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Questes Geopolticas Centrais

O AFEGANISTO NO EPICENTRO DO CONFLITO OU DA ESTABILIDADE NA SIA CENTRAL

Jos Lus Alves

CARACTERSTICAS PRPRIAS Ocupando cerca de 650 mil Km quadrados, situado entre as estepes da sia Central, o vale do Indo e o planalto persa, o Afeganisto sempre foi um importante ponto de passagem para os inmeros povos e civilizaes que se movimentaram entre as regies adjacentes. Esta estratgica localizao, aliada a um relevo particularmente difcil, potenciou a fragmentao tnica que caracteriza o actual Afeganisto, resultado directo da sucessiva ocupao da regio por diversos povos, nomeadamente Arianos, Persas, Gregos, Turcos, rabes e Mongis. Alexandre, o Grande e Genghis Khan comandaram alguns dos exrcitos mais poderosos que passaram por uma regio que, no s era atravessada por importantes rotas comerciais, com especial destaque para a Rota da Seda, como se transformou num ponto de passagem e difuso de religies como o Zoroastrismo, o Budismo, o Hindusmo e o Islamismo. Apesar do Afeganisto se ter tornado o centro de importantes imprios, os povos da regio foram divididos pelas fronteiras arbitrariamente traadas pelo colonialismo Europeu durante o sculo XIX. Relativamente isolados e pouco sensveis a estas linhas artificiais, estes povos continuaram presos ao tradicional relacionamento entre si, e as divises tnicas tornaram difcil o desenvolvimento de um genuno sentimento nacional. Num contexto em que os laos tribais se sobrepunham muitas vezes fidelidade a um qualquer poder central, poucos foram os lderes afegos que no foram depostos pela fora, pagando geralmente com a vida os excessos ou as fraquezas das polticas que pretendiam implementar.

Principais Grupos tnicos O Afeganisto alberga mais de uma dzia de grupos tnicos e, muito embora seja difcil efectuar estimativas exactas sobre a actual composio tnica do pas, os Pastun, com cerca de 40% da populao, continuam a ser o grupo mais representativo. Os Tajiques, com 25%, e os Hazaras, com 18%, tambm constituem importantes comunidades, enquanto os Usbeques e os Turcomanos representam, respectivamente, 6,5% e 2,5%. Os restantes 8% encontram-se divididos por vrias etnias1 que, isoladamente, no abarcam mais de 1% da

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populao, entre as quais pequenas comunidades no islmicas, especialmente Hindus e Sikhs. Existiam tambm alguns Judeus que, por motivos bvios, foram abandonando a regio durante as ltimas dcadas. Dotadas de lnguas e costumes prprios, as diversas etnias pouco mais tm em comum do que a religio islmica, com uma forte implantao Sunita a ser mesclada por cerca de 20% de Xiitas.Mapa 1GRUPOS ETNOLINGUSTICOS NO AFEGANISTO

Fonte: Globalsecurity.org

A etnia Pashtun sempre desempenhou um importante papel de liderana poltica, ocupando o topo da sociedade afeg. Na sua esmagadora maioria Sunitas e predominantemente agricultores, os Pashtun tornaram-se os principais detentores das propriedades rurais, dominando grande parte do sistema produtivo. Presentes em grande nmero no Paquisto, em especial na regio semi-autnoma da Provncia Fronteira do Noroeste, e agrupando um considervel grupo de nmadas, os Pastun sempre contriburam para desenvolver o comrcio e o trfico entre os dois lados de uma fronteira que no reconhecem. Longe de

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Destes, podem ser destacados os Aimaq, os rabes, os Baluch, os Brahui, os Farsiwan, os Nuristani, os Quirguizes, os Qizilbash e os Wakhi.

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constituir um grupo homogneo, encontram-se profundamente divididos por um forte sentimento tribal, apenas ultrapassado pela lealdade ao cl. Demonstrando uma enorme averso modernizao e centralizao do poder, com cada aldeia a orientar a aco segundo os prprios desgnios, s a manuteno de generosos pagamentos aos lderes tribais podia evitar um constante clima de rebelio. Guiados por um rigoroso cdigo de conduta2 que, baseado na superioridade masculina, valoriza a bravura e a honra, que deve ser defendida com a vida, as tribos Pastun desenvolveram enormes rivalidades entre si, constantemente agravadas por uma particular obrigao de vingana. A difcil convivncia entre os Durrani e os Ghilzay, que representam as maiores tribos Pastun3, ilustra os problemas de relacionamento que sempre caracterizaram a sociedade afeg; enquanto os Durrani dominaram o poder afego de Ahmad Shah at Revoluo Saur, os Ghilzay estiveram quase sempre presentes nos principais movimentos para os derrubar. Os Tajiques, predominantemente Sunitas mas de matriz cultural e lingustica persa, so o segundo maior grupo tnico presente no Afeganisto. Dotados de um forte sentimento de lealdade comunidade a que pertencem, mas sem o esprito tribal que caracteriza os Pastun, desenvolveram com estes um relacionamento menos conflituoso do que as outras etnias afegs. Essencialmente originrios das regies montanhosas, onde se dedicavam maioritariamente agricultura e ao artesanato, os Tajiques tambm constituram importantes comunidades urbanas. Ocupando tradicionalmente posies intermdias na sociedade, tornaram-se uma parte importante da elite educada afeg, sendo geralmente conotados com os sectores mais moderados e abertos modernizao. Os Hazaras, descendentes dos Mongis que ocuparam a regio aps a invaso liderada por Genghis Khan, so o nico grupo tnico maioritariamente Xiita presente no Afeganisto. Devido s suas caractersticas fsicas e opes religiosas, os Hazaras foram muitas vezes marginalizados, ocupando tradicionalmente um escalo inferior na sociedade afeg. Com uma identidade cultural muito vincada, foram vtimas de diversos massacres durante o sculo XIX, desenvolvendo desde a um relacionamento complexo com a maioria Pastun. Os Usbeques, muulmanos sunitas, constituem a maior etnia de matriz turca. Presentes de forma consistente no Afeganisto desde do incio do sculo XVI, o seu nmero aumentou consideravelmente durante os anos vinte devido ao fluxo de refugiados provocado pela instaurao do regime sovitico. Apesar do difcil relacionamento com os Pastun, os Usbeques no desenvolveram animosidades especiais em relao a outros grupos tnicos, vivendo tradicionalmente em harmonia com os Tajiques, embora em zonas distintas das mesmas povoaes. Com uma sociedade estritamente patriarcal que atribui um poder autoritrio aos lderes, os Usbeques distribuem-se entre os campos e as cidades, dedicando-se maioritariamente agricultura, ao pequeno comrcio e ao artesanato.

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O Pushtunvali um rigoroso cdigo legal e moral que, seguindo os valores tradicionais, determina o ordenamento social e as responsabilidades individuais. Principais tribos Pastun: Ghilzay (14%), Durrani (12%), Wardak, Jaji, Tani, Jadran, Mangal, Khugiani, Safi, Mohmand e Shinwari.

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UMA INDEPENDNCIA DIFCIL Durante o sculo XIX, o extenso territrio controlado pelas tribos Pastun comeou a ser confrontado com o crescente apetite e influncia dos Imprios Europeus, transformando o Afeganisto no tabuleiro de um grande jogo entre uma potncia continental e uma potncia martima. Enquanto os Britnicos se mostraram determinados em travar o avano Russo, procurando impedir qualquer ameaa jia da Coroa, o Imprio dos Czares tentou consolidar as conquistas mais recentes e prosseguir a expanso para Sul, de forma a assegurar o acesso aos estratgicos portos dos mares quentes. Os diversos movimentos dos jogadores, procurando influenciar ou impor os sucessivos governantes, conduziram a uma progressiva reduo das regies sobre controlo afego e a uma delimitao artificial das suas fronteiras, ilustrada pela atribuio ao Afeganisto do Corredor de Wakkan, evitando o contacto directo entre Russos e Britnicos, ou pela ocupao do Baluchisto, transformando o Afeganisto num pas sem acesso ao mar. Mas se a constante confrontao entre Londres e Moscovo limitou as fronteiras do tabuleiro Afego, tambm gerou a necessidade de criar um equilbrio regional entre os dois principais jogadores, garantindo a progressiva afirmao de um Afeganisto independente e neutral, funcionando como Estado tampo entre os dois poderosos Imprios. Esta independncia, que s seria plenamente concretizada em pleno sculo XX, continuou a afirmar-se dentro das regras de influncia ditadas durante o grande jogo mesmo aps a substituio dos Czares pelos Sovietes, mas no poderia resistir, pelo menos na sua plenitude, ao fim da presena Britnica na ndia.Figura 1SHER ALI ENTRE OS IMPRIOS RUSSO E BRITNICO

Fonte: Lemar-Aftaab (Original de 1878)

De Imprio a Estado-Tampo A primeira grande manifestao da autonomia afeg de base Pashtun foi protagonizada pelo lder da tribo