcomninguémenenhumdelesfaznadasemordemdela.–Pertenceaotipomatriarcal.–Creioqueéumaperfeitatirana.ODr.Gerardencolheuosombroseobservouserfatobemconhecido

queamulheramericanadominavanaterra.–Poissim,masnestecasoémaisdoque isso.– insistiuSarah.–Ela

é...en im,domina-osdetalmaneira,tem-nostãopositivamentedebaixodocalcanharqueé...éindecente!

– Émau para asmulheres possuírem poder demais – concordou omédico,comsúbitagravidade,abanandoacabeça.

OlhouSarahdesoslaioeveri icouqueelaestavaaobservarafamíliaBoynton – ou melhor, um membro especí ico da família. Esboçou umsorrisocompreensivoeperguntou,atentartirarnabosdapúcara:

–Faloucomeles?–Sim...pelomenoscomumdeles.–Comofilhomaisnovo?– Sim. No comboio, quando vínhamos para cá. Ele estava de pé, no

corredor,eeufalei-lhe.Não havia nenhum constrangimento na atitude de Sarah nem na

maneira como encarava a vida. Interessava-se pelas pessoas como sereshumanosetinhaumadisposiçãocordial,emboraimpaciente.

–Quemotivoalevouafalarcomele?– Por que não? – perguntou, com um encolher de ombros. – Falo

muitasvezescomaspessoas,quandoviajo.Interessam-me,interessa-meoquefazem,pensamesentem.

–Querdizer,observa-asaomicroscópio.–Talveztenharazão–admitiuajovem.–Equalfoiasuaimpressão,nestecaso?–Bem...–Sarahhesitou.–Eestranho,sabe,masorapazcomeçoupor

coraratéàraizdoscabelos.–Eissoéassimtãoextraordinário?Sarahdeuumagargalhada.–Oquequerdizeréquemetomouporumadesavergonhadaqueme

estavaaatiraraele,hem?Masnão,nãocreioquetivessepensadoisso.Oshomenspercebemsempre,nãopercebem?

Envolveu-onumfrancoolhar interrogadoreomédicoacenoucomacabeça.

– Tive a impressão de que ele icou... como dizer? Simultaneamenteemocionado e aterrorizado. Desproporcionadamente emocionado e

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apreensivodeummodoabsurdo.Oraissoéestranho,poisosAmericanospareceram-me sempre seguros de si. Um americano de vinte anos, porexemplo,temmuitomaisconhecimentodomundoemuitomaissavoir fairedoqueuminglêsdamesma idade.Eaquelerapazdeve termaisdevinteanos.

–Sim,deveandarpelosvinteetrêsouvinteequatro.–Tanto?–Suponhoquesim.–Talveztenharazão...Noentanto,nãoseiporque,parecetãojovem...–Desajustamentomental.Ofator“infantil”persiste.– Então sempre tenho razão? Quero dizer, há nele algo que não é

completamentenormal?ODr.Gerardencolheuosombrosesorriudoseuinteresse.–Minha querida jovem, algum de nós será completamente normal?

Admito,noentanto,quenestecasohaveráprovavelmentequalquertipodeneurose.

–Relacionadacomaquelavelhahorrível,semdúvida!–Pareceantipatizarmuitocomela.–Eantipatizo.Tem...temumolharmalévolo.–Aconteceomesmoamuitasmãesquandoosseus ilhossesentem

atraídosporjovensfascinantes.Sarahteveumgestodeimpaciência.OsFranceseseramtodosiguais,

viviam obcecados pelo sexo! No entanto, como psicóloga consciente, elaprópriaera forçadaaadmitiraexistênciadeumabasesexualnamaioriadosfenômenos.

Raymond Boynton começou a atravessar a sala, direito à mesa, eSarah despertou do seu devaneio com um estremecimento. O rapazescolheuumarevistae,quandopassavapela cadeiradela,no regresso, ajovemolhou-oeperguntou-lhe:

–Andouaadmirarasatrações turísticas?–Escolheuaspalavrasaoacaso,poisoseuverdadeirointeresseeravercomoseriamrecebidas.

Raymond hesitou, corou, encolheu-se como um cavalo nervoso eolhou,apreensivo,paraocentrodogrupoformadopelasuafamília.

–Eu...eu...sim,comcerteza–gaguejou.–Eu...Depois, como se o esporeassem, voltou apressadamente para junto

dosseus,derevistaestendida.O grotesco Buda estendeu a mão sapuda para a aceitar e o Dr.

Gerardreparouqueosseusolhosperscrutavamorostodorapaz.Proferiuum resmungo, que por certo não era um agradecimento, e modi icou

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ligeiramente a posição da cabeça, para poder ver Sarah. O seu rosto,porém,manteve-seimpassível.

Sarahconsultouorelógioesobressaltou-se:– Oh, é muito mais tarde do que supunha! – exclamou, ao mesmo

tempoquese levantava.–Muitoobrigadapelocafé,doutorGerard.Agoratenhodeirescreverumascartas.

–Esperoquenosvoltaremosaencontrar.–Semdúvida!TalvezseresolvaairaPetra.–Pelomenostentarei,comcerteza.Sarah sorriu-lhe e deixou-o. Para sair da sala tinha de passar pela

famíliaBoynton.Atento,omédicofrancêsviuoolhardeMrs.Boynton ixar-sedenovo

no rosto do ilho, cujos olhos a itaram. Quando Sarah passou, RaymondBoynton virouumpouco a cabeçapara o lado contrário, nummovimentolento e contrafeito que deu a impressão de que a velha Mrs. Boyntonpuxaraumcordelinhoinvisível.

SarahKingnotouomovimentodacabeçadorapaze,comoerajovemehumana, sentiu-semagoada.Tinhamconversado tão amigavelmente, nocorredor dowagon-lit! Tinha trocado impressões acerca do Egipto e ridodalínguaridículadosrapazesdosburrosedosvendedoresambulantes.Orapaz parecera um estudante simpático e entusiástico, embora houvesse,talvez, algo de quase patético no seu entusiasmo. E agora, sem nenhummotivo,mostrava-setímido,acanhado,positivamentegrosseiro!

“Não me preocuparei mais com ele”, decidiu Sarah, indignada, poisapesardenãoserexageradamentevaidosatinhaumaboaopiniãodasuapessoa. Sabia que exercia atração no sexto oposto e não tolerava que adesdenhassem.

Talvezsetivessemostradocordialdemaiscomaquelerapazporque,por qualquer motivo obscuro, tivera pena dele. Mas agora era evidentequenãopassavadeumjovemamericanoempertigadoegrosseiro.

Em vez de escrever as cartas que dissera precisar escrever, Sarahsentou-se diante do toucador a escovar o cabelo, a observar os olhoscastanhos,perturbados,eaavaliarasuasituaçãonavida.

Acabava de passar por uma di ícil crise emocional: um mês antes,quebraraonoivadocomumjovemmédicoquatroanosmaisvelhodoqueela.Apesardesesentirem muito atraídos um pelo outro, possuíam temperamentos muitosemelhantes e os desacordos e as brigas não tinham faltado. Sarah tinhaum feitio muito imperioso, que não lhe permitia tolerar uma calma

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manifestaçãodeautocracia.Comoamaioriadasmulherestemperamentais,estavaconvencidade

que admirava a força e sempre a irmara a si própria que desejava serdominada, mas quando encontrara um homem capaz de a dominarveri icaraque, a inal,não lheagradavanada.Custara-lhemuito romperonoivado,mas possuía lucidez su iciente para compreender que a simplesatraçãomútuanãochegava.Resolvera,porisso,oferecerasiprópriaumasinteressantes férias no estrangeiro, para tentar esquecer, antes deregressarecomeçaratrabalharasério.

Os seus pensamentos saltaram do passado para o presente: “Odoutor Gerard me deixará falar de seu trabalho? Tem feito coisasmaravilhosas!Seaomenosmetomasseasério!...Talvez,seforaPetra...”

Depoispensoudenovonoestranhoerudejovemamericano.Tinhaacertezadeque fora apresençada famíliaqueo levara a reagirdemodotão singular,mas isso não a impedia de sentir por ele um certo desdém.Era ridículo, sobretudo num homem, estar de tal modo subordinado àfamília!

E, no entanto, o rapaz inspirava-lhe um sentimento confuso. Haviaalgoestranhoemtudoaquilo...Semdarporisso,exclamou,emvozalta:

–Omoçoprecisasersalvo...eeutratareidisso!

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III

DepoisdeSarahsair,oDr.Gerarddeixou-se icarondeestavaalgunsminutos. Por im, foi àmesa das revistas, pegou no último número de LeMatinesentou-senumacadeiraapoucosmetrosdafamíliaBoynton.Asuacuriosidadeforadespertada.

Ao princípio, sentira-se divertido com o interesse da jovem inglesapela família americanae atribuíra-o a simpatiapordeterminadomembrodessa família. Mas agora ele próprio notava algo de anormal, algo quedespertavaneleointeressemaisprofundoemaisimparcialdocientista.

Observou-osdiscretamente,acobertodojornal.Começoupelorapazpor quem a atraente inglesa semostrara tão interessada. Sim, pertencia,sem dúvida, ao tipo capaz de a atrair, temperamentalmente. Sarah Kingpossuíaforça,nervosequilibrados,inteligênciafriaevontaderesoluta.Emcontrapartida,ojovempareciasensitivo,inteligente,tímidoeintensamentesugestionável.

Oseuolhardemédicopermitiu-lhediscernirque,naquelemomento,orapazseencontravanumagrande tensãonervosa.ODr.Gerardsentiu-seintrigado.Porquemotivoseencontrariaemtalestado,positivamenteàbeiradocolapsonervoso,umhomemnovocujasaúde ísicaeraaparenteequeandavapeloestrangeiro,semdúvidaemviagemderecreio?

O médico dedicou a sua atenção aos outros membros do grupo. Amoça do cabelo castanho era, indubitavelmente, irmã de Raymond.Pertenciamaomesmotiporacial:pequenaossatura,perfeiçãode linhaseaspecto aristocrático. Tinham as mesmas mãos esguias e bem feitas, omesmo queixo bem desenhado e o mesmo porte de cabeça no pescoçocompridoemagro.Ajovemtambémdenotavanervosismo:faziapequenosmovimentosinvoluntários,tinhaolheirasvincadaseolhosmuitobrilhantese falavademodomuitorápidoequaseofegante.Estavasemprevigilante,alerta, incapaz de se descontrair. “E também tem medo”, pensou o Dr.Gerard.“Sim,temmedo!”Ouviufragmentosdeumaconversabanal:

“Podíamos iraosEstábulosdeSalomão”. “Nãoseriaextenuanteparaamãe?”“OMurodasLamentações,demanhã?”“OTemplo,evidentemente.Mesquita de Omar, não sei por quê“. “Porque foi transformado numa

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mesquitamuçulmana,Lennox“.Simplesevulgarconversadeturistas.E,contudo,semsaberexplicar

porquê,oDr.Gerardtinhaaestranhaconvicçãodequeosfragmentosdediálogo ouvidos eram todos singularmente irreais, constituíam umamáscara, umdisfarce para algo que luía e re luía abaixo da super ície –algotãoprofundoetãoinformequenãosepoderiaexprimirporpalavras.Deitou-lhesumnovoolhardisfarçado,acobertodojornal.

Lennox? Era o irmãomais velho. Notava-se omesmo ar de família,mas havia uma diferença: Lennox não parecia tão tenso, possuía umtemperamento menos nervoso. No entanto, também havia nele qualquercoisa estranha. Não denotava a tensão muscular dos outros dois, poisestavasentadodescontraidamente,demodoquaseflácido.

Ao passar em revista doentes que vira assim sentados, nasenfermarias dos hospitais, o Dr. Gerard pensou: “Ele está exausto... sim,estáexaustodesofrimento.Aquelaexpressãodoolhar, semelhanteàquevemos num cão ferido ou num cavalo doente, aquele ar de resignaçãoentorpecida e animal... É, de fato, estranho. Fisicamente, parece não ternada, no entanto é evidentequenosúltimos tempos sofreumuito, sofreumentalmente.Agora jánão sofre; está resignado, espera, apático, talvez odesfechardogolpe...Masdequegolpe?Estareiaimaginartudoisto?Não,ohomemespera,defato,qualquercoisa,esperaofim...

LennoxBoyntonlevantou-seeapanhouumnovelode lãqueavelhadeixaracair.

–Tome,mãe.–Obrigada.Que tricotaria aquela velha monumental e impassível? Parecia

qualquer coisa grossa e ordinária... “Mitenes para os habitantes de umasilooudeumaprisão!”,pensouGerardesorriudasuafantasia.Desviouaatençãoparaacomponentemaisjovemdogrupo,amoçadocabeloruivo-dourado. Teria, talvez, 17 anos e a bela tez clara que geralmenteacompanhaoscabelosruivos.

Embora o seu rosto fosse por demais magro, era bonito. Estavasentada, a sorrir para o vácuo. Havia naquele sorriso algo de muitoestranho, tão longe parecia estar do Salomon Hotel e de Jerusalém...Recordava aoDr. Gerard o sorriso exótico e sobrenatural das virgens daAcrópoledeAtenas,eradistante,encantadoreumpoucodesumano...

De súbito, estupefato, oDr. Gerard reparou nas suasmãos. Amesaocultava-as do grupo que a rodeava, mas omédico via-as perfeitamente,dondeestava:rasgavamolençoemtirasfininhas.

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Foiumtremendochoqueparaele.Osorrisodistanteevago,ocorpoimóveleasmãosatarefadasadestruir...

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IV

Ouviu-se uma tosse lenta, asmática, sufocante, e depois a velhamonstruosaobservou,semdeixardetricotar:

–Estáscansada,Ginevra,émelhoriresparaacama.A jovem estremeceu e os seus dedos interromperam o rasgar

maquinal.–Nãoestoucansada,mãe.Gerardapreciouamusicalidadedasuavoz,odocetomvibranteque

emprestaencantamentoàsfrasesmaisbanais.– Estás, sim. Eu sei sempre quando estás cansada. Não creio que

amanhãestejasemcondiçõesdevisitarospontosturísticos.–Oh,estarei,sim!Sinto-mebem.Emvozáspera,quaserouca,amãeredarguiu-lhe:–Não.Estarásdoente.–Nãoestareinada!–Ajovemcomeçouatremerviolentamente.–Subocontigo,Jinny–disseumavozsuaveecalma.A mulher de rosto sereno, grandes olhos cinzentos pensativos e

cabeloescurobempenteado,levantou-sedoseulugar.–Não–declarouavelhaMrs.Boynton.–Deixa-asubirsozinha.QueroqueaNadinevácomigo!–Nessecaso,irei.–Ajovemmulherdeuumpassoemfrente.–Agarotaprefereirsozinha–insistiuavelha.–Nãopreferes,Jinny?Seguiu-se uma pausa, inda a qual Ginevra Boynton respondeu, em

vozquesetornaraapagadaemonótona:–Sim...prefiroirsozinha.Obrigada,Nadine.–Eafastou-se.O Dr. Gerard baixou o jornal e observou, demoradamente. A velha

Mrs.Boyntonseguiaa ilhacomoolhareoseurostogordoestavafranzidonumsorrisopeculiar,numaespéciedecaricaturadosorrisoencantadoreestranhoquetransformarapoucoantesorostodajovem.Depoisacriaturavirou a cara para Nadine, que se voltara a sentar. Os olhos das duasmulheres encontraram-se. O damais novamantinha-se imperturbável; odaoutraexprimiamaldade.

“Quevelhaeabsurdatirana!”,pensouoDr.Gerard.Desúbito,porém,

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reparou que a hedionda criatura o observava e conteve vivamente arespiração. Aqueles olhos pequenos, pretos e mortiços irradiavam umaforça inequívoca,umaondademaldade.ODr.Gerard sabiaalgumacoisaacerca do poder da personalidade e, por isso, compreendeu que nãoestavaperanteumasimplesdoentequeaenfermidadetornaraautoritáriae caprichosa. Aquela velha era uma força, a malignidade do seu olharproduziaefeitosemelhanteaodeumacobra.

Mrs. Boynton podia ser velha e estar muito doente, mas era umamulherqueconheciaosigni icadodopoder,queoexerceradurantetodaasuavidaequenuncaduvidaradasuaprópriaforça.

Dr. Gerard conhecera, em tempos, umamulher que desempenhavaum númeromuito perigoso e espetacular com tigres. As possantes ferasrastejavam para os seus lugares e faziam as suas degradantes ehumilhantes habilidades. Os seus olhos e os seus rugidos abafadosexprimiam o seu ódio profundo, fanático, mas isso não os impedia de serebaixaremeobedecer.Amulherqueosdominavaassimerauma jovemde arrogante beleza morena, uma criatura que possuía um olharsemelhanteaodeMrs.Boynton.

“Uma domadora!”, pensou o médico, e compreendeu inalmente onão-sei-quê que pressentira sob a aparente naturalidade da conversafamiliarqueescutara:ódio,umafonteinesgotáveletumultuosadeódio.

A maioria das pessoas julgar-me-ia fantasioso e absurdo, se lhescontasseisto”,pensou.“Encontroumavulgarededicadafamíliaamericana,a viajar pela Palestina, e envolvo-a numa história de autêntica magianegra!“

DepoisobservoucominteresseajovemserenachamadaNadine,quetinhaumaaliançade casamentonamãoesquerda.Viu-a lançarumolharrápido e revelador ao louro e apático Lennox e compreendeu que erammaridoemulher.Masoolharqueelalhelançoufoimaisdemãedoquedeesposa, foi um genuíno olhar maternal, protector e preocupado. Ecompreendeu, também,outracoisa:naquelegrupo,NadineBoyntoneraaúnica a não ser in luenciada pela força maligna irradiada pela sogra.Poderia não gostar dela, mas não a temia, o seu poder não aimpressionava.Sentia-seinfelizemuitopreocupadacomomarido,maseralivre.

“Tudoistoémuitointeressante”,disseasimesmooDr.Gerard.Naquela atmosfera de sinistras especulações e tensão emocional

soprou, de súbito, uma aragem de bom senso, que teve um efeito quaseburlesco.

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Entrouumhomemque,aoverosBoynton, foidireitoaeles.Eraumamericano simpático, de meia-idade e tipo absolutamente convencional.Vestia bem, tinha uma cara comprida e escanhoada e uma voz lenta,agradáveleumpoucomonótona.

– Andava à procura de vocês – declarou, ao mesmo tempo queapertava meticulosamente a mão a toda a família. – Como se sente, Sra.Boynton?Esperoqueaviagemnãoatenhafatigadomuito?

Avelharespondeu,emtomquaseamável:–Não,obrigada.Aminhasaúdenuncaéboa,comosabe...–Infelizmente,infelizmente...– Mas não me sinto pior. – E Mrs. Boynton acrescentou, com um

sorriso lento e reptiliano: –ANadine trata bemdemim...Não é verdade,Nadine?

–Façoopossível–respondeuaoutra,emvozinexpressiva.– Não duvido! – exclamou o recém-chegado, em tom entusiástico. –

Então,Lennox,quepensadacidadedoreiDavid?–Oh,nãosei!–respondeuooutro,desinteressado.– Acha-a um pouco decepcionante, não? Confesso que, ao princípio,

foi essa a impressão que me causou. Mas talvez ainda não tenham tidotempodevermuitascoisas...

– Não podemos ver muito, por causa da mãe. – explicou CarolBoynton.

–Não suportomais de duas horas por dia de passeios – disseMrs.Boynton.

–Achomaravilhosoque consiga fazer tantoquanto faz! – a irmouodesconhecido,sinceramente.

Mrs.Boyntonsoltouumagargalhadaroucaevelhaca.– Não faço a vontade ao corpo, o espírito é que importa! Sim, é o

espírito...Gerard viu Raymond Boynton tentar reprimir um estremecimento

nervoso.–JáfoiaoMurodasLamentações,MisterCope?– Já, foi uma das primeiras coisas que visitei. Espero ter corrido

JerusalémdepontaapontadaquiamaisdoisdiaseencarregueiaCookdemeelaborarumitinerárioparavisitar todaaTerraSanta:Belém,Nazaré,Tiberíades,omardaGalileia...Creioqueserámuitointeressante.TambémestoucomvontadedevisitarJerash,ondeháalgumasinteressantesruínasromanas...egostariamuitodeverPetra,aCidadeVermelha,umfenômenonatural extraordinário. Mas levaria pelo menos uma semana para ir e

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voltarevertudoconvenientemente.–Gostariamuitodeir–afirmouCarol.–Parecemaravilhoso.–Sim,achoquevaleapenaver.–Mr.Copecalou-se,lançouumolhar

duvidoso a Mrs. Boynton e depois prosseguiu, em voz que ao francêspareceu muito hesitante: – Poderei persuadir alguns de vocês a meacompanhar? Sei que a senhora não poderia ir, Sra. Boynton, e que,naturalmente, alguns dos seus parentes desejariam icar aqui, mas sedividissemasforças,comosecostumadizer...

Gerard ouviu o entrechocar ritmado das agulhas de Mrs. Boynton,antesdeelaresponder:

– Não creio que nos desejássemos separar. Somos um grupomuitounido.–Levantouacabeçaeperguntou:–Quedizemvocês?

Asrespostasforamimediataseunânimes:–Não,mãe.–Oh,não!–Claroquenão.Mrs.Boyntonesboçou,denovo,oseuestranhosorriso.–Comovê,nãomequeremdeixar.Etu,Nadine?Nãodissestenada.–Não,mãe,obrigada.AnãoserqueLennoxestejainteressado.Mrs.Boyntonvirouacabeçaparaofilho.– Então, Lennox? Por que não vai com a Nadine? Ela parece ter

vontadedeir.Ointerpeladoestremeceuelevantouacabeça.–Eu...bem,não.Achomelhorpermanecermostodosjuntos.–Nãohádúvidadeque formamuma famíliaunida!–exclamouMr.

Copecomumaalegriaquesoouafalso.–Nãonosdamos...–Começouaenrolaronovelodelã.–Apropósito,

Raymond,quemeraaquelajovemquefaloucontigo,hápouco?Raymondestremeceunervosamente,corouedepoisempalideceu.– Não... não sei como se chama. Vinha... vinha no comboio, na outra

noite.Mrs.Boyntontentoulevantar-se,devagar,enquantoobservava:–Esperoquenãotenhamosmuitoavercomela.Nadine levantou-seeajudouavelhaaerguer-secomumae iciência

profissionalquenãopassoudespercebidaaGerard.–Sãohorasdedormir.Boasnoites,MisterCope.–Boasnoites,Sra.Boynton.Boasnoites,Sra.Lennox.Partiram,aformarumpequenocortejo.Nãopareceuocorrer,sequer,

a nenhum dosmembrosmais jovens da família deixar-se icar.Mr. Cope

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seguiu-os,comumaexpressãointrigada.Como o Dr. Gerard sabia por experiência, os Americanos têm

tendência para travar amizade sem grandes cerimônias, sem aconstrangedora descon iança do Inglês em viagem. Com o seu tato, o Dr.Gerard não teve di iculdade em travar conhecimento com Mr. Cope. Oamericanoestavasóeapetecia-lhecompanhia...Oscartõesdevisitadomédicoentraramdenovoemação.

Ao ler o nome, Mr. Jefferson Cope mostrou-se devidamenteimpressionado.

– Doutor Gerard? Esteve nos Estados Unidos há pouco tempo, nãoesteve?

–NoOutonopassado.DiscurseiemHarvard.–Lembro-meperfeitamente.Oseunomeéumdosmaisdistintosda

suaprofissãoe,emParis,estáàcabeçadalista,nasuaespecialidade.–Meucaro,estáaserexcessivamenteamável.Protesto!–Demodonenhum!Éumagrandehonraparamimconhecê-lo.Por

coincidência, nestemomento encontram-se diversas pessoas famosas emJerusalém. O doutor; LordeWelldon; Sir Gabriel Steinbaum, o inanceiro;Sir Manders Stone, o veterano arqueólogo inglês; Lady Westholme, umasenhoramuitoproeminentenapolíticabritânica,eofamosodetetivebelga,HerculePoirot.

–OpequenoHerculePoirotestácá?–Linojornaldaterraquechegarahaviapouco.Parecequeveiotoda

agentepararaoSolomonHotel...queporsinaléexcelente.Mr. Cope estava visivelmente encantado e o Dr. Gerard era um

homemquesabiaserencantador,quandoqueria.Abreve trechotinham-semudadoosdoisparaobar.

Depoisdetomaremduasbebidas,omédicoperguntou-lhe:–Diga-me,eraumatípicafamíliaamericana,aquelacomquemesteve

afalar?Jefferson Cope sorveu pensativamente o seu uísque, antes de

responder:–Bem,nãodiriaquesetrataexatamentedeumafamíliaamericana

típica...–Não?Pelomenoséumafamíliamuitodedicada.–Querdizerqueparecemgirar todosàvoltadavelhasenhora,não

é?Semdúvida...Éumasenhoradeverasextraordinária.–Sim?Mr.Copeprecisavadepouquíssimoencorajamentoparafalar...

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– Não me importo de lhe confessar, doutor Gerard, que tenhopensadomuitonaquelafamília,ultimamente.Semepermite,creioquemealiviariaconversarcomvocêaesserespeito.Nãooenfadaria?

O Dr. Gerard apressou-se a dizer que não e Mr. Jefferson Copeprosseguiu, com uma expressão de perplexidade a toldar-lhe o rostosimpático:

– Confesso-lhe desde já que estou um pouco preocupado. Sra.Boyntonéumavelhaamiga...istoé,aSra.Boyntonmaisjovem.

–Ah,sim,aquelaencantadorasenhoradecabeloescuro!–Exatamente.Nadine,NadineBoynton.Conheci-aantesdesecasare

sei que possui um excelente caráter. Trabalhava num hospital, comoenfermeira, depois foi passar umas férias com os Boynton e casou comLennox...

–Sim?Mr.JeffersonCopebebeuoutrogoledeuísque.–GostariadelhecontarumpoucodahistóriadafamíliaBoynton.–Teriamuitointeresseemouvir.– O falecido Elmer Boynton, homemmuito conhecido e uma pessoa

encantadora, casou duas vezes. A sua primeira mulher morreu quandoCarol e Raymond eram pequenos. Pelo que me consta, a segunda Sra.Boynton era uma mulher muito atraente, embora já não muito nova,quandoeleadesposou.Aquemavê,agora,custaacrerquetenhapodidoseratraente,masassimmotêma irmadopessoasdignasdetodoocrédito.Fossecomo fosse,omarido tinha-aemaltacontaeaceitavaoseucritérioacercadequase tudo.Esteveváriosanos incapacitadoantesdemorrer,efoi ela, praticamente, quem criou os ilhos e governou a família. É umamulher muito competente, com boa cabeça para os negócios e, também,muito conscienciosa. Quando Elmer morreu, dedicou-se inteiramente aosilhos.Uma tambémé ilhadela, Ginevra, uma ruivazinhabonita,masumpouco fraca.Comodizia,Sra.Boyntondedicou-seporcompletoà famíliaeisolou-se totalmente do mundo. Não sei qual é a sua opinião, doutorGerard,masnãocreioquesemelhanteprocedimentosejamuitosensato.

– Concordo com você. É, pelo contrário, muito prejudicial àsmentalidadesemdesenvolvimento.

– Exatamente. Sra. Boynton protegeu de tal modo os garotos quenunca lhes permitiu ter contatos com o exterior. Daí resultou teremcrescido... en im, nervosos. São acanhados, incapazes de estabeleceramizadecomdesconhecidos...Issoémau.

–Émuitomau.

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–NãotenhodúvidasdequeasintençõesdaSra.Boyntoneramboas,masexcedeu-se,exagerou.

–Vivemtodosemcasa?–Vivem.–Nenhumdosfilhostrabalha?–Oh,não!ElmerBoyntonera rico.Deixou todaa sua fortunaa Sra.

Boynton, enquanto ela vivesse, mas na condição de se destinar àmanutençãodafamília.

–Portanto,elesdependemtodosdela,financeiramente?– É verdade. E ela tem-nos encorajado a viver em casa, em vez de

saíremeprocuraremempregos.Talvez issonãotenha importância,poisodinheirochegaesobra...Nãoprecisamdeemprego,emboraeucreiaque,pelomenosparaosexomasculino,otrabalhoéumaespéciedetônico.Masháaindaoutracoisa:nenhumdelestemqualquerpassatempo.Nãojogamgolfe,nãovãoabailesnemaoutros ladosondesereúnemjovens...Vivemnum enorme casarão, na província, a quilômetros de distância de tudo.Confesso-lhe,doutorGerard,quenãomeparececerto.

–Concordocomvocê.– Nenhum deles tem o mínimo sentido da vida social, falta-lhes o

espíritodecomunidade.Podemserumafamíliamuitodedicada,masvivemfechadosemsimesmos.

–Nuncanenhumdelesoudelaspensouemsingrarsozinho?–Queeusaiba,não.Limitam-seacruzarosbraços.–AtribuiasculpasdissoaelesouaSra.Boynton?JeffersonCopemudounervosamentedeposição.–Bem,creioqueelaémaisoumenosresponsável,poisnãooscriou

comodeveria.Noentanto,quandoumjovematingeamaturidade,dependedele espernear e seguir o seu próprio caminho, é natural que escolha aindependência.

–Talvezissosejaimpossível...–observouomédico,pensativo.–Impossívelporquê?–Hámaneirasdeimpedirumaárvoredecrescer,MisterCope.–Maselessãosaudáveis,doutorGerard!–Oespírito,talcomoocorpo,podeseranãoouenfezado.–Maselestambémsãointeligentes!ODr.GerardsuspiroueCopeprosseguiu:–Não,doutorGerard,umhomemtemadirecçãodoseudestinonas

suasprópriasmãos.Umhomemque se respeita, abre caminho sozinho etira partido da sua vida, não ica a um canto a torcer os polegares.

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Nenhumamulherdeviarespeitarumindivíduoqueprocedeassim.Ofrancêsolhou-ocomcuriosidadeeperguntou-lhe:–Suponhoqueserefere,emparticular,aMisterLennoxBoynton?–Sim,eraemLennoxquepensava.Raymondaindaéumrapaz,mas

Lennoxjátem30anos.Etempodemostrardequeéfeito.–Deveserumavidadifícilparaamulher?–Claroqueéumavidadi ícilparaela!Nadineéumaexcelentemoça,

que eu admiro muitíssimo. Nunca se queixou, mas não é feliz, doutorGerard!Étãoinfelizquantopodeser.

–Sim,creioqueémuitopossível–admitiuomédico,aacenarcomacabeça.

– Não sei o que pensa a tal respeito, doutor Gerard,mas eu pensoque existeum limiteparaoqueumamulherdeve suportar! Se estivesseno lugardeNadine,poriaospontosnos“is”aLennox:oumostravaoquevaliaou...

–Ou,nasuaopinião,eladeveriadeixá-lo?– Ela tem a sua própria vida para viver, doutor Gerard. Se Lennox

nãoaapreciacomoelamerece,háoutroshomensqueasaberãoapreciar.–Como...osenhor,porexemplo?O americano corou, mas depois itou o interlocutor com uma

dignidadesimples.– Exatamente – respondeu. – Não me envergonho dos meus

sentimentosporessasenhora.Respeito-aequero-lheprofundamente,massó desejo a sua felicidade. Se ela fosse feliz com Lennox, afastar-me-ia,sairiadecena.

–Masassim...?–Assim,fico.Seelaprecisardemimmeencontrará!–É,defato,operfeitonobrecavaleiro...–Como?– Meu caro, hoje em dia, o cavalheirismo só existe na nação

americana. Ao senhor basta servir sua dama sem esperança derecompensa, o que émuito admirável! Que espera, ao certo, poder fazerporela?

–Aminhaintençãoéestarperto,seelaprecisardemim.– E, se me permite, qual é a atitude da velha Sra. Boynton a seu

respeito?–Nunca tenho a certeza de nada, quando se trata dessa senhora –

admitiuCope,devagar.–Comojálhedisse,elanãogostadecontatoscomoexterior.Mascomigotemsidodiferente,ésempreamáveletrata-mecomo

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sefossedafamília.–Poroutraspalavras,aprovaasuaamizadeporSra.Lennox?–Aprova.–Nãoachaissoumpoucoestranho?– Permita que lhe garanta, doutor Gerard, que não há nada de

desonrosoemtalamizade–declarouJeffersonCope,emtommuitofrio.–Épuramenteplatônica.

–Meucaro,tenhoacertezaabsolutadisso.Repito,noentanto,queécuriosoo fatodaSra.Boyntonencorajaressaamizade.Sabe,MisterCope,Sra.Boyntoninteressa-me...interessa-memuito.

–Éumamulherextraordinária, comgrande forçade carátereumapersonalidade vincada. Elmer Boynton depositava grande fé no seucritério.

– Tanta, que deixou os ilhos inteiramente à suamercê, no capítulofinanceiro.Nomeupaís,MisterCope,aleinãopermitefazertalcoisa.

– Na América acreditamos muito na liberdade absoluta – declarouMr.Cope,elevantou-se.

O médico levantou-se também, nada impressionado com aobservação. Jáaouviraantes,apessoasdediversasnacionalidades.ODr.Gerardsabiaquenenhumaraça,nenhumpaísenenhum indivíduopodiaserconsideradolivre,massabia igualmenteexistiremdiferentesgrausdesujeição.

Foiparaacamapensativoeinteressado.

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V

SarahKingestavaparadanorecintodoTemplo,oHaram-esh-Sherif,decostasparaaCúpuladoRochedo.Chegava-lheaosouvidosomurmúriode fontes, enquanto vários gruposde turistaspassavam semperturbar apazdaatmosferaoriental.

Era estranho, pensou Sarah, que tivessem feito daquele cumerochosoumaeiraequeDavidaadquirissepor600ciclosdeprataenelaerguesseumaltar.Eagoraouviam-sealiaslínguasdeturistasdetodasasnações...Voltou-se,admirouamesquitaquecobriaagoraoaltarepensouseotemplodeSalomãoselheteriacomparadoembeleza.

Ouviu passos e viu um pequeno grupo sair da mesquita. Eram osBoynton acompanhados por um dragomano tagarela. Lennox e RaymondamparavamMrs.Boynton,NadineeMr.CopevinhamatráseCarolfechavaa marcha. Ao afastarem-se, a jovem reparou em Sarah, hesitou e, numimpulsosúbito,voltouacorrerparatrás.

– Desculpe –murmurou, ofegante. – Tenho de... acho que lhe devofalar.

–Sim?Caroltremiaviolentamenteeestavamuitopálida.– É por causa... domeu irmão. Quando... quando lhe falou, ontem à

noite, deve tê-lo consideradomuito grosseiro.Mas ele não queria... não opôdeevitar...Oh,acredite-me,porfavor!

Sarah achou tudo aquilo ridículo. Tanto o seu orgulho como o seubom gosto se sentiram ofendidos. Por que motivo a abordaria umadesconhecida e lhe pediria estupidamente desculpa pelo procedimentogrosseirodoirmão?

Tremeu-lhenos lábios uma resposta desabrida,masmudou logodeideias.Haviaalgo foradovulgarnaquelegestoea jovem falavacomumasinceridade ansiosa. O que levara Sarah a escolher a carreira demédicareagiuàatitudedajovem,ànecessidadequeadivinhavanela.

–Diga-meoquesepassa–pediu,emtomencorajador.–Elefaloucomvocênocomboio,nãofalou?–Sim...pelomenoseufaleicomele.

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–Ah,sim,nãopoderiaserdeoutromodo!Mas,compreende,anoitepassadaRayestavacommedo...

–Commedo?Carolcorou.– Sei que parece absurdo, louco... Compreende, a minha mãe está

doente e não gosta... não gosta que arranjemos amigos.Mas eu sei que omeuirmão...queelegostariadeserseuamigo.

Sarahsentiu-seinteressada,masCarolcontinuou,semlhedartempodefalar:

– Sei que parecemuito idiota o que estou a dizer,mas nós somos...uma família estranha. –Lançouumolhar rápidoà suavolta,umolhardemedo.–Nãomepossodemorar...podemdarpelaminhafalta.

– Por que não icaria para trás, se quisesse? Podíamos regressarjuntas.

– Oh, não! – exclamou Carol, e recuou instintivamente. – Não possofazerisso.

–Porquê?–Nãoposso.Aminhamãeficaria...ficaria...Sarahdisse,emtomclaroefirme:–Seique,àsvezes,émuitodi ícilaospaiscompenetrarem-sedeque

os ilhos cresceram e, por isso, continuam a tentar governar-lhes a vida.Mas não nos devemos submeter a isso, temos o dever de defender osnossosdireitos.

–Nãocompreende...nãofazamínimaideia...gaguejouCarol,atorcernervosamenteasmãos.

–Àsvezescedemosporquetemosmedodeprovocardiscussões,easdiscussõessãomuitodesagradáveis.Maseucreioquevalesempreapenalutarpelaliberdadedeação.

–Liberdade?–repetiuCarol,deolhos ixos.–Nuncanenhumdenósfoilivre...nemnuncaserá.

–Disparate!–exclamouSarah,semcerimónias.Carolinclinou-separaafrenteetocou-lhenobraço.

–Escute,tenhodetentarfazê-lacompreender!Antesdecasar,minhamãe,narealidadeéminhamadrasta,eracarcereiradeumaprisão.Meupaierao diretor e casou com ela. Bem, continuou a ser sempre assim, elacontinuouasercarcereira,anossacarcereira.Éporissoqueanossavidaequivale a estarmos presos. – Olhou de novo à sua volta. – Deram pelaminhafalta.Tenhodeir!

Sarahagarrou-lhenumbraço,quandoelaseafastava.

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–Ummomento.Precisamosnosencontraroutravezeconversar.–Nãoposso.Nãoconseguirei.– Pode, sim – a irmou a inglesa, em tom autoritário. – Vá ao meu

quartodepoisdetersubidoparasedeitar.Éotrezentosedezenove.Largou-aeCarolcorreuatrásdafamília.Sarah icou a segui-la como olhar e só despertou dos pensamentos

emquemergulharaaosentiroDr.Gerardaseulado.– Bons dias, Miss King. Esteve, então, a conversar com Miss Carol

Boynton?–Estive,sim.Deixe-mecontar-lhe...Erevelouaomédicoasuaconversacomajovem.– Carcereira de uma prisão, hem? – murmurou o Dr. Gerard,

pensativo.–Talvezissosejasignificativo.–Querdizerqueéessaacausadasuatirania?Ohábitoque icouda

suaantigaprofissão?Gerardabanouacabeça.– Está a encarar o assunto de um ponto de vista errado. Há uma

profunda compulsão subjacente. Ela não ama a tirania porque foicarcereira.Digamosantesquefoicarcereiraporamaratirania.Naminhaopinião,foiumdesejosecretodepodersobreoutrossereshumanosquealevouaadoptartalprofissão.Hácoisasestranhas,comoesta,sepultadasnoinconsciente. Uma fome de poder, uma fome de crueldade, um desejoselvagem de despedaçar... Tudo isto são legados das recordações dopassado da nossa espécie. A crueldade, a selvageria e os desejos brutaisexistem, estão latentes, Miss King. Nós recalcamos, lhes negamos vidaconsciente... mas, às vezes, são tão fortes que os nossos esforços seperdem.

–Eusei–murmurouSarah,sempoderconterumestremecimento.– Tudo isso nos rodeia, hoje, em credos políticos e na conduta das

nações. É uma reação ao humanitarismo, à piedade, à fraternal boavontade. Às vezes, os credos soam bem, um regime é sensato ou umgovernobené ico...massãosempreimpostospelaforça,assentamsemprenumabasedecrueldadeedemedo.Aoabriremasportas,essesapóstolosdaviolênciadeixamsair a antiga selvajaria, o antigoprazerna crueldadepelacrueldade!Ohomeméumanimalcomumequilíbriomuitodelicadoeque tem uma necessidade primordial: sobreviver. Avançar depressademaisétãofatalcomo icarparatrás.Temdesobreviver!Tem,talvez,deconservarumapartedaantigaselvajaria,masnãodeve,nãodevedemodonenhum,deificá-la!

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Seguiu-seumapausa,findaaqualSarahperguntou:–AchaqueSra.Boyntonéumaespéciedesádica?– Tenho quase a certeza disso. Penso que sente prazer em in ligir

dor; dormental, note, nãodor ísica. Isso émuitomais raro emuitomaisdi ícil de suportar. Ela gosta de dominar outros seres humanos e de osfazersofrer.

–Éumabestialidade.Gerardcontou-lheasuaconversacomCope.–Elenãofazideiadoquesepassa?–perguntouSarah,pensativa.–Comoquerquefaça?Nãoéumpsicólogo.–Claro.Nãotemasnossasrepugnantesmentalidades.– Exatamente. Tem uma decente, justa, sentimental e normal

mentalidade americana. Acreditamais facilmente no bem do que nomal.VêqueaatmosferaemqueafamíliaBoyntonviveestáerrada,masatribuiesse fato a uma má aplicação da dedicação da Sra. Boynton e não amaleficênciaativa.

–Issodevediverti-la.–Suponhoquesim.– Mas Por que não se libertam? – perguntou Sarah, impaciente. –

Podiam!– Está enganada. Eles não podem. Viu alguma vez uma velha

experiênciaquesecostuma fazercomumgalo?Traça-seuma linhaagiz,no chão, e encosta-se nela o bico do galo. O bicho julga que está láamarradoenãoécapazde levantaracabeça.Aconteceomesmoàquelesinfelizes.

Lembre-sedequeelaostemtorturadodesdecriançasedequeoseudomínio tem sido mental. Convenceu-os, hipnoticamente, de que nãopodem desobedecer-lhe. A maioria das pessoas chamaria tolice asemelhanteideia,masnósdoissabemosquenãoé.Elafê-losacreditarquedependem inevitável e absolutamente dela. Estão presos há tanto tempoque se asportasdaprisão se abrissemde repentenemdariampor isso!Um deles, pelo menos, já nem quer ser livre. Teriam todos medo daliberdade.

– Que sucederá quando ela morrer? – perguntou Sarah, em tomprático.

Gerardencolheuosombros.– Depende do tempo que isso levar a acontecer. Se acontecesse

agora... en im, creioque talvez aindanão fosse tardedemais.O rapaz e amoça ainda são jovens e impressionáveis e creio que se tornariam seres

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humanosnormais.QuantoaLennox, épossívelque já seja tardedemais .Parece-me um homem que abandonou de initivamente a esperança, queviveresignadocomoumirracional.

– A mulher dele devia ter feito qualquer coisa! – exclamou Sarah,impaciente.–Deviatê-loarrancadodaquilo.

–Duvido...Nãomeadmirariaquetivessetentado...efalhado.–Achaqueelatambémestásob...sobainfluência?–Não.Nãocreioqueavelhatenhaqualquerpodersobreela,oquea

levaaodiá-lacomumódioferoz.Reparenosseusolhos.Sarahfranziuatesta.–Nãoconsigocompreender...anora.Elasaberáoquesepassa?–Achoquedeveterumaideiamuitonítida.– Oh, aquela velha precisava ser assassinada! Arsênico no chá

matinal,seriaaminhareceita.E,numamudançabruscadeassunto,MissKingperguntou:–Earespeitodamoçamaisnova,daruiva?–Nãosei.–ODr.Gerardfranziuatesta.–Há,quantoaela,algoainda

maisestranho.GinevraBoyntonéfilhadavelha.–Nessecaso,deveriaserdiferente...Ounão?–Nãocreioque–respondeuomédico,devagar-,quandoamaniado

poder (ea fomedecrueldade)seapossadeumserhumano, lhepermitapoupar seja quem for, nemmesmo aqueles que lhe sãomais queridos. –Gerardfezumapausa,antesdeperguntar:–Écristã,mademoiselle?

–Nãosei...Dantespensavaquenãoeranada,masagora...nãotenhoacerteza.Sintoque...sintoquesepudesseapagartudoisto–desenhouumgestoviolento,comumbraço-,todososedi ícios,todasasseitasetodasasigrejas ferozmente antagônicas, poderia ver a serena igura de CristoentraremJerusalémmontadonumburro...eacreditarn`Ele.

– Eu creio pelo menos num dos principais dogmas da fé cristã:contentamentocomumlugarhumilde.–disseoDr.Gerard,gravemente.–Sou médico e sei que a ambição, o desejo de ter êxito e poder, leva àmaioria das doenças da alma humana. Se o desejo se realiza, conduz àarrogância,àviolência,epor im,àsaciedade;senãoserealiza...ah,senãose realiza, que todososmanicômiosde alienados se ergamedeemo seutestemunho! Estão cheios de seres humanos que foram incapazes deenfrentarasuamediocridade,asua insigni icânciae ine icácia,epor issocriaramviasdefugaàrealidade,afimdeseisolaremparasempredavida.

– É uma pena que a velha Boynton não esteja num dessesmanicômios!

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–Não, o lugardelanão é entreos falhados... É piordoque isso. Elavenceu,compreende?Viurealizadooseusonho.

– Não deviam acontecer tais coisas – murmurou Sarah, sem poderdominaroutroestremecimento.

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VI

Sarah duvidava que Carol Boynton comparecesse ao encontrodaquelanoite.Receavaqueamoçativessesofridoumareaçãoforte,depoisdassuassemi-con idênciasdaquelamanhã.Noentanto,preparou-separaa visita: vestiu um roupão de cetim azul e acendeu a sua lamparina aálcool,paraferverágua.

Estavaquaseadesistirdeesperar(passavadaumahoradamanhã)eadeitar-sequandobateramàporta.

Abriu-aerecuourapidamente,paradeixarCarolentrar.–Receavaquesetivessedeitado...– Oh, não! – respondeu Sarah, com o cuidado de se mostrar

despreocupada.–Estavaàsuaespera.Bebaumaxícaradechá.ÉautênticoLapsangSouchong.

Carol,quepareceranervosaehesitante,aceitouocháeumbiscoitoemostrou-semaiscalma.

–Istoédivertido–comentouSarah,asorrir.Carol pareceu um pouco assustada e respondeu, sem muita

convicção:–Sim...suponhoquesim.– Lembra-me os banquetes dameia-noite, que costumávamos fazer

naescola...Creioquenãoandounaescola?– Não. Nunca saímos de casa. Tivemos uma preceptora... diversas

preceptoras.–Nuncasaíram?– Não. Temos morado sempre na mesma casa. Esta vinda ao

estrangeiroéaminhaprimeiraviagem.–Deveserumagrandeaventura–comentouSarah,emtomcasual.–Oh,semdúvida!Pareceumsonho.–Quelevouasua...madrastaaresolverviraoestrangeiro?Carolencolheu-se,aoouvirfalardeMrs.Boynton.– Vou ser médica – apressou-se Sarah a explicar. – Acabo de me

formar.Asuamãe,oumelhor,asuamadrasta,me interessamuito...comoumcasoclínico.Confesso,até,queaconsideroumcasopatológico.

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Carolarregalouosolhos.Eraevidentequesemelhantepontodevistalhepareciamuitoinesperado.

Sarah,porém,falaracomumaintençãodeliberada.Compreendiaque,para a família,Mrs.Boynton tinha asproporçõesdeum ídolopoderoso eobsceno,eestavadecididaaprivá-ladasuafeiçãomaisaterradora.

– Sim, existe uma espécie demania depoderio, umadoençaque seapodera das pessoas. Tornam-semuito autocráticas, exigem que tudo sefaçaexatamentecomodesejametorna-semuitodifícillidarcomelas.

Carolpousouaxícaraeexclamou:– Oh, estou tão contente por ter vindo falar com você! Confesso-lhe

queoRayeeunostemossentido...en im,esquisitos.Enervamo-nosmuitocomasituação.

– Ajuda sempre falar com uma pessoa de fora. No círculo familiarcorremosoriscodeverascoisasmuitoapaixonadamente...–E,desúbito,perguntou,notommaiscasualpossível:–Mas,sesãoinfelizes,comcertezajápensaramemsairdecasa?

–Oh,não!–exclamouCarol,assustada.–Comopoderíamosfazertalcoisa!Quero...querodizer,amãenãoconsentiria.

–Masnãoospoderiaimpedir.Você,porexemplo,jáémaior.–Tenhovinteetrêsanos.–Vê?–Mas,mesmoassim,nãovejocomo...querodizer,nãosaberiaaonde

irnemoquefazer.Nãotemosdinheironenhum,compreende?–Nãotêmamigosqueosrecebessem?–Amigos?Oh,não,nãotemosninguém!–Querdizer,então,quenuncanenhumdevocêspensouemsairde

casa?–Creioquenão.Nãopodíamos!Sarahachoupatéticooespantodajovememudoudeassunto:–Gostadasuamadrasta?Carol abanou a cabeça, devagar, e respondeu em voz baixa e

assustada:–Odeio-aeoRaytambém.Temos...temosdesejadomuitasvezesque

morresse.Sarahmudoudenovodeassunto:–Fale-medoseuirmãomaisvelho.–Lennox?Nãoseioqueeletem.Quasenuncafala,parecequeanda

sempreasonhar...ANadineestápreocupadacomele.–Gostadasuacunhada?

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–Gosto.Nadine é diferente,mostra-se sempre amável.Mas émuitoinfeliz.

–Porcausadoseuirmão?–Sim.–Sãocasadoshámuitotempo?–Háquatroanos.–Eviveramsemprelánacasa.–Viveram.–Asuacunhadagostadisso?–Não...–Carolacrescentou,apósumapausa:–Houveumazangaterrível,hácercadequatroanos.Comolhedisse,

nunca nenhum de nós sai de casa. Quero dizer, andamos pelo jardim epelosterrenosemaisnada.

MasLennoxsaiu,umanoite,e foiaumbailequehaviaemFountainSprings.Amãe icoufuriosa,quandodescobriu...Foiterrível.Depoisdisso,convidouNadinea ir láparacasaea icar.Nadineeraumaprimapobre,afastada,donossopaieandavaaestudarparaenfermeira.Passouummêsconosco... e eu nem lhe sei explicar como foi emocionante ter alguém deforaconosco.ElaeLennoxapaixonaram-seeamãedissequeomelhoreracasaremdepressaeficaremaviverláemcasa.

–ENadineconformou-secomisso?Carolhesitou.–Nãocreioquelheagradassemuito,mastambémnãosepodedizer

quese importasse,realmente.Depois,maistarde,quis-se irembora...comLennox,evidentemente...

–Masnãoforam?–Não. Amãe nem quis ouvir falar disso. Creio que já não gosta da

Nadine. Esta é... estranha, nunca sabemos em que está a pensar. TentaajudaraJinny,masamãenãogosta.

–Jinnyéasuairmãmaisnova?–É.Chama-seGinevra.–Elatambémé...infeliz?– Jinny tem-se mostrado muito esquisita, ultimamente. Não a

compreendo. Foi sempremuito fraca e... e amãe exagera nos cuidados aseu respeito e isso ainda a torna pior. Mas nos últimos tempos andaestranhaeàsvezes...assusta-me.Nemsempresabeoqueestáafazer.

–Jáconsultouummédico?–Não.ANadineaconselhou-o,masamãedissequenãoeaJinnyencheu-sedenervos e gritouquenãoqueriamédiconenhum.Estoupreocupada

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comela.Desúbito,Carollevantou-se.–Estouaincomodá-la.Foimuitoamáveldeixar-mevirconversarcom

você...Deveconsideraranossafamíliamuitoestranha.–Oh,bemvistasascoisas,todossomosestranhos!Volte,sim?Etraga

oseuirmão.–Nãoseimporta?– Absolutamente nada! Faremos uma espécie de conspiração

secreta...Gostariadelhesapresentarumamigomeu,odoutorGerard.–Oh, parece tãodivertido! – exclamouCarol, corada. –Oxalá amãe

nãodescubranada...–Comohaviadedescobrir?Atéamanhãàmesmahora,estábem?–Oh,sim!Depoisdeamanhãtalvezpartamos.–Entãoficadefinitivamentecombinadoumencontroparaamanhã.Carol saiudoquartoe seguiu,emsilêncio,pelocorredor fora.Oseu

quartoficavanoandardecima.Quando chegou, abriu a porta e estacou, petri icada, no limiar.Mrs.

Boynton estava sentada numa poltrona, de roupão escarlate, junto dalareira.

–Oh!–exclamouajovem.– Onde estiveste, Carol? – perguntou a madrasta, com os olhinhos

pretosmergulhadosnosdela.–Eu...eu...– Onde estiveste? – A voz era doce e abafada, mas possuía aquele

estranho tom de ameaça latente que enchia o coração de Carol de umterrorirracional.

–EstivecomMissKing...SarahKing.–AmoçaquefalouaRaymond,ontemànoite?–Sim,mãe.–Fizesteplanosparatevoltaresaencontrarcomela?Carolmoveuoslábios,masnãosaiunenhumsom.Acenouafirmativamentecomacabeça.–Quando?–Amanhãànoite.–Nãoirás.Compreendes?–Sim,mãe.Mrs. Boynton tentou levantar-se e,maquinalmente, Carol avançou e

ajudou-a. A velha atravessou o quarto, devagar, apoiada à bengala, e àportaparouefitouamoça.

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–NãoterásmaisnadaavercomessaMissKing.Compreendes?–Sim,mãe.–Repete.–Nãotereimaisnadaavercomela.–Muitobem.Mrs.Boyntonsaiuefechouaporta.Carol sentiu-se agoniada.Atirou-separa cimada cama, como corpo

sacudidopelossoluços.Era como se tivesse surgido à sua frente uma paisagem de sol,

árvores e lores... e as grades negras da prisão se tivessem cerrado denovoàsuavolta.

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VII

–Ummomentodeatenção,porfavor?Nadine virou-se, surpreendida, e encontrou o rostomoreno e cheio

devivacidadedeumamulhernovaedesconhecida.–Comcerteza–respondeu,aomesmotempoque,inconscientemente,

olhavaparatrás,porcimadoombro.–MeunomeéSarahKing.–Sim?

– Sra. Boynton, vou-lhe dizer algo que lhe deve parecer muitoestranho. Anteontem à noite conversei durante muito tempo com a suacunhada.

UmatênuesombraofuscouaserenidadedorostodeNadine.–FaloucomGinevra?–Não.FaleicomCarol.Asombradissipou-seeNadineBoyntonpareceusatisfeita,masmuito

surpreendida.–Ah,comCarol!Comoconseguiuisso?– Ela foi ao meu quarto... muito tarde. – Viu a outra arquear as

sobrancelhas bemdepiladas e acrescentou, com certo embaraço: – Estoucertadequelhedeveparecermuitoestranho...

–Demodonenhum.Estousatisfeita,muitosatisfeita,até.ÉbomparaCarolterumaamigacomquemconversar.

–Nós...entendemo-nosmuitobem.–Sarahesforçou-seporescolheras palavras com cuidado. – Por sinal, até combinamos encontrar-nos denovo,nanoiteseguinte.

–Eentão?–Carolnãoapareceu.–Não?–AvozdeNadineerafriaecalmaeoseurosto,tãoserenoe

plácido,nãodizianadaaSarah.– Não. Ontem, quando passou pelo vestíbulo, falei-lhe e ela nãome

respondeu.Limitou-seaolhar-meeaafastar-se,depressa.–Compreendo.Sarah não soube que dizer. Passado um bocado, Nadine Boynton

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acrescentou:–Sintomuito.Carolé...éumamoçanervosa.Seguiu-senovapausa,atéqueSarahseencheudecoragem:– Sra. Boynton, vou sermédica e acho que seria conveniente a sua

cunhadanão...nãoseisolartantodaspessoas.Aoutrafitou-a,pensativa.–Compreendo...Émédica,issoédiferente.–Percebeoquequerodizer?–perguntouSarah,interessada.Nadineinclinouacabeça,aindapensativa.– Tem toda a razão, claro, mas há di iculdades. Minha sogra está

doente e possui aquilo que considero uma antipatia mórbida pelainterferênciadeestranhosnocírculodanossafamília.

–MasCaroléumamulheradulta!–protestouSarah,revoltada.–Oh, não, não é! Em corpo, sim,mas em espírito, não. Se falou com

ela, deve ter notado isso. Numa emergência, agiria como uma criançaassustada.

–Achaquefoiissoquesucedeu?Achaqueela...tevemedo?–Creio,MissKing,queminhasograordenouaCarolquenãotivesse

maisnadaavercomvocê.–ECarolcedeu?–Érealmentecapazdeimaginá-laprocedendodeoutromodo?As duas mulheres se itaram. Sarah sentiu que, sob o disfarce das

palavrasconvencionais,secompreendiam.Nadineavaliavaasituação,masnãoestavadispostaadiscuti-la.Sarah sentiu-se desencorajada. Duas noites atrás, meia batalha

parecera-lhe ganha. Esperara que os seus encontros secretos lhepermitissem incutir emCarol o espírito da revolta... a Carol e aRaymondtambém.(Nãoera,a inal,emRaymondquepensava,desdeoprincípio?)Elogonoprimeiroassaltoforaignominiosamentevencidaporaquelemonteinformedecarneinchadaeolhosmatreiros!Carolcapitularasemlutar.

–Nãoestácerto!–protestou.NadinenãorespondeueoseusilênciocausouaSarahasensaçãode

unsdedosgeladosaenvolverem-lheocoração. “Estamulhersabemelhordoqueeuqueasituaçãonãotemremédio”,pensou."Vivecomeles!”

Asportasdoelevadorabriram-seeMrs.Boyntonsaiu,apoiadaaumabengalaeamparadaporRaymond.

Sarah estremeceu, ao ver os olhos da velha passarem dela paraNadine e voltarem a ixar-se nela. Estivera preparada para ver nelesantipatia e, até, ódio, mas não o que viu, não uma expressão de gozo

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triunfante e maldoso. Sarah afastou-se e Nadine foi juntar-se aos outrosdois.

– Olá, Nadine! – saudou a velha. – Sentar-me-ei e descansarei umpouco,antesdesair.

Instalaram-nanumacadeiradeespaldardireitoeNadinesentou-seaseulado.

–Comquemestavasafalar,Nadine?–ComumatalMissKing.–Ah, sim, amoça que falou comRaymond, na outra noite! Ray, Por

quenãovaisconversaragoracomela?Estáali,juntodaescrivaninha.Mrs. Boynton abriu a boca num sorriso pér ido, ao olhar para o

rapaz.Raymondcorou,virouacabeçaemurmurouqualquercoisa.–Quedisseste,filho?–Nãoquerofalarcomela.–Bemmeparecia.Nãofalaráscomela...nãopoderias,pormuitoque

o desejasses! – Tossiu, de súbito, com uma tosse abafada. – Estou aapreciarmuitoestaviagem,Nadine.Nãoaperderiapornadadestemundo.

–Não?–perguntouanora,emtominexpressivo.–Ray...–Diga,mãe?–Vai-mebuscarumafolhadepapel,àquelamesadocanto.Raymond foi,obedientemente.Nadine levantoua cabeçaeobservou

nãoorapaz,massimasogra.Mrs.Boyntonestava inclinadaparaa frente,denarinasdilatadasde

prazer. Ray passou por Sarah, que levantou a cabeça, com uma súbitaexpressão de esperança. Mas a esperança dissipou-se quando ele tirouumafolhadepapeldacaixaeretrocedeupelomesmocaminho.

Raymond tinha a testa coberta de suor e estava lívido quando sereuniuàsduasmulheres.

–Ah!–exclamouMrs.Boynton,muitobaixoedocemente.Depois viu os olhos de Nadine itos nela e os seus brilharam,

coléricos.–OndeestáMisterCope,estamanhã?Nadinebaixououtravezacabeçaerespondeu,calma:–Nãosei.Nãoovi.– Gosto dele, gosto muito dele. Devemos conviver com ele. Isso

agradar-te-ia,nãoagradaria?–Agradaria.Tambémgostomuitodele.–Que temoLennoxultimamente,Nadine?Parecemuito taciturno e

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calado.Nãosepassanadaentrevocês,poisnão?–Claroquenão.Porquehaviadepassar?–Nãosei...Aspessoascasadasnemsempreseentendembem.Talvez

tesentissesmaisfelizsevivessesnatuaprópriacasa?Nadinenãolherespondeu.–Quedizes,hem?Aideiaagrada-te?Nadineabanouacabeçaeredarguiu,asorrir:–Nãocreioquelheagradasseasi,mãe.Mrs.Boyntonpestanejouedisse,venenosamente:–Fostesemprecontramim,Nadine.–Lamentoquepenseassim–respondeuaoutra,imperturbável.Amãodavelhacerrou-senabengalaeoseurostopareceutornar-se

umpoucomaisvermelho.– Esqueci-me das minhas gotas – disse, em tom diferente. – Vai

buscá-las,Nadine.–Poissim.Nadine levantou-se e dirigiu-se para o elevador. Os olhos de Mrs.

Boynton seguiram-na. Raymond estava sentado na cadeira, com umaexpressãodeestupidezeangústia.

Quando entrou na suíte que ocupavam, Nadine encontrou Lennoxsentadojuntodajanela,comumlivronamão.Masnãoestavaaler.

–Olá,Nadine!–exclamou,sobressaltado.–Vimbuscarasgotasdamãe,queasesqueceu.Entrou no quarto da sogra, pegou num frasco e contou

cuidadosamenteumcertonúmerodegotasparaumcopinho,queacaboudeencherdeágua.Aopassarpelasala,paroudenovo.

–Lennox...O marido só lhe respondeu passados momentos, como se a

mensagemtivesseumalongadistânciaapercorrerantesdechegaraoseudestino.

–Desculpa–murmurou,porfim.–Quequeres?Nadinepôso copoemcimadamesa edepois colocou-se ao ladodo

marido.–Lennox,olhaparaosol,láfora,atravésdajanela...olhaparaavida.

É bela! Podíamos estar lá fora, no meio dela, em vez de metidos aquidentro,avê-laatravésdosvidros.

Seguiu-senovapausa.–Desculpe...–repetiuLennox.–Quersair?–Quero,querosair.Querosaircomvocê,queroirparaosol,paraa

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vida...osdoisjuntos.Elepareceuencolher-senacadeira.–Nadine,minhaquerida...temosdefalaroutravezemtudoisso?– Temos, sim. Partamos, vivamos a nossa própria vida emqualquer

lugar.–Mascomo?Nãotemosdinheiro.–Podemosganhardinheiro.–Como?Quepodemosfazer?Eunãotenhoespecializaçãonenhuma.

Há milhares de homens... milhares de pro issionais experientes,desempregados.Nãoconseguiríamos.

–Euganhariaparaosdois.–Minha querida, você não chegou sequer a completar o curso.Não

háesperança,éimpossível.– Não! O que não tem esperança e é impossível é a nossa vida

presente.– Não sabes do que estás a falar. A mãe é muito boa para nós,

proporciona-nostodososluxos...– Exceto a liberdade. Faz um esforço, Lennox! Parte comigo agora...

hoje...–Creioqueenlouqueceste,Nadine.–Não,euestounomeujuízo,nomeu juízoperfeito.Queroumavida

minha,contigo,umavidaaosolenãoas ixiadapelasombradeumavelhatirana,quesedeliciaatornar-nosinfelizes.

–Amãepodeserautocrata...–Atuamãeélouca!–Issonãoéverdade...Temumaexcelentecabeçaparaosnegócios.–Talveztenha.–Elanãopodeviversempre,Nadine.Temsessentaetalanoseestá

muito doente. Quando morrer, o dinheiro do meu pai será repartidoigualmenteportodosnós.Lembras-tedeelanoslerotestamento?

–Quandomorrertalvezsejatardedemais.–Tardedemais?–Tardedemaisparaserfeliz.– Tarde demais para ser feliz... – repetiu Lennox, e estremeceu, de

súbito.Nadineaproximou-semaisepôs-lheamãonoombro.

– Eu amo você, Lennox. Trava-se uma batalha entre suamãe e eu.Estádoladodelaoudomeu?

–Doseu...doseu!

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–Entãofaçaoquepeço.–Éimpossível!–Não,nãoéimpossível.Pensequepodíamosterfilhos,Lennox...–Amãequerqueostenhamos,jáodisse...– Bem sei, mas eu não trarei a este mundo crianças condenadas a

viverem à sombra damulher que criou vocês. Suamãe pode in luenciarvocês,massobremimnãotempodernenhum.

–Àsvezes...irritá-la,Nadine...–murmurouLennox.–Nãoésensato.–Elasóseirritaporquesabequenãopodeinfluenciaromeuespírito

nemmandarnosmeuspensamentos!– Sei que você é sempre delicada e correta com ela, que é

maravilhosa...eboademaiscomigo.Quandodissequesecasariacomigofoicomoarealizaçãodeumsonhoinacreditável.

–Fizmalemcasarcomvocê–afirmouNadine,muitocalma.–Sim,fizestemal...–murmurouomarido,desesperado.–Nãocompreende.Oquequerodizeréquevocêmeteriaseguidose,

então, eu fosse embora e pedisse que me seguisse. Sim, creio que vocêteriafeitoisso...Nãotiveinteligênciasu icienteparacompreendersuamãeeoque elaqueria... Você se recusa apartir?Nãopossoobrigar,mas soulivre,possopartir!Eacho...achoquevou.

Ele itou-a, incrédulo, e pela primeira vez respondeu sem hesitar,comoseomarasmodosseuspensamentostivesselevadoumasacudidela:

–Masvocênãopodefazerisso!Amãe...amãenãoquereriaouvirtalcoisa!

–Nãopoderiameimpedirdepartir.–Nãotemdinheiro.–Poderiaarranjar.Ganhar,pediremprestado, roubar,até!Suamãe

não exerce poder algum sobre mim, compreenda! Posso ir ou icar,conforme me aprouver... e começo a pensar que já suportei esta vidatemposuficiente.

–Nadine...nãomedeixe...nãomedeixe...Elaolhou-o,pensativa.–Nãomedeixe,Nadine!–pediu,comoumacriança.Amulher virou a cabeça, para que ele não visse amágoa dos seus

olhos,eajoelhouaseulado.–Entãopartacomigo.Partacomigo!Vocêpode,sequiser!Lennoxrecuou,parafugirdela.– Não posso! Não posso! Não tenho... Deus me valha, não tenho

coragem!

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VIII

ODr.GerardentrounoescritóriodaagênciadeviagenseencontrouSarahKingaobalcão.

–Bonsdias,doutor!VimtratardasformalidadesdaminhaviagemaPetra.Constou-mequeafinal,tambémvai.

–Éverdade,verifiqueiquepossoir.–Émuitoagradável.–Formaremosumgrupogrande?–Parecequeserãomaisduasmulheresenósdois.A lotaçãodeum

carro.–Serádelicioso!–afirmouomédico,einclinouacabeça,cortês.Tratou dos seus assuntos e, pouco depois, com o correio que

recebera, juntou-se a Sarah, que ia a sair do escritório. Estavaumdiadesol,emboracomumaaragemfresca.

–Quenotíciastemdosnossosamigos,osBoynton?–perguntouoDr.Gerard.–EstiveemBelém,naNazaréenoutroslugares,numaexcursãodetrêsdias.

Lentaecontrariadamente,Sarahrelatouasuatentativafalhadaparaestabelecercontato.

–Enfim,falhei–concluiu.–Eelespartemhoje.–Paraondevão?–Não faço amínima ideia. Tenho a sensação de que iz um grande

papeldeidiota.–Emquesentido?–Nosentidodeinterferirnavidadosoutros.–Éumaquestãodeopinião.– Quer dizer que é uma questão de opinião achar se devemos

interferirounão?–Sim.–Interfere?–Seoquepretendeperguntarésetenhoohábitodememeternos

assuntosdosoutros,respondo-lhefrancamentequenão.–Nessecaso,achaqueerrei,aotentarinterferir?

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– Não. Interpretou-me mal, Miss King. O assunto presta-se adiscussão. Se vemos cometer umerro devemos tentar corrigi-lo?A nossainterferência pode fazer bem, mas também pode causar um malincalculável. É impossível estabelecer ummodo ixo de procedimento. Hácertas pessoas que são verdadeiramente geniais na arte de interferir,fazem-nosemprebem;outras,pelocontrário,nãotêmhabilidadenenhumae mais lhes valeria estarem quietas. Há, também, a questão da idade. Agentenova tema coragemdos seus ideais edas suas convicções, os seusvalores são mais teóricos do que práticos. Ainda não aprenderam, porexperiência, que o fato contradiz a teoria. Quando temos fé em nós e najustiçadoque fazemos, conseguimosmuitasvezes resultadosvaliosos! (E,àsvezes,tambémfazemosmuitomal.)Poroutrolado,oindivíduodemeia-idadetemexperiência,aprendeuquetantoomalcomoobem,talvezmaisaqueledoqueeste,resultamdetentarinterferire,porisso,sensatamente,coíbe-se de se meter onde não é chamado. Assim, o resultado éequilibrado:osjovensentusiastasfazembememal;osprudentesdemeia-idadenãofazemumacoisanemoutra!

–Issonãoajudamuito–protestouSarah.– Uma pessoa poderá, jamais, ajudar outra? O problema é seu, não

meu.–QuerdizerquenãotencionafazernadaacercadosBoynton?–Não.Eunãoterianenhumaprobabilidadedeêxito.–Entãoeutambémnãoteria?–Talveztivesse.–Porquê?–Porquetemqualidadesespeciais.Aatraçãodasua juventudeedo

seusexo.–Domeusexo?Ah,compreendo!–Voltamossempreaosexo,nãovoltamos?Ofatodeterfalhadocom

a jovemnão implicaque falhe tambémcomo irmão.Oquemedisse (eoqueCarollhecontou),indicaclaramenteoquepodeameaçaraautocraciada Sra. Boynton. O ilho mais velho, Lennox, desa iou-a encorajado pelaforçadasuavirilidadejuvenil,saiudecasaaocultasefoiabailes.Odesejode um homem por uma companheira foi mais forte do que a in luênciahipnóticadamadrasta.Masavelha tinhaperfeitaconsciênciada forçadosexo(devetervistomuitosexemplosduranteasuacarreira)eresolveuoassunto inteligentemente: levouparacasaumamoçabonita,maspobre,eencorajou o casamento, o que lhe proporcionou, ao mesmo tempo, outraescrava.

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Sarahabanouacabeça.–NãocreioqueSra.Lennoxsejaumaescrava.– Talvez não, de fato. Suponho que, em virtude de ser uma moça

pacata e dócil, Sra. Boynton subestimou a sua força de vontade e decaráter.Nessaaltura,Nadineeramuito joveme inexperienteenãosoubeavaliarasituação.Avalia-aagora,tardedemais.

–Supõequeelaabandonouaesperança?ODr.Gerardabanouacabeça,duvidoso.–Setemquaisquerplanos,ninguémestáaocorrentedeles.Hácertas

possibilidades,norespeitanteaCope.Ohomeméumanimalnaturalmenteciumento e o ciúme é uma força poderosa. Talvez ainda seja possível“acordar”LennoxBoynton.

– E parece-lhe – Sarah adoptou propositadamente um tom muitoprático e pro issional – que existe alguma possibilidade de eu conseguirqualquercoisacomRaymond?

–Parece-mequesim.Sarahsuspirou.– Acho que devia ter tentado... En im, agora é tarde demais . Além

disso,nãomeagradaaideia.– A culpa é de ser inglesa! – exclamou o médico, divertido. – Os

Ingleses têm um complexo acerca do sexo, acham que “não é muitodecente”.

AréplicaindignadadeSarahnãooimpressionou.– Sim, sim, sei que é muito moderna, que emprega livremente, em

público, as palavrasmais desagradáveis que se encontram no dicionário,queémuitopro issionaleabsolutamentedesinibida!Mesmoassim,repito,possuiasmesmascaraterísticasraciaisdasuamãeedasuaavó.Continuaasera“miss”inglesacheiaderubores,emboranãoseruborize.

–Nuncaouvitantodisparate!Absolutamenteimperturbávelecomumbrilhomarotonoolhar,oDr.

Gerardacrescentou:–Porsinal,orubortorna-amuitoencantadora!DestavezSarahnãosoubequeresponder.ODr.Gerardapressou-seatirarochapéueadeclarar:– Despeço-me, antes que tenha tempo de começar a dizer tudo

quantopensa.Deixou-aeentrounohotel.Sarahseguiuomesmocaminho,maisdevagar.Havia muita atividade e partiam vários carros cheios de malas.

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Lennox, Nadine e Mr. Cope estavam junto de um grande automóvel, asuperintendernocarregamento,eumdragomanogordofalavacomCarol,comumafluênciaininteligível.

Sarahpassouporeleseentrounohotel.Mrs.Boynton,aconchegadanumcasaco grosso, estava sentadanuma cadeira, a aguardar omomentodapartida.Aovê-la,Sarahsentiu-seindignadaerepugnada.

Achara Mrs. Boynton uma igura sinistra, uma encarnação damaldade diabólica, mas de súbito via nela uma criatura patética eimpotente.Nascercomumatãograndefomedepoder,comumdesejotãoinsaciáveldedomínio,econseguirapenasumatiraniazinhadoméstica!Seao menos os seus ilhos a pudessem ver como Sarah a via naquelemomento,seavissemcomoelaavia:umobjetodecompaixão,umavelhaestúpidaemá,quepassaraavidanumaatitudefalsa!

Impulsivamente,foitercomela.–Adeus,Sra.Boynton–despediu-se.–Desejo-lheboaviagem.Avelha itou-aenosseusolhosamaldadeeaindignaçãodebateram-

senumalutacega.–Pretendeusermuitogrosseiracomigo–prosseguiuSarah(Estaria

doida?Quedemônioalevariaafalardaquelamaneira?)–tentouimpediroseu ilhoea sua ilhade travaremamizadecomigo.Nãoachasemelhanteprocedimento muito idiota e infantil? Gosta de parecer uma espécie depapão, de monstro, mas na realidade é patética e ridícula. No seu lugar,desistiriadessaestúpidarepresentação.Calculoquemedetestarápeloquelhe estou a dizer, mas falo sinceramente e com a esperança de que asminhas palavras produzam algum efeito. Ainda se podia divertir umbocado,sabe?Émuitomelhorsercordialeamável,easenhorapodiaserasduascoisas,setentasse.

Sra. Boynton estava petri icada numa imobilidade total. Por impassou a língua pelos lábios secos, abriu a boca... mas as palavras nãosaíram.

– Vá, diga! – encorajou-a Sarah. – O que me disser não teráimportância,masasenhorapensenoqueeulhedisse.

Aspalavrasouviram-se, inalmente,numavozque,apesardebaixaerouca, erapenetrante. Sarahachouestranhoqueosolhosdebasiliscodavelhanãoa itasseme,sim,qualquerpontoporcimadoseuombro,comoseemvezdesedirigiraelasedirigisseaqualquerespíritofamiliar:

–Eununcaesqueço!Lembre-sedisso.Nuncaesquecinada;nemumaação,nemumnome,nemumrosto!

As palavras em si não diziam nada, mas o veneno que as revestia

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obrigou Sarah a recuar um passo. Depois Mrs. Boynton deu umagargalhada,umagargalhadahorrível.

– Pobre velha! – exclamou a moça e, com um encolher de ombros,virou-lheascostas.

Aodirigir-se para o elevador, quase chocou comRaymondBoynton.Obedecendo,denovo,aumimpulso,disse-lhe,muitodepressa:

–Adeus.Esperoquesetenhadivertidomuito.Talveznosvoltemosaencontrar,umdia.–Sorriu-lhe,comumsorrisoamigoeterno,eafastou-se.

Raymond icouparado,comosetivessesidotransformadoempedra.Estava tãoabsortonosseuspensamentosqueumhomenzinhodegrandebigode,quepretendiasairdoelevador,tevederepetirváriasvezes:

–Pardon.PorfimRaymondpercebeu,afastou-seemurmurou:–Desculpe...estava...estavaapensar.–Ray,vaibuscara Jinny,sim?–pediu-lheCarol.–Elavoltouparao

quartoesãohorasdepartirmos.–Estábem,dir-lhe-eiquetemdevirjá–respondeuorapaz,eentrou

noelevador.HerculePoirotseguiu-ocomoolhar,desobrancelhasarqueadasea

cabeçaumpoucoinclinadaparaolado,comoseestivesseàescuta.Depoisacenou com a cabeça, com um ar de convicção, atravessou a sala eobservoubemCarol,quesereuniraàmãe.

–Pardon,sabe-medizeronomedaquelaspessoas?–perguntouaumcriado.

–OnomedefamíliaéBoynton,Monsieur.Sãoamericanos.–Obrigado–agradeceuodetetive.Noterceiroandar,quandosedirigiaparaoseuquarto,oDr.Gerard

passouporRaymondeGinevra,queseencaminhavamparaoelevador.Antesdeentrarem,Ginevradisse:–Esperaummomento,Ray...Esperapormimnoelevador.Retrocedeucorrendo,alcançouomédicoemurmurou:–Comlicença,

precisofalarcomvocê.O Dr. Gerard olhou-a, surpreendido, e ela aproximou-se mais e

agarrou-lhenumbraço.–Vão-melevaretalvezmematem...Nãolhespertenço,sabe?Omeu

apelidoverdadeironãoéBoynton.–Falavamuitodepressa,aatropelaraspalavras.

Vou-lhe confessar um segredo: tenho sangue real, sou herdeira deum trono! É por isso... é por isso que estou cercada de inimigos. Tentam

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envenenar-meemuitascoisasmais!Sepudesseajudar-meafugir...calou-se,desúbito,eomédicoouviupassos.

–Jinny...Bela no seu gesto brusco e assustado, a moça levou um dedo aos

lábios,lançouumolharimplorativoaomédicoedeixou-o,acorrer.–Voujá,Ray!O Dr. Gerard seguiu o seu caminho, de sobrancelhas franzidas e a

abanarlentamenteacabeça.

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IX

PartiamnaquelamanhãparaPetra.Quandodesceu,Sarahencontrouuma mulheraça de aspecto autoritário e nariz achatado, na qual járeparara antes, a protestar veementemente acerca do tamanho doautomóvel.

–Emuitíssimopequeno!Quatropassageiroseumdragomano?Leveessecarro,porfavor,etragaoutrodetamanhoapropriado.

Emvãoorepresentantedaagênciaturísticaergueuavoz.Oscarrosque utilizavam eram sempre daquele tamanho, muito confortáveis, e umautomóvelmaiornãoconvinhaparaviajarnodeserto...

A mulheraça caiu-lhe em cima, metaforicamente falando, como umgranderolocompressor.DepoisdedicouasuaatençãoaSarah:

–MissKing?...EusouLadyWestholme.Estoucertadeque,comoeu,concordaqueestecarroéabsolutamenteinadequado,quantoatamanho?

– Bem – respondeu Sarah, cautelosa -, concordo que um automóvelmaiorseriamaisconfortável...

Oagentemurmurouqueumcarromaioraumentariaopreço.–Opreço inclui tudo–a irmouLadyWestholme, irmemente–eeu

recusar-me-ei a sancionar qualquer aumento. Nos prospectos diz, comtodasasletras:“emautomóvelespaçosoeconfortável”.Cumpraostermosdocontrato.

O homem deu-se por vencido, disse que ia ver o que podia fazer eabalou,cabisbaixo.

LadyWestholmevoltou-separaSarah,comumsorrisotriunfantenorostocurtidopelotempoeasgrandesnarinasfrementesdeexultação.

Lady Westholme era uma igura muito conhecida no mundo dapolítica inglesa. Quando LordeWestholme, um par demeia-idade e almasimples, cujos únicos interesses na vida eram caçar e pescar, regressavadeumavisitaaosEstadosUnidos,umadassuascompanheirasdeviagemerauma talMrs. Vansittart. Poucodepois,Mrs. Vansittart tornou-se LadyWestholme,numauniãocitadaamiúdecomoumdosexemplosdosperigosdasviagensoceânicas...AnovaLadyWestholmeandavasemprevestidadetweededesapatosgrossos,criavacães,implicavacomagentedaaldeiae

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obrigava implacavelmente omarido a interessar-se pela vida pública. Aocompreender,porém,queapolíticanãoera,nemserianunca,ométierdeLordeWestholme,teveagenerosidadedeconsentirqueelecontinuasseadedicar-se às suas atividades desportivas, enquanto ela própria secandidatava ao Parlamento. Eleita por substancial maioria lançou-se comtodo o vigor e todo o entusiasmo na carreira política. Não tardaram aaparecer caricaturas suas, o que é sempreum sinal certo de êxito. Comoigura pública, defendia os valores tradicionais da Vida Familiar e dasObrasdeCaridadeFemininase tinhaopiniões irmesnoquerespeitavaàagricultura, à habitação e à extinção dos bairros de lata. Era muitorespeitadaegozavadeumaantipatiaquasegeral,oquenãodiminuíanadaa possibilidade de lhe ser concedido um subsecretariado, quando o seupartidovoltasseaopoder.

LadyWestholmeviu,comgrandesatisfação,oautomóvelafastar-se,ecomentou:

–Oshomenstêmsempreamaniadepensarquepodemimporasuavontadeàsmulheres.

SarahachouquesóumhomemmuitocorajosoteriaaveleidadedesejulgarcapazdeimporasuavontadeaLadyWestholme...

Apresentou-lheoDr.Gerard,quesaíranaquelemomentodohotel.– O seu nome não me é desconhecido, evidentemente – declarou

LadyWestholme, enquanto lheapertavaamão. –Outrodia estive a falarcom o professor Clemenceaux, em Paris. Ultimamente tenho estudadomuito a fundo a questão do tratamento dos loucos indigentes. Vamos láparadentro,enquantoesperamosporumcarromelhor?

Uma senhora baixinha, demeia-idade e farripas de cabelo grisalho,entrouatrásdeles.EraMissAmabelPierce,oquartomembrodogrupo.

–Éumamulherdecarreira,MissKing?–AcabodemebacharelaremMedicina.– Óptimo! – exclamou Lady Westholme, com condescendente

aprovação. – Acredite, pois sou eu que lho digo, que se alguma coisa seconseguir,àsmulheresseficaráadever.

Constrangidamenteconsciente,pelaprimeiraveznasuavida,doseusexo,Sarahfoiatrásdaoutraesentou-seaoladodela.

Enquantoesperavam,LadyWestholmeinformou-osdequerecusaraum convite para icar na residência do Alto-Comissário, enquantopermanecesseemJerusalém.

– Não desejava de maneira nenhuma ter os meus movimentostolhidospeloprotocolooficial.Queriaverascoisassozinhaeameugosto.

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“Quecoisas?”,perguntou-seSarah,mentalmente.LadyWestholme continuou a explicar que se instalara no Solomon

Hotel para ter os movimentos livres, e acrescentou que apresentaraalgumas sugestões ao gerente, para uma orientaçãomais competente dohotel.

–Aeficiênciaéaminhapalavradeordem!–afirmou.E parecia ser! Passado um quarto de hora, chegou um automóvel

grande e muito confortável e, depois de Lady Westholme indicar comodeveriamarrumarabagagem,partiram.

A primeira paragem foi no mar Morto. Almoçaram em Jericó e,quando Lady Westholme, Miss Pierce, o médico e o gordo dragomanoforamvisitaraantigaJericó,Sarahpreferiuficarnojardimdohotel.

Doía-lhe umpouco a cabeça e queria estar sozinha. Sentia-semuitodeprimida, sem saber por que, perdera de súbito o interesse pelasexcursões e estava farta de aturar os companheiros de viagem.Arrependia-se de ter decidido ir a Petra. Sairia muito caro e ela tinha acerteza de que não iria gostar. O vozeirão de Lady Westholme e ointerminável tagarelarhumildedeMissPiercecomeçavamadar-lhecabodos nervos, e também não lhe agradava nada a expressão sabida do Dr.Gerard,aqueleardequemsabiaexatamenteoqueelasentia.

Onde estariam os Boynton, naquele momento? Talvez tivessemseguido para a Síria e se encontrassem em Baalbek ou Damasco. ERaymond...QueestariaRaymondafazer?Eraestranhocomoserecordavacomtantanitidezdoseurosto,dasuatensãonervosa...

Mas para que diabo continuava a pensar em pessoas queprovavelmentenuncamaisvoltariaaver?

Cada vez que se lembrava da cena que izera à velha! Que a terialevado a aproximar-se e a dizer-lhe todos aqueles disparates? Talvezoutras pessoas a tivessem ouvido... Parecia-lhe, até, que LadyWestholmeseencontravaperto.Sarah tentou lembrar-seexatamentedoquedissera.Qualquer coisa que parecera absurdo e histérico, com certeza... Quegrandeidiotafora!Masaculpanãolhecabiae,sim,aSra.Boynton.Haviana criatura um não-sei-quê que fazia perder todo o sentido dasproporções.

ODr.Gerardentrouedeixou-secairnumacadeira,alimparatesta.–Oh,aquelamulherdeviaserenvenenada!–exclamou.–Sra.Boynton?– Sra. Boynton? Não. Re iro-me a Lady Westholme! Parece-me

inacreditável que seja casadahá tantos anos e queomarido aindanão a

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tenhaenvenenado!Dequeseráelefeito?Sarahriu-se.–Oh,eleédosquesóseinteressamporpescarecaçar!– Psicologicamente, isso é muito salutar. Sacia assim nas chamadas

criaturasinferioresasuasededematar.–Creioquesesentemuitoorgulhosodasatividadesdamulher.– Talvez porque elas a afastam muito de casa, não? – sugeriu o

francês. – É compreensível. – E, após uma pausa, perguntou: – Há poucofalou da Sra. Boynton, não foi? Seria, sem dúvida, excelente ideiaenvenená-la também. Não deve haver solução mais simples para oproblemadaquela família.Na realidade, umgrandenúmerodemulheresmereciaoenvenenamento:todasasquesetornaramvelhasefeias.

– Ah, os Franceses! – exclamou Sarah, a rir. – Asmulheres só lhesinteressamdesdequesejamnovaseatraentes!

– Somos, apenas, mais sinceros – redarguiu o francês, com umencolherdeombros.–OsInglesesnãose levantamnometropolitanoenocomboioparadarolugaramulheresvelhasefeias.

–Comoavidaédeprimente!–exclamouSarah,asuspirar.–Vocênãotemnecessidadenenhumadesuspirar.–Hojesinto-meabsolutamentedesanimada.–Énatural.–Énaturalporquê?–perguntouajovem,emtombrusco.– Encontraria facilmente a razão se estudasse o seu estado de

espíritocomsinceridade.– Creio que são as nossas companheiras de viagem que me

deprimem. Sei que não está certo, mas detesto mulheres! Quando sãonulidadesidiotascomoMissPierce,enfurecem-me,equandosãoe icientescomoLadyWestholmeaindameenfurecemmais.

– Essas duas pessoas não podiam deixar de a irritar. LadyWestholme nasceu exatamente para a vida que leva e é feliz e bemsucedida; Miss Pierce trabalhou durante anos como governanta demeninos e, de súbito, herdou um pequeno legado que lhe permitiusatisfazer o desejo de toda a sua vida: viajar. Até agora, a viagem temcorrespondido à sua expectativa, tudo se tem passado de acordo com osseus desejos. Consequentemente, você, a quem acaba de ser recusada aobtenção do que pretendia, irrita-se com as pessoas a quem tudo correpelomelhor.

–Creioquetemrazão–admitiuSarah,melancólica.–Éumleitordepensamentos horrivelmente exato! Eu bem tento esconder osmeus,mas

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nãoconsigo.Os outros regressaram, naquele momento. O guia parecia o mais

exaustodostrêsequasenãodissenadaduranteaviagemparaAmã.Aestrada subia, apartirdo Jordão, e serpenteava entremaciçosde

loendros de lores cor-de-rosa. Chegaram a Amã ao im da tarde e, apósuma breve visita ao teatro greco-romano, deitaram-se cedo. No diaseguinteteriamdepartirdemanhãzinha,poisaguardava-osumdiainteirodeviagemdeautomóvelatravésdodesertodeMaan.

Partiram pouco depois das oito horas e não pareceram muitoinclinados a falar. O dia estava quente e sem uma aragem e quando aomeio-dia pararam para um almoço de piquenique, o calor tornara-seas ixiante.Airritaçãodeestarfechadonoespaçorestritodeumautomóvelcomquatrooutrossereshumanos,numdiaquentecomoaquele,buliraumpoucocomosnervosdetodos.

Lady Westholme e o Dr. Gerard travaram uma discussão umbocadinho azeda acerca da supressão das quadrilhas internacionais decontrabando de drogas. "O assunto é muito grave. Segundo a Lei dasDrogasPerigosas...”,econtinuaramporalifora.

Miss Pierce con idenciou a Sarah, na sua voz de passarinhoassustado:

–ÉdeverasinteressanteviajarcomLadyWestholme.– Sim? – redarguiu a jovem, em tom ácido,mas a interlocutora não

deuporissoeprosseguiu,feliz:– Já tinha lido tantas vezes o nome dela nos jornais! Acho

extraordinárias as mulheres que enveredam pela vida política e sabemmanter a sua posição. Sinto-me sempre tão feliz quando uma mulherrealizaqualquercoisa!

–Porquê?–indagouSarah,emtomaindamaisacerbo.MissPierceabriuabocaecomeçouagaguejarumpouco.

– Porque... quero dizer... porque... en im, é muito agradável asmulheresseremcapazesdefazercoisas.

–Nãoconcordo.Éagradávelqualquerserhumanosercapazdefazeralgo que valha a pena. Não importa nada que seja uma mulher ou umhomem.Porquehaveriadeimportar?

– Bem, evidentemente... Sim, confesso que, vistas as coisas dessemodo...

– Desculpe, mas detesto essa diferenciação entre os sexos – disseSarah, com mais brandura. – “A moça moderna tem uma atitudeabsolutamente prática para com a vida...”Irritam-me estes chavões, pois

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não contêm nada de verdade. Algumasmoças são práticas e outras não,assim como alguns homens são sentimentais e obtusos e outros sãointeligentes e lógicos. Existem apenas diferentes espécies de cérebros; osexosóinteressanoquediretamentedizrespeitoaosexo.

Miss Pierce corou um bocadinho à menção da palavra “sexo” emudouhabilmentedeassunto:

–Eratãobomquehouvesseumpoucodesombra!–murmurou.–Noentanto,todaestavastidãodesérticaémaravilhosa,nãoacha?

Sarah acenou com a cabeça. Sim, a vastidão desértica eramaravilhosa, cicatrizante e apaziguadora. Não havia seres humanos aperturbar o espírito alheio com as suas enfadonhas inter-relações, nemescaldantesproblemaspessoais...Agorasentia, inalmente,queestavalivredosBoynton,libertadaqueleestranhodesejoqueaimpeliaainterferirnavidadepessoascujaórbitanemdelongetocavanadasuavida.

Alihaviasolidão,vazio,espaço...havia,emresumo,paz. Infelizmente,porém,nãoapodiagozarsozinha.LadyWestholmeeoDr.Gerardtinhamabandonado o assunto das drogas e falavam acerca de jovens ingênuas,exportadasdemodosinistroparacabarésargentinos.

O médico dava mostras de uma frivolidade que Lady Westholme,como verdadeira política e, portanto, desprovida de sentido de humor,achavaabsolutamentedeplorável.

–Continuamosaviagem,sim?–propôsodragomano.Faltava cerca de uma hora para o Sol se pôr, quando chegaram,

inalmente, a Maan. Homens estranhos, de rostos selvagens, cercaram ocarro,quepartiuapósumabreveparagem.

Aopercorrercomoolhararegiãodesérticaeplana,SarahnãofaziaamínimaideiadalocalizaçãodarochosaPetra.Semdúvidaviamtudonumraiodequilômetros equilômetros à suavolta.Nãohaviamontanhasnemmontes em lado nenhum... Isso signi icaria que ainda estavam a muitosquilômetrosdofimdaviagem?

ChegaramàaldeiadeAinMusa,ondetiveramdetrocaroautomóvelporcavalosmagrosedeaspectotristonho.

MissPierce icoumuitoperturbadacomapoucapropriedadedoseuvestidoderiscas.LadyWestholme,essa,optarasensatamenteporcalçõesdemontar.

Os cavalos foram conduzidos para fora da aldeia, por um carreiroescorregadio, de pedras soltas, e começaram a descer, em zigue-zague.Faltavapoucoparaopoente.

Sarah estava muito cansada da viagem de automóvel, sob a

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temperatura escaldante, e sentia-se entorpecida. A cavalgada parecia umsonho.Mais tarde, comparou-a ao abismo do Inferno, a abrir-se aos seuspés.

O caminhodescia sempre, às curvas, e as rochas erguiam-se à rodadeles.EcontinuavamadescerparaasentranhasdaTerra,atravésdeumlabirintodepenhascosvermelhos.

Sarah sentia-se sufocada, ameaçada pelo estreitamento contínuo dodes iladeiro. “A descer para o vale da morte... a descer para o vale damorte...”, pensou confusamente. Escureceu, o vermelho das rochasesmoreceu e a descida continuou, sinuosa, a aprisioná-los nas entranhasda Terra. “É fantástico e inacreditável!”, pensou de novo. “Uma cidademorta!” E as palavras “vale damorte” voltaram-lhe ao espírito, como umrefrão.

Tinham acendido lanternas, enquanto os cavalos continuavam adescida pelas estreitas veredas. De súbito, desembocaram num espaçolargo e os rochedos pareceram recuar. Ao longe, distinguia-se umaglomeradodeluzes.

–Éoacampamento–anunciouoguia.Os cavalos estugaram um pouco o passo – nãomuito, pois estavam

esfomeados e faltava-lhes garra, masmesmo assimmostraram um certoentusiasmo.Ocaminhoseguiaagorapeloleitopedregosodeumrio.

Distinguiramdiversastendas,encostadasàparededeumpenhasco,eviram,também,cavernasabertasnarocha.Acorreramcriadosbeduínos,apressados.

Saraholhouparacima.Numadascavernasestavaumvultosentado.Que seria? Um ídolo? Uma gigantesca estátua acocorada? O tremular dasluzes é que lhe dava um aspecto tão grande. Mas devia ser um ídoloqualquer,imobilizado,aabarcartodooacampamento...

De súbito, porém, o coração da jovem deu um salto dereconhecimento. Dissipou-se a sensação de paz e de libertação que odesertolhedera,regressoudaliberdadeaocativeiro.Desceraàquelevaleescuro, fundo e sinuoso para encontrar, como suprema sacerdotisa dequalquercultoesquecido,adetestávelMrs.Boynton...

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X

Mrs.Boyntonestavaali, emPetra!Sarahrespondeumaquinalmenteàsperguntasquelhefaziam.Queriajantarjá–estavapronto–oupreferialavar-se primeiro? Desejava dormir numa tenda ou numa caverna? Aresposta à última pergunta foi imediata: numa tenda. A ideia de umacavernaaarrepiava,lembravaaquelamonstruosa igura.(Porquehaverianaquelamulheralgoquenempareciahumano?)

Por im, seguiu um dos criados nativos, que vestia calções de caquimuito remendados, grevas mal enroladas e um casaco muito velho. Nacabeçausavaochef iyahnativo,comumfolhocompridoaproteger-lheopescoçoeseguroàvoltadacabeçaporumafaixaapertada,desedapreta.

Sarah admirou a facilidade do seu andar e o porte altivo edescuidado da cabeça. Só a parte europeia do seu vestuário pareciaespalhafatosa e errada. “A civilização está toda errada, toda errada!”,pensou Sarah. “Senão fosse a civilização,Mrs.Boyntonnão existiria!Nastribos selvagens, provavelmente, tê-la-iam morto e comido há muitosanos!”

Compreendeu, com um meio-sorriso, que estava excessivamentefatigadaeenervada.Umbanhoquenteeumpoucodepónacaraesentiu-sedenovocalma,seguradesieenvergonhadadopânicoquesentira.

Passouumpentepelosbastoscabelospretos,aolharcomdi iculdadeasuaimagemre lectidanumespelhoordinário,àluzfracadeumpequenocandeeiroapetróleo.Depoissaiudatenda,dispostaadescerparaaoutramaior,maisabaixo,ondeserviriamojantar.

–Você...aqui?–ouviuperguntaremvozroucaeincrédula.Virou-seeviu-secaraacaracomRaymondBoynton.Quantoespanto

exprimiamosolhosdorapaz!Mas havia neles mais qualquer coisa que a deixou muda e quase

assustada,umaalegria incrível.Eracomoseele tivesse tidoumavisãodoParaíso e se sentisse simultaneamente duvidoso, fascinado, grato ehumilde!

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Sarahnãoesqueceriaaqueleolharemtodaasuavida.–Você...–repetiuorapaz.AqueletomabafadoevibranteacelerouoritmodocoraçãodeSarah,

fê-la sentir-se tímida, receosa, humilde e, ao mesmo tempo, súbita earrogantementealegre.

–Sim–respondeuapenas.Ele aproximou-semais, ainda ofuscado, ainda quase incrédulo, e de

repentepegou-lhenamão.–Évocê!Aoprincípiopenseiquefosseumfantasma,porterpensado

tantoemsi...–Fezumapausa,antesdeacrescentar:–Amo-a,sabe?Amo-adesdequeavinocomboio,sei-oagora.Equeroquetambémosaiba,paraque compreenda que não sou eu, o verdadeiro eu, que procede tãogrosseiramente.Aindanemseioqueestouafazer!Podiaterpassadoporsi como senãoa visse...masqueroque saibaque, se izer isso, não sereieu, o verdadeiro eu. Serão os meus nervos... não posso con iar neles.Quando ela me diz que faça isto ou aquilo, eu faço! Os meus nervosobrigam-me.Compreende,nãocompreende?Despreze-me,sequiser...

Sarahinterrompeu-o,emvozbaixaeinesperadamentedoce:–Nãoodesprezarei.– No entanto, sou desprezível! Devia ser... devia ser capaz de

procedercomoumhomem.Em parte, talvez fosse um eco da opinião de Gerard, mas foi

sobretudo inspiradapeloseupróprioconhecimentoepela suaesperançaqueSaraha irmou, comumavibraçãode certezaeautoridadenadoçuradavoz:

–Agoraprocederá.–Sim?–perguntou,duvidoso.–Talvez...–Agoraterácoragem,tenhoacerteza.Orapazendireitou-seeatirouacabeçaparatrás.–Coragem?Sim,édissoquenecessito.Coragem!Baixou de súbito a cabeça, tocou-lhe na mão com os lábios e

desapareceu.Sarah seguiu para a tenda grande, onde encontrou os seus três

companheiros de viagem. Estavam sentados à mesa, a comer, e o guiaexplicavaqueseencontravanoacampamentooutrogrupo:

–Chegaramhádoisdiasepartemdepoisdeamanhã.Americanos.Amãe muito gorda, muito di ícil de trazer até cá. Foi transportada numacadeiraporcriados,quesequeixaramdotrabalhomuitoduro.

Sarahnãoconteveumagargalhada.Defato,vistasbemascoisas,era

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cômico!O gordo dragomano olhou-a agradecido. Até ali, não achara a sua

tarefamuitofácil.LadyWestholmejáocontradisseratrêsvezes,duranteodia,eagorapunhadefeitosnotipodecamadequedispunham.

Sentia-se, por isso, grato por ummembro do seu grupo semostrarinesperadamentebem-disposto.

– Suponho que essa gente estava no Solomon. – comentou LadyWestholme.Reconheci amãe,quandochegamos.Creioqueavi falar comelanohotel,MissKing.

Sarah corou, com um sentimento de culpa, e esperou que LadyWestholme não tivesse ouvido o que dissera. "Que maluquice me terádado?”,perguntou-se,angustiada.

– Não é gente nada interessante – sentenciou a política inglesa. –Muitoprovincianos.

Miss Pierce apressou-se a concordar, muito lisonjeadora, e a outracomeçou a enumerar os vários americanos proeminentes e interessantesqueconheceraultimamente.

Comootempoestavamaisquentedoqueerahabitualnaquelaépocadoano,combinou-seumapartidamuitomatutina,paraodiaseguinte.

Os quatro voltaram a reunir-se para o pequeno-almoço, às seis damanhã, e não encontraram nenhum dos Boynton. Depois de LadyWestholme protestar contra a ausência de fruta, comeram uma refeiçãocompostaporchá, leitecondensadoeovosestreladoscomfatiasdebaconmuitosalgado.

Partiram e Lady Westholme começou imediata e animadamente adiscutir com o Dr. Gerard o valor exato das vitaminas na dieta e aalimentaçãoadequadadasclassestrabalhadoras.

De súbito, chamaram-nos, do acampamento, e pararam à espera dequeoutroexcursionistasejuntasseaogrupo:Mr.JeffersonCope,aquemoesforçodacorridaavermelhouorostosimpático.

–Senãose importam,gostavadeosacompanhar,estamanhã.Bonsdias, Miss King. Foi uma surpresa muito agradável encontrá-la cá, assimcomo ao doutor Gerard. Que pensam disto? – Abrangeu, num gesto, asfantásticasrochasvermelhasqueseerguiamemtodasasdirecções.

– Penso que é maravilhoso e, também, um nadinha horrível –confessou Sarah. – Sempre julguei a cidade rosa-vermelha um lugarromânticoedesonho,masémuitomais realdoquesupunha... é tão realcomo...comocarnecrua.

–Edecormuitoparecida–concordouMr.Cope.

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–Masnãodeixadesermaravilhoso–acrescentouajovem.O grupo começou a subida, acompanhado por dois guias beduínos.

Homens altos e ágeis, subiam com segurança, a apoiar na encostaescorregadia, sem amínima hesitação, as botas ferradas. As di iculdadesnãotardaram.TantoSarahcomooDr.Gerardsuportavambemaaltitude,masMr.CopeeLadyWestholmenãosesentiammuitobemeapobreMissPierce teve de ser praticamente transportada ao colo nos pontos maisperigosos,deolhos fechados, tezesverdeadaeumconstante lamentonoslábios:

–Nuncafuicapazdeolharparabaixo,degrandesaltitudes...A certaaltura,declarouquevoltavapara trás,masquandosevirou

para a descida o seu rosto tornou-se ainda mais verde e achou quecontinuaremfrenteeraaúnicasolução.

ODr.Gerardmostrou-seamável e tranquilizador. Seguiuatrásdela,com a bengala estendida entre a pobre mulher e o abismo, como umcorrimão,eMissPierceconfessouqueailusãodeexistirumabalaustradaaajudoumuitoadominarasvertigens.

Umbocadinhoofegante,SarahconversoucomodragomanoMahmud,queapesardasuacorpulêncianãomostravaindíciosdecansaço:

–Não costumam ter di iculdades em conduzir as pessoas cá acima?Pessoasidosas,sobretudo?

– Temos sempre di iculdades, sempre – confessou Mahmud,serenamente.

–Porquenãoasdissuadem?–Gostamdevir–respondeuohomem,comumencolherdeombros.

–Pagaramparavercoisasedesejamvê-las.Os guias beduínos são muito competentes, muito irmes de pés.

Desenvencilham-sesempre.Chegaram, inalmente, ao cume e Sarah respirou fundo. Embaixo e

emtodaavoltasóseviamrochascordesangue,numapaisagemestranhaeincrível,semparaleloemladonenhum.Ali,nopuroarmatinal,dir-se-iamumgrupodedeusesaadmirarummundoinferior.

O guiamostrou-lhes o sulco aberto na rocha, a seus pés, e explicouquesetratavado“LugardoSacrifício”.

Sarahafastou-sedosoutrosedoalcancedasfrasesfeitasquesaíamcom tanta volubilidade dos lábios do dragomano. Sentou-se numa pedra,passou as mãos pelos cabelos e olhou para baixo. Pouco depois, teveconsciênciadequeseencontravaalguémaseulado.

– Aqui podemos avaliar a propriedade da tentação do Demônio,

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citada no Novo Testamento. Satanás conduziu Nosso Senhor ao cume deumamontanha emostrou-Lhe omundo. “Dar-Te-ei todas estas coisas secaíresemeadorares.”Numlugaralto,émuitomaioratentaçãodeserumDeusdoPoderMaterial.

Sarah acenou a irmativamente, mas os seus pensamentos estavamtãolongequeomédicoaobservou,surpreendido.

–Estáareflectirprofundamenteemqualquercoisa–murmurou.– Estou, sim – confessou e olhou-o, perplexa. – Foi uma ideia

maravilhosa ter um lugar de sacri ício cá em cima.Às vezes penso que énecessário um sacri ício... Quero dizer, temos tendência para atribuirexcessivo valor à vida. Na realidade, amorte não é tão importante comopensamos.

–Sesãoessesosseussentimentos,MissKing,nãodeviaterescolhidoaprofissãoqueescolheu.Paranós,amorteé,edevesersempre,aInimiga.

– Sim, creio que tem razão. E, contudo, quantas vezes a morte nãoresolveriaumproblema!Poderiaatésignificarumavidamaischeia...

–“Éconvenienteparanósqueumhomemmorrapelopovo”–citouomédico,muitograve.

–Nãoqueriadizer...Calou-se,poisJeffersonCopeaproximava-se.– Este lugar é extraordinário – a irmou. – Verdadeiramente

extraordinário. Ainda bem que não perdi a oportunidade de o admirar.Confesso que, embora Sra. Boynton seja uma mulher excepcional e euadmire a coragem de que deu provas ao vir a Petra, viajar com elacomplica um pouco as coisas. A sua saúde é má e isso leva-a, talvez, aesqueceros sentimentosdasoutraspessoas,poisnemsequer lhepareceacudir a ideia de que a sua família talvez gostasse de participar emexcursões semela. Está tãohabituada a tê-los todos à sua volta quenempensa...–Mr.Copecalou-seeoseurostobondosoesimpáticopareceu,desúbito, preocupado e inquieto. – Sabem, tive conhecimento de uma coisaacercadaSra.Boyntonquemeperturboumuitíssimo...

SarahestavadenovoperdidanosseuspensamentoseavozdeMr.Cope soava-lhe agradavelmente aos ouvidos, como o murmúrio de umribeirodistante.

MasoDr.Gerardinteressou-se:–Sim?Quefoi?– A minha informadora foi uma senhora que conheci no hotel, em

Tiberíades.O assunto relaciona-se comuma criada que esteve ao serviçoda Sra. Boynton. Suponho que a moça teve... estava... – Mr. Cope olhou

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delicadamentepara Sarahebaixoua voz. – Ia terum ilho. Pareceque avelhota o descobriu, mas, aparentemente, a continuou a tratar combondade. De repente, porém, poucas semanas antes do nascimento dacriança,pôsacriadanarua.

O Dr. Gerard arqueou as sobrancelhas e limitou-se a exclamar,pensativo:

–Ah!–Aminha informadora garantiu-mequeo caso é autêntico.Não sei

se concordam comigo, mas tal procedimento parece-me cruel edesapiedado.Nãoconsigocompreender...

–Devia tentar – interrompeu-o omédico. –Tenho a certezade queesseincidenteproporcionougrandeprazeraSra.Boynton.

Oamericanofitou-o,indignado,eredarguiu,comênfase:–Não,doutor,nãopossoacreditarnisso.Éumaideiainconcebível.ODr.Gerardmurmurou,docemente:– "Por isso regressei e pensei em todas as opressões cometidas

debaixo do Sol. Havia lágrimas e choros daqueles que eram oprimidos enão tinham conforto; pois os seus opressores tinham poder e, por isso,ninguém ousava confortá-los. Depois louvei os mortos que já estavammortos,sim,maisdoqueosvivosqueaindasemantinhamnavida;sim,oque não é está melhor do quemorto ou vivo; pois ele ignora o mal queeternamentesefaznaTerra...”

Omédicocalou-se,ummomento,antesdeacrescentar:–Meucaro, tenhopassadoavidaaestudarasestranhascoisasque

se passam na mente humana. Não é aconselhável nem bené ico virar orostosóparaoladomaisbelodavida.Sobasdecênciaseasconvençõesdodia-a-dia oculta-se um imenso repositório de estranhas coisas; como, porexemplo, o gozo da crueldade pela crueldade.Mas descoberto esse gozo,há algo ainda mais profundo: o desejo imenso e confrangedor de serapreciado. Se esse desejo é negado, se mercê de uma personalidadedesagradável um ser humano é incapaz de obter a reação de quenecessita,volta-separaoutrosmétodos(têmdeosentir,eletemdecontar)e,daí,parainúmeraseestranhasperversões.Ohábitodacrueldade,comoqualquer outro hábito, pode ser cultivado, pode apoderar-se de umapessoa...

Mr.Copetossiu.–Creio,doutorGerard,queestáaexagerarumpouco...Oar,aqui,é

defato,maravilhoso...O americano afastou-se e oDr. Gerard sorriu e olhou de novo para

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Sarah, que estava de testa franzida e muito séria. Parecia, pensou omédico,umjovemjuizprestesaproferirumasentença...Virou-se,aoouvirMissPierceaproximar-se,hesitante.

– Vamos descer! – queixou-se. –MeuDeus, tenho a certeza de quenãosereicapaz,masosguiasgarantemqueadescidaéporoutrocaminhomuitomaisfácil...Esperoqueseja!

A descida efetuou-se pelo curso de uma queda de água. Embora aspedrassoltasfossemumapossívelfontedeperigoparaostornozelos,nãohavia panoramas estonteantes. O grupo chegou ao acampamento muitofatigado,mascomexcelenteapetiteparaumalmoçotardio.

Passavadasduashorasdatarde.A família Boynton estava sentada à roda da grandemesa, na tenda

dasrefeições,quaseaacabardecomer.LadyWestholmedirigiu-lhesuma frase amável, numaatitudemuito

condescendente:–Foiumamanhãmuitointeressante.Petraéumlugarmaravilhoso.Carol,aquemaspalavraspareciamdirigidas,lançouumolharrápido

àmãeemurmurou:–Poisé...poisé...–emergulhounosilêncioanterior.Consciente do dever cumprido, Lady Westholme dedicou a sua

atençãoaoalmoço.Enquantocomiam,osquatrofizeramplanosparaatarde.–Creioquedescansareiamaiorpartedatarde.–decidiuMissPierce.

–Éimportante,suponho,nãonosfatigarmosdemaisnumsódia.–Eudareiumpasseio,paraexplorarasimediações–disseSarah.–E

odoutor?–Ireicomvocê.Mrs.Boyntondeixoucairumacolher,ruidosamente,eestremeceram

todos.– Parece-me que seguirei o seu exemplo, Miss Pierce – disse Lady

Westholme.–Lereimeiahora,descansareipelomenosumahorae,depoisdisso,talvezdêumpequenopasseio.

Lentamente, ajudada por Lennox, Mrs. Boynton levantou-se. Ficouummomentoparada,antesdedecretar:

–Achoquedevemdartodosumpasseio,estatarde.Foramridículasasexpressõesdeespantodafamília.–Mas...eamãe?– Não preciso de nenhum de vocês. Gosto de passar um tempo

sozinha,comumlivro.Jinny,deite-seedurma.

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–Nãoestoucansada,mãe.Queroircomosoutros.–Estácansadaecomdordecabeça!Precisatercuidado.Vásedeitar

edurma.Euseioqueémelhorparavocê.–Eu... eu... – Coma cabeça inclinadapara trás, a jovem itou amãe,

numaatitudederebeldia,masdepois,poucoapouco,baixouosolhos.–Garotapateta!–murmurouMrs.Boynton.–Vaiparaatuatenda.Esaiu,seguidapelafamília.–MeuDeus,quegentetãoesquisita!–exclamouMissPierce.–Amãetemumacortãoestranha,tãovermelha...Coração,suponho.

Estecalornãolhedevefazernadabem.“Deixa-os em liberdade esta tarde”, pensou Sarah. “Deixa-os em

liberdade e sabe que Raymond quer estar comigo. Por quê? Será umaarmadilha?”

Depoisdealmoçarede ir à sua tendamudarde roupaeen iarumvestido leve, continuoupreocupada.Desde a véspera à noite queos seussentimentos por Raymond se tinham transformado numa paixão deternuraprotectora.Era,então,aquilooamor,aquelaangústiaemrelaçãoaoutrem,aqueledesejodeevitar,custasseoquecustasse,sofrimentoaoseramado?...

Sim, amava Raymond Boynton. Eram São Jorge e o dragão... aocontrário. Ela era o salvador e Raymond a vítima acorrentada. E Mrs.Boynton era o dragão. Um dragão cuja inesperada condescendênciapareciamuitosinistraaoespíritodesconfiadodajoveminglesa.

Eramumas três e umquarto quando Sarah se dirigiu para a tendagrande.LadyWestholmeestavasentadanumacadeirae,apesardocalor,continuava com a prática saia-calça de tweed. Tinha no colo um relatórioo icial.ODr.GerardconversavacomMissPierce,queseencontrava juntodasuatendaetinhanamãoumlivrointituladoÀProcuradoAmor–umaemocionante história de paixão e incompreensão, segundo anunciava acapa.

–Nãocreioquesejasensatodeitarmo-nos logoaseguiraoalmoço–explicavaMissPierce.–Porcausadadigestão,compreende?Estáfrescoeagradável à sombra da tenda grande... Meu Deus, acha sensato aquelasenhoraidosaedoenteestaralisentada,aosol?

Olharam todos para a plataforma rochosa, em frente. Mrs Boyntonestava sentada como estivera na véspera: um buda imóvel, à entrada dasuacaverna.Nãoseviamaisninguém,nas imediações.Todoopessoaldoacampamentodormia a sesta e ao longe, a seguir o contornodo vale, umpequenogrupocaminhavajunto.

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– Para variar, a boa mamã consente que se divirtam sem ela –comentouoDr.Gerard.–Algumanovapatifaria,talvez?

–Éexatamenteissoqueeupenso,também.–confessouSarah.–Comosomosdesconfiados!Venha,vamostercomeles.DeixaramMissPierceentregueàsuaemocionanteleituraepuseram-

seacaminho.Contornadaacurvadovale,alcançaramooutrogrupo,queseguia devagar. Pela primeira vez, os Boynton pareciam felizes edescuidados.

Abrevetrecho,todosriameconversavam.LennoxeNadine,CaroleRaymond,osorridenteMr.Copeeosúltimosachegar,GerardeSarah.

Reinavaumahilaridadefebril,comosetodosestivessemconscientesdeque gozavamumprazer roubado e, por isso, deviam tirar dele todo oproveito. Sarah e Raymond não se separaram do grupo: a jovem inglesacolocou-se ao lado de Carol e Lennox, o Dr. Gerard conversou comRaymond, logo atrás deles, e Nadine e Jefferson Cope afastaram-se umpouco.

Foiofrancêsquemquebrouogrupo.Haviaalgumtempoquepareciafalarcomdificuldadee,desúbito,parouedisse:

–Peçomildesculpas,mastenhodevoltarparatrás.–Aconteceualgumacoisa?–perguntou-lheSarah.–Febre.Tenhoestadoasenti-laaproximar-sedesdeoalmoço.Sarahobservou-ocomatençãoeinquiriu:–Malária?–Sim.Voltareipara tráse tomareiquinino.Esperoquenãosejaum

ataquegrave.Trata-sedeumaherançadeumvisitaaoCongo...–Querquevácomvocê?– Não, Miss King. Trouxe um estojo de medicamentos... Não se

preocupem,continuemopasseio.Retrocedeu,apressado,nadirecçãodoacampamento.Sarah seguiu-o com o olhar, indecisa, mas depois os seus olhos

encontraramosdeRaymond,sorriram-lheeofrancêsfoiesquecido.Durante algum tempo, os seis mantiveram-se unidos: Carol, Sarah,

Lennox,Cope,NadineeRaymond.Depois, quase sem darem por isso, Sarah e Raymond afastaram-se

dos outros. Subiram e contornaram rochas e, por im, encontraram umasombraedescansaram.

Passadosalgunsmomentos,Raymondperguntou:– Como se chama?O apelido sei que é King,mas desconheço o seu

nomepróprio.

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–Sarah.–Sarah.Possotratá-laassim?–Claroquepode.–Importa-sedemefalardesi,Sarah?Recostada na rocha, Sarah falou-lhe da sua vida no Yorkshire, dos

seuscãesedatiaqueacriara.Depois foiavezdeRaymond lhe falarumpoucodesconexamentedasuaprópriavida.

Ficarammuitotempocalados,demãosdadas,possuídosdeestranhocontentamento.

Porfim,Raymondestremeceuedisse:–Vou regressar...Não, comvocê,não.Quero ir sozinho,poispreciso

dizerefazerumacoisa.Depoisdisso,depoisdedemonstraramimpróprioquenão souumcobarde... entãonão terei vergonhade lhepedirquemeajude.Precisareideauxílio,compreende?Provavelmentetereidelhepedirdinheiroemprestado.

Sarahsorriu.–Agrada-mequesejarealista.Podecontarcomigo.–Mas,primeiro,tenhodeagirsozinho,tenhodefazerumacoisa.–Oquê?O rosto juvenil, tornou-se, de súbito, grave. Raymond Boynton

respondeu:–Tenhodeprovaraminhacoragem.Seráagoraoununca.Eafastou-se,bruscamente.Sarahencostou-seàrochaeviu-odesaparecer.Houveranaspalavrasdelealgoqueaalarmaravagamente.Parecera

tãotenso,tãodecidido...Pormomentos,arrependeu-sedenãoter idocomele, mas censurou-se logo por isso. Raymond quisera ir sozinho, quiseraexperimentaracoragemrecém-descoberta.Tinhaessedireito.Noentanto,Sarahpediuaoscéusqueessacoragemnãolhefaltasse...

OSolpunha-sequandoMissKingavistoudenovooacampamento.Aoaproximar-se, distinguiu mais uma vez o vulto de Mrs. Boynton, aindasentadaàentradadacaverna.Estremeceuumpouco, impressionadacomaquela igurasinistrae imóvel, estugouopassoechegouà tendagrande,quejáestavailuminada.

LadyWestholme tricotavaumacamisolaazul, coma lãpassadapelopescoço, e Miss Pierce bordava anêmicos amores-perfeitos num pano detabuleiro,enquantoeraelucidadaacercadaconvenientereformadasLeisdo Divórcio. Os criados entravam e saíam, a preparar o jantar, e osBoynton estavam sentados a ler ao fundo da tenda. Mahmud apareceu,

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gordo e digno – e também cheio de censuras. Tinham preparado umainteressante excursão, para depois do chá, mas estava toda a genteausentedoacampamento.Oprogramanãoforacumprido,perdera-seumavisitamuitoinstrutivaaobrasarquitectônicasnabateanas...

Sarah apressou-se a a irmarque se tinhamdivertido todosmuito, efoi à sua tenda, a imde se lavarparao jantar.Aovoltar, parou juntodatendadomédicoechamouemvozbaixa:

–DoutorGerard!Comonão obtivesse resposta, levantou a lona e espreitou.Omédico

estava imóvel, na cama. Sarah retirou-se, em silêncio, convencida de queeleestavaadormir.

Umcriadoapontouparaatendagrande,sinaldequeojantarestavapronto. Já se encontravam todos sentados à mesa, com excepção do Dr.GerardedeMrs.Boynton.Umcriadofoiinformaraúltimadequeojantarestavapronto.Poucodepois,veri icou-seumaleveagitação,noexterior.Oscriados irromperam pela tenda dentro,muito agitados, e foram falar, emárabe,comodragomano.

Mahmud olhou à sua volta, preocupado, e saiu. Impulsivamente,Sarahfoitercomele.

–Quesepassa?–perguntou-lhe.–Éasenhoraidosa.Abduldizqueestádoente...quenãosemexe.–Euvouver.Sarahestugouopasso,atrásdeMahmud,equandochegou juntoda

criatura sentada na cadeira tocou-lhe na mão inchada e procurou-lhe opulso.

Endireitou-se, muito pálida, e voltou à tenda grande. Parou ummomento à entrada, a olhar para o grupo do fundo da mesa, e quandofalouasuaprópriavozsoou-lhebruscaepouconatural:

–Lamento...–tentoudirigir-seaomaisvelho,aLennox.–Asuamãemorreu,MisterBoynton.

E, curiosamente, como se se encontrasse muito longe, observou osrostos daquelas cinco pessoas para quem as palavras que pronunciarasignificavamaliberdade...

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XI

OcoronelCarburysorriuaoseuconvidadoeergueuocopo:–Aocrime!Os olhos de Hercule Poirot brilharam, ante o acerto do brinde.

Chegara aAmã comuma carta de apresentação do coronelRace dirigidaao coronel Carbury. Este tivera interesse em conhecer aquela pessoamundialmente famosa,acujosdonsoseuvelhoamigoecolega tecera tãorasgados elogios. “Um primor de dedução psicológica como nunca viu!”,disseraRace,arespeitodasoluçãodoassassinatoShaitana.

– Mostrar-lhe-emos o mais que pudermos da região – prometeuCarbury,atorcerobigodemalhadoeirregular.

Eraumhomemforteedesmazelado,dealturamediana,cabeçameiocalvaeolhosazuisvagosebrandos.Nãopareciaumsoldado–nãoparecia,sequer, muito inteligente e, ao vê-lo, ninguém o imaginaria umdisciplinador.Noentanto,eraumaforçanaTransjordânia.

–Há,porexemplo,Jerash...Gostadessegênerodecoisas?–Estouinteressadoemtudo!– Sim, é essa a única maneira de encarar a vida. – concordou o

coronel. – Diga-me uma coisa, alguma vez notou que a sua pro issão temtendênciaparaoacompanhar,paraondequerquevá?

–Pardon?–Bem,poroutraspalavras:costuma iraumladoàesperadegozar

férias,deseafastardocrime,eencontrarcadáveresportodoolado?–Játemacontecido...sim,jáaconteceudiversasvezes.–Hum...–resmungouocoronelCarbury,epareceudistraído.– Neste momento, tenho um cadáver acerca do qual não me sinto

muitotranquilo–disse,porfim.–Deveras?–Éverdade.Aqui,emAmã.Umavelhaamericana...FoiaPetracoma

família, a viagem é exaustiva e tem estado um calor pouco próprio destaépocadoano...Avelhotasofriadocoração,aviagemfoimaisdi ícildoquesupusera,exigiu-lheumesforçomaior...eapagou-se!

–Aqui,emAmã?

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–Não,emPetra.Trouxeramhojeocorpo.–Ah!–Étudomuitonaturaleperfeitamentepossível...Noentanto...–Noentanto...?OcoronelCarburycoçouacalva.–Tenhoaimpressãodequeafamílialhetratoudasaúde.–Ah!Equeolevaapensarassim?Ocoronelnãorespondeudiretamente:–Parecequeeraumavelhadesagradável,quenãoseperdeunada.A

impressão geral é que a sua morte foi uma coisa boa. De qualquermaneira, serámuitodi ícil provar seja o que for, pois a família formaumblocoese forprecisomentirásemrebatesdeconsciência.Nãoqueremoscomplicaçõesnemaborrecimentos internacionais; omais fácil serádeixarpassar,tantomaisquenãotemosnadaemquenosapoiarmos.

Conheciemtemposummédicoquemedisseter,àsvezes,suspeitasquanto aos seus doentes, despachados para o outro mundo um poucoantesdahora.Naopiniãodele,porém,omelhorerafecharosolhos,anãoserquetivessealgumacoisabem irmeemquesebasear.Casocontrário,nãoseprovavanada,haviaescândalo,equem icavamalvistoeraopobredomédico,quequisera serhonesto.Temumacerta lógica,mas... –Coçououtravezacalva.–Souumhomemordenado.

AgravatadocoronelCarburyestava toda torcida,quasedebaixodaorelha esquerda, as suas peúgas estavam enroladas e o seu casaco nãoprimavapeloasseio.

MasHerculePoirotnãosorriudasuaobservação.Viaclaramentequea mentalidade do coronel era, de fato, ordenada, que ele catalogava osfatoseestudavacomtodoocuidadoasimpressõescolhidas.

– Sim, sou um homem ordenado – repetiu Carbury, com um gestovago.–Nãogostodedesarrumações.

Hercule Poirot acenou com a cabeça, gravemente. – Estava algummédicopresente?

–Estavamdois,emboraumseencontrassedecama,commalária.Ooutro, ou melhor, a outra, era uma jovem, acabada de sair da escolamédica. No entanto, pareceu-me perceber do o ício. Não houve nada deestranho quanto à morte. A velhota tinha o “relógio avariado, tomavaremédios para o coração havia algum tempo... e, portanto, a sua mortesúbitanãotemnadadesurpreendente.

–Entãoqueopreocupa,meuamigo?Ocoronelfitounodetetiveosolhosazuis,cheiodeembaraço.

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–JáouviufalardeumfrancêschamadoTheodoreGerard?–Semdúvida.Émuitofamoso,nasuaespecialidade.– Maluqueiras – con irmou Carbury. – Uma paixão pela mulher a

dias, aos quatro anos, leva um tipo a teimar que é o arcebispo deCantuária,aostrintaeoito...Nãocompreendonemnuncacompreendiporque,masessestiposexplicamtudomuitoconvincentemente.

– O doutor Gerard é uma autoridade em certas formas de neuroseprofunda–declarouPoirot,asorrir.–As...assuasopiniõesacercadoquesucedeuemPetrabaseiam-senessegênerodeargumento?

OcoronelCarburyabanouvigorosamenteacabeça.– Não, não! Nãome preocuparia, se fosse isso. Não quero com isto

dizer que não acredite que seja tudo verdade. Acontece apenas que sãocoisasquenãocompreendo,assimcomonãocompreendoquandoumdosmeus beduínos sai de um carro nomeio do deserto, apalpa o solo e dizonde se encontra, com uma margem de um ou dois quilômetros. Não émagia, mas parece. Não, a história do doutor Gerard é muito lógica ecompreensível, constade fatos simples. Creioque, se está interessado... Apropósito,estáinteressado?

–Estou,sim.– Óptimo. Telefonarei a pedir a Gerard que venha até cá e, assim,

poderáouvirahistóriacontadaporelepróprio.Quando o coronel mandou um dos seus homens tratar do assunto,

Poirotperguntou-lhe:–Emqueconsisteessafamília?–OapelidoéBoynton. Sãodois ilhos, umdeles casado (amulher é

uma moça simpática, pacata e sensata), e duas ilhas. Estas últimas sãoambasbonitas,emborademodototalmentediferente.Amaisnovapareceumbocadonervosa,masissotalvezsedevaaochoque.

– Boynton... – murmurou Poirot, de sobrancelhas arqueadas. – Écurioso...muitocurioso...

Carbury olhou-o interrogadoramente, mas como ele não dissessenada,prosseguiu:

– Salta aos olhos que amãe era uma peste. Tinhamde cuidar dela,pois estava inválida, e obrigava todos a dançar conforme tocava. Alémdisso,erasenhoradodinheiro.Nenhumdosfilhostinhaumpénideseu.

–Ah,muitointeressante!Esabe-secomodeixouodinheiro?–Eupróprio izessapergunta,comoarmaiscasualdestemundo...A

herançaserárepartidaigualmenteportodos.Poirotacenoucomacabeça,antesdeperguntar:

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–Pensaqueestãotodosimplicadosnocaso?–Nãosei.Aíéqueresidiráadi iculdade.Foiumesforçoconcentrado,

comum,ouabrilhante ideiadeumdosmembrosda família, apenas?Nãosei. Talvez, até, não se tenha passado nada. Em resumo, gostaria deconhecerasuaopiniãoprofissional.Olhe,aívemodoutorGerard.

O francêsentroue, enquantoapertavaamãoaocoronel, lançouumolharinteressadoaPoirot.

– Este é Monsieur Hercule Poirot – apresentou Carbury. – Foi-merecomendado e eu tenho estado a conversar com ele acerca daqueleassuntodePetra.

– Sim? – Gerard mediu Poirot de alto a baixo, rapidamente. – Estáinteressado?

HerculePoirotlevantoudramaticamenteasmãos,aoresponder:– Ai de nós, estamos sempre incuravelmente interessados em

assuntosrelacionadoscomanossaprofissão!–Semdúvida–admitiuomédico.– Uma bebida? – ofereceu o coronel e, juntando o gesto à palavra,

preparou um uísque com soda para o médico e estendeu a garrafa aPoirot,querecusoucomumgestodecabeça.

Ocoronelvoltouasentar-seechegouacadeiramaisparaafrente.–Então,ondeíamos?–perguntou.–Pelo quededuzi, o coronel Carburynão está convencido – disse o

detetiveaomédico.–Eaculpadissoéminha!Maslembre-se,coronel,dequepossoestar

enganado,dequepossoestarredondamenteenganado!–ConteosfatosaPoirot,doutor.O Dr. Gerard começou por recapitular resumidamente os

acontecimentosanterioresàviagemaPetra.FezumesboçodosváriosmembrosdafamíliaBoyntonedescreveuo

estadodetensãoemocionalemqueseencontravam.Poirotescutou-ocominteresse.

A seguir, o médico descreveu o seu primeiro dia em Petra e o seuregressoaoacampamento:

– Estava com um ataque forte de malária, do tipo cerebral, etencionavatratar-mecomumainjeçãointravenosadequinino.

Poirotacenoucomacabeça,aconfirmarquecompreendia.– A febre atacara-me com violência e cheguei à minha tenda a

cambalear. Ao princípio, não consegui encontrar o meu estojo demedicamentos, pois alguém o mudara de lugar. Depois, quando dei com

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ele,nãoencontreia seringa.Procurei-adurantealgumtempo,masacabeipordesistir. Tomei uma grandedosede quinino, por via oral, e atirei-meparacimadacama.

Gerardfezumapausa,antesdeprosseguir:– A morte da Sra. Boynton só foi descoberta depois do pôr do Sol.

Devido ao modo como estava sentada e ao apoio que a cadeira lheproporcionavaaocorpo,nãoocorreranenhumamudançanasuaposiçãoesó quando um dos criados a foi chamar para jantar, às seis e meia, deupeloquesepassara.

Descreveu,pormenorizadamente,asituaçãodacavernaeadistânciaaqueficavadatendagrande.

–Miss King, que émédica, examinou o corpo e, como sabia que euestava com febre, não me chamou. Aliás, não havia nada a fazer. Sra.Boyntonestavamorta...eamorteocorrerahaviajáalgumtempo.

–Haviaquantotempo,aocerto?–perguntouodetetive.–NãocreioqueMissKingprestassemuitaatençãoaessepormenor.

Nãopensou,naturalmente,quetivesseimportância.– Mas sabe-se, ao menos, quando foi vista viva pela última vez? –

insistiuPoirot.O coronelCarburypigarreoue consultouumdocumentode aspecto

oficial.–LadyWestholmeeMissPiercefalaramaSra.Boyntonpoucodepois

dasquatrodatarde.LennoxBoyntonfaloucomamãecercadasquatroemeia.Sra.LennoxBoyntonteveumalongaconversacomasogracercadecincominutos depois. Carol Boynton também falou com amãe e, emboranão saiba precisar as horas, deduz-se pelos depoimentos dos outros quedevetersidomaisoumenosàscincoedez.JeffersonCope,umamericanoamigoda família,viu-aadormir,aoregressaraoacampamentocomLadyWestholme eMiss Pierce, cerca das cinco e quarenta.Mas não lhe falou.RaymondBoynton,o ilhomaisnovo,parecetersidoaúltimapessoaavê-la viva. Ao regressar de um passeio, falou com ela por volta das cinco ecinquenta. O corpo foi descoberto às seis e meia, quando um criado foianunciaraSra.Boyntonqueojantarestavapronto.

–EntreomomentoemqueMisterRaymondBoyntonfaloucomelaeasseisemeianinguémseaproximoudasenhora?

–Quemeconste,não.–Maspodia-seteraproximadoalguém?–insistiuPoirot.–Nãocreio.Noperíodoentrepoucoantesdasseishoraseasseise

meia, os criados andaramatarefadosno acampamento ehouve turistas a

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entrareasairdastendas.Ninguémviufossequemfosseaproximar-sedavelhasenhora.

– Então Raymond Boynton foi, sem dúvida, a última pessoa a ver amãeviva?–inquiriuPoirot.

O Dr. Gerard e o coronel Carbury entreolharam-se. O segundotamborilounamesaedeclarou:

–Énessepontoquecomeçamascomplicações.Continue,Gerard.– Como já disse, Sarah King, ao examinar o corpo da Sra. Boynton,

não viu necessidade de determinar com exatidão a hora damorte. DisseapenasqueSra.Boyntonestavamorta “havia algum tempo”.Masquandonodia seguinte, por razões pessoais, tentei esclarecermelhor as coisas emencionei, casualmente, que Raymond Boynton vira a mãe viva poucoantes das seis horas, Miss King a irmou, para minha surpresa, ser issoimpossível,poisnessaalturaSra.Boyntonjádeviaestarmorta.

– Estranho, muito estranho – murmurou Poirot. – E que diz a issoMisterRaymondBoynton?

–Juraqueamãeestavaviva–declarouCarbury.–Foitercomelaedisse-lhe: “Já voltei. Espero que tenha passado uma tarde agradável.”Qualquercoisadestegênero.Amãerespondeu-lhe “bem,obrigada”,eelefoiparaasuatenda.

Poirotfranziuatesta,perplexo.– Curioso – repetiu. – Curiosíssimo. Diga-me, doutor, começava a

escurecer,poressaaltura?–OSolestavaapôr-se.–Curioso...Quandoviuocorpo,doutorGerard?–Sónodiaseguinte,àsnovehorasdamanhã.–Ecalculouaquehorasteriaocorridoamorte?Ofrancêsencolheuosombros.– É di ícil fazer uma ideia aproximada, passado tanto tempo. Há

sempreumamargemde várias horas. Se estivesse a prestar declaraçõessobjuramento,sópoderiadizerqueelanãoestavamortahaviamenosdedozehorasnemmaisdedezoito.Comovê,nãoajudanada.

–Continue,Gerard–pediuocoronel.–Diga-lheoresto.–Quandomelevantei,demanhã,encontreiaminhaseringa...Estava

atrás de uma caixa de frascos, na cômoda. – Inclinou-se para a frente eprosseguiu: – Pode dizer, se quiser, que eu não a vira, na véspera.Encontrava-me,defato,numestadolastimoso,atremerdefebredospésàcabeça, e, além disso, é frequente, mesmo no nosso estado normal,procurarmos uma coisa e não a encontrarmos, embora ela esteja

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praticamente à frentedosnossosolhos.Noentanto, a irmoquea seringanãoestavaláquandoaprocurei.

–Masaindahámais–disseCarbury.– Sim, há dois fatos que têm muito signi icado. No pulso da morta

havia uma marca semelhante às deixadas pela inserção de uma agulhahipodérmica...Afilhaalegaqueamãesepicoucomumalfinete...

–Quefilha?–interrompeuPoirot.–Carol.–Continue,peço-lhe.– Quanto ao segundo fato... Ao examinar o meu pequeno estojo de

medicamentos, reparei que a quantidade de digitoxina estava muitoreduzida.

–Digitoxinaéumvenenoparaocoração,nãoé?– É. Extrai-se daDigitalis purpureia , a dedaleira vulgar. Há quatro

princípios ativos: digitalina, digitonina, digitalein e digitoxina. De todos, adigitoxina é considerado o constituinte mais venenoso das folhas daDigitalis.DeacordocomasexperiênciasdeKopp,é seisadezvezesmaisforte do que a digitalina ou a digitalein. A sua existência está o icializadaemFrança,masaFarmacopeiaBritânicanãoaregistra.

–Eumagrandedosededigitoxina...ODr.Gerardconcluiu,emtommuitograve:–Umagrandedosededigitoxina lançada subitamentena circulação

sanguínea, por meio de uma injeção intravenosa, causaria morteinstantânea motivada por paralisia do coração. Calcula-se que quatromiligramaspodemserfataisaumadulto.

–MasSra.Boyntonsofriadocoração...–Sofria.Porsinal,atétomavaumremédioquecontinhaDigitalis.–Issoéinteressantíssimo–observouPoirot.–Querdizerque amortepodia ser atribuída aumadose excessiva

doseuprópriomedicamento?–perguntouocoronel.–Podia...masquerodizermaisdoqueisso. – Em certo sentido – explicou o Dr. Gerard – a Digitalis pode serconsiderada uma droga cumulativa. Além disso, quanto ao aspecto post-mortem, os princípios ativos da digitalina podem destruir a vida semdeixarvestígiosnítidosdoseuemprego.

Poirotacenoucomacabeça,devagar.– Inteligente,muito inteligente... Seriaquase impossívelprovaraum

júri, satisfatoriamente, o emprego da droga. Permitam que lhes diga,cavalheiros, que, se de fato se trata de um assassinato, é um assassinato

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muito inteligente! A seringa reposta no seu lugar, o fato de o venenoempregadofazerpartedoremédioqueavítimatomava...Aspossibilidadesde um erro ou de um acidente são enormíssimas. Sim, estamos peranteuma cabeça com miolos! Houve estudo, cuidado, gênio... – Calou-se, pormomentos, antes de acrescentar: – E, no entanto, há uma coisa que meintriga.

–Oquê?–Oroubodaseringa.–Foilevada–apressou-seaafirmaroDr.Gerard.–Levada...edevolvida?–Sim.–Estranho,muitoestranho.Foraisso,tudoseajustamuitobem...OcoronelCarburyolhou-ocomcuriosidadeeinquiriu:–Então?Qualéasuaopinião,comoperito?Foiassassinato?–Ummomento,ummomento!–pediuodetetive,demãolevantada.–

Aindanãochegamosaesseponto.Precisamosconsiderarcertasprovas...–Queprovas?Jáouviutudo...–Ah,masestasprovassoueu,HerculePoirot,queasdou!–Acenou

com a cabeça e sorriu, ao ver as caras espantadas dos outros. – Éengraçado,nãoé?Éengraçadoqueeu,aquemcontaramahistória,possa,em troca, apresentar-lhes um pormenor que ignoram. Trata-se doseguinte: uma noite, no SolomonHotel, fui à janela parame certi icar dequeestavafechada...

–Fechada...ouaberta?–perguntouocoronel.– Fechada – respondeu o detetive, com irmeza. – Como estava

aberta,resolvifechá-la.Mas,quandoaminhamãojáseguravaofecho,ouviuma voz falar: uma voz agradável, baixa e clara, com um tremor denervosismo. Disse para comigo que se tratava de uma voz quereconheceria, seavoltasseaouvir.E sabemoquediziaessavoz?Diziaoseguinte:“Compreendesqueelatemdesermorta,nãocompreendes?”Fezumapausa,antesdeprosseguir:–Nessaaltura,naturellement,nãopenseiqueafrasesereferisseamatarcarneesangue;penseiquesetratavadeum escritor ou de um dramaturgo. Mas agora não tenho a certeza. Oumelhor,tenhoacertezadequenãosetratavadisso.Feznovapausa,maisdemorada,antesdedizer:

– Messieurs, digo-lhes o seguinte: estou convencido de que taispalavras foram proferidas por um jovem que, mais tarde, vi na sala dohotel, um jovem que, a uma pergunta minha, me disseram chamar-seRaymondBoynton.

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XII

–RaymondBoyntondisseisso?–perguntou,surpreendido,ofrancês.–Parece-lheimprovável...psicologicamentefalando?–inquiriuPoirot,

emtomplácido.– Não, suponho que não. Mas iquei surpreendido. Não sei se me

compreende, mas iquei surpreendido precisamente porque... porqueRaymondBoyntonparecetãotalhadonamedidaparasersuspeito.

OcoronelCarburysuspirou.Aquelestiposcomamaniadapsicologia!– O que interessa é o seguinte: que vamos fazer? – perguntou, por

suavez.Gerardencolheuosombros.– Não vejo o que poderão fazer, pois as provas existentes são

inconcludentes. Talvez se convençam de que se praticou um assassinato,masserádifícilprová-lo.

– Compreendo – murmurou o coronel. – Suspeitamos de que secometeuumcrimee limitamo-nosarecostar-nosnacadeiraeacruzarosbraços.Nãogostodisso!–Erepetiu,comoemdesesperodecausa,oquejáantesafirmaraváriasvezes:–Souumhomemordenado.

– Bem sei, bem sei... – Poirot acenou com a cabeça,compreensivamente. – Gostaria de esclarecer este assunto, de saberde initivamente e exatamente o que aconteceu e como aconteceu. E osenhor,doutorGerard?Dissequenadasepodefazer,queasprovasserão,comcerteza,inconcludentes...Issotalvezsejaverdade,masresignar-se-áaquetudofiqueassim?

–Ela tinhaumavidaprecária – respondeuoDr.Gerard,devagar. –Dequalquermodo, deviamorrer embreve.Dentrodeuma semana... ummês...umano...

–Portanto,estáresignado?–insistiuPoirot.Gerardcontinuou:– Não há dúvida de que a sua morte foi..., como dizer?, ... bené ica

para a comunidade. Proporcionou liberdade à família, que terá agorapossibilidade de se desenvolver. Creio que são todos pessoas de bomcaráter e inteligentes, pessoas que poderão agora sermembros úteis da

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sociedade. Domeu ponto de vista, damorte da Sra. Boynton só resultoubem.

–Portanto,estáresignado!–teimouPoirot,pelaterceiravez.– Não! – O francês deu, de súbito, ummurro namesa. – Não estou

resignado, como diz. Omeu instinto incita-me a preservar a vida e não aapressar a morte. Portanto, embora omeu espírito conscienteme repitaque amorte destamulher foi uma coisa boa, omeu espírito inconscienterebela-se contra ela. Não está certo, cavalheiros, que um ser humanomorraantesdechegadooseutempodemorrer.

Poirot sorriue recostou-sena cadeira, satisfeito coma respostaqueexigiratãopacientemente.

–Elenãogostadeassassinato–comentouocoronelCarbury,semseemocionar.–Muitobem,eutambémnãogosto!–Levantou-seepreparouumuísquecomsoda;oscoposdosseusconvidadosaindaestavamcheios.–Vamos, agora, ao que interessa. – Pode-se fazer alguma coisa? Nãogostamosdeassassinato,poisnão,mas talvez tenhamosdeoengolir.Nãovaleráapenaperdermostempo,senãohouvernadaafazer.

– Qual é a sua opinião pro issional, Monsieur Poirot? – inquiriu omédico.–Osenhoréoespecialista.

Poirot levou o seu tempo a responder. Alinhoumetodicamente doisoutrêscinzeirosefezummontinhocomosfósforosconsumidos.

–CoronelCarbury, deseja saber, não é verdade, quemmatoua Sra.Boynton?(Seelafoimorta,evidentemente,enãomorreudemortenatural.)Interessa-lhesaberexatamentecomoequandoelafoimorta, istoé,todaaverdadeacercadoassunto?

–Sim,gostariadesabertudoisso.–Nãovejomotivonenhumparanãoosaber–redarguiuodetetive,a

falarmuitodevagar.O Dr. Gerard olhou-o com incredulidade e o coronel mostrou-se

medianamenteinteressado.– Não vê, hem? Isso é interessante. Como se propõe resolver o

problema?–Pormeioderaciocínioedeumametódicaescolhadasprovas.–Achobem–declarouocoronel.–E,também,peloestudodaspossibilidadespsicológicas.–OdoutorGerardacha,comcerteza,bem...Edepoisdisso,depoisde

ter joeirado as provas, raciocinado emergulhado na psicologia, acha quepodetirarumcoelhodochapéu?

– Ficaria muito surpreendido se não pudesse. – respondeu Poirot,

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calmamente.OcoronelCarburyobservou-oporcimadocopo.Momentaneamente,

os seus olhos deixaram de ser vagos, observaram e avaliaram. Por imresmungouentredentes,pousouocopoeinquiriu:

–Quediz,doutorGerard?– Admito que encaro com cepticismo a possibilidade de êxito. No

entanto,seiqueMonsieurPoirottemgrandesfaculdades...–Tenho-as,defato.–Ohomenzinhosorriumodestamente.Carburyvirouacabeçaetossiu,ePoirotcontinuou:–Aprimeiracoisaaesclareceréseestamosperanteumassassinato

de conluio, planejadoe executadopela famíliaBoynton comoum todo, ouseéobraapenasdeumdeles.Noúltimocaso,precisamosavaliarqualéomembrodafamíliacommaisprobabilidadesdetalcometimento.

– A esse respeito, podemos tomar em consideração aquilo que osenhor próprio nos disse. Devemos começar, suponho, por RaymondBoynton.

–Concordo–declarouodetetive.–Aspalavrasouvidaspormimeadiscrepância entre as declarações dele e a a irmação da jovem médicacolocam-no, sem dúvida, na primeira ila dos suspeitos. De acordo com ahistóriaporelecontada,foiaúltimapessoaaverSra.Boyntonviva.SarahKing,porém,rebateessaa irmação.Diga-me,doutor,existe...en im,sabeaquemerefiro...existe,digamos,umpoucodetendresseentreosdois?

– Sem dúvida nenhuma! – con irmou o médico, a acenar com acabeça.

–Ah!A jovemmédica éumamorenade cabelopenteadopara trás,grandesolhoscastanhoseumarmuitodecidido?

ODr.Gerardconfirmou,surpreendido:–Sim,essadescriçãoassenta-lheperfeitamente!– Creio que a vi no Solomon Hotel. Ela falou com o tal Raymond

Boynton e ele icou especado, a sonhar em pé e a impedir a saída doelevador.Tivededizer“Pardon”trêsvezesantesdeeleouviresedesviar.– Poirot pensou, uns instantes, antes de prosseguir: – Portanto, paracomeçar,aceitamoscomcertasreservasmentaiso testemunhomédicodeMissSarahKing.Elaéparte interessada.Diga-me,doutorGerard,parece-lhequeRaymondBoyntonpossuitemperamentoquelhepermitacometerfacilmenteumassassinato?

– Refere-se a um assassinato deliberado, planejado e premeditado?Parece-mepossível...massóemcondiçõesdefortetensãoemocional.

–Essascondiçõesexistiam?

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–Semdúvida.Estaviagemaoestrangeiroaumentouatensãonervosaementalemqueosmembrosdafamíliaviviam.Ocontrasteentresuavidae a das outras pessoas icou mais aparente, e no caso de RaymondBoynton...

–Sim?–Houveacomplicaçãoadicionaldesesentir fortementeatraídopor

SarahKing.–Eissolhedariaummotivosuplementar,umnovoestímulo?–Exatamente.OcoronelCarburytossiuemeteu-senaconversa:– Deem-me licença, por favor. Essa frase que o senhor ouviu:

“Compreendesqueelatemdesermorta,nãocompreendes?",devetersidoditaaalguém.

– Boa observação – elogiou o detetive. – Esquecera-me dessepormenor. Sim, com quem estava RaymondBoynton a falar? Sem dúvidacom uma pessoa da sua família. Mas qual? Pode-nos dizer alguma coisaacercadoestadomentaldosoutrosmembrosdafamília,doutor?

Gerardrespondeusemhesitar:– Suponho que Carol Boynton se encontrava num estado muito

semelhanteaodeRaymond,umestadoderebeliãoacompanhadodegraveagitação nervosa,mas, no seu caso, sem a agravante de um fator sexual.Lennox Boynton já ultrapassara a fase da revolta, estava mergulhadonumagrandeapatiaecreioquetinhadi iculdadeemseconcentrar.Comoreaçãoaoqueocercava,refugiava-secadavezmaisdentrodesipróprio.Transformara-se,indubitavelmente,numintrovertido.

–Eamulher?–Amulher,emborafatigadae infeliz,nãodava indíciosdequalquer

con lito mental. Suponho que se encontrava hesitante, à beira de umadecisão.

–Quedecisão?–Deixarounãoomarido.Omédico repetiua conversaque tiveracom JeffersonCopeePoirot

acenoucomacabeça.–Eacercadapequenamaisnova?Chama-seGinevra,nãoé?Ofrancêsrespondeucomumaexpressãoenumtommuitograve:– Acho que, mentalmente, se encontra num estado gravíssimo. Já

começou a evidenciar sintomas de esquizofrenia. Incapaz de suportar asupressão da sua vida, refugia-se num mundo de fantasia e tem jáacentuadas manias de perseguição: diz ser uma personagem real em

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perigo,rodeadadeinimigos...Ocostume.–Eissoé...perigoso?–Muitoperigoso.Éo começodoque,não raro, se transformanuma

mania homicida. O doente não mata pelo prazer de matar, mas comoautodefesa, mata para não ser morto. Do seu ponto de vista, talprocedimentoémuitíssimoracional.

–Pensa,então,queGinevraBoyntonpodiaterassassinadoamãe?– Podia, mas duvido que possuísse os conhecimentos ou a astúcia

necessáriosparamatardestaforma.Aastúciadogênerodemaniadequepadeceégeralmentemuitosimpleseevidente.Alémdisso, tenhoquaseacertezadequeelaescolheriaummétodomaisespetacular.

–Mas,apesardetudo,éumapossibilidade?–insistiuPoirot.–É.– E depois, depois de cometido o ato? Pensa que o resto da família

sabequemfoi?– Sabe! – a irmou, inesperadamente, o coronel Carbury. – Nunca

encontrei nenhumgrupodepessoas com sinais tão evidentesde ter algoqueesconder.

–Obrigá-los-emosadizer-nosoqueé!–declarouodetetive.–Terceirograu?–perguntouCarbury,desobrancelhasarqueadas.–Não. Simples conversação. Como sabem, de umamaneira geral as

pessoasdizemaverdade.Edizemaverdadeporqueémais fácil, porqueexige uma tensão menor às faculdades inventivas! Pode-se dizer umamentira,ouduasmentiras,ou trêsmentiras,ouatéquatromentiras;masnãosepodementirsempre!Portanto,averdadeémaissimples.

– Tem uma certa lógica – admitiu Carbury. – Disse que falava comeles,nãodisse?Issosignificaqueestádispostoaaceitarocaso?

–Sejamosclaros,omaisclarospossível–respondeuPoirot.–Oqueosenhorme pede e o que eu tenciono proporcionar-lhe é a verdade. Masnão esqueçaque,mesmoquandoestivermosdeposseda verdade, talveznão disponhamos de provas. Isto é, de provas susceptíveis de seremaceitesnumtribunal.Compreende?

– Perfeitamente. O senhor elucida-me acerca do que na realidadesucedeuedepoiscompetir-me-ádecidirseépossívelempreenderalgumaação, tendo em conta os aspectos internacionais. De qualquermaneira, oassuntoficaráclaro,nãohaveráconfusões.

Poirotsorriu.–Maisumacoisa–prosseguiuocoronel.–Não lhepossodarmuito

tempo,poisser-me-áimpossíveldemorarestagenteindefinidamente.

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–Poderádemorá-losvinteequatrohoras.Saberáaverdadeamanhãànoite.

– Estámuito cheio de con iança, não está? – perguntou o coronel, afitá-lo.

–Tenhoconsciênciadasminhasaptidões.Constrangido pela atitude tão pouco britânica do detetive, o coronel

Carburydesviouoolhareafagouobigoderebelde.–Bem,écomvocê–murmurou.

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XIII

Sarah King itou perscrutadoramente Hercule Poirot. Reparou nacabeçaovoide, nodescomunalbigode,no aspectodedandyena suspeitacorpretadocabelo.Nosseusolhosinsinuou-seumaexpressãodedúvida.

–Então,mademoiselle,estásatisfeita?Sarah corou, ao ver o seu olhar irônico e divertido, e murmurou,

atrapalhada:–Peçodesculpa.– Du tout!Mediu-me de alto a baixo, como se costuma dizer, não é

verdade?Ajovemesboçouumsorriso.–Bem,pelomenospôdepagar-menamesmamoeda.–Semdúvida.Nãodesperdiceiessaoportunidade.Saraholhou-odenovo,depéatrás.Haviaqualquercoisanoseutom...

Mas Poirot estava a retorcer o bigode, complacentemente, e a jovempensou (pela segunda vez): “O indivíduo é um charlatão!” Recuperada aconfiançaemsiprópria,endireitou-semelhornacadeiraeobservou:

–Nãocreiocompreenderoobjetivodestaentrevista.–ObomdoutorGerardnãolheexplicou?–TambémnãocompreendoodoutorGerard.–respondeuSarah,de

testafranzida.–Eleparecepensar...Que existe algo podre no reino da Dinamarca. – citou Poirot. –

ConheçoovossoShakespeare.Sarahacenoucomamão,adespedirShakespeare,eperguntou:–Aquevem,aocerto,tudoisto?–Ehbien,desejamosdescobriraverdadedestecaso,nãodesejamos?–Estáareferir-seàmortedaSra.Boynton?–Estou.– Não estarão a levantar uma lebre que não existe? O senhor é

especialista,portantoénaturalque...–Portantoénaturalquesuspeitedaexistênciadecrimesempreque

mesurgeumpretexto,nãoéisso?–Bem...talvez.

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–NãotemquaisquerdúvidasacercadamortedaSra.Boynton?Sarahencolheuosombros,antesderesponder:– Se tivesse ido a Petra, Monsieur Poirot, compreenderia que a

viagem é extenuante para uma mulher idosa e cujo estado cardíacodeixavamuitoadesejar.

–Parece-lheperfeitamentelógicooquesucedeu?–Comcerteza.NãocompreendoaatitudedodoutorGerard.Elenem

sequer deu por nada, pois estava de cama, com febre. Submeter-me-ia,naturalmente,aosseusconhecimentosmédicossuperiores,masnestecasoelenãotevenadaemquesebasear.Suponhoque,sequiserem,seomeuveredicto não os convencer, poderão proceder a uma autópsia, emJerusalém.

Poirotpensouummomento,antesdedizer:– Há um fato que desconhece,Miss King, pois o doutor Gerard não

lhorevelou.–Quefato?– Desapareceu do estojo de medicamentos do doutor Gerard certa

quantidadedeumadrogachamadadigitoxina.– Ah! – Sarah avaliou, ato contínuo, a nova faceta do caso,mas não

deixoudeperguntar:–OdoutorGerardtemacertezaabsoluta?– Como deve saber, mademoiselle, um médico tem, geralmente,

cuidadoaoprestardeclarações,sobretudodestegênero.– Sim, evidentemente.Mas o doutor Gerard estava doente, com um

ataquedemalária.–Tambéméverdade.–Elefazalgumaideiadequandolheterãotiradoadroga?– Teve ocasião de mexer no estojo dos medicamentos na noite em

que chegou a Petra, pois precisou de uns comprimidos para as dores decabeça. Quando namanhã seguinte arrumou os comprimidos e fechou oestojo, não notou nenhuma falta, tem quase a certeza de que todas asdrogasestavamintatas.

–Quase...–Sim,háumadúvida–admitiuPoirot,comumencolherdeombros.–

Háadúvidaquequalquerhomemhonestosentiria.– Compreendo. Descon iamos sempre das pessoas excessivamente

seguraseconvencidas.Mesmoassim,MonsieurPoirot, issoémuitopouco.Parece-me...

Poirotacabou,maisumavez,porela:–Parece-lhedesaconselhávelumainvestigaçãodaminhaparte.

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–Francamente,parece–con irmou,aolhá-lodefrente.–Nãohaveráumpoucodedeformaçãoprofissional...

Poirotinterrompeu-a,asorrir:–Avidaprivadadeumafamíliadevassadaetranstornadaparaque

HerculePoirotsepossadivertirabrincaraosdetetives,hem?–Nãodesejoserofensiva...masnãoserá,emparte,isso?–Está,então,doladodafamíliaBoynton,mademoiselle?– Creio que estou. Já sofrerammuito... não deviam ser obrigados a

sofrermais.– A maman era desagradável, autoritária, antipática e está

decididamentemelhormortadoqueestariaviva?– Postas as coisas nesse pé... – Sarah calou-se, corou e concluiu: –

Concordoquenãodevemostomaressesfatoresemconsideração.–Mas,mesmoassim,tomamo-los! Istoé,amademoiselletoma-os.Eu

não! Amim tantome faz que a vítima seja um dos santos do bom Deuscomo um monstro de infâmia. Só um fator me interessa: foi tirada umavida.Sempredisseerepitoquenãoaprovooassassinato.

–Assassinato!–Sarahcontevebruscamentearespiração.–Masqueprovastemdisso?Asmaisfrágeispossíveis!OprópriodoutorGerardnãopodeteracerteza!

–Masháoutrosindícios,mademoiselle–redarguiuodetetive,calmoeimperturbável.

–Quais?–Amarcadeixadaporumainjeçãonopulsodamorta.Emais,ainda:

certas palavras que eu ouvi em Jerusalém, numanoite calma, quando fuifechar a janela do meu quarto. Quer que lhe diga que palavras foramessas, Miss King? Eu digo. Ouvi Mister Raymond Boynton dizer:“Compreendesqueelatemdesermorta,nãocompreendes?”

Sarahempalideceueperguntou:–Osenhorouviuisso?–Ouvi.Deolhosfixos,ajovemmurmurou:–Etinhadeserlogoosenhoraouvi-lo!– É verdade, tinha de ser logo eu. São coisas que acontecem.

CompreendeagoraPorqueconsideronecessáriaumainvestigação?–Suponhoquetemrazão.–Emeajudará?–Comcerteza.–AvozdeSarahnãoexprimiaqualqueremoçãoenos

seusolhossóhaviafrieza.

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–Obrigado,mademoiselle.Agorapeço-lhequemeconte,porpalavrassuas,exatamenteoquesucedeunodiaemquestão.

–Deixever...DemanhãparticipeinumaexcursãoaquenenhumdosBoynton compareceu. Vi-os ao almoço. Sra. Boynton parecia mais bem-dispostadoqueerahabitual.

–Consta-mequenãocostumavaseramável.–Muitolongedisso!A jovem descreveu, a seguir, o modo como a velha dispensara a

famíliadelheficarafazercompanhia.–Issotambémnãoerahabitual?–Não.Geralmentenãoosdeixavaafastarem-sedela.–Parece-lhequeseterásentido,desúbito,repesa,queteveaquiloa

quesechamaumbommomento?–Não,nãomeparece–respondeuSarah,semhesitar.–Quelhepareceu,então,estarnaorigemdesseprocedimento?– Fiquei intrigada e pensei que se devia tratar de uma espécie de

jogodegato-e-rato.–Sequisessefazerofavordesermaisexplícita,mademoiselle.–Um gato gosta de largar um rato, para depois o voltar a apanhar.

Sra.Boyntonpossuíaessetipodementalidade.Pensei,porisso,queestavaaengendrarumanovaperfídia.

–Edepois,quesucedeu?–OsBoyntonpartiram...–Todos?–Não.Apequenamaisnova,Ginevra,ficou.mãeordenou-lhequedescansasse.–Eeladesejavadescansar?–Não,masissonãointeressava.Fezoquelhemandaram.Osoutros

partirameeueodoutorGerardfomostercomeles...–Quandofoiisso?–Cercadastrêsemeia.–Ondeestava,então,Sra.Boynton?–Nadine,Sra.Lennox,sentara-anacadeira,àentradadacaverna.–Prossiga.–Quandocontornamosacurva,odoutorGerardeeualcançamosos

outros. Seguimos juntos,mas passado umbocado o doutor Gerard voltoupara trás. Haviamomentos que parecia esquisito e eu percebi que tinhafebre.Quisvoltarcomele,masnãomoconsentiu.

–Quehoraseram,então?

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–Umasquatro,suponho.–Eosrestantes?–Continuamosopasseio.–Todosjuntos?– Ao princípio, sim. Depois separámo-nos. – Sarah começou a falar

mais depressa, como se adivinhasse a pergunta seguinte: – NadineBoyntoneMisterCopeforamparaumladoeCarol,Lennox,Raymondeeuparaoutro.

–Econtinuaramassim?– Bem... não. Raymond e eu separámo-nos dos outros. Sentámo-nos

numarocha, a admirarapaisagem,atéqueele regressoueeumedeixeiicarmaisumbocado.Eramquasecincoemeiaquandoviashoraseacheimelhorregressar,também.Chegueiaoacampamentoàsseishoras.

–PassouporSra.Boynton,aoregressar?– Reparei que ainda se encontrava na sua cadeira, na plataforma

rochosa.–Nãolhepareceuestranhoqueelanãosetivessemexido?– Não. Já a vira ali sentada, da mesma maneira, na noite anterior,

quandoonossogrupochegara.–Compreendo.Continue.–Fuiàtendagrande,ondeseencontravamtodososoutros,menoso

doutorGerard.Aseguirfui-melavarevoltei.Quandocomeçaramaservirojantar,umdoscriadosfoichamarSra.Boynton,masvoltouacorreredisseque ela estava doente. Fui imediatamente vê-la. Continuava sentada nacadeira,masmallhetoqueicompreendiqueestavamorta.

– Não teve quaisquer dúvidas quanto ao fato de a sua morte sernatural?

– Não. Ouvira dizer que sofria do coração, embora não tivessemmencionadonenhumadoençaespecífica.

–Pensouqueelamorrerasentadanacadeira?–Pensei.–Sempedirauxílio?– Sim. Acontece assim, às vezes. Podia, até, ter morrido enquanto

dormia,poiseranaturalque tivessepassadopelo sono.Noacampamentodormiram todos a sesta, durante a maior parte da tarde, e ninguém aouviria,mesmoquepedisseauxílio,anãoserquegritassemuitoalto.

–Calculouhaviaquantotempoelamorrera?–Bem,confessoquenãopenseimuitonisso.Eraevidente,noentanto,

quemorrerahaviaalgumtempo.

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–Comodefineesse“algumtempo”?–Bem...maisdeumahora.Mastambémpodiasermuitomaisdoque

isso.Are lexãodocalordarochanãodeixariaoseucorpoarrefecermuitodepressa.

–Mais de uma hora? Sabe queMister RaymondBoynton falou comelapoucomaisdemeiahoraantesdeamademoiselleaencontrarmortaequeelaestava,então,viva?

Sarahbaixouosolhos,masabanouacabeçaerespondeu:–Deve-seterenganado,deveterfaladocomelamaiscedo.–Não,mademoiselle,nãofoimaiscedo.Sarahfitou-oePoirotnotou,maisumavez,otraçofirmedasuaboca.– Sou nova e não tenhomuita experiência de lidar com cadáveres,

masseiosu icienteparateracertezadeumacoisa:Sra.Boyntonmorrerahaviapelomenosumahoraquandoexamineioseucorpo!

–Essa é a suahistória, à qual semanterá irme. – comentouPoirot,inesperadamente.

–Éaverdade.–Poderá,então,explicarporquemotivoMisterBoyntondissequea

mãeestavavivaquandonarealidadeelaestavamorta?–Nãofaçoamínimaideia.Provavelmentetêmtodosumanoçãomuito

vagadotempo.Constituemumafamíliamuitonervosa.–Quantasvezesfaloucomeles,mademoiselle?Sarahfranziuatesta,apensar.–Não tenhoacerteza...Falei comRaymondBoyntonnocorredordo

comboio, quando vínhamos de Jerusalém; falei duas vezes com CarolBoynton, uma na Mesquita de Omar e outra na noite desse dia, no meuquarto;faleicomSra.LennoxBoyntonnamanhãseguinte...Efoitudo,atéàtardeemqueSra.Boyntonmorreueemquepasseamostodosjuntos.

–NãotevenenhumaconversacomaprópriaSra.Boynton?Sarahcorou,constrangida.– Tive. Troquei algumas palavras com ela, no dia em que partiu de

Jerusalém.–Econfessou,atrapalhada:–Paraserfranca,armeiemidiota.– Sim? – A interrogação era tão vincada que, embora contrafeita,

Sarahrelatouaconversa.Poirot pareceu interessado e interrogou-a com minúcia a esse

respeito.–AmentalidadedaSra.Boyntonémuito importante,nestecaso.Ea

mademoiselle é uma pessoa de fora, uma observadora sem ideiaspreconcebidas.Éporissoqueasuaopiniãoacercadelaserevestedetanto

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significado.Sarah não respondeu. Ainda corava e se sentia mal quando

recordavaoquedisseraàvelhaSra.Boynton.– Obrigado, mademoiselle. Agora conversarei com as outras

testemunhas.Sarahlevantou-se.–Desculpe,MonsieurPoirot,massemepermiteumasugestão...–Semdúvida,semdúvida!–Porquenãoadia tudo istoatéefetuaremaautópsiae saber seas

suassuspeitassãoounãojustificadas?Poirotlevantouamão,numgestopomposo,eredarguiu:–ÉesteométododeHerculePoirot.Sarahcerrouoslábioscomforçaesaiu.

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XIV

Lady Westholme entrou na sala com a segurança de umtransatlânticoaentrarnadoca.

Miss Amabel Pierce, um barquito sem importância, entrou na suaesteira e sentou-se numa cadeira mais modesta e um pouco para aretaguarda.

– Claro que terei muito prazer em o auxiliar de todos os modospossíveis – a irmou Lady Westholme. – Sempre achei que, em assuntosdestanatureza,temosodevercívico...

DepoisdeLadyWestholmedissertardurantealgunsminutosacercadosdeverescívicos,Poirotconseguiufazerumapergunta.

– Lembro-me perfeitamente da tarde em questão – respondeu-lhe,sem hesitar, a política inglesa. – Miss Pierce e eu faremos tudo quantoestiveraonossoalcanceparaoajudarmos.

– Oh, com certeza! – exclamouMiss Pierce, quase em êxtase. – Tãotrágico!MorreuenquantooDiaboesfregouumolho...

–Agradeciaquemedissessemexatamenteoquesucedeu.–Poissim–pronti icou-seLadyWestholme.–Depoisdealmoçarmos,

resolvi dormir uma pequena sesta, pois a excursão da manhã fora umpoucofatigante.Nãoqueestivesserealmentefatigada,poisnãoseioqueéo cansaço. Em funções públicas, seja como for que nos sintamos, temostantasvezes...

Maisumavez,Poirotinsinuouumapergunta.– Como disse, resolvi dormir uma sesta. Miss Pierce concordou

comigo.–Oh, sim! – con irmouMiss Pierce. – Estava terrivelmente cansada,

depois do passeio damanhã. Foi uma subida perigosa emuito exaustiva,apesardeinteressante.NãosoutãofortecomoLadyWestholme...

–Portanto,depoisdoalmoço, cadaumadassenhoras foiparaa suatenda?

–Sim.–Sra.Boyntonestavasentadaàentradadasuacaverna?–Anorainstalou-alá,antesdepartir.

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–Podiamvê-laambas?– Oh, sim! – a irmou Miss Pierce. – Ela estava defronte de nós,

emboraacertadistânciaeumpoucoacima.LadyWestholmeesclareceu:– As cavernas davampara uma plataforma, abaixo da qual icavam

algumastendas.Depoishaviaumregatoedooutroladodoregato icavaatenda grande e algumas tendas mais. As nossas, a de Miss Pierce e aminha, icavampertodatendagrande,adeladoladodireitoeaminhadolado esquerdo. A abertura das nossas tendas icava virada para aplataforma,mascomalgumadistânciadepermeio.

–Cercadecentoeoitentametros,segundomeconsta?–Talvez.– Tenho aqui uma planta, elaborada com a ajuda do dragomano,

Mahmud.LadyWestholmeobservouqueprovavelmenteestavaerrada:–Esse homemémuito pouco exato. Confrontei as suas informações

comomeuBaedekereencontreivárioserroscrassos.–Segundoaminhaplanta–prosseguiuPoirot-,acavernacontíguaà

da Sra. Boynton era ocupada pelo seu ilho Lennox e pelamulher deste.Raymond,CaroleGinevraBoyntontinhamtendasembaixo,masmaisparaadireita,narealidadequasedefrontedatendagrande.ÀdireitadatendadeGinevraBoynton icavaadodoutorGerardeaoladodadesteadeMissKing. Do outro lado (perto da tenda grande e à esquerda), icava a suatenda e a de Mister Cope. A de Miss Pierce, como mencionou, icava àdireitadatendagrande.Estácerto?

Lady Westholme admitiu, com cara de poucos amigos, que pareciaestarcerto.

–Obrigado.Queiracontinuar.Ainglesasorriuecontinuou:–Cercadeumquartoparaasquatro,fuiàtendadeMissPierce,para

saber se já estava acordada e lhe apetecia dar um passeio. Encontrei-asentadaàentrada,aler.

Combinamos que partiríamos dali a meia hora, quando o solestivessemenosforte.Regresseiàminhatendaelidurantecercadevintee cinco minutos. Depois fui ter com Miss Pierce e partimos. Noacampamento parecia estar toda a gente a dormir, pois não se vianinguém. Ao reparar em Sra. Boynton, sentada sozinha, sugeri que lheperguntássemossedesejavaalgumacoisa,antesdepartirmos.

– É verdade – murmurou Miss Pierce. – Foi uma ideia muito

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simpáticadasuaparte.–Acheiqueerameudever.–E,afinal,elafoitãogrosseira!Poirotarqueouassobrancelhas,interrogador.– O nosso caminho passava sob a plataforma – explicou Lady

Westholme – e eu disse a Sra. Boynton que íamos dar um passeio eperguntei-lhe se desejava que lhe izéssemos alguma coisa, antes departirmos.Sabequalfoiaúnicarespostaqueelanosdeu,MonsieurPoirot?Umrosnido!Olhou-noscomosefôssemos...comosefôssemoslixo!

–Umagrandemáeducação!–afirmou,corada,MissPierce.–Confessoque,nessemomento,fizumaobservaçãopoucogenerosa...

–disseLadyWestholme,ecoroutambémumpouco.–Qualfoiessaobservação?–DisseaMissPiercequetalvezelativessebebido!Naverdade,asua

atitude tinha sido tão peculiar, desde o princípio... En im, pensei que abebidatalvezfosseumajustificação.

Habilmente,Poirotdesviouaconversadopormenordabebida.–A atitudedela foramuitopeculiar, nodia emquestão?Ao almoço,

porexemplo?– Não... – respondeu LadyWestholme, pensativa. – Creio que a sua

atitudefoirazoavelmentenormal...paraumaamericanadaqueletipo,claro.–Foimuitogrosseiracomocriado–lembrouMissPierce.– Ah, sim! Pareceu muito aborrecida com ele. Claro que é muito

irritante lidar comcriadosquenão compreendemumapalavrade inglês,masquandoviajamostemosdedardescontoacertascoisas.

–Dequecriadosetratou?– Um dos beduínos de serviço no acampamento. Foi ter com ela...

CreioqueSra.Boyntonodevetermandadobuscarqualquercoisaeelelhelevououtra.Nãoseioquesepassou,sóseiqueelapareceumuitoirritada.Opobrehomemafastou-seomaisdepressaquepôde,maselaameaçou-ocomabengalaegritou.

–Gritouoquê?–Adistâncianãonosdeixououvir.Pelomenoseunãoouvinada.Ea

senhora,MissPierce?–Tambémnão.Suponhoqueelaomandarabuscarqualquercoisaà

tendada ilhamaisnova... ouqueestava irritadacomelepor terentradonatendadapequena...Nãocompreendibem.

–Comoeraele?MissPierceabanouacabeça,demodovago.

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– Francamente, não sei. A distância era muita e estes árabesparecem-metodosiguais.

–Eraumhomemdealturasuperioràmédiaexplicoualadyinglesa–e usava na cabeça o ornamento nativo. Vestia uns calções muito rotos eremendados(umavergonha!)etinhaasgrevasmalenroladas.

–Poderiaindicaressecriado,entreosoutros?– Duvido. Não lhe vimos a cara, devido à distância, e, como Miss

Piercedisse,estesárabesparecemtodosiguais.– Que terá ele feito para irritar tanto Sra. Boynton? – murmurou

Poirot,pensativo.– As vezes esgotam a paciência a uma pessoa – sentenciou Lady

Westholme.–Umdeleslevou-meossapatos,apesardeeulheterdito(porgestos,claros!)quepreferialimpá-lospessoalmente.

– Também faço sempre isso – disse Poirot, pormomentos distraídodo assunto em causa. – Trago sempre comigo omaterial necessário paralimparossapatoseumpanodopó.

–Tambémeu.–LadyWestholmepareceuperfeitamentehumana,aofazertalafirmação.

–Oscriadosárabesnãolimpamopóaosobjetosdecadaum...–Tem razão! Eunãoposso tolerar falta de limpeza!Asmoscas, nos

bazares...Oh,éterrível!–Muito bem,muito bem –murmurou Poirot, com um ar um pouco

culpado.–EmbrevepoderemosperguntaraessehomemquefezeleparairritarSra.Boynton.Continuecomasuahistória,sim?

–Começamosapasseardevagare,umpoucoadiante,encontramoso doutor Gerard, que vinha a cambalear e pareciamuito doente. Vi logoquetinhafebre.

–Tremiatodo–acrescentouMissPierce.–Compreendiquese tratavadeumataquedemaláriaeofereci-me

para o acompanhar e arranjar-lhe quinino, mas ele disse que estavaprevenidocomomedicamento.

– Pobre homem! – lamentou Miss Pierce. – Parece-me sempre tãotristeverummédicodoente!

–Continuamosapasseareporfimsentámo-nosnumarocha.–Euestavatãocansadadepoisdoesforçodamanhã...detodaaquela

subida...–Nãoseioqueéocansaço–repetiuLadyWestholme,comfirmeza.–

Mas não valia a pena irmos mais longe. Donde estávamos, podíamosadmirarbemtodoopanoramacircundante...

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–Tãoromântico!Umacampamentolevantadonomeiodeumdesertoderochasvermelhas!

–Umacampamentoquepodiasermuitomelhordirigidodoqueé!–sentenciouLadyWestholme, comas grandesnarinas frementes. –Hei-defalardoassuntoaCastle.Duvidomuitoque fervame iltremaáguaquesebebe...Hei-defrisaressepormenor.

Poirottossiuedesviouoassuntodaáguaquesebebia:–Viramalgunsoutrosmembrosdogrupo?– Vimos. Mister Lennox Boynton e a mulher passaram por nós,

quandoregressavamaoacampamento.–Passaramjuntos?– Não. Mister Boynton passou primeiro e parecia um pouco tonto,

comosetivesseapanhadoumapontadesol.–QuefezMisterLennoxBoynton,aochegaraoacampamento?Pela primeira vez, Miss Pierce conseguiu antecipar-se à outra

senhora:–Foilogotercomamãe,masnãoficoumuitotempocomela.–Quantotempocalcula?–Apenasumoudoisminutos.–Quanto amim, diria que foi poucomais de umminuto – interveio

LadyWestholme.–Depoisentrounasuacavernaeaseguirsaiuedesceuparaatendagrande.

–Eamulher?–Chegoucercadeumquartodehoradepois.Parouummomentoa

conversarconosco,delicadamente.–Acho-amuitosimpática–elogiouMissPierce.–Nãoétãoimpossívelcomoorestodafamília.–condescendeuLady

Westholme.–Viram-naregressaraoacampamento?– Vimos. Falou um momento com a sogra e depois entrou na sua

caverna, trouxe uma cadeira, sentou-se e continuou a conversar com eladurantecercadedezminutos.

–Easeguir?– Levou a cadeira para dentro e foi para a tenda grande, onde o

maridoestava.–Quesepassoudepois?– Chegou aquele outro americano, creio que se chama Cope –

respondeu Lady Westholme. – Disse-nos que encontrara um excelente

Page 92: Agatha christie - encontro com a morte

exemplodaarquitecturamenordoperíodo,logoaseguiràcurvadovale,eaconselhou-nosanãodeixarmosdeoadmirar.Resolvemosiratélá.

–Eramuitointeressante–declarouMissPierce.–Voltamosaoacampamentocercadascincoequarenta.–Sra.Boyntonaindaestavasentadanomesmosítio?–Ainda.–Falaramcomela?Não.Paraserfranca,malrepareinela.–Quefezasenhoraaseguir?–Fuiàminhatendamudardesapatosebuscaromeupacotedechá

daChina.Volteià tendagrandeedisseaoguiaque izessecháparaMissPierceeparamim,domeu,erecomendei-lhequedeixasseaáguaaferverbem.Observou-mequeojantarestariaprontodaliameiahora,oscriadosjáestavamapôramesa,maseurespondi-lhequenãoimportava.

–Estavaalguémnatendagrande?–Estava, sim.MistereSra.LennoxBoyntonestavamsentadosaum

canto,aler.ECarolBoyntontambémláseencontrava.–EMisterCope?–Bebeucháconosco– informouMissPierce -, emboradissesseque

beberchánãoeraumhábitoamericano.LadyWestholmetossiueacrescentou:–TiveumcertoreceiodequeMisterCopesetornasseaborrecido,de

quemeimpusesseasuacompanhia.Porvezesédifícilmanteraspessoasàdistância,quandoviajamos...Têmumacerta tendênciaparasedarareseosAmericanos,sobretudo,são,àsvezes,muitoestúpidos.

– Estou certo de que a senhora é muito capaz de resolver assituaçõesdessanatureza–murmurouPoirot,emtommuitosuave.

– Julgo-me capaz de resolver amaior parte das situações – admitiuLadyWestholme, complacente, semrepararnobrilhomaliciosodosolhosdodetetive.

–Queiraterabondadedeconcluiroseurelato,sim?– Com certeza. Se amemória nãome falha, pouco depois chegaram

Raymond Boynton e a pequena ruiva. Miss King foi a última a chegar. OjantarestavaprontoeodragomanomandouumdoscriadosinformarSra.Boynton. O homem voltou a correr, com um dos seus camaradas, e faloumuito agitado, e em árabe, ao dragomano. Disse-nos que Sra. Boyntonestava doente e Miss King ofereceu os seus serviços. Acompanhou odragomanoequandovoltoudeuanotíciaaosfamiliaresdaSra.Boynton.

–Ecomoaceitaramelesanotícia?

Page 93: Agatha christie - encontro com a morte

Pela primeira vez, as duas mulheres pareceram um poucoatrapalhadas.Por im,LadyWestholmerespondeu,emvozaquefaltavaasegurançahabitual:

–Bem...édifícildizer.Ficaram...ficarammuitocalados.– Atordoados – disse Miss Pierce, mais como quem oferece uma

sugestãodoquecomosemencionasseumfato.– Foram todos com Miss King, mas Miss Pierce e eu tivemos a

decênciade icarondeestávamos.–OolhardeMissPierceexprimiuumacertamágoa...–Detestoacuriosidadevulgar!

Amágoatornou-semaispronunciada.– Mais tarde – prosseguiu LadyWestholme -, o dragomano e Miss

King voltaram. Sugeri que nos servissem imediatamente o jantar, aosquatro, para que a família Boynton pudesse jantar depois, sem oconstrangimentodapresençadepessoasestranhas.Aminhasugestão foiaceite e logodepoisdo jantar retirei-mepara aminha tenda.MissKing eMiss Pierce izeram omesmo,mas creio queMister Cope icou na tendagrande. Como amigo da família, deve ter pensado que poderia ser útilnalgumacoisa.Étudoquantosei.

–DepoisdeMissKingdaranotícia, todaa famíliaBoyntonsaiucomeladatendagrande?

– Sim... não. Agora que fala disso, creio que a pequena ruiva icou.Lembra-se,MissPierce?

–Sim,creio...tenhoacertezadequeficou.–Quefezela?LadyWestholmeolhou-o,surpreendida.–Quefezela,MonsieurPoirot?Nãofeznada,quemelembre.– Quero dizer, estava a coser, ou a ler, mostrou-se inquieta, disse

algumacoisa?–Bem,paraserfranca...–LadyWestholmefranziuatesta.–Queme

lembre,estavasentadaedeixou-seficar,imóvel.– Torceu os dedos – disse, de súbito, Miss Pierce. – Lembro-me de

repararnisso edepensarpara comigo: “Pobrezinha,mostra assimoquesente!”Masasuacaranãodenunciavanada...sótorciaosdedos.Lembro-mede,umavez,euprópriaterrasgadodessemodoumanotadelibra,sempensarnoqueestavaafazer.“Devereiapanharoprimeirocomboioeirtercom ela?” (Era uma tia-avó minha, que adoecera subitamente.) “Ou serámelhornãoir?”Hesitante,semsaberquedecidir,olheiparabaixoeviqueemvezderasgarotelegramaquereceberacomanotíciaestavaarasgaraosbocadinhosumanotadelibra–umanotadelibra,imaginem!

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Um pouco desaprovadora daquela súbita entrada na ribalta da suasatélite,LadyWestholmeperguntou,friamente:

–Desejamaisalgumacoisa,MonsieurPoirot?Poirotestremeceu,comoseaperguntaoapanhassedesurpresa.–Nada...nada...Foimuitoexplícita,muitoclara.–Tenhoumaexcelentememória.– Já agora, só mais um favorzinho, LadyWestholme... Peço-lhe que

continue sentada como está, semvirar a cabeça... Quer ter a amabilidadede me descrever como está vestida Miss Pierce? Isto, evidentemente, seMissPiercenãoseopõe...

–Oh,não,demodonenhum!–exclamouMissPierce.–Francamente,MonsieurPoirot,háalgumobjetivo...–Tenhaabondadedefazeroquelhepedi,madame.LadyWestholmeencolheuosombrosedisse,commausmodos:– Miss Pierce traz um vestido de algodão às riscas castanhas e

brancas, com um cinto sudanês de cabedal vermelho, azul e creme. Usameiasde seda cremee sapatosde tiras castanhos.Temumamalha caídanameia esquerda. Traz um colar de cornalinas e outro de contas azuis-vivas,umbrochecomumaborboletadepérolase,nodedomédiodamãodireita, um anel com um camafeu de imitação. Na cabeça usa uma boinadupla, de feltro cor-de-rosa e castanho. – Fez uma pausa, para quetomassem a devida consciência dos seus poderes de observação, eperguntou,friamente:

–Maisalgumacoisa?– Merece toda a minha admiração, madame! É muitíssimo

observadora.–Ospormenoresraramentemeescapam.LadyWestholme levantou-se, inclinou um pouco a cabeça e saiu da

sala. Quando Miss Pierce se preparava para a seguir, a olhardesanimadamenteparaapernaesquerda,Poirotpediu-lhe:

–Ummomentinho,mademoiselle...–Quedeseja?Odetetive inclinou-separaa frente,comumarmuitocon idencial,e

perguntou-lhe:–Vêaqueleramodefloressilvestres,namesa?–Vejo–respondeuMissPierce,deolhosmuitoabertos.–Enotouque,quandoentrounasala,espirreiumaouduasvezes?–Notei.–Reparou,acaso,seeuestiveraacheirarasflores?

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–Bem...confessoquenãosei.–Maslembra-sedeeuespirrar?–Oh,sim,dissolembro-me!– Está bem, não tem importância. Estava a pensar se as lores me

provocariamfebredosfenos...Masnãotemimportância.–Febredosfenos!–exclamouMissPierce.–Tiveumaprimaqueera

umamártircomisso!Diziaqueseesfregassediariamenteonarizcomumasoluçãode..

Poirotanotou,comcertadi iculdade,otratamentonasaldaprimadeMissPierceemandouestaembora.Fechouaportaevoltouasentar-se,desobrancelhasarqueadas.

–Maseunãoespirrei...–murmurou.–Não,eunãoespirrei!

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XV

Lennox Boynton entrou na sala em passo rápido e resoluto. Seestivesse presente, o Dr. Gerard surpreender-se-ia com a modi icaçãooperadano indivíduo.A apatia desaparecera e ele estava atento, emboravisivelmentenervoso.Osseusolhosmostravamumacertatendênciaparasedesviaremrapidamentedeumpontoparaoutrodasala.

– Bons dias, Monsieur Boynton. – Poirot levantou-se e inclinoucerimoniosamente a cabeça, e Lennox correspondeu com um certoconstrangimento.–Estou-lhemuitogratopormeconcederestaentrevista.

– O coronel Carbury disse que seria conveniente... aconselhou-a...Dissequesetratavadeformalidades...

–Queirasentar-se,MonsieurBoynton.Lennox sentou-se na cadeira ocupada pouco antes por Lady

Westholme,ePoirotprosseguiu,comnaturalidade:–Creioquedevetersidoumgrandeabaloparasi...– Sim, claro... ou talvez não... Sabíamos que o coração da nossamãe

nãoeraforte.– Terá sido sensato, nessas circunstâncias permitir-lhe empreender

umaviagemtãoextenuante?LennoxBoynton levantouacabeçaerespondeu,nãosemumacerta

dignidadetriste:– Aminhamãe,Monsieur Poirot, tomava as suas próprias decisões.

Quando se lhe metia na cabeça fazer uma coisa, era inútil tentarmoscontrariá-la.

– Sei perfeitamente que as senhoras idosas são, às vezes, muitoobstinadas...

– Qual é o objetivo de tudo isto? – perguntou Lennox, incapaz dedominarairritação.–Porquesurgiramtodasessasformalidades?

–Talveznãosaiba,MonsieurBoynton,queemcasosdemortesúbitaeinexplicadaasformalidadesnãopodemdeixardesurgir.

–“Inexplicada”?Quequerdizercomisso?Poirotencolheuosombros.–Hásemprequeconsiderar seamorte terá sidonaturalou, talvez,

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resultantedesuicídio.–Suicídio?–repetiuLennoxBoynton,deolhosarregalados.– Claro que os senhores estarão, por certo, mais bem informados

acerca de tais possibilidades. O coronel Carbury, naturalmente, não faz amínimaideiaeprecisadecidirsedeveordenaruminquérito,aautópsiaetudoomais.Como,porcoincidência,meencontravacá,ecomotenhomuitaexperiência de tais assuntos, o coronel pediu-me que procedesse aalgumasinvestigaçõeseoaconselhassequantoaoprocedimentoaadoptar.Evidentemente,elenãodesejacausar-lhesinconvenientesdesnecessários.

– Telegrafarei ao nosso cônsul em Jerusalém! – declarou Lennox,irritado.

– Tem todo o direito de o fazer – redarguiu o detetive, sem seimpressionar.

Seguiu-seummomentodesilêncioe,por im,Poirotabriuasmãoseprosseguiu:

–Senãodesejaresponderàsminhasperguntas...– Não me oponho, de maneira nenhuma! – apressou-se Lennox

Boyntonaafirmar.–Parece-meapenas...tãodesnecessário...–Compreendoperfeitamente.Masétudomuitosimples,umassunto

de rotina, como se costumadizer. Creio que, na tarde emque a suamãemorreu,saiudoacampamentodePetraefoidarumpasseio?

–Éverdade, fomos todos... comexcepçãodaminhamãeedaminhairmãmaisnova.

–Asuamãeestavasentadaàentradadacaverna?–Exatamente,logoàentrada.Estevelásentadatodaatarde.–Muitobem.Quehoraseramquandopartiram?–Passavapoucodastrês,suponho.–Equandoregressoudopasseio?–Nãoseidizercomexatidão.Quatrohoras...talvezcinco...–Cercadeumaouduashorasdepoisdepartir?–Sim,maisoumenos.–Passouporalguém,aoregressar?–Como?–Sepassouporalguém?Duassenhorassentadasnumarocha...–Nãosei...Sim,creioquepassei.–Vinhaabsortonosseuspensamentosenãoreparou?–Sim,vinha.–Faloucomasuamãe,quandochegou?–Falei...falei.

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–Eelanãosequeixou,nãodissequesesentiamal?–Não.Pareciaperfeitamentebem.–Permitequelhepergunteoquedisseram,aocerto?Lennoxhesitou,ummomento.– Ela disse que eu voltara cedo e eu respondi-lhe que sim... – Fez

nova pausa, a tentar concentrar-se. – Disse-lhe que estava calor e elaperguntou-me que horas eram, pois o seu relógio parara. Tirei-lho dopulso,dei-lhecorda,acertei-oepu-lodenovonoseulugar.

–Equehoraseram?–perguntouPoirot,suavemente.–Oquê?–Quehoraseramquandoacertouorelógio?–Ah,compreendo!Faltavamvinteecincominutosparaascinco.–Portanto,sabeexatamenteaquehorasregressouaoacampamento!– É verdade, que estupidez a minha! – Lennox corou. – Desculpe,

MonsieurPoirot,andocomacabeçatranstornada.– Oh, compreendo perfeitamente! Foi muito lamentável... E depois,

quesepassou?–Pergunteiaminhamãesequeriaalgumacoisa.Chá,café...Eladisse

que não e eu fui para a tenda grande. Não vi nenhum dos criados, masencontreiáguagasosaebebiumcopo,poisestavacomsede.Depoissentei-mealeralgunsnúmerosatrasadosdoSaturdayEveningPost.

–Asuaesposafoiencontrá-lonatenda?–Sim,chegoupoucodepois.–Eosenhornãovoltouaverasuamãeviva?–Não.–Elanãolhepareceuagitadaoutranstornada,quandoesteveafalar-

lhe?–Não.Pareceu-meexatamentecomodecostume.–Nãoaludiuanenhumaborrecimentocomumdoscriados?–Não.–Lennoxpareceuadmirado.–Nãodissenada.–Étudoquantotemadizer-me?–Sim...achoquesim.– Obrigado, Monsieur Boynton. – Poirot inclinou delicadamente a

cabeça.A entrevista acabara, mas Lennox não pareceu muito disposto a

partir.Hesitou,àporta,eperguntou:–Mais...maisnada?–Não.Talvezqueiraterabondadedememandarasuaesposa?Lennox saiu, devagar, e Poirot escreveu, no livro de apontamentos

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quetinhaaolado:“L.B.4.35h.datarde.”

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XVI

Poirot olhou com interesse a mulher alta, jovem e de ar digno queentrounasala.Levantou-seeinclinou-lhecortesmenteacabeça.

–Sra.LennoxBoynton?HerculePoirot,àssuasordens.NadineBoyntonsentou-se,aobservartambémodetetive.–Esperoquenãoleveamal,madame,ofatodeinterferirdestemodo

noseudesgosto.Nadinenãorespondeulogoecontinuoua itá-logravemente.Por im,

declarou:–Creioque émelhor ser absolutamente franca comvocê,Monsieur

Poirot.–Concordo,madame.–Faloueminterferirnomeudesgosto,mastaldesgostonãoexistee,

portanto,é inútil ingi-lo.Nãogostavadaminhasograeasinceridadenãomepermitedizerquelamentoasuamorte.

–Obrigado,madame,porfalartãoclaro.–No entanto, emboranãopossa ingir desgosto, tenhode confessar

outrosentimento:remorso.–Remorso?–repetiuPoirot,desobrancelhasarqueadas.– Sim. Fui eu que provoquei a sua morte e disso me censuro

amargamente.–Quepretendedizer,madame?–Que fuieua causadamortedaminhasogra.Penseiqueprocedia

honestamente,maso resultado foi lamentável. Para todos os efeitos, eu amatei.

–Querterabondadedeespecificaressadeclaração,madame?– Não desejo outra coisa – declarou Nadine, de cabeça baixa. – A

minha primeira reação foi, naturalmente, guardar para comigo os meusassuntosparticulares,mas compreendoqueomelhor é falar. Estou certadequejátemrecebidoconfidênciasdenaturezamaisoumenosíntima?

–Já,sim.–Entãocontar-lhe-eicomtodaasimplicidadeoquesucedeu.Aminha

vidadecasadanãotemsidomuitofeliz.Aculpanãoéinteiramentedomeu

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marido, pois a mãe exercia nele uma in luência prejudicial, masultimamentesenticomcrescenteintensidadequeaminhavidasetornavaintolerável. – Fezumabrevepausa. –Na tardedamortedaminha sogratomeiumadecisão.Tenhoumamigo,umexcelenteamigo,quemesugeriramais de uma vez que juntasse a minha sorte à dele... e nessa tarde euaceiteiasuaproposta.

–Decidiudeixaroseumarido?–Sim.–Continue,madame.– Tomada essa decisão – prosseguiu Nadine, em voz mais baixa -,

desejei dá-la a conhecer o mais depressa possível e pô-la em prática.Regressei sozinha ao acampamento e encontrei aminha sogra sentada àentrada da caverna. Como não se encontrava ninguém nas imediações,resolvidar-lhelogoanotícia.Fuibuscarumacadeira,sentei-meedisse-lheoquedecidira.

–Elaficousurpreendida?– Sim, creio que sofreu um grande abalo. Ficou surpreendida e

furiosa, muito furiosa. Barafustou a valer, mas passados momentos eurecusei-me a continuar a discutir o assunto, levantei-me e deixei-a. –Baixouaindamaisavozaoacrescentar:–Nuncamaisaviviva.

Poirotacenoucomacabeça,devagar.– Compreendo... Pensa que a morte foi consequência do abalo

sofrido?–Parece-mequasecertoquefoi.Elajásefatigaraexcessivamente,na

viagem, e aminha notícia e a sua cólera izeram o resto. Sinto-me aindamais culpadaporque, emvirtudede ter estudadopara enfermeira, deviatercontadocomapossibilidadedetalcoisaacontecer.

Poirotdeixoupassaralgunsminutos,antesdeperguntar:–Quefezexatamentequandoadeixou?– Levei a cadeira para aminha caverna, donde a tirara, e dirigi-me

paraatendagrande,ondeomeumaridoseencontrava.Poirotobservou-acomatenção,aoinquirir:–Informou-odasuadecisão?Oujáoinformaraanteriormente?Houveumapausabrevíssima,antesdeNadineresponder:–Informei-oentão.–Comoaceitoueleasuadecisão?–Ficoumuitotranstornado.–Aconselhou-aareconsiderar?– Ele... ele falou pouco. Compreende, sabíamos ambos, havia algum

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tempo,quepoderiasucederumacoisadessegênero.– Perdoe a pergunta, mas... o outro homem era Mister Jefferson

Cope?–Era–confessou,decabeçabaixa.Seguiu-seumalongapausaedepois,semqualquermudançadevoz,

odetetiveperguntou:–Temumaseringahipodérmica,madame?–Sim...não.Poirotarqueouassobrancelhas,semcompreender,eelaexplicou:– Tenho uma velha seringa, entre outras coisas, numa farmácia

portátil,masficoucomogrossodanossabagagem,emJerusalém.–Compreendo.Seguiu-senovapausae, por im,NadineBoynton inquiriu, comuma

pontadeinquietação:Porquemefezessapergunta,MonsieurPoirot?Emvezdelheresponder,odetetivefez-lheoutrapergunta:–CreioqueSra.Boyntonandavaa tomarumremédioque continha

Digitalis?–Andava.–Nadineestava,agora,muitoatenta.–Destinava-seàsuadoençadecoração?–Destinava.–ADigitalisé,atécertoponto,umadrogacumulativa?– Creio que sim, embora os meus conhecimentos a esse respeito

sejamlimitados.–SeSra.BoyntontivessetomadoumadoseexcessivadeDigitalis...Elainterrompeu-o,decidida:–Nãotomou.Erasempremuitocuidadosa...eeutambém,quandolhe

mediaadose.–Maso frascodo remédiopodia conterumadose suplementar.Um

errodofarmacêuticoqueocompôs,porexemplo...–Parece-memuitopoucoprovável.–Enfim,asanálisesesclarecerãoessepormenor.–Infelizmente,ofrascopartiu-se.–Deveras?–perguntouPoirot,afitá-la.–Quemopartiu?– Não tenho a certeza, mas suponho que foi um dos criados. Ao

transportar o corpo da minha sogra para a caverna, houve uma certaconfusão,tantomaisquealuzeramá,eumamesacaiu.

Poirotfitou-alongamente.–Issoémuitointeressante–comentou,porfim.

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NadineBoyntonmudoudeposiçãonacadeira.– Pretende insinuar, suponho, que a minha sogra não morreu em

consequência de um abalo sofrido e, sim, de uma dose excessiva deDigitalis?Issoparece-meimpossível.

Poirot inclinou-se para a frente e perguntou, a sublinhar bem aspalavras:

–MesmoqueeulhedigaqueodoutorGerard,omédicofrancêsqueestava no acampamento, deu por falta de uma quantidade apreciável deumpreparadodedigitoxina,quetrazianoestojodemedicamentos?

NadineBoyntonempalideceu,cerrouasmãosnorebordodamesaebaixouacabeça.

–Então,madame,quemediz?Ossegundospassaram,emsilêncio.Ao imdedoisminutos,a jovem

levantouacabeçaePoirotestremeceu,aoveraexpressãodosseusolhos.– Monsieur Poirot, eu não matei a minha sogra. Sabe isso

perfeitamente,elaestavavivaebemquandoadeixei,comováriaspessoaspodemcon irmar.Comoestouinocentedocrime,possoatrever-meafazer-lhe um apelo. Por que se meteu neste assunto? Não abandonará ainvestigação se eu lhe der a minha palavra de honra de que só foi feitajustiça?Nãofazideiadosofrimentoqueelacausou!Agoraque, inalmente,hápazeapossibilidadedefelicidade,terádedestruirtudo?

Poirotendireitou-senacadeiraeredarguiu:–Sejamosclaros,madame.Quemeestáapedir?– Digo-lhe que a minha sogra morreu de morte natural e peço-lhe

queaceiteaminhaafirmação.–Sejamosaindamais claros: a senhoraacreditaquea sua sogra foi

deliberadamenteassassinadaepede-mequeaproveoassassinato!–Peço-lhequetenhacompaixão!–Sim,compaixãoporquemnãoateve!–Nãocompreende...nãofoiisso...–Foiasenhoraprópriaquecometeuocrime,parasaber tãobemo

quesepassou?– Não – respondeu Nadine, tranquilamente, sem quaisquer indícios

deculpa.–Elaestavavivaquandoadeixei.–Equesucedeudepois?Sabeoususpeita?– Consta-me, Monsieur Poirot, que uma vez, naquele caso do

ExpressodoOriente,aceitouoveredictoo icialdoquesucedeu!–replicouNadine,apaixonadamente.

–Quemlheteráditoisso?–inquiriuodetetive,cheiodecuriosidade.

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–Éverdade?–Essecasoera...diferente–respondeu,devagar.–Não,nãoeradiferente!Ohomemassassinadoeradiabólico...como

ela.–O carátermoraldavítimanão temnadaaver comoassunto!Um

serhumanoqueexerceuodireitodejulgarpessoalmenteedetiraravidaaoutroserhumanoconstituiumperigo!

–Comoéduro!– Em certas coisas sou, de fato,muito duro,madame. Não aprovo o

assassinato,nunca.ÉestaaúltimapalavradeHerculePoirot.NadineBoyntonlevantou-se,comumbrilhoferoznoolhar.– Pois continue, leve ruína e angústia à vida de pessoas inocentes!

Nãotenhomaisnadaadizer.–Maseu...eupensoquetemmuitoquedizer.–Não,nãotenhonada!–Oh,tem!Quesucedeu,madame,depoisdedeixarasuasogra?Que

sucedeuenquantoestevecomoseumaridonatendagrande?–Comoquerquesaiba?–indagou,comumencolherdeombros.–Sabe...oususpeita.– Não sei nada, Monsieur Poirot – respondeu, a itá-lo nos olhos, e

depoisvirouascostasesaiu.

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XVII

Depoisdeanotarnoseulivrodeapontamentos,“N.B.4.40h.”,Poirotabriu a porta e chamou o homem que o coronel Carbury pusera ao seudispor.

Mandou-obuscarMissCarolBoynton.O detetive observou com interesse a jovem, quando ela chegou – o

cabelocastanho,oportedacabeçanopescoçocomprido,aenergianervosadasmãosbonitas...

–Sente-se,mademoiselle.Elasentou-se,obedientemente.Oseurostomantinha-seinexpressivo.Poirotcomeçouaconversacomumafrasemaquinaldecondolências,

queajovemaceitouimperturbável.– E agora, mademoiselle, quer fazer o favor de me contar como

passouatardedodiaemquestão?A resposta foi tão rápida que deu origem à suspeita de que fora

ensaiada:– Depois do almoço fomos todos dar um passeio. Regressei ao

acampamento...– Um momento. Estiveram todos juntos, até ao instante do seu

regresso?–Não.EuestiveamaiorpartedotempocomomeuirmãoRaymonde

MissKing.Depoispasseeisozinha.–Obrigado. Estava a dizer que regressara ao acampamento. Sabe a

quehoras,aproximadamente?–Creioquedeviamserumascincoedez.Poirotescreveu:“C.B.5.10.”–Edepois?–Minhamãeestavasentadaondeestivera,quandopartíramos.Falei

comelaefuiparaaminhatenda.–Lembra-sedoquedisseram?–Eudisseapenasqueestavamuitocaloreme iadeitar.Minhamãe

dissequeficariaondeestava.Maisnada.– Notou no aspecto dela alguma coisa que lhe parecesse fora do

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vulgar?–Não.Pelomenos...istoé...–Nãosereieuqueapodereiesclarecer,mademoiselle–dissePoirot,

calmamente.Carolcorouedesviouoolhar.–Estavasóapensar...Naalturamalreparei,masagora,aorecordar...–Diga,diga...– Tinha uma cor esquisita – murmurou a jovem, devagar. – Estava

muitomaisvermelhadoquedecostume.–Teriasofridoumabalodequalquerespécie?–Umabalo?–Porexemplo,podia-seterirritadocomumdoscriadosárabes.–Ah!–OrostodeCaroldesanuviou-se.-Sim,podia.–Maselanãosereferiuaisso?–Não,nãodissenada.–Quefezaseguir,mademoiselle?–Fuiparaaminhatendaeestivedeitadacercademeiahora.Depois

dirigi-me para a tenda grande, onde o meu irmão e a minha cunhadaestavamaler.

–Equefez?–Entretive-meacosere,depois,pegueinumarevista.–Voltouafalarcomasuamãe,aodirigir-separaatendagrande?–Não.Creioquenemolheiparaesselado.–Edepois?–Fiqueinatendaaté...atéMissKingnosdizerqueelamorrera.–Eissoétudoquantosabe,mademoiselle?–É.Poirot inclinou-se para a frente e perguntou no mesmo tom

despreocupadoecordial:–Equesentiu?–Quesenti?– Sim, que sentiu quando soube que a sua mãe (pardon, a sua

madrasta,nãoéverdade?),quandosoubequeelaestavamorta?–Nãocompreendooquequerdizer!–Creioquecompreendemuitobem.–Foi...umgrandechoque–tartamudeouajovem.–Foi?O sangue subiu-lhe ao rosto, numa onda, e olhou-o como se se

sentissedesamparada.Poirotleu-lhemedonoolhar.

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–Foi assimumchoque tão grande,mademoiselle? Se recordarumacerta conversa que teve com o seu irmão Raymond, uma noite, emJerusalém...

A cor fugiu das faces de Carol Boynton e Poirot compreendeu queacertaranoalvo.

–Sabedisso?–murmurouajovem.–Sei,sim.–Mascomo?–Partedaconversaquetiveramfoiouvida.–Oh!–CarolBoyntonocultouorostonasmãosedesatouasoluçar.Odetetiveaguardouummomento,antesdeprosseguir,calmamente:–Planejarammatarasuamadrasta.– Estávamos loucos... – soluçou Carol – ...nessa noite estávamos

loucos!–Talvez.– Não pode compreender o estado em que nos encontrávamos! –

Endireitou-se e afastou o cabelo da cara. – Parecer-lhe-ia fantástico, sesoubesse...NaAméricacustavamenos,masaoviajarmoscompreendemos...

–Compreenderamoquê?–Asuavoztornara-sebondosa.– Quanto éramos diferentes das outras pessoas! Sentimo-nos

desesperados.Ehavia,também,aJinny...–AJinny?– A minha irmã. O senhor ainda não a viu. Estava a icar... bem,

esquisita.Eamãeparecianãocompreender,agravavaoseuestado.Rayeeutínhamosmedo,receávamosqueaJinnyacabasseporenlouquecerporcompleto.EcompreendíamosqueaNadinepensavaomesmo.

–Sim?– Nessa noite, em Jerusalém, tivemos a sensação de não poder

suportarmais.Rayestava foradesi, enervámo-nososdoise... epareceu-nos justo fazer aqueles planos. A mãe... a mãe era louca. Não sei o quepensa,maspodepareceracertadomataralguém!

Poirotacenoucomacabeça,devagar.–Sim,seiquetemparecidoacertadoamuitagente...Osfatosprovam-

no.– Foi o que sentimos nessa noite, o Ray e eu. – Carol deu uma

pancadanamesa.–Masnãoo izemos!Evidentementequenãoo izemos!Quando o dia nasceu, as nossas ideias pareceram-nos melodramáticas,absurdas... e erradas, também. Monsieur Poirot, a nossa mãe morreu demorte perfeitamente natural, de um colapso cardíaco. Nem Ray nem eu

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tivemosnadaavercomoassunto.– Jura-me pela sua esperança de salvação depois da morte,

mademoiselle,queSra.Boyntonnãomorreuemconsequênciadequalqueraçãovossa?

Carolergueuacabeçaejurou,emvozfirmeeprofunda:–Juropelaminhasalvaçãoquenuncalhefizmalnenhum...–Muitobem–murmurouPoirot,erecostou-senacadeira.O detetive afagou pensativamente o soberbo bigode e, passados

momentos,perguntou:–Qualeraovossoplano?–Onossoplano?–Sim.Vocêeoseuirmãodeviamterumplano.Mentalmente, contouos segundos, antesdeela responder:um,dois,

três...–Nãotínhamosplanonenhum–declarou,por im,Carol.–Nãofomos

tãolonge.HerculePoirotlevantou-se.– Não desejo mais nada, mademoiselle. Tenha a bondade de me

mandaroseuirmão.Carollevantou-seeficouparada,hesitante.–MonsieurPoirot...acreditouemmim?–Dissequenãoacreditava?–Não,mas...–Digaaoseuirmãoquevenhacá,sim?–Sim.Caroldirigiu-separaaporta,masantesdesairparou,virou-separa

tráseexclamou,apaixonadamente:–Disse-lheaverdade!Disse!Hercule Poirot não respondeu e Carol Boynton saiu vagarosamente

dasala.

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XVIII

Quando Raymond Boynton entrou, o detetive apercebeu-se dasemelhançaentreeleeairmã.

Orostodorapazmostrava-segraveefirme,nãoparecianervosonemassustado.Deixou-secairnumacadeira,fitouPoiroteperguntou-lhe:

–Então?– A sua irmã falou com você? – indagou o detetive, em tom muito

brando.– Falou, quando me mandou cá. Compreendo, claro, que as suas

suspeitassão justi icadas.Seanossaconversa foiouvida,naquelanoite,énatural que a morte súbita da minha madrasta pareça suspeita. Só lheposso a irmar que a conversa em questão foi... a loucura de uma noite.Encontrávamo-nos, nessa altura, sob uma tensão nervosa intolerável e oplano fantástico dematar aminhamadrasta... (como explicar?) ...foi umaespéciedeescape.

HerculePoirotbaixouacabeçaemurmurou:–Épossível.– Claro que, demanhã, pareceu absurdo. Juro-lhe,Monsieur Poirot,

quenuncamaisvolteiapensarnoassunto.Poirotnãorespondeu.–Sim, seiqueé fácil a irmá-loenãoesperoqueacrediteapenasna

minhapalavra.Masconsidereosfatos.Faleicomaminhamãepoucoantesdasseishoraseelaestavavivaebem.Fuiàminhatendalavar-meereuni-me aos outros, na tenda grande. A partir desse momento, Carol e euestivemos à vista de todos. Como deve compreender, a morte de minhamãefoinatural.

– Sabe, Mister Boynton, que, na opinião de Miss King, quando elaexaminouo corpo, às seis emeia, amortedevia ter ocorridoumahora emeiaantes,pelomenos,outalvez,até,duashoras?

Raymondfitou-o,estupefato.–Sarahdisseisso?Poirotacenouafirmativamente.–Quemediz,agora?

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–Mas...éimpossível!– Foi esse o depoimento de Miss King. Agora o senhor declara-me

queasuamãeestavavivaebemapenasquarentaminutosantesdeMissKingexaminarocorpo.

–Masestava!–Tenhacuidado,MisterBoynton.– Sarah deve ter-se enganado! Houve, certamente, algum fator que

nãotomouemconsideração.OrostodePoirotnãoexprimianada.Raymondinclinou-separaeleeprosseguiu,ansioso:–Seioquedevepensar,masencareascoisascomjustiça.Osenhor

nãopodeserimparcial,naavaliaçãodoassunto,poisvivenumaatmosferade crime. Toda amorte súbita lhe deve parecer um crime possível! Nãocompreende que o seu sentido das proporções não merece con iança?Todososdiasmorregente,sobretudogentedecoraçãofraco.

–Pretende,então,ensinar-meomeuofício?–Oh,não,evidentemente!Mascreioque foi in luenciadoporaquela

infeliz conversa que tive com a minha irmã. Não há nada na morte daminhamãesusceptívelde levantar suspeitas, anãoseressadesastrosaehistéricaconversa!

– Está enganado – a irmou Poirot. – Há mais alguma coisa: há ovenenotiradodoestojodemedicamentosdodoutorGerard.

– O veneno? – Ray itou-o, boquiaberto. – Veneno! – Empurrou umpouco a cadeira para trás, verdadeiramente aparvalhado. – É disso quesuspeita?

Poirotdeixoupassarumoudoisminutos,antesdeperguntar,quasecomindiferença:

–Ovossoplanoeradiferente?–Oh, sim!– respondeuRaymond,maquinalmente. –Épor isso...Oh,

nãoconsigopensarcomclareza!–Qualeraovossoplano?–Onosso plano?Era... – Raymond calou-se, bruscamente, e os seus

olhos tornaram-seatentosecautelosos.–Creioquenãodigomaisnada–declarou,elevantou-se.

–Comoqueira.Viuo jovemsairda sala, puxouo livrodeapontamentose escreveu

umaúltimaanotação,minuciosamente:“R.B.5.55.”Depoispegounumafolhadepapelecomeçouaescrever.Concluída a tarefa, recostou-se na cadeira, com a cabeça inclinada

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paraolado,eleu:OsBoyntoneJeffersonCopesaíramdoacampamento(aprox.).....3.05Dr.GerardeSarahKingsaíramdoacampamento(aprox.)..............3.15LadyWestholmeeMissPiercesaíramdoacampamento(aprox.)...4.15Dr.Gerardregressouaoacampamento(aprox.)..............................4.20LennoxBoyntonregressouaoacampamento..................................4.35Nadine Boynton regressou ao acampamento e falou comMrs. Boynton ....4.40NadineBoyntondeixouasograefoiparaatendagrande(aprox.)......4.50CarolBoyntonregressouaoacampamento......................5.10Lady Westholme, Miss Pierce e Mr. Jefferson Cope regressaram aoacampamento5.40RaymondBoyntonregressouaoacampamento...................5.50SarahKingregressouaoacampamento...........................6.00Ocorpofoidescoberto................................................6.30

HerculePoirotdobroualista,foiàportaepediuquelhemandassemMahmud.Orobustodragomanoeraumtagarela,aspalavrasescorriam-lhedoslábiosnumaenxurrada:

–Sousempreeuquetenhoaculpa,sempre!Quandoacontecealgumacoisa, dizem sempre que a culpa éminha! Sempre! Aminha vida é umatragédia!

Por im, Poirot conseguiudeter a enxurrada e fazer a perguntaquepretendia.

– As cinco e meia, disse? Não, não creio que nenhum dos criadosestivessenoacampamentoaessahora.Oalmoço foi tarde,àsduashoras,houve a limpeza... Depois do almoço, dormiram toda a tarde... Sim, osAmericanos não tomam chá. Deitámo-nos todos às três e meia. Às cincohoras,eu,quesouae iciênciaempessoaenuncameesqueçodoconfortodas senhoras e dos cavalheiros que sirvo, levantei-me, pois sabia que aessa hora todas as senhoras inglesas quereriam chá. Mas não estava lánenhuma, tinham ido todaspassear.Nãome importeinada,pudevoltaradormir.Masosaborrecimentoscomeçaramquandofaltavaumquartoparaas sete.A senhora inglesa forte voltou equis chá, embora a essahoraosrapazes jáestivessema tratardo jantar.Mostrou-semuitoexigente,disseque a água tinha de estar a ferver e que eu me devia certi icarpessoalmente disso. Ah, meu bom senhor, que vida! Faço tudo quanto

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posso,massousemprecensurado...Poirotinterrompeu-o:–Háoutropormenor.A senhoraquemorreu irritou-se comumdos

criados.Sabecomqualdelesfoieporquê?Mahmudlevantouasmãosaocéu.–Comovousaber?Asenhoraidosanãosequeixou.–Podeaveriguar?–Não,meu bom senhor, isso seria impossível. Nenhumdos rapazes

pensaria, sequer, emadmitir tal coisa.A senhora idosa zangou-se?Então,naturalmente, os criados negam. Abdul diz que foiMoamed,Moamed dizque foi Aziz, Aziz diz que foi Aissa, e etc. São todos beduínos muitoestúpidos,nãocompreendemnada.

Poirotconseguiulivrar-sedodragomanoelevoualistaqueelaboraraaocoronelCarbury.

Ocoroneltorceuumpoucomaisagravataeperguntou:–Descobriualgumacoisa?–Posso-lheexporumateoriaminha?–Sedesejar–redarguiuCarbury,comumsuspiroderesignação.–Acriminologiaé,quantoamim,aciênciamaisfácildomundo!Basta

deixarocriminosofalar.Maiscedooumaistardeelediztudo.– Lembro-me de lhe ter ouvido dizer qualquer coisa desse gênero,

anteriormente.Quemlhedissecoisas?–Todaagente.Poirotresumiuasentrevistasquetiveraduranteamanhã.– Hum... – resmungou Carbury. – Parece que tem uma ou duas

pistas... mas infelizmente apontam em direcções opostas. Temos um casofirme?

–Não.Ocoronelsuspiroudenovo.–Jáoreceava.–Masantesdeanoitecersaberemosaverdade!– Foi, de fato, só isso queme prometeu... e confesso que duvidei da

fartura.Temacerteza?–Absoluta.–Deveseragradávelexperimentartalsentimento.Poirotapresentoualista.–Bemordenada – comentouo coronel, aprovador, e leu-a. – Sabe o

quepenso?–perguntou,nofim.–Ficariaencantadosemedissesse.

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–OjovemRaymondBoyntonnãotemnadaavercomahistória.–Estáconvencidodisso?– Estou. É claro como água. Devíamos tê-lo percebido desde o

princípio, visto ele ser, como nos romances policiais, o que aparentamaioresprobabilidades.Comoosenhoroouviupraticamentedizerqueialiquidaravelhota,devíamostercompreendidoqueestavainocente!

–Lêromancespoliciais,hem?– Aos milhares! – confessou o coronel, e acrescentou, como um

estudante entusiasmado: – Creio que não é capaz de proceder como osdetetives procedem, nos romances? Quero dizer, elaborar uma lista defatos signi icativos, de coisas que são importantíssimas, embora nãopareçamterimportâncianenhuma?

–Ah,gostadessegêneroderomancepolicial?Mascomcerteza,tereimuitoprazeremelaborarumalistadessas!

Pegounumafolhadepapeleescreveu,comrapidezeclareza:1.Mrs.BoyntontomavaumremédioquecontinhaDigitalis.2.ODr.Gerarddeuporfaltadeumaseringahipodérmica.3.Mrs.Boynton sentia grandeprazer em impedir a famíliade sedivertircomasoutraspessoas.4. Na tarde em questão,Mrs. Boynton encorajou a família a ir passear edeixá-lasozinha.5.Mrs.Boyntoneraumasádicamental.6. A distância entre a tenda grande e o lugar ondeMrs. Boynton estavasentadaera(aproximadamente)de180metros.7. Mr. Lennox Boynton disse, ao princípio, não saber a que horasregressaraaoacampamento,masdepoisadmitiuteracertadoorelógiodamãe.8.ODr.GerardeMissGinevraBoyntonocupavamtendascontíguas.9. Às 6.30 h, quando o jantar estava pronto, um criado foi anunciar essefatoaMrs.Boynton.

Ocoronelleualistacomgrandesatisfação.– Excelente! – exclamou. – Era precisamente isto que queria. O

senhor deu-lhe a conta certa de di iculdade e de irrelevância aparente...Tem o “toque” da autenticidade! A propósito, parece-me notar uma ouduas omissões evidentes. Mas suponho que são propositadas, paraespicaçaracuriosidade,hem?

OsolhosdePoirotbrilharamumbocadinho,maselenãorespondeu.– Ponto número 2, por exemplo: O doutor Gerard deu por falta de

uma seringa hipodérmica... É verdade, mas ele também deu por falta de

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umasoluçãoconcentradadeDigitalisoucoisaparecida.–Essepormenornãoé importantenosentidoemqueaausênciada

seringaé.– Esplêndido! – exclamou o coronel, todo sorrisos. – Não percebo

patavina, pois diria que a Digitalis era muito mais importante do que aseringa! E essa questão do criado... Um criado que foi avisá-la de que ojantarestavapronto,eumcriadoaquemelaameaçoucomabengala,maiscedo? Não me vai dizer que um dos meus pobres diabos do deserto aliquidou, pois não? Se me dissesse uma coisa dessas – acrescentou ocoronel,muitosério-,seriabatota.

Poirotsorriu,masnãorespondeu.–Estou,estou!–Olhouàsuavolta,comumolharassustado.–FaleidoassuntoaodoutorGerard,emJerusalém.Eleprocedeude

modomuito inteligente. Ficou imperturbável, quando lhe falei, mas seguiu-me... àquele terrível lugar das pedras vermelhas. – Nãoconteveumestremecimento.–Tencionavammatar-me,lá.Tenhodeestarsempreatenta.

Poirotacenoucomacabeça,demodosuaveeindulgente.–Eleéamávelebom–murmurouGinevra.–Estáapaixonadopormim.–Sim?–Oh,sim!Dizomeunome,quandodorme...Oseurostoadoçou-sedenovo,momentaneamenteiluminadoporaquelabelezatrêmulaesobrenatural.–Vi-o deitado, às voltas e reviravoltas e a pronunciar omeunome... Saí devagarinho. Foi ele, talvez, que omandou chamar?

Tenhomuitosinimigos,cercam-meportodaaparte...àsvezesandamdisfarçados.–Sim,sim...Masaquiestáemsegurança,rodeadaportodaasuafamília.Ajovemendireitou-se,orgulhosamente.–Elesnãosãoaminhafamília,nãotenhonadaavercomeles.Nãolhepossodizerquemrealmentesou...éumgrandesegredo.–Amortedasuamãeabalou-amuito,mademoiselle?Ginevrabateucomopé.–Jálhedissequeelanãoeraminhamãe!Osmeusinimigospagaram-lheparafingirqueeraminhamãeeparanãomedeixarfugir.–Ondeestavanatardeemqueelamorreu?–Estavanatenda–respondeusemhesitar.–Estavamuitocalor,ládentro,masnãomeatreviasair.Elespodiamapanhar-me.Um

deles...espreitounaminhatenda.Estavadisfarçado,masreconheci-o.Fingiquedormia.Oxequemandara-o,queria-meraptar.Poirotcaminhouemsilêncio,durantealgunsmomentos,eporfimobservou:–Sãomuitobonitas,essashistóriasquecontaasiprópria.–Sãoverdadeiras!–gritouamoça.–Verdadeiras!–E,furiosa,virou-lheascostasecorreupelaencostaabaixo.Poirotparou,asegui-lacomoolhar,e,desúbito,ouviuumavozperguntar,atrásdesi:–Quelhedisse?Odetetivevirou-seeviuomédico,umpoucoofegante.Sarahtambémseaproximava,masessavinhadevagar.–Disse-lhequecontavaasiprópriaalgumashistóriasmuitobonitas.Omédicoacenoucomacabeça,preocupado.–Eela icoufuriosa!Issoébomsinal,demonstraqueaindanãotranspôsosumbraisdaloucura.Aindasabequenãoéverdade!

Curá-la-ei.–Está,então,atratá-la?–Estou.DiscutioassuntocomSra.LennoxBoyntoneomarido.Ginevra iráparaPariseentraránumadasminhasclínicas...

depoistreinar-se-áparaopalco.–Paraopalco?–Sim.Tempossibilidadesdeêxitonessaprofissão...eédissoqueelaprecisa,éissoquetemdealcançar!Emmuitosaspectos,tem

amesmanaturezadamãe.–Não!–exclamouSarah,revoltada.–Pode-lheparecerimpossível,mascertascaraterísticasfundamentaissãoasmesmas.Nasceramambascomumgrandedesejode

importância,exigemambasqueasuapersonalidadeimpressione!Estapobregarotatempassadoavidaasercontrariadaereprimida,foi-lhenegadoumescapeparaasuaardenteambição,paraoseuamoràvida,paraaexpressãodasuapersonalidaderomânticaecheiadevivacidade.–Deuumagargalhadinhaeacrescentou:–Nousallonschangertoutça!–Inclinouumpoucoacabeçae,antesdecorreratrásdeGinevra,murmurou:–Deem-melicença,sim?

–OdoutorGerardémuitodedicadoaoseutrabalho–comentouSarah.–Compreendoasuadedicação.–Noentanto,nãopossotolerarquecompareagarotaàquelahorrívelvelha...emboraumavezeuprópriativessetidopenadaSra.

Boynton.–Quandofoiisso,mademoiselle?–Foi daquela vezdeque lhe falei, em Jerusalém.Tive, de súbito, a sensaçãodeque estava a ver o assuntodemodo errado...

Conheceaquelaimpressãoqueàsvezessentimos,momentaneamente,dequeestamosaverumacoisaaocontrário?Deixei-melevarpor

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essesentimentoearmeiemidiota.–Oh,não,nãoarmoutal!Sarahcorouviolentamente,comosemprequerecordavaasuaconversacomSra.Boynton.–Senti-metodaexaltada,comosetivesseumamissãoacumprir!Maistarde,quandoLadyWestholmeolhouparamimdemodo

velhacoedissequemeviraafalarcomSra.Boynton,penseiquetalveztivesseouvidoasminhaspalavrasesenti-meamaiscompletaidiota.

–Quaisforam,exatamente,aspalavrasqueSra.Boyntonlhedisse?Lembra-sedelas?–Creioquesim,poisimpressionaram-memuito.Oqueeladissefoi:“Eununcaesqueço!Lembre-sedisso.Nuncaesquecinada,

nemumaação,nemumnome,nemumrosto!”–Sarahestremeceu.–Faloucomtantamalevolênciaesemolhar,sequer,paramim!Aindameparecequeaestouaouvir.

–Impressionou-amuito,hem?–murmurouPoirot,docemente.– Impressionou. Não me assusto com facilidade... mas às vezes sonho com ela a dizer aquelas palavras e vejo aquele rosto

diabólico,trocistaetriunfante.Brrr!–Fezumapausa,antesdeindagar:–Talveznãolhodevesseperguntar,MonsieurPoirot,masjáchegouaumaconclusãoacercadesteassunto?

–Já.OslábiosdeSarahtremiam,quandoperguntou:–Qual?–DescobricomquemRaymondfalou,naquelanoite,emJerusalém.Foicomairmã,Carol.–Carol...evidentemente!DisseaRaymond...perguntou-lhe...NãofoicapazdecontinuarePoirotfitou-a,graveecompadecidamente.–Significaassimtantoparasi,mademoiselle?–Significatudo!–exclamouSarah,masendireitouosombroseacrescentou:–Noentanto,tenhodesaber.–Eledisse-mequenãopassoudeumdesabafonervoso,quetantoelecomoairmãestavammuitoexcitadoseque,quandonasceu

odia,aideiapareceufantásticaaambos.–Compreendo...–MissSarah,nãomequerdizeroquereceia?Sarahempalideceuefitou-o,desesperada.–Naquelatarde...estivemos juntos.Quandomedeixou,eledissequequeria fazerqualquercoisanaquelemomento...enquanto

tinhacoragem.Penseiquesetratavaapenasde...dedizeràmãe.Massupondoqueelesereferia...–Calou-see icourígida,alutarcomtodasasforçasparasedominar.

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XIX

SarahKing sentou-senummontículo, adesfolhar lores silvestres.ODr.Gerardestavasentadoperto,nummuro.

– Por que desencadeou tudo isto? – perguntou a moça, súbita efuriosamente.–Senãofosseodoutor...

–Achaquedeveriaterguardadosilêncio?–Acho.–Sabendooquesabia?–Odoutornãosabia.–Sabia.–Ofrancêssuspirou.–Masadmitoquenuncasepodetera

certezaabsoluta.–Pode,sim.–Talvez vocêpossa – condescendeuomédico, comumencolherde

ombros.– Estava com febre elevada, não podia ter ideias claras acerca do

assunto! Provavelmente a seringa esteve sempre onde a encontrou... epode-se ter enganado acerca da digitoxina. Não seria impossível um doscriadoster-lhemexidonoestojodosmedicamentos.

– Não precisa se preocupar – redarguiu-lhe o Dr. Gerard,cinicamente.–Équasecertoqueasprovasserãoinconcludentes.Veráqueosseusamigos,osBoynton,ficarãoimpunes!

–Tambémnãoqueroisso!–afirmouSarah,irritada.–Éilógica!– Não foi o doutor que, em Jerusalém, falou muito acerca de não

interferência?–Maseunãointerferi.Disseapenasoquesabia!– E eu digo que o doutor não sabe...MeuDeus, lá vamos nós outra

vez!Estamosnumcírculovicioso.–Lamento,MissKing–murmurouomédico,docemente.– Como vê, no im de contas, eles não se libertaram! Ela continua

presente–disseSarah,baixinho.–Mesmodasepultura,podecontinuaradominá-los. Acho... acho que deve estar a divertir-se com tudo isto! – Desúbito, mudou de tom e avisou: – Aquele homenzinho vem a subir a

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encosta.Carrancuda, viu Hercule Poirot aproximar-se. O detetive respirou

fundo,limpouatestaeolhoutristementeparaossapatosenvernizados.–Meuspobressapatos!Estaregiãopedregosa...– Pode pedir a LadyWestholme que lhe empreste o seu estojo de

engraxador... eopanodopó–disseSarah, em tomdesabrido. –Elaviajacomtudoisso.

– Que, no entanto, não chega para apagar os arranhões,mademoiselle.

– Talvez não. Mas por que diabo usa sapatos desses numa terradestas?

–Gostode ter aspecto soigné – respondeuodetetive, coma cabeçaumpoucoinclinadaparaolado.

–Nodesertonãovaleapenaestarcomessaspreocupações.– As mulheres não apresentam o seumelhor aspecto no deserto –

observou omédico, sonhador. – Miss King é uma excepção, está semprearranjada e fresca,mas aquela LadyWestholme, com os seus casacões esaias grossas e aqueles horríveis calções e botas de montar! E a pobreMissPierce,coitada...Osseusvestidossão tãodesenxabidosqueparecemfolhas de couve murchas, e ainda por cima usa todas aquelas contas achocalhar!Atéa jovemSra.Boynton,umamulheratraente,nãoéaquiloaquesechamachique!Oseuvestuárioédesinteressante...

–NãocreioqueMonsieurPoirot tenhavindocáacimapara falarderoupas–lembrouSarah.

– Tem razão. Vim consultar o doutor Gerard, cuja opiniãome deveserútil,easuatambém,mademoiselle,poisé jovemeestáatualizada,emquestõesdepsicologia.GostariaquemedissessemtudoquantopudessemacercadaSra.Boynton.

–Nãosabejádecortudoquantoháasaber?–perguntouSarah.– Não. Tenho o pressentimento, ou melhor, mais do que o

pressentimento, tenho a certeza de que amentalidade da Sra. Boynton émuitoimportante,nestecaso.Tiposcomoodelasão,semdúvida,familiaresaodoutorGerard.

–Domeupontode vista, ela eraum caso interessante – declarouomédico.

–Conte-me.ODr.Gerarddescreveuoseu interessepela família,aconversaque

tivera com Jefferson Cope e a maneira errada como este interpretara asituação.

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–MisterCopeéumsentimentalista–comentouPoirot.– Oh, essencialmente! Tem ideais baseados, na realidade, num

instintoprofundode indolência.Aceitaranaturezahumanapelo seu ladomelhoreomundocomoumlugaragradávelé,semdúvida,ocaminhomaisfácil da vida. Jefferson Cope não tem, por isso, amínima ideia do que aspessoassão,realmente.

–Issoàsvezespodeserperigoso–comentouPoirot.–Insistiaemconsideraroquedescrevereicomoa“situaçãoBoynton”

um caso de dedicação desencaminhada. Não possuía a mínima noção doódiosubjacente,darebelião,daescravaturaedatortura.

–Issoéestúpido–murmurouPoirot.–Noentanto–prosseguiuoDr.Gerard-,nemmesmoomaisobtuso

dosoptimistassentimentaispodesertotalmentecego.Creioque,naviagemaPetra,osolhosdeMisterJeffersonCopecomeçaramaabrir-se.

Eomédicorevelouaconversaquetiveracomoamericano,namanhãdamortedeMrs.Boynton.

–Interessante,essahistóriadacriada–disseodetetive,pensativo.–Lançaluznosmétodosdavelhasenhora.

– Foi uma manhã muito estranha, aquela! Não esteve em Petra,Monsieur Poirot? Se alguma vez lá for, não deixe de subir ao Lugar doSacri ício. Tem..., como direi?, ... tem atmosfera! – Descreveu o lugarpormenorizadamente e acrescentou: – Miss King sentou-se lá como umjuiz,afalardosacrifíciodeumparasalvarmuitos.Lembra-se,MisKing?

– Não falemos desse dia! – pediu Sarah, sem poder conter umcalafrio.

–Não; falemos antesde eventosmais antigos. – concordouPoirot. –Estou interessado no seu esboço damentalidade da Sra. Boynton, doutorGerard. Mas há uma coisa que não compreendo. Por que motivo, tendocriadoasuafamílianumambientedesujeiçãoabsoluta,decidiufazerestaviagemaoestrangeiro,ondehaviaoperigodeestabelecercontatoscomoexterioredeasuaautoridadeficarenfraquecida?

–Masissoélógico!–exclamouoDr.Gerard,cheiodeanimação.–Asvelhotassão todasasmesmas,em todoomundo.Aborrecem-se!Sea suaespecialidade é fazer paciências, aborrecem-se com a paciência queconhecemmelhorepretendemaprenderoutranova.Aconteceomesmoauma velha cujo passatempo, por incrível que possa parecer, é dominar eatormentarsereshumanos.Sra.Boyntondomaraosseustigres.Operíododa adolescência deve ter-lhe causado alguma excitação e o casamentodeLennox comNadine foiumaaventura,masdepois tudoestagnou.Lennox

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estava tão mergulhado em melancolia que era praticamente impossívelferi-lo ou inquietá-lo. Raymond e Carol não davam indícios de rebelião.Ginevra... Ah, la pauvre! Do ponto de vista da mãe, Ginevra era a queproporcionava menos divertimento, pois a jovem encontrara uma via deevasão: fugia da realidade para a fantasia. Quantomais amãe a atiçava,mais ela mergulhava no secreto prazer de ser uma heroína perseguida!Para Sra. Boynton tornou-se tudo de uma in inita melancolia e por isso,como Alexandre, procurou conquistar novos mundos. Planejou, pois, aviagem ao estrangeiro. Haveria o perigo de as suas feras amansadas serebelarem,haveriaoportunidadede in ligirnovasdores.Pareceabsurdo,maséverdade.Elaqueriaexperimentarumanovaemoção.

Poirotrespiroufundo.– É perfeito o que disse, e eu compreendi-o muito bem. Foi isso.

Ajusta-se tudo. La maman Boynton decidiu viver perigosamente... e issocustou-lhecaro.

Sarahinclinou-separaafrenteeperguntou,muitoséria:– Quer dizer que ela torturou as suas vítimas mais do que era

suportáveleelas,ouumadelas,serevoltarameamataram?Poirotbaixouacabeça.–Qualdelas?–perguntouajovem,emvozquaseinaudível.O detetive a olhou, mas não precisou responder porque, nesse

momento,oDr.Gerardlhetocounobraçoedisse:–Olhe.Umamoça subia a encosta com uma estranha graça cheia de ritmo

que quase lhe dava um ar de irrealidade. O vermelho-dourado do seucabelo brilhava ao sol e um sorrisomisterioso arqueava-lhe os cantos dabocabonita.

– Que bela! – exclamou Poirot. – Que estranha e comovedoramentebela! Era assim que deviam representar Ofélia, como uma jovem deusavindadeoutromundo,felizporseterlibertadodaservidãodasalegriasedasdoreshumanas.

– Tem razão! – exclamou o médico. – Tem um rosto que provocasonhos, não tem? Eu sonhei com aquela cara. Quando estava com febre,abriosolhosevi-a, comaqueledocesorrisosobrenatural... Foiumsonhoagradável, tão agradável que tive pena de acordar... – E, em tom maiscalmo,oDr.Gerardinformou:–ÉGinevraBoynton.

Passado um minuto, a moça chegou junto deles e o Dr. Gerardprocedeuàsapresentações:

–MissBoyton.MonsieurHerculePoirot.

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–Oh!A jovem itou-o, hesitante, a torcer nervosamente os dedos. A ninfa

encantadaregressaradopaísdoencantamento,voltaraaserapenasumasimplesmoçadesajeitada,nervosaeconstrangida.

–Foiumasorteencontrá-laaqui,mademoiselle.–declarouodetetive.–Procurei-anohotel...

–Procurou?–Osorrisotornara-sevazio.–Importa-sedepassearumbocadinhocomigo?Ela acompanhou-o, dócil e obediente. Pouco depois perguntou,

inesperadamenteeemvozestranhaemuitoapressada:–É...éumdetetive,nãoé?–Sou,sim,mademoiselle.–Veioproteger-me?Poirotafagouobigode,pensativamente,antesderesponder:–Querdizerqueestáemperigo,mademoiselle?

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XX

NadineBoyntonsaiudohoteleparou,hesitante.Umvultoqueesperavacorreuaoseuencontro:MisterJeffersonCope

colocou-seaoladodasuadama.–Vamosporestelado?Parece-meomaisagradável.Enquantocaminhavam,Mr.Copefalou.Aspalavrasbrotavam-lhedos

lábios sem di iculdade, embora com certa monotonia, e talvez nemreparassequeNadinenãooestavaaouvir.

Quando meteram pela encosta pedregosa e lorida, Nadineinterrompeu-o,muitopálida:

–Desculpe,Jefferson,precisofalarcomvocê...– Certamente, minha querida. Diga o que quiser, mas não se

preocupe.–Émaisinteligentedoqueeusupunha.Jásabeoquevoudizer,não

sabe?– É indubitavelmente verdade que as circunstâncias modi icam as

coisas. Tenho profunda consciência de que, nas presentes circunstâncias,asdecisõestomadasdevemserreconsideradas.–Calou-seummomento,asuspirar.–Temdeirparaafrente,Nadine,edefazeroqueentendedeverfazer.

–Étãobom,Jefferson,tãopaciente!–exclamou,comsinceraemoção,ajovem.–Achoqueotrateimuitomal,quefuiindecentecomvocê!

–Escute,Nadine, esclareçamos as coisas. Soube semprequais eramasminhaslimitações,emrelaçãoasi.Desdequeaconheçoquelhededicoomaisprofundoafetoeomaiorrespeitoequesódesejoasuafelicidade.Nuncadesejeioutra coisa. Vê-la infeliz quase me enlouquecia. Confesso, também, queconsidereiLennoxculpado.Achavaqueelenãoamerecia,vistonãosaberatribuirumpoucomaisdevaloràsuafelicidade.Agoraadmitoque,depoisdeosacompanharaPetra,penseiquetalvezLennoxnãofossetãoculpadocomomeparecia.Nãodesejodizernadacontraosmortos,masasuasogradeviaserumamulhermuitodifícil.

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–Sim,temrazão–concordouNadine.– Fosse como fosse, você procurou-me, ontem, e disse-me que

decidira,de initivamente,deixarLennox.Aplaudiasuadecisão,poisavidaquelevavanãoestavacerta.Foisinceracomigo,nãopretendeuconvencer-medequesentiapormimmaisdoqueumpoucodeafeto.Eusódesejavaterensejodecuidardesi,dea tratarcomomereciaser tratada.Confessoqueatardedeontemfoiumadasmaisfelizesdaminhavida.

–Lamento...lamento...–Nãovaleapena,minhaquerida.Tive,desdeoprincípio,asensação

dequenão era real oque sucedia, deque vocêmudaria, provavelmente,deopinião.Ascircunstânciasagorasãodiferentes,vocêeLennoxpoderãolevarumavidaprópria.

–Éverdade–murmurouNadine,baixinho.–Nãopossodeixaromeumarido.Perdoe-me.

– Não tenho nada que perdoar. Voltaremos a ser bons e velhosamigos,esqueceremosatardedeontem.

– Obrigada, querido Jefferson – agradeceu Nadine, e apertou-lhe obraço.–AgoravoutercomLennox.

Deixou-oeMr.Copecontinuousozinhooseucaminho.Nadine encontrou o marido sentado no cimo do Teatro Greco-

Romano. Ele só deu pela sua presença quando ela se sentou, ofegante, aseulado.

– Lennox... – O marido virou um pouco a cabeça. – Ainda nãopudemosconversar,massabesquenãotedeixarei,nãosabes?

–Tencionaste,realmente,deixar-me,Nadine?– Tencionei. Compreendes, parecia-me a única saída possível.

Esperava... esperava que me seguisses. Como fui cruel para o pobreJefferson!

Lennoxsoltouumapequenagargalhada.–Não foste tal! Uma pessoa tão pouco egoísta como o Copemerece

que se aproveite a sua excepcional nobreza de alma! E tu tens razão,Nadine, quando me disseste que partias com ele causaste-me o maiorabalo daminha vida. Creio que, ultimamente, andava a icar esquisito dacabeça... Por que diabo não virei as costas à mãe e não parti contigoquandomopediste?

–Nãopodias,meuquerido.–Amãeeraumapessoamuitíssimoestranha...Creioquenostinhaa

todosmeiohipnotizados.–Tinha,defato.

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Seguiram-sealgunsmomentosdesilêncio.– Quando me con iaste a tua decisão... foi como se levasse uma

pancada na cabeça! Regressei ao acampamento meio atordoado e, desúbito,compreendiograndíssimoidiotaqueforaequesópodiafazerumacoisa,senãotequeriaperder.–Otomdasuavoztornou-semaistenso,aoacrescentar:–Fuitercomelae...

–Nãodigas...Lennoxlançou-lheumolharrápidoeprosseguiu:– Discuti com ela. – Falava em voz absolutamente diferente,

cuidadosaeinexpressiva.–Disse-lhequetinhadeescolherentreasduas...equeteescolhiaati.

Eacrescentou,numcuriosotomdeauto-aprovação:–Sim,foiissoquelhedisse.

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XXI

Poirot encontrou duas pessoas no seu caminho de regresso. AprimeirafoiMr.JeffersonCope.

–MonsieurHerculePoirot?MeunomeéJeffersonCope.Os dois homens trocaram um cerimonioso aperto demão.Mr. Cope

começouacaminharaoladododetetiveeexplicou:–Acabodeterconhecimentodequeosenhorprocedeaumaespécie

de investigação de rotina acerca da morte da minha velha amiga, Sra.Boynton. Foi desagradável o que sucedeu. A idosa senhora não devia terempreendido uma viagem tão fatigante,mas era obstinada, a sua famílianãoaconseguiademover,quandoeladecidiaqualquercoisa.Eraamodosqueumatiranadoméstica.Oquediziaeralei!

Seguiu-seumapausaumpoucolonga.– Só lhe queria dizer,Monsieur Poirot, que sou um velho amigo da

família Boynton. Eles estão naturalmente, muito transtornados, são umpouco nervosos, e por isso, se houver quaisquer formalidades a cumprirquanto ao funeral ou ao transporte do corpo para Jerusalém, estou àsordenspara tudoquantoospossapoupar.Recorraamimparaoque forpreciso.

–Estoucertode,queafamíliaapreciaráasuaoferta,MisterCope.E,suponho,umamigoespecialdaSra.LennoxBoynton?

Mr.JeffersonCopecorouumpouco.– Não falemosmuito a esse respeito, Monsieur Poirot. Sei que teve

umaentrevista comSra.LennoxBoynton, estamanhã, e suponhoqueelalheterádadoaentenderoquesepassavaentrenós,mastudoissoacabou.Sra. Boynton é uma excelente mulher e acha que os seus principaisdeveressãoparacomomarido,nestatristeocorrência.

Poirotacenoudelicadamentecomacabeça.–ÉdesejodocoronelCarburyterumaideiaclaradosacontecimentos

natardedofalecimentodaSra.Boynton.Importa-sedemecontaroquesepassou?

– Da melhor vontade. Depois do almoço e de um breve repouso,pusemo-nos a caminho, para darmos uma volta pelas imediações.

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Conseguimos escapar à presença daquele dragomano peste... Foi então,duranteopasseioquefaleicomNadine.Depoiselaquis icarsozinhacomo marido, para discutir o assunto com ele, e eu regressei sozinho, edevagar,aoacampamento.Maisoumenosameiodocaminhoencontreiasduas senhoras inglesas que tinham participado na excursão da manhã;creioqueumadelaséumaladyinglesa,metidaempolíticas...

Poirotconfirmou.– É uma mulher extraordinária, muito culta e com uma excelente

cabeça.Aoutra, coitada,pareceu-memortade fadiga.A excursãomatinalfora extenuante para a pobre senhora, tanto mais que não suporta asalturas. Bem, encontrei essas duas senhoras e dei-lhes algumasinformações de caráter arquitectônico. Demos uma volta e chegamos aoacampamento cerca das seis horas. LadyWestholme insistiu emmandarfazercháeeutiveoprazerdebeberumaxícaracomela.Estavafraco,mastinha um sabor interessante. Depois, os criados puseram a mesa para ojantareumdelesfoichamaravelhasenhora,queencontroumorta,nasuacadeira.

–Reparounela,quandoregressouaoacampamento?–Repareiapenasqueestavanoseupostohabitual,duranteatardee

o anoitecer, mas não lhe dediquei atenção especial. Explicava a LadyWestholme o que acabáramos de ver e não perdia de vista Miss Pierce,quemalpodiaandardetãofatigada.

–Obrigado,MisterCope. Será indiscriçãodaminhaparteperguntarseSra.Boyntondeixouumagrandefortuna?

– Sim, muito considerável. Mas, vistas bem as coisas, não era dela.Cabia-lhe o usufruto, enquanto vivesse, e por sua morte deveria serrepartida pelos ilhos do falecido Elmer Boynton. Agora icarão numasituaçãomuitodesafogada.

–Odinheirofazumagrandediferença–murmurouPoirot.–Quantoscrimestêmsidocometidosporcausadele!

–Sim,éverdade...–concordouoamericano,umpoucoperturbado.– Mas há tantos motivos para assassinar, não há? – perguntou o

detetive, a sorrir meli luamente.Obrigado, Mister Cope, pela suacooperação.

– Não tem de quê. É Miss King que está ali sentada, não é? Vouconversarcomela.

Poirotcontinuouadesceraencosta.Umpoucoabaixo,cruzou-secomMissPierce,queasubia.

– Oh, Monsieur Poirot, estou tão contente por encontrá-lo! –

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exclamou, ofegante. – Estive a conversar com aquela estranha pequenaBoynton,amaisnova,eeladisse-meascoisasmaismirabolantesacercadeinimigos, de um xeque que a queria raptar, de espiões que a cercavam...Pareceu-me muito romântico, mas Lady Westholme a irmou serem tudotolicesedisseque,emtempos,teveumacriadadecozinha,tambémruiva,que diziamentiras iguais... Creio que, às vezes, LadyWestholme émuitodura.No imdecontas,podiaserverdade,nãopodia,MonsieurPoirot?Li,háanos,queumadas ilhasdoczarnão foimorta,durantearevolução,econseguiufugirparaaAmérica.Seriatãoemocionante!

Poirotrespondeu:–Éverdadequenavidaexistemcoisasmuitoestranhas.– Esta manhã não compreendi bem quem o senhor era... – Miss

Pierceapertouasmãos,numêxtase.–Claro,éaquele famosodetetive!Litudo acerca do caso ABC. Tão emocionante! Por sinal, nessa alturatrabalhavacomogovernantademeninospertodeDoncaster.

Poirot murmurou qualquer coisa e Miss Pierce continuou, comcrescenteagitação:

– Foi por isso que pensei que talvez me tivesse enganado, estamanhã. Devemos dizer sempre tudo, não devemos? Até o mais ín imopormenor, mesmo que pareça não ter nada a ver com o assunto. Sim,porqueseosenhorestáinvestigandoestecaso,apobreSra.Boyntondevetersidoassassinada!Compreendoagora.Porissopergunteiamimmesmaselhedeveriadizer...enfim,pensandobem,émuitopeculiar...

–Portanto,omelhorédizer-me.– Bem, não se trata de nada de importância... Namanhã seguinte à

morte da Sra. Boynton, levantei-me muito cedo e espreitei para fora datenda,afimdeadmiraronascerdoSol...

–Sim,sim.Equeviu?– Aí é que está o pormenor curioso... embora na altura não me

parecesse ter qualquer signi icado. Vi a pequena Boynton sair da suatenda e atirar qualquer coisa para o regato... Claro que isto não temimportâncianenhuma...maseraumobjetoquecintilava,aosol.

–DequepequenaBoyntonsetratava?– Suponho que lhe chamamCarol. É uma jovemmuito interessante,

tão parecida com o irmão que dir-se-iam gêmeos. Mas também pode tersidoamaisnova,poisosolbatia-menosolhosenãomedeixavaverbem.Noentanto,nãomepareceuqueocabelofosseruivo.

–Eelaatirouforaumobjetoquebrilhava?– Atirou. Mas, como disse, não liguei muita importância ao fato,

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naquela altura. Mais tarde, porém, passeei ao longo do rio e Miss Kingestava lá. Entre uma quantidade de outras coisas muito pouco próprias(atéumaouduaslatasdeconserva!),viumacaixinhademetalbrilhante...

– Oh, compreendo perfeitamente! Mais ou menos destecomprimento?

– Sim. Oh, como é inteligente! Pensei para comigo: “Deve ter sidoaquiloque apequenaBoyntondeitou fora...mas éuma caixinhabonita...”Apanhei-a,porcuriosidade,eabri-a.Continhaumaseringa,igualàqueladeque se serviram para me espetar quando me vacinaram contra a febretifoide. Achei estranho que a tivessem deitado fora, pois não pareciapartida,mas, de repente,MissKing falou atrás demim, não dera por elachegar, e disse: “Oh, obrigada! É aminha seringa hipodérmica. Andava àprocuradela.”Entreguei-lhaeelaregressouaoacampamentocomacaixa.

Miss Pierce parou, para tomar fôlego, e depois prosseguiu, a falarmuitodepressa:

–Claroquenãodeveterimportâncianenhuma,maspareceu-meumpouco estranho que Carol Boynton deitasse fora a seringa deMiss King.Evidentemente que deve haver uma boa explicação... – Calou-se, a olhar,cheiadeexpectativa,paraPoirot.

– Obrigado, mademoiselle – agradeceu o detetive, muito sério. – Oqueme contoupodenão ser importante em simesmo,masdigo-lhe umacoisa:completaomeucaso!Agoraestátudoclaroeemordem.

– Sim? – Miss Pierce corou, feliz como uma criança, e Poirotacompanhou-aaohotel.

De novo no seu quarto, acrescentou uma linha ao seumemorando:“Pontonº10.Eununcaesqueço!Lembre-sedisso.Nuncaesquecinada...”

Acenoucomacabeçaeexclamou,emvozalta:–Masoui!Agoraestátudoesclarecido!

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XXII

–Osmeuspreparativosestãocompletos–declarouHerculePoirot,aomesmo tempo que recuava um passo, suspirava e admirava a disposiçãoquederaaumdosquartosdesocupadosdohotel.

O coronel Carbury, indolentemente encostado à cama que foraempurradaparaaparede,sorriu.

–Vocêéumtipocômico,hem,Poirot?Gostadedramatizar.–Talvez...Masnãosetratadesatisfazerumcaprichopessoal.Quando

serepresentaumacomédiadeve-secomeçarporprepararocenário.–Masistoéumacomédia?–Mesmoquesejaumatragédia,tambémprecisaumcenário.Carburyolhou-ocomcuriosidade.–Bem,issoécomvocê.Nãoseiaondequerchegar,massuponhoque

descobriuqualquercoisa.– Terei a honra de lhe apresentar o que me pediu: a verdade! –

Poirot consultou o relógio. – São horas de começarmos. O senhor, moncolonel,sentar-se-áaqui,aestamesa,numaposiçãooficial.

–Poissim–resmungouCarbury.– Aqui – continuou Poirot, a modi icar um pouco a posição das

cadeiras – instalaremos a família Boynton. E aqui instalaremos as trêspessoas estranhas à família, mas que estão relacionadas com o caso: odoutorGerard,decujodepoimentodependeaacusação;MissSarahKing,quetemdois interessesnocaso,umpessoaleoutropro issional,eMisterJeffersonCope,quetinharelaçõesdeamizadecomosBoyntone,portanto,podeserconsideradoparteinteressada...Ah,aívêm!

Primeiro entraram Lennox Boynton e a mulher, seguidos porRaymond e Carol. Ginevra chegou sozinha, comum leve sorriso vago noslábios,eoDr.GerardeSarahKingfecharamocortejo.Mr.Copesóchegoupassadosalgunsminutos.

Depois de todos se encontrarem instalados nos seus lugares, Poirotdirigiu-lhesapalavra:

– Senhoras e senhores, esta reunião é absolutamente informal eresultoudaminhapresençaacidentalemAmã.OcoronelCarburydeu-me

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ahonrademeconsultar...Poirot foi interrompido por quem menos se esperaria: Lennox

Boynton,queperguntouagressivamente:–Porquê?Porquediabosometeuelenesteassunto?–Souconsultadocommuitafrequênciaemcasosdemortesúbita.–Osmédicosmandam-nochamarsemprequealguémmorredeum

colapsocardíaco?–insistiuLennox.– Colapso cardíaco é um termo tão vago e tão pouco cientí ico! –

afirmouPoirot,docemente.OcoronelCarburypigarreoueinterveio,noseutommaisoficial:–Achomelhor falarmosclaro.As circunstânciasdamorte foram-me

comunicadas e pareceu-me tudo muito natural. O tempo estava muitoquente, a viagem fora extenuanteparauma senhora idosa edoente...Atéaí, estava tudo bem. Mas o doutor Gerard procurou-me e deu-me umainformação... – Olhou interrogadoramente para Poirot, que acenou com acabeça.–OdoutorGerardéummédicoeminente,dereputaçãomundial,eas suas opiniões são, portanto, dignas de receberem a devida atenção. Odoutor Gerard comunicou-me o seguinte: namanhã imediata àmorte daSra.Boynton,notouquefaltavanoseuestojodemedicamentosumacertaquantidade de umadroga potente, que atua sobre o coração. Já na tardeanterior dera pela falta de uma seringa hipodérmica, a qual, no entanto,fora devolvida durante a noite. Alémdisso, no pulso damorta havia umapicadaquecorrespondiaàdeixadaporumaagulha,aoaplicarumainjeção.–O coronel Carbury fez uma breve pausa. –Nestas circunstâncias, acheidever das autoridades investigarem o assunto. Monsieur Hercule Poirotera meu convidado e teve a delicadeza de oferecer os seus serviços deespecialista. Dei-lhe carta branca, para proceder às investigações queconsiderasse necessárias e estamos agora aqui reunidos para tomarconhecimentodassuasconclusões.

Seguiu-seumsilênciotãototalque,comosecostumadizer,sepoderiaouvir cair umal inete. Por coincidência, noquarto ao lado alguémdeixoucairqualquercoisa–talvezumsapato-,comumbarulhosemelhanteaodeumabomba,naatmosferasilenciosa.

Poirot olhou para o grupo de três pessoas reunidas à sua direita edepoisobservouascincosentadasàsuaesquerda.

–QuandoocoronelCarburymefaloudesteassunto,dei-lheaminhaopinião de perito – declarou o detetive. – Disse-lhe que talvez não fossepossível reunir provas capazes de serem aceites num tribunal, masacrescentei que estava convencido de que descobriria a verdade e que,

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para tanto, me bastaria interrogar as pessoas relacionadas com o caso.Deixem-me dizer-lhes, meus amigos, que para investigar um crime só énecessáriodeixaroculpadoouosculpadosfalar.No im,eleouelesdizemsempre o que queremos saber Assim, neste caso, embora me tivessemmentido,acabaramtambémpormedizeraverdade.

Ouviuumlevesuspiro,masnãosevoltouparaoladodondepartira.– Primeiro, estudei a possibilidade da Sra. Boynton ter morrido de

mortenatural,maspu-ladeparte.Odesaparecimentodadroga,aseringae, sobretudo, a atitude da família da morta convenceram-me de que talsuposição não tinha base. Sra. Boynton fora assassinada a sangue-frio etodososmembrosdasuafamíliatinhamconsciênciadisso!Coletivamente,reagiramcomoculpados.

“Mas há graus de culpabilidade. Estudei cuidadosamente os fatosapurados, a im de concluir se o assassinato (sim, foi assassinato!) foracometido pela família da vítima, num plano de conjunto. Havia motivossobejosparaaquereremliquidar.Todoslucravamcomasuamorte,tantono sentido inanceiro, pois conquistariam, ato contínuo, independênciainanceirae icariam,até,ricos,comonosentidodeselibertaremdoquesetransformaranumatiraniaquaseinsuportável.”

“Mas continuemos. Veri iquei, quase imediatamente, que o plano deconjuntonãotinhamuitasprobabilidadesdeexistir.AshistóriasdafamíliaBoyntonnão se ajustavammuito bemumas às outras e nãohavia indíciodequalquersistemadeálibisaceitáveis.Osfatospareciammaistendentesa sugerir que um ou, talvez, dois membros da família tinham agido emconluio e que os outros eram encobridores. Depois tentei averiguar quemembrooumembrospareciammaisindicados.Confessoque,nesteponto,sofri a tentação deme deixar in luenciar por certo pormenor que só euconhecia.”

Poirot revelou o que se passara em Jerusalém, a frase que tinhaouvido.

– Naturalmente, essa frase fazia incidir as suspeitas em MisterRaymondBoynton.Estudeiafamíliaechegueiàconclusãodequeapessoamais indicada para sua con idente, naquela noite, era a sua irmã, Carol.Pareciam-senoaspectoenotemperamentoe,portanto,deviaexistirentreambosumlaço fortedesimpatia.Alémdisso,possuíamambos, também,otemperamentonervosoerebeldenecessárioparaaconcepçãodetalato.Ofatodeosseusmotivosserem,emparte,altruístas(libertartodaafamíliae, sobretudo, a irmã mais nova), ainda tornava mais plausível oplanejamentodaação.

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Poirotcalou-seeRaymondBoyntonentreabriuoslábios,masvoltouafechá-los.Osseusolhosfitavamodetetive,cheiosdeangústia.

–Antesde continuar a apresentar o caso contraRaymondBoynton,gostaria de lhes ler uma lista de fatos signi icativos, que apresentei estatardeaocoronelCarbury:1.Sra.BoyntontomavaumremédioquecontinhaDigitalis.2.OdoutorGerarddeuporfaltadeumaseringahipodérmica.3. Sra. Boynton sentia grande prazer em impedir a família de se divertircomasoutraspessoas.4.Na tardeemquestão,Sra.Boyntonencorajoua famíliaa irpasseareadeixá-lasozinha.5.Sra.Boyntoneraumasádicamental.6. A distância entre a tenda grande e o lugar onda Sra. Boynton estavasentadaera(aproximadamente)decentoeoitentametros.7. Mister Lennox Boynton disse, ao princípio, não saber a que horasregressaraaoacampamento,masdepoisadmitiuteracertadoorelógiodamãe.8.OdoutorGerardeMissGinevraBoyntonocupavamtendascontíguas.9. Às seis horas e trinta, quando o jantar estava pronto, um criado foianunciá-loàSra.Boynton.10.EmJerusalém,Sra.Boyntonempregouaspalavras:Eununcaesqueço!Lembre-sedisso.Nuncaesquecinada.

“Embora tenha numerado os vários pontos separadamente, algunspodemser reunidosaospares.Aconteceassim,porexemplo, comosdoisprimeiros: Sra. Boynton tomava um remédio que continha Digitalis. Odoutor Gerard deu por falta de uma seringa hipodérmica. Estes doispormenores foram os que primeiro me impressionaram, no caso, econfesso que os achei muito extraordinários e absolutamenteirreconciliáveis. Não compreendem o que quero dizer? Não importa.Voltareiaoassuntomaisadiante.”

“VouconcluiromeuestudodaspossibilidadesdeculpadeRaymondBoynton. Foraouvidoadiscutir ahipótesede tirar a vida a Sra.Boynton.Encontrava-se num estado de grande excitação nervosa. Acabava depassar, amademoiselledesculpará– inclinoua cabeçaaSarah -, acabavade passar por uma grande crise emocional, isto é, apaixonara-se. Aexaltaçãodosseussentimentospodialevá-loaagirdeváriosmodos.Podiasentir-se inclinado a mostrar-se brando e condescendente para com o

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mundoemgeral,incluindoamadrasta;podiasentir, inalmente,acoragemnecessária para a desa iar e libertar-se da sua in luência, ou podiaencontrar o incentivo para passar o seu crime da teoria para a prática.Estaéapsicologia.Examinemosagoraosfatos.”

“Raymond Boynton saiu do acampamento, com os outros, cerca dastrês e umquarto da tarde.Nessa altura, Sra. Boynton estava viva e bem.Passado pouco tempo, Raymond e Sarah King tiveram um tête-à-tête.Depois ele deixou-a e, segundo declarou, regressou ao acampamento àsseishorasmenosdezminutos.Foitercomamãe,trocoualgumaspalavrascomela, dirigiu-se à sua tenda edepois à tenda grande.Declarouque àsseishorasmenosdezminutosSra.Boyntonestavavivaebem.Maseisquenossurgeumfatoquecontradizdiretamentetala irmação.Àsseisemeia,umcriadoencontrouSra.Boyntonmorta.MissKing,quesebacharelouemMedicina, examinou o corpo e jura que, embora não tivesse prestadoespecial atenção a esse pormenor, a morte ocorrera com certeza pelomenosumahoraantesdasseishoras.”

“Comoveem, temosduasdeclaraçõescontraditórias.PondodeparteapossibilidadedeMissKingtercometidoumerro...”

– Não cometo erros – interrompeu-o Sarah. – Quero dizer, se metivesseenganado,admiti-lo-ia.

Poirotfez-lheumavênia,cortesmente.–Nessecaso,sóháduaspossibilidades:MissKingouMisterBoynton

mentem! Examinemos as razões que Raymond Boynton poderia ter paramentir. Partamos do princípio de que Miss King não se enganou e nãomentiudeliberadamente.Qual foi,então,asequênciadosacontecimentos?Raymond Boynton regressou ao acampamento, viu a mãe sentada àentrada da caverna, foi ter com ela e encontrou-amorta. Que fez? Pediusocorro?Comunicou imediatamenteoqueacontecera?Não.Aguardouumminuto ou dois, foi à sua tenda e a seguir reuniu-se à família, na tendagrande,enãodissenada.Semelhantecondutaémuitocuriosa,nãoé?

Raymondrespondeu,emvoznervosaeirritada:–Seria,até,idiota.Issodevedemonstrar-lhequeaminhamãeestava

viva e bem, como eu disse. Miss King enervou-se, icou transtornada ecometeuumerro.

–Ocorreperguntar–prosseguiuPoirot, calmamente, comosenãooouvisse–sehaveriaumarazãopara talconduta.Àprimeiravista,parecequeRaymondBoyntonnãopode ser culpado, pois noúnicomomento emqueseaproximoudamãe,naquelatarde,ela jáestavamortahaviaalgumtempo. Supondo, portanto, que Raymond Boynton está inocente,

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poderemosexplicarasuaconduta?“Respondo que, partindo do princípio da sua inocência, podemos!

Recordo-me, mais uma vez, do fragmento de conversa que ouvi:Compreendesqueelatemde ser morta, não compreendes? Raymond Boynton regressou do seupasseio, encontrou a mãe morta e, ato contínuo, a sua memória culpadaentreviuumacertapossibilidade:oplanoforaexecutado,nãoporele,masporquemcomeleogizara!Toutsimplement,elesuspeitouqueasuairmã,CarolBoynton,eraculpada.”

–Émentira!–afirmouRaymond,emvozbaixaetrêmula.–Estudemos,agora,apossibilidadedeCarolBoyntonseraassassina.

Quaissãoasprovascontraela?Possuiomesmotemperamentoimpetuoso,ogênerodetemperamentocapazderevestirdecoresheroicassemelhanteato.Foicomela que Raymond Boynton falou, naquela noite, em Jerusalém. CarolBoyntonregressouaoacampamentoàscincoedez.Segundodeclarou, foifalar com amãe, mas ninguém a viu. O acampamento estava deserto, oscriadosdormiam.LadyWestholme,MissPierceeMisterCopeandavamaexplorar cavernas, fora do campo visual do acampamento. Não havia,portanto, testemunhas da possível ação de Carol e o tempo da morteestariacerto.OcasocontraCarolBoyntonéperfeitamentepossível.

Calou-se.Carollevantaraacabeçaefitava-o,tristeefirmemente.–Háaindaoutroponto.Namanhã seguinte,muito cedo, alguémviu

CarolBoyntonatirarqualquercoisaparaoregato.Hárazõesparacrerqueesse“qualquercoisa”eraumaseringahipodérmica.

–Comment?–perguntouoDr.Gerard,surpreendido.–Masaminhaseringafoidevolvida!Foi,eutenho-a!

Poirotacenoucomacabeça,veementemente.–Sim,oaparecimentodesta segundaseringaémuito curioso,muito

interessante.Deram-meaentenderqueaseringapertenciaaMissKing.Éverdade?

ComoSarahhesitasseumafraçãodesegundo,Carolseantecipou-se:–NãoeraaseringadeMissKing;eraaminha.–Admite,então,queaatiroufora,mademoiselle?Ajovemhesitou,apenasuminstante.–Sim,comcerteza.Porquenãojogariafora?– Carol! – exclamou Nadine, inclinada para a frente, de olhos

dilatadoseinquietos.–Carol...oh,nãocompreendo!Carolvirou-separaela,comumacertahostilidade.

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–Nãohánadaquecompreender!Atireiforaumaseringavelha.Nãotoqueino...noveneno.

Sarahinterveio:–OqueMissPierce lhedisseéverdade,MonsieurPoirot.A seringa

eraminha.Poirotsorriu.–Émuitoconfuso,estecasodaseringa,emboraeucreiaquesepode

explicar. En im, já estudamos duas possibilidades: a da inocência deRaymond Boynton e a da culpabilidade da sua irmã, Carol. Mas eu souescrupulosamentejusto,procuroversempreosdoisaspectosdequalquerquestão.VejamosoqueaconteceriaseCarolBoyntonestivesseinocente.

“Ela chegou ao acampamento, foi ter comamadrasta e encontrou-a(admitamos)morta. Qual foi a primeira coisa que lhe acudiu ao espírito?Suspeitou de que o irmão, Raymond, a matara. Sem saber que fazer,resolveu calar-se. Pouco depois, passada cerca de uma hora, RaymondBoyntonchegouaoacampamentoe,depoisdeterestadojuntodamãe,nãodissenada,nãocomunicouquenotaraalgoanormal.Nãolhespareceque,perante tal procedimento, as suspeitas da irmã se tornariam certezas?Talvezelatenhaidoàtendadoirmãoeencontrasseaseringa...Então,sim,teve a certeza! Pegou na seringa, escondeu-a e de manhã muito cedodeitou-afora.”

“Mas há ainda outro indício da inocência de Carol Boynton. Elagarantiu-me,quandoainterroguei,quenuncatinhampensadoseriamenteem pôr em prática o plano. Pedi-lhe que jurasse e Miss Boynton jurouimediatamente, e comamaior solenidade, quenão era culpadado crime.Foi assim que ela se exprimiu: não jurou que eles – ela e o irmão – nãoeram culpados; jurou que ela não era culpada e pensou que eu nãoprestariaatençãoaopormenor.”

“Eh bien, está demonstrada a inocência de Carol Boynton. Voltemosagoraatráseconsideremosnãoa inocência,mas, sim,apossívelculpadeRaymond.SuponhamosqueCaroldisseaverdade,queSra.Boyntonestavavivaàs cincoedez.EmquecircunstânciaspoderáRaymondser culpado?Podemos supor quematou amadrasta às seis horasmenos dezminutos,quando foi falar com ela. É verdade que os criados já andavam peloacampamento,mascomeçavaaescurecer.Podia,defato,serpossível,masnesse casoMissKing teriamentido. Lembremo-nosdequeela chegouaoacampamentocincominutos,apenas,depoisdeRaymond.De longe,vê-lo-ia ir ter com a mãe. Mais tarde, quando a encontrou morta, Miss Kingconvenceu-sedequeRaymondamatarae,paraosalvar,mentiu,sabendo

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comosabiaqueodoutorGerardestavadecama,comfebre,enãopoderiadesmascararasuamentira!

–Eunãomenti!–afirmouSarah,comfirmeza.– Há ainda outra possibilidade.Miss King, como já disse, chegou ao

acampamento poucos minutos depois de Raymond. Se este encontrou amãeviva,podetersidoMissKingquemadministrouainjeçãofatal.Estavaconvencida de que Sra. Boynton era fundamentalmente má e talvez setenha visto como uma justiceira. Isso explicaria, também, a sua mentiraacercadahoradamorte.

Sarah,queempalideceramuito,falouemvozbaixa,masfirme:–Éverdadequefaleidaaparentejustiçadeumapessoamorrerpara

salvar muitas. O Lugar do Sacri ício inspirou-me essa ideia. Mas possojurar que não iz mal nenhum àquela velha revoltante nem tal ideia mepassoupelacabeça!

–E,noentanto,umdosdoisdeveestaramentir– comentouPoirot,emtommuitosuave.

Raymond Boynton mexeu-se na cadeira e exclamou,impetuosamente:

– Venceu, Monsieur Poirot! O mentiroso sou eu. Minha madrastaestava morta quando cheguei perto dela. Fiquei... iquei aparvalhado.Compreende, estava decidido a esclarecer tudo com ela, a dizer que,doravante, seria livre. Estava absolutamente decidido, compreende? Maschegueieelaestava...morta!Tinhaamãofriaeinerte.Pensei...aquiloqueosenhordisse...penseiquetalvezCarol...Enfim,viamarca,nopulso...

– Ainda não estou completamente informado a esse respeito –interrompeu-o, de súbito, Poirot. – Qual era o método que tencionavamempregar? Tinham um método estudado, e relacionava-se com umaseringahipodérmica.

– Era uma coisa que tinha lido num livro... num romance policialinglês – tartamudeou Raymond. – Espetava-se a agulha de uma seringavaziaemalguém...ebastava.Parecia...pareciamuitocientífico.

–Ah!–exclamouPoirot.–Compreendo.Ecompraramumaseringa?–Não.RoubamosadeNadine.– A seringa que está na sua bagagem em Jerusalém, madame? –

perguntouPoirotàvisada.–Não... não tinha a certeza do que lhe acontecera – respondeu, um

poucocorada,Nadine.–Temreflexostãorápidos,madame!–elogiouodetetive.

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XXIII

Poirotpigarreou,comumbocadinhodeafetação,eprosseguiu:– Resolvemos o mistério daquilo a que chamo a segunda seringa.

Uma seringa, que pertencia a Sra. Lennox Boynton, foi subtraída porRaymondBoyntonantesdepartiremdeJerusalém,foitiradadeRaymondpor Carol depois da descoberta do cadáver, jogada fora pela jovem,encontradaporMissPierceereclamada,comosua,porMissKing.SuponhoqueMissKingestejacomela?

–Sim.–Portanto,quandohápouconosa irmouqueerasua,fezaquiloque

dissenãofazer:mentiu.–Umdiferentegênerodementira.–disseSarah,serenamente.–Não

é...nãoéumamentiraprofissional.–Sim,compreendoperfeitamente.–Obrigada.Poirotvoltouapigarrear.–Passemosagoraemrevistaonossohorário:

OsBoyntoneJeffersonCopesaíramdoacampamento(aprox.)–3.05DoutorGerardeSarahKingsaíramdoacampamento(aprox.)–3.15LadyWestholmeeMissPiercesaíramdoacampamento(aprox.)–4.15DoutorGerardregressouaoacampamento(aprox.)–4.20LennoxBoyntonregressouaoacampamento–4.35Nadine Boynton regressou ao acampamento e falou com Sra. Boynton –4.40NadineBoyntondeixouasogra,efoiparaatenda,grande(aprox.)–4.50CarolBoyntonregressouaoacampamento–5.10Lady Westholme, Miss Pierce e Mister Jefferson Cope regressaram aoacampamento.....5.40RaymondBoyntonregressouaoacampamento–5.50SarahKingregressouaoacampamento–6.00Ocorpofoidescoberto–6.30

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“Há, como veri icarão, um hiato de vinte minutos entre as quatrohorasecinquenta,horaemqueNadineBoyntondeixouasogra,eascincohorasedez,horaemqueCarolregressou.Portanto,seCaroldizaverdade,Sra.Boyntondeve ter sidomortanessesvinteminutos.Quemapodia termatado? Nessa altura, Miss King e Raymond Boynton estavam juntos.MisterCope (emboranão tenhaqualquermotivo aparentepara amatar)possui um álibi: estava com Lady Westholme e Miss Pierce. LennoxBoyntonestavacomamulhernatendagrande.OdoutorGerarddebatia-secomumataquedefebrenasuatenda.Oacampamentoestavadeserto,oscriados dormiam... era, em suma, um momento propício para ocometimento de um crime! Mas estava presente alguém que o pudessecometer?

Osolhosdodetetivedesviaram-se,pensativos,paraGinevraBoynton.–Estavapresenteumapessoa.GinevraBoyntonesteve todaa tarde

na sua tenda. Pelo menos foi isto que nos disseram, mas na realidadeexistem provas de que ela não esteve sempre na sua tenda. Ginevra fezumaobservaçãomuitointeressante:dissequeodoutorGerardpronunciouoseunome,enquantodormia.OraodoutorGerardtambémnosdisseque,duranteoseuataque febril sonhoucomorostodeGinevraBoynton.Masnãosetratoudeumsonho!Foirealmenteacaradelaqueeleviu,juntodasua cama. Supôs tratar-se de um efeito da febre, mas era a realidade.Ginevra foi à tenda do doutor Gerard. Não será possível que tenha idoreporaseringa,depoisdeahaverutilizado?

Ginevra levantou a cabeça ruivo-dourada e os seus belos olhosfitaramPoirotcomumasingularfaltadeexpressão.

–Ah,çanon!–protestouomédico.–Éassimtãopsicologicamenteimpossível?–indagouodetetive.Ofrancêsbaixouosolhos,masNadineBoyntonafirmou,vivamente:–Éimpossível!Poirotvirou-selogoparaela.–Impossível,madame?–Sim.–Nadinecalou-se,mordeuoslábioseprosseguiu:–Nãoestou

dispostaaouvirsemelhanteacusaçãocontraaminhacunhada!Todosnóssabemosqueéimpossível!

Ginevramexeu-seumpouconacadeiraeasuabocadescontraiu-senum sorriso, no sorriso comovedor, inocente e semi-inconsciente de umarapariguinhamuitonova.

–Impossível!–repetiuNadine.Poirotinclinou-se,quasenumavênia,edeclarou:

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–Madameémuitointeligente.–Quequerdizercomisso,MonsieurPoirot?–Querodizer,madame, que compreendi desde o princípio que tem

umaexcelentecabeça.–Lisonjeia-me.– Não creio. Desde o princípio que encarou a situação calma e

serenamente.Manteve-seaparentementeemboasrelaçõescomamãedoseu marido, pois essa pareceu-lhe a melhor maneira de proceder, masintimamente julgou-a e condenou-a. Suponho que, há algum tempo,compreendeuqueaúnicaprobabilidadedeoseumaridoserfelizerasairdecasa,singrarporsipróprio,pormuitodi ícilemodestaquefosseavidaque poderiam levar nessas condições. Estava disposta a correr todos osriscos e tentou convencê-lo,mas falhou,madame. LennoxBoynton já nãotinhavontadedeserlivre.

“Ora, eu não tenho dúvida nenhuma de que a senhora ama o seumarido.Asuadecisãodeodeixarnãofoiinspiradaporumamormaiorporoutrohomem.Foi,creio,umaúltimaedesesperadatentativa.Umamulherna sua situação só podia tentar três coisas. A súplica que, como disse,falhou.Aameaçadeabandono,mas creioquenem isso chegaria, já, paradespertar Lennox Boynton. Mergulhá-lo-ia num sofrimento ainda maior,masnãoo incitaria a rebelar-se.Havia sóumaderradeira edesesperadatentativa: fugir comoutro homem.O ciúme e o instinto de posse são doisdos instintos fundamentaismaisprofundamenteenraizadosnohomem.Asenhoramostroua sua inteligênciaao tentaratingiresse instintoocultoeselvagem. Se Lennox a deixasse partir com outro homem sem fazer umesforço,entãoestava,deveras, foradoalcancedetodooauxíliohumanoeasisólherestavatentarrefazerasuavida.”

"Suponhamosqueatéessederradeiroedesesperadoremédiofalhou.Seu marido icou profundamente transtornado com a sua decisão, masapesardisso,eaocontráriodoqueasenhoraesperara,nãoreagiucomoohomemprimitivoreagiria,comumaexplosãodeinstintodeposse.Haveriaalguma coisa capaz de salvar o seu marido do rápido declínio das suasfaculdades mentais? Só uma coisa. Se a madrasta morresse, talvez nãofosse ainda tarde demais . Talvez ele fosse capaz de recomeçar a vivercomoumhomemlivre,derecuperaraindependênciaeavirilidade.”

Nadine, que não desviara os olhos dele, redarguiu, em voz calma eimperturbável:

– Está a sugerir que ajudei a tornar esse fato realidade?Não pode,MonsieurPoirot.Depoisde tercomunicadoàSra.Boyntona iminênciada

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minhapartida, fuidireitaà tendagrande,ondemereuniaLennox, enãosaíde láatéencontraremaminhasogramorta.Possoserculpadadasuamortenosentidodelhetercausadoumabalo,oquepressupõeumamortenatural; mas se o senhor diz (embora até agora não tenha quaisquerprovasdissonemaspossaterenquantonãoforefetuadaaautópsia),massedizqueela foideliberadamentemorta,entãoeunão tiveoportunidadedeamatar.

–Nãosaiudatendagrandeatéasuasograserencontradamorta?–perguntouPoirot.–Esse,Sra.Boynton,éumdospontosdestecasoquemetemparecidomuitocurioso.

–Quequerdizer?– Está aqui, naminha lista: “Nove. Às seis horas e trinta, quando o

jantarestavapronto,umcriadofoianunciá-loàSra.Boynton.”–Nãocompreendo–disseRaymond.–Nemeu–confessouCarol.Poirotolhou-os,sucessivamente.– Não compreendem, hem? “Um criado foi anunciar...” Por que um

criado? Não eram todos vocês de uma grande assiduidade quando setratava de cuidar da velha senhora? Não havia sempre um que seencarregavadebuscá-laedeacompanhá-laàmesa,nahoradasrefeições?Ela estava doente, tinha di iculdade em se levantar de uma cadeira semauxílio. Um de vocês estava sempre “de serviço”, a seu lado. Parece-me,portanto, que ao ser anunciado o jantar seria natural uma pessoa dafamíliairajudá-la.Masnenhumseprontificouafazê-lo.

–Tudoissoéabsurdo,MonsieurPoirot!–exclamouNadine, irritada.– Estávamos todos cansados. Admito que devíamos ter ido, mas naquelanoitenãofomos!

– Precisamente! Naquela noite especial! A senhora, por exemplo,dispensava-lhemais cuidados do que qualquer dos outros, era umdeverque aceitava maquinalmente. Mas nessa noite não se levantou para a irajudar. Por quê? Fiz essa pergunta a mim próprio, por que?, e vou-lhedizeraresposta:porquesabiamuitobemqueelaestavamorta...Não,nãomeinterrompa,madame!–Levantouamão,imperioso.–Agoraouvir-me-áa mim, Hercule Poirot! Houve testemunhas da sua conversa com a suasogra, testemunhas que puderam ver, mas não puderam ouvir. LadyWestholmeeMissPierceestavammuitolonge.Viram-na,aparentemente,aconversarcomasuasogra,masqueprovasconcludentesexistemdoquese passou? Permito-me apresentar uma teoriazinha. A senhora éinteligente.Se,àsuamaneiracalmaelúcida,decidisse...digamos,decidisse

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eliminar amãedo seumarido, procederia com inteligência e efetuaria osdevidos preparativos. Teria acesso à tenda do doutor Gerard, durante asuaausência,naexcursãomatinal, convencidadeque láencontrariaumadroga adequada. O seu treino de enfermeira ajudá-la-ia, nesse capítulo.Escolheria a digitoxina, o mesmo gênero de droga que a velha senhoraandavaatomar,elevariatambémaseringa,vistoque,inexplicavelmente,asua desaparecera. Esperaria poder repor esta última, antes de o doutordarpelasuafalta.

“Antesdepôrempráticaoseuplano,resolveutentarumaúltimavezsacudiroseumaridoda letargiaemquemergulharae,por isso, falou-lheda sua intenção de casar com Jefferson Cope. Embora icasse muitotranstornado, seu marido não reagiu como a senhora esperara, o que aobrigouarecorreraoplanodoassassinato.Regressouaoacampamentoe,no caminho, trocou umas palavras amáveis e naturais com LadyWestholmeeMissPierce.Foiencontrarsuasogra,deseringapreparadae,maisumavezgraçasaoseutreinodeenfermeira,nãotevedi iculdadeeminjetar.Suasogranemteveconsciênciadoqueacontecia.Delonge,dovale,osoutrossóaviaminclinadaparaela,afalar.Depois,deliberadamente,foibuscarumacadeiraesentou-se,aparentementeentretidanumaconversaamena,durantealgunsminutos.Amortedevetersidoquaseinstantâneae,porisso,eracomumamortaquefalava,masquemoperceberia?Aseguirarrumou a cadeira e foi para a tenda grande, onde encontrou o seumarido, a ler, e teve o cuidado de não sair de lá. Estava certa de que amorte da Sra. Boynton seria atribuída a colapso cardíaco (como narealidadefoi!).Osseusplanossófalharamnumpormenor:nãopôdereporaseringanatendadodoutorGerard,emvirtudedeeleláestaratacadodemalária... e, embora o ignorasse, ele já dera por falta da seringa! Essa,madame,foiafalhanumcrimeque,decontrário,seriaperfeito.”

Seguiu-se um momento de silêncio absoluto, pesado, e por imLennoxlevantou-seegritou:

–Não! Isso é uma grandementira,Nadinenão fez nada!Nãopodiaterfeito,pois...poisminhamãejáestavamorta.

–Ah!–exclamouPoirot,eosseusolhoso itaram,suaves.–A inal,foiosenhorqueamatou,MisterBoynton?

Novapausa.DepoisLennoxdeixou-secairnacadeiraelevouasmãostrêmulasaorosto.

–Sim...éverdade.Euamatei.–TirouadigitoxinadatendadodoutorGerard?–Tirei.

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–Quando?–Como...comoosenhordisse...demanhã.–Easeringa?–Aseringa?Sim.–Porqueamatou?–Aindaopergunta?–Estouaperguntar,MisterBoynton.–Masjásabe...aminhamulheria-medeixar...iapartircomCope...–Poissim,masosenhorsósoubedissodetarde!–Claro.Quandosaímos...–Mastirouovenenoeaseringademanhã,antesdesaber?–Porquediabomeatormentacomperguntas?–Calou-seepassoua

mãotrêmulapelatesta.–Queimportânciatemisso,aliás?– Tem muita, Mister Lennox Boynton. Aconselho-o a dizer-me a

verdade.–Averdade?–repetiuLennox,afitá-lo.Nadinevirou-sebruscamentenacadeiraeolhouparaomarido.–Foioquelhepedi–dissePoirot.–Quedissesseaverdade.–MeuDeus,direi! – exclamouLennox,muitoagitado. –Masnão sei

se me acreditará. Naquela tarde, quando deixei Nadine, estavaverdadeiramentedesfeito.Nuncaimaginaraqueelamepudessetrocarporoutro. Sentia-me... sentia-me quase louco! Era como se estivesseembriagadoouarefazer-medeumadoençagrave.

– LadyWestholmeachouestranhoo seu andar, quandopassouporela – observou Poirot, a acenar com a cabeça. – Foi por isso quecompreendiquea suamulhermentiaquandoa irmou ter-lheditodepoisdeteremambosregressadoaoacampamento.Continue,MisterBoynton.

–Malsabiaoquefazia...masquandomeaproximeidoacampamentoomeucérebropareceudesanuviar-se.Compreendi,desúbito,queaculpaera exclusivamente minha. Portara-me como um verme! Devia terdesa iadoaminhamadrastaesaídodecasaanosantes.Penseiquetalvezaindanão fosse tardedemais .Láestavaela,ovelhodiabo,sentadacomoum ídolo obsceno, defronte dos penhascos vermelhos! Fui direito a ela,decidido a dizer-lhe o que pensava e a informá-la de queme ia embora.Nãoseiporque,estavaconvencidodequepoderiapartirnaquelamesmanoite, de que poderia partir comNadine e chegar aMaan ainda naquelanoite...

–Oh,Lennox,meuquerido!– E depois, meu Deus!... Ela estava morta. Ali sentada, morta! Não

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soube que fazer, iquei aparvalhado. Tudo quanto decidira gritar-lheestava fechado dentro de mim, transformado em chumbo... não seiexplicar... Tive a sensação deme transformar em pedra.Maquinalmente,pegueinorelógiodepulsodela(estavacaídonocolo)epus-lhonobraço...naquele horrível e inerte braço morto... – Estremeceu. – Meu Deus, foiterrível! Depois desci, como embriagado, para a tenda grande. Suponhoquedeviaterchamadoalguém...masnãopude.Deixei-me icarsentado,avirar aspáginas, à espera... – Fezumapausa longa. –Nãoacredita, claro,não pode acreditar. Por que não chamei ninguém? Por que não disse aNadine?Nãosei.

ODr.Gerardpigarreoueintrometeu-se:–As suasdeclarações sãoperfeitamenteplausíveis,MisterBoynton.

Encontrava-se num grave estado de nervosismo e dois abalos fortes,sofridos um atrás do outro, chegariam para o deixar como explicou.Chama-se a isso a reação de Weissenhalter, mais bem exempli icada nocasodeumpássaroquebatecomacabeçanumajanela.Mesmodepoisdeserefazerdochoque,evitainstintivamentequalqueração,a imdedaraoscentros nervosos o tempo necessário para se reajustarem. Não meexprimo muito bem em inglês, mas o que quero dizer é o seguinte: osenhor não podia ter procedido de outro modo. Uma ação decisiva, dequalquer espécie, ser-lhe-ia absolutamente impossível! Passou por umperíodo de paralisia mental. – Voltou-se para Poirot e acrescentou: –Garanto-lhe,meuamigo,queéassim.

–Oh,nãoduvido!Porsinal, járepararanumpequenopormenor:nofatodeMisterBoyntonterrepostoorelógiodepulsodamãenoseulugar.Esse ato podia ter duas explicações: ou tratar-se de um disfarce do atocriminoso, ou ter sido observado e mal interpretado por Sra. LennoxBoynton. Ela regressou cinco minutos, apenas, depois do marido e deve,portanto,tervistoessaação.Quandochegoujuntodasograeaencontroumorta,comapicadadainjeçãonopulso;podianaturalmenteconcluirqueo marido a matara, que o anúncio do seu intento de o deixar produziraneleumareaçãodiferentedaquepretendera.Emresumo,NadineBoyntonpodia ter-se convencido de que incitara o marido a cometer umassassinato.–OlhouparaNadineeperguntou-lhe:–Foi issoquesucedeu,madame?

Nadinebaixouacabeçaedepoisperguntou:–Suspeitourealmentedemim,MonsieurPoirot?–Penseiqueeraumapossibilidade,madame.–Eagora?Queaconteceudefato,MonsieurPoirot?

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XXIV

– Que aconteceu de fato? – repetiu Poirot, ao mesmo tempo quepuxava uma cadeira e se sentava, agora com uma atitude amigável ecordial.–Éumaperguntacomtodaarazãodeser,nãoé?Nãohádúvidade que a digitoxina foi roubada, de que a seringa desapareceutemporariamenteedequenopulsodaSra.Boyntonhaviaapicadadeuminjeção. Dentro de poucos dias saberemos de initivamente, graças àautópsia, se Sra. Boyntonmorreu ou não em consequência de uma doseexcessivadeDigitalis.Masentãotalvezjásejatardedemais.Seriamelhordescobrir a verdade esta noite, enquanto o assassino está aqui, ao nossoalcance.

Nadinelevantouvivamenteacabeçaeperguntou:–Oquê,aindaacreditaqueumdenós...Calou-se,aoverPoirotacenar,lentamente,comacabeça.– A verdade, eis o que prometi ao coronel Carbury. Depois de

desbravarmosonossocaminho,voltamosaoprincípio,aumalistadefatoseaduasgrandesincoerências.

–Esenosdissessequaiselassão?–perguntouocoronel.–Éoquetencionofazer–declarouPoirot,comdignidade.–Vejamos,

mais uma vez, aqueles dois primeiros fatos da minha lista: Sra. BoyntontomavaumremédiocomDigitaliseodoutorGerarddeuporfaltadeumaseringa. Confrontem estes dois fatos com o fato inegável que me saltouimediatamente aos olhos: a família Boynton teve inequívocas reacções deculpa. Assim, pareceria lógico pensar que um dos Boynton cometera ocrime. E, contudo, os dois primeiros fatos que mencionei opõem-se a talteoria.UtilizarumasoluçãoconcentradadeDigitalisseria,semdúvida,umaideiainteligente,emvirtudedaSra.Boyntonjáandaratomaradroga.Masque faria,depoisdeseapoderardoveneno,umdosmembrosda família?Ah,mafoi! Sóhaviaumacoisa sensata a fazer:meterovenenono frascodo remédioqueela tomava! Seria assimqueprocederiaqualquerpessoacomumpoucodebomsensoecomacessoaoremédio.

"Maiscedooumaistarde,Sra.Boyntontomariaumadosedoremédioemorreria,emesmoquesedescobrisseadigitoxinanofrascopoder-se-ia

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atribuirofatoaumerrodofarmacêutico.Nadasepoderiaprovar.Porquê,então,oroubodaseringa?”

“Só pode haver duas explicações. Ou o doutor Gerard não viu aseringa e esta nunca foi roubada, ou a seringa foi roubada porque oassassino não tinha acesso ao remédio, isto é, o assassino não era ummembroda famíliaBoynton.Osdois fatosapontados indicam, fortemente,quefoiumapessoadeforaquemcometeuocrime.”

“Compreendi isso, mas senti-me intrigado com os sintomas deculpabilidadeevidenciadospelafamíliaBoynton.Seriapossívelque,apesardesse ar culpado, os Boynton estivessem inocentes? Resolvi, por isso,provar não a culpa, mas a inocência da família. É nesse ponto que nosencontramos.Oassassinatofoicometidoporumapessoadefora,istoé,poralguémquenão tinhasu iciente intimidadecomSra.Boyntonparaentrarnacavernaemexernofrascodoseuremédio.”

Fezumapausa.– Encontram-se nesta sala três pessoas que, tecnicamente, são

estranhas à família, mas que estão, de modo de inido, ligadas ao caso.MisterCope,queconsideraremosemprimeirolugar,estavaestreitamenterelacionadocomafamíliahaviaalgumtempo.Poderemosdescobrirmotivoeoportunidadedasuaparte?Parecequenão.AmortedaSra.Boyntonfoi-lheprejudicial,poisdelaresultouafrustraçãodecertasesperançasporeleacalentadas.AnãoserqueomóbildeMisterCopefosseumdesejoquasefanáticodebene iciaroutraspessoas,nãoencontraremosqualquer razãoparaeledesejaramortedaSra.Boynton.Sóseexisteummotivoacercadoqualnadasaibamos...

–Parece-mequeestáairumpoucolongedemais,MonsieurPoirot–declarou Mr. Cope, muito digno. – Deve lembrar-se de que não tiveoportunidadeabsolutamentenenhumadecometerocrime...e,alémdisso,tenhoopiniõesmuitovincadasacercadasantidadedavidahumana.

–Asuaposiçãoparece,semdúvida,impecável.–declarouPoirot,emtommuitograve. –Numromancepolicial, tornar-se-iamuito suspeitoporisso.Chega,agora,avezdeMissKing.Elatemcertadosedemotivo,possuios conhecimentosmédicosnecessários e éumapessoade caráter forte edeterminação,mascomosaiudoacampamentoantesdastrêsemeia,comos outros, e só voltou às seis horas, parece di ícil que tenha tidooportunidade.

“FaltaconsiderarodoutorGerard.Devemosteremcontaahoraemqueocrimefoicometido.DeacordocomasdeclaraçõesdeMisterLennoxBoynton, a sua mãe já estava morta às quatro horas e trinta e cinco.

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SegundoLadyWestholmeeMissPierce,aindaestavavivaàsquatrohorase quinze, quando iniciaram o seu passeio. Ficam, portanto, vinteminutosexatos por explicar. Quando estas duas senhoras se afastavam doacampamento, o doutor Gerard cruzou-se com elas, ao regressar. Não háninguém que possa dizer quais foram os movimentos do doutor Gerardquando chegou ao acampamento, pois as costas das duas senhorasestavam voltadas para ele. Elas afastavam-se. Portanto, teria sidoperfeitamente possível ao doutor Gerard cometer o crime. Comomédico,saberia imitar os sintomas damalária. E nem falta ummotivo possível: odoutor Gerard podia querer salvar certa pessoa cuja razão (talvez umaperdamaisvitaldoqueadavida)estavaemperigoeacharque,paraisso,valiaapenasacrificarumavidajácondenada.

–Assuasideiassãofantásticas!–exclamouomédico.Poirotprosseguiu,semfazercaso:– Mas, se foi isso que sucedeu, Por que chamou Gerard a atenção

para a possibilidade de jogo sujo? É quase certo que, se não fossem asdeclaraçõesporeleprestadasaocoronelCarbury,amortedaSra.Boyntonteriasidoatribuídaacausasnaturais.FoiodoutorGerardquemprimeiroassinalouapossibilidadedeterhavidoassassinato.Isto,meusamigos,nãofazsentido.

– Quanto a mim, pelomenos, não faz – resmungou o coronel. – Háaindaoutrahipótese–continuouodetetive.–Sra.LennoxBoyntonnegoucomveemênciaapossibilidadedeasuacunhadamaisnovaserculpada.Aveemência da sua objecção baseava-se no fato de ela saber que a sograestava morta mais cedo do que se supunha. Mas lembremo-nos de queGinevra Boynton esteve toda a tarde no acampamento. Houve ummomento, quando Lady Westholme e Miss Pierce se afastavam doacampamentoeantesdeodoutorGerardregressar...

Ginevra estremeceu, inclinou-se para a frente, itou Poirot eperguntou-lhe:

–Fuieu?Pensaquefuieu?De súbito, num movimento de rápida e incomparável beleza,

levantou-se da cadeira, atravessou o aposento, ajoelhou-se ao lado dodoutorGerard,agarrou-oefitou-oapaixonadamente.

– Não! Não! Não os deixe dizer isso! Estão outra vez a erguer asparedesàminhavolta!Nãoéverdade,eunão iznada!Sãomeusinimigos,queremmeter-menaprisão!Temdemeajudar!

–Calma,minha ilha,calma!–Omédicodirigiu-seaPoirotea irmou:–Oquedisseéumdisparate,éabsurdo.

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–Maniadaperseguição?–murmurouodetetive.– Sim... mas ela não o faria assim... procederia dramaticamente. Um

punhal, qualquer coisa espetacular, mas nunca esta calma fria e lógica.Garanto-lhesquetenhorazão,meusamigos.Estecrimefoipensado,foiumcrimedeumamentenaplenapossedassuasfaculdades.

Poirotsorriueinclinouinesperadamenteacabeça.–Concordointeiramentecomvocê–declarou,suavemente.

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XXV

–Ainda temosumcertocaminhoapercorrer.–prosseguiuPoirot.–JáqueodoutorGerard invocouapsicologia,estudemoso ladopsicológicodo caso.Examinamos os fatos, estabelecemosuma sequência cronológicadosacontecimentos,ouvimososváriosdepoimentos.Restaapsicologia.Eaprova psicológica mais importante diz precisamente respeito à vítima, àpsicologiadaSra.Boynton.

"Vejamos,naminhalistadefatosespecí icos,ospontostrêsequatro:Sra.Boyntonsentiagrandeprazeremimpedirafamíliadesedivertircomasoutraspessoasenatardeemquestão,Sra.Boyntonencorajouafamíliaa ir passear e deixá-la sozinha. Estes dois fatos contradizem-selagrantemente!Porquemotivo,naquelatarde,Sra.Boyntonmudariaporcompleto de táctica? Teria sentido uma ternura súbita, um inesperadodesejo de benevolência? A julgar por tudo quanto ouvi, isso parece-memuito pouco provável. No entanto, deve ter havido uma razão. Qual terásido?”

"Examinemos comminúcia o caráterda Sra.Boynton. Sãomuitas asdescriçõesque temosdela: eraumavelha tirana; erauma sádicamental;eraamaldadeempessoa;era louca.Qualdestasopiniõeséaverdadeira?Pessoalmente, creio que Sarah King se aproximou mais da verdadequando,nummomentode inspiração,emJerusalém,viuavelhacomoumserintensamentepatético.Masnãosópatético:fútil,também.”

"Tentemos colocar-nos no estado mental da Sra. Boynton. Um serhumano nascido com imensa ambição, com um desejo incontido dedominar e de impor a sua personalidade aos outros. Não sublimou essafome intensa de poder nem tentou dominá-la. Não, senhoras e senhores!Alimentou-a!Masno im,ouçambem,no im,aqueseresumiatudo?Nãoeraumagrandeforça,nãoerareceadaeodiadanumagrandeárea!Eraamiseráveltiranadeumafamíliaisolada!E,comoodoutorGerardmedisse,aborreceu-se, como qualquer outra velha, com o seu passatempo eprocuroualargarassuasatividadesedivertir-se,tornandoparaissooseudomíniomaisprecário!Masesseprocedimentodesvendou-lheumaspectointeiramente diferente. No estrangeiro compreendeu pela primeira vez

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comoerainsignificante.”"E agora chegamos ao ponto número dez, às palavras que disse a

Sarah King em Jerusalém. Sarah King pusera o dedo na ferida,compreendem? Revelara totalmente, sem subterfúgios, a triste futilidadedoplanodeexistênciadaSra.Boynton.Eagoraescutemtodoscomatençãoquais foram as exatas palavras ditas por ela aMiss King. Esta disse queSra.Boyntonfalou"comtantamalevolência,semolharsequerparamim”.Eoqueavelhasenhoradisse foi:Nuncaesquecinada,nemumaação,nemumnome,nemumacara.”

"EstaspalavrasimpressionarammuitoMissKing,sobretudopelasuaintensidade e pelo tom em que foram proferidas. Foi tão grande aimpressão que causaram no seu espírito que, parece-me, ela nemcompreendeu o seu extraordinário signi icado. Mas,mes amis, nãocompreendemque tais palavras não eramuma resposta razoável ao queMiss King dissera? Nunca esqueci nada, nem uma ação, nem um nome,nem uma cara. Não faz sentido! Se ela tivesse dito “nunca esqueço aimpertinência”...Masnão,eladissequenuncaesqueciaumacara...”

"Ah, mas salta aos olhos! Aquelas palavras, ostensivamente ditas aMiss King, não se destinavam a Miss King! Destinavam-se a alguém queestavaatrásdela.”

Calou-se,aobservaraexpressãodosouvintes.– Sim, aquele foi ummomento psicológico na vida da Sra. Boynton!

Umajoveminteligentemostrara-lhecomoelaera!Estavacheiadefúria,deperplexidade...enessemomentoreconheceualguém,reconheceuumrostodopassado!

"Voltamos,comoveem,àpessoadefora.Eagoratorna-seevidenteosigni icado da inesperada amabilidade da Sra. Boynton na tarde da suamorte. Queria ver-se livre da família porque, para usar uma expressãovulgar,tinhaoutropeixenarede!Queria icarcomocampolivreparaumaentrevista com uma nova vítima... Consideremos agora, deste novo pontodevista,osacontecimentosdaquela tarde.A famíliaBoyntonpartiueSra.Boynton icousentadaàentradadasuacaverna.Observemoscomatençãoos depoimentos de Lady Westholme e de Miss Pierce. A última é umatestemunha pouco digna de crédito,muito sugestionável e desprovida depoder de observação. Lady Westholme, pelo contrário, tem perfeitoconhecimento dos fatos e é meticulosamente observadora. Ambas assenhoras estão de acordo num pormenor: um árabe, um dos criados,acercou-se da Sra. Boynton, irritou-a e retirou-se apressadamente. LadyWestholme a irma peremptoriamente que o criado esteve primeiro na

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tendaocupadaporGinevraBoynton,maslembremo-nosdequeatendadodoutorGerarderacontíguaàdajovem.Épossívelquetenhasidonadesteúltimoqueoárabeentrou”.

–Pretendedizer-mequeumdosbeduínosassassinouumavelhacomumainjeção?–perguntouocoronelCarbury.–Fantástico!

– Ummomento, coronel; ainda não acabei. Admitamos que o árabepodia ter saídoda tendadodoutorGerardenãodadeGinevraBoynton.Quesesegue?Ambasassenhorasdeclaramquenãopuderamveracarado homem com clareza su iciente para o identi icar e que não ouviram oqueeledisse.Écompreensível,aliás,poisadistânciaentreatendagrandee a plataforma rochosa era de cerca de cento e oitenta metros. LadyWestholmedescreveu,noentanto,oindivíduomuitopormenorizadamente,indo até ao pormenor dos calções remendados e rotos e do seu desleixogeral.

Poirotinclinou-separaafrenteeprosseguiu:– E isso,meus amigos, foimuito estranho! Pois se ela não lhe pôde

ver a cara nemouvir o que se disse, possivelmente tambémnão poderiarepararnoestadodosseuscalçõesedassuasgrevas!Acercadecentoeoitentametros de distância?! Foi um erro, um erro queme sugeriu umaideiacuriosa.Porqueinsistiuelatantonoscalçõesrotosenasgrevasmalenroladas? Seria porque os calções não estavam rotos e as grevas nãoexistiam? Lady Westholme e Miss Pierce viram ambas o homem, masdonde estavam não se podiam ver uma à outra. Demonstra-o o fato deLady Westholme ter ido ver se Miss Pierce estava acordada e havê-laencontradosentadaàentradadatenda.

– Meu Deus – exclamou, de súbito, o coronel, e sentou-se muitodireito.–Estáainsinuar...

–Estouainsinuarque,depoisdeveri icaroqueMissPierce(aúnicatestemunha susceptível de estar acordada) estava a fazer, LadyWestholme regressou à sua tenda, vestiu uns calções de montar, calçouumasbotas,en iouumcasacocordecaquieimprovisouumtoucadoárabecom o pano do pó e um novelo de lã. Depois, assim disfarçada, foiousadamenteàtendadodoutorGerard,escolheuumadrogaadequadanoseuestojoderemédios,apoderou-sedaseringa,encheu-acomovenenoedirigiu-secomigualousadiaàsuavítima.

Sra.Boyntontalvezestivesseadormitar.LadyWestholmefoirápida.Agarrou-lhe no pulso e injectou-lhe a droga. Sra. Boynton deu um grito,tentou levantar-se e voltou a cair na cadeira. O “árabe” afastou-seapressadamente, com todos os indícios de se sentir envergonhado. Sra.

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Boyntonagitouabengala,tentoudenovolevantar-seecaiuparasempre.“Cinco minutos depois, Lady Westholme foi ter com Miss Pierce e

falou-lhedacenaqueacabaradeobservar,tendoocuidadodeapresentarà outra a sua versão.Depois forampassear, pararam sob a plataforma eLady Westholme disse qualquer coisa à velhota. Não recebeu resposta,pois Sra. Boynton estavamorta,mas disse aMiss Pierce: “Que grosseria,rosnar-nosapenasdaquelamaneira!”MissPierceaceitouasugestão,tantomaisquejáouviraváriasvezesSra.Boyntonrespondercomumrosnidoaqualquer observação. Se for preciso, jurará com toda a sinceridade queouviu. Lady Westholme tem presidido tantas vezes a comissões em queparticipammulheresdotipodeMissPiercequesabeperfeitamentecomoa sua eminência e personalidade forte as pode in luenciar.Oúnicopontoondeosseusplanossedesviaramdocaminhotraçadofoinareposiçãodaseringa. O regresso inesperado do doutor Gerard transtornou-lhe osplanos,maselaesperouqueaausênciadaseringanãotivessesidonotadaerepô-lanoseulugar,duranteanoite.

– Mas por quê? – perguntou Sarah. – Por que quereria LadyWestholmematarSra.Boynton?

–NãomedissequeLadyWestholmeestavapertodesiquando,emJerusalém, falou com Sra. Boynton? Pois era a Lady Westholme que aspalavras da Sra. Boynton se destinavam: “Nunca esqueci nada, nem umaação,nemumnome,nemumacara”.JunteissoaofatodaSra.Boyntontersido carcereira de uma prisão e terá uma ideia muito aproximada daverdade.LordeWestholmeconheceuamulhernumaviagemde regressoda América. Antes de casar, Lady Westholme fora uma criminosa ecumpriraumapenadecadeia.

“Compreende o terrível dilema em que ela se encontrou? A suacarreira,as suasambições,a suaposiçãosocial, tudo issoestavaem jogo!Ainda não sabemos a natureza do crime pelo qual esteve presa (emboraem breve saibamos), mas deve ter sido qualquer coisa capaz de lhedestruir por completo a carreira política, se se tornasse público. Elembrem-sedoseguinte:Sra.Boyntonnãoeraumavulgarchantagista.Elanão queria dinheiro; queria o prazer de torturar a sua vítima durantealgumtempoe,depois,ogozosupremoderevelaraverdadedomodomaisespetacularpossível!Não,enquantoSra.Boyntonvivesse,LadyWestholmenãoestariaemsegurança.ObedeceuàsinstruçõesdaSra.Boyntonparaseencontrar com ela em Petra (sempre me pareceu estranho que umamulher com um sentido tão apurado da sua importância, como LadyWestholme, preferisse viajar como simples turista), mas mentalmente

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pensavanamaneiradeaassassinar.Viuasuaoportunidadeeaproveitou-a sem hesitar. Só cometeu dois deslizes: falou demais , ao descrever oscalções rotos, e foi issoqueprimeirochamouaminhaatençãoparaela, econfundiu a tenda do doutor Gerard com a de Ginevra, pois primeiroespreitou na desta. Daí a história da jovem, meio verdadeira, meiofantasiosa, de um xeque disfarçado. Ginevra obedeceu ao seu instinto dedeformaraverdadeparaatornarmaisdramática,masaindicaçãoquemedeubastou-me.”

Fezumapausaprolongada,antesdeacrescentar:– Embreve saberemos tudo, pois hoje obtive as impressões digitais

deLadyWestholmesemeladarpor isso.SeasmandarmosparaaprisãoondaSra.Boyntonfoicarcereira,saberemosaverdade.

Umestampidofortequebrouomomentâneosilêncio.–Quefoiisto?–perguntouodoutorGerard.– Pareceu-me um tiro – disse o coronel Carbury, ao mesmo tempo

queselevantava,muitodepressa.–Noquartoaolado...Apropósito,quemestánoquartoaolado?

Poirotmurmurou:–TenhoaimpressãodequeéLadyWestholme...

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XXVI

ExcertodoEveningShout:Lamentamos anunciar a morte de Lady Westholme, M. P., em

consequência de um trágico acidente. Lady Westholme, que gostava deviajarporpaíses longínquos, levavasempreumpequenorevólver.Estavalimpandoquandoaarmadisparouacidentalmenteeamatou.

A morte foi instantânea. Apresentamos as maiores condolências aLordeWestholme,etc.,etc.

Numa noite de Junho, cinco anos depois, Sarah Boynton e omaridoestavamsentadosnumteatro londrino,averrepresentaroHamlet.SarahapertouobraçodeRaymond.

Aquelavozsuave,dramática, semprebelaemtonalidade,masagoradisciplinada e modulada para se transformar num instrumento perfeito!Sarah exclamou, com irmeza, quando o panodesceu, no imdo primeiroato:

–Jinnyéumagrandeatriz!Mais tarde, foram cear ao Savoy. Ginevra, sorridente e distante,

voltou-separaohomemdebarba,sentadoaseulado:–Fuibem,nãofui,Theodore?–Fostemaravilhosa,chérie.Umsorrisofelizentreabriuoslábiosdajovem,quemurmurou:–Acreditousempreemmim...soubesemprequeseriacapazdefazer

grandescoisas,dearrebatarmultidões...Nadine, que estava sentada defronte de Ginevra, exclamou por sua

vez:–ÉemocionanteestaraquiemLondres,comaJinnyarepresentaro

papeldeOféliaeaserfamosa!–Forammuitoamáveisemvir–redarguiuajovem,docemente.–Umaautênticareuniãode família!–comentouNadine,asorrirea

olhar à sua volta. – Lennox, não achas que os pequenos podiam ir àmatinée?Játêmidadesu icienteeestãotãointeressadosemveratiaJinnynopalco!

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Lennox–umLennoxsaudável,felizedeolharsorridente-,ergueuataçaebrindou:

Aosrecém-casados,MistereSra.Cope!JeffersonCopeeCarolagradeceramobrinde.–Ogalã in iel! – exclamouCarol, abrincar. – Jeff, deviasbrindarao

teuprimeiroamor,queestásentadoàtuafrente.–Jeffcorou!–exclamouRaymond,alegremente.–Nãogostaquelhe

recordemosvelhostempos.–Eoseuprópriorostoseensombrou.Sarahtocou-lhenamãoeasnuvensdissiparam-se.–Parecequefoitudoumpesadelo,umsonhomau–murmurouele,a

sorrir.Um homem baixo parou junto da mesa. Hercule Poirot,

impecavelmente vestido, como sempre, e com o bigodemuito torcido, fezumavêniacortêsemajestosa.

– Mademoiselle, minhas homenagens! – disse a Ginevra. – Foisoberba.Cumprimentaram-notodosafetuosamenteearranjaram-lhelugarao lado de Sarah. O detetive sorriu-lhes e, quando estavam todosentretidosaconversar,inclinou-seumpoucoeperguntouaSarah:

–Ehbien,parecequetudocorrebem,agora,comafamíliaBoynton?–Graçasasi!– Seumarido está a tornar-semuito famoso. Li hoje uma excelente

críticaaoseuúltimolivro.–É,de fato,muitobom... emboraeusejasuspeita.SabiaqueCarole

Jefferson acabaram por casar? E Lennox e Nadine têm dois garotosencantadores.QuantoàJinny...bem,achoqueéumgênio.

Olhou, através da mesa, para o rosto encantador e para osmaravilhosos cabelos vermelho-dourado da cunhada e, de súbito,estremeceu. Pormomentos, o seu rosto tornou-se grave. Levantou a taça,devagar.

–Vaifazerumbrinde,madame?–Pensei,desúbito,nela.AoolharparaJinnyvi,pelaprimeiravez,a...

a semelhança. É amesma coisa, coma diferençade que Jinny é luz e elaeranegrume.

Dooutroladodamesa,Jinnydisse,inesperadamente:– Pobre mãe, ela era estranha... Agora que somos todos tão felizes

sinto certa pena dela. Não obteve o que queria da vida. Deve ter sidoduro...

FIM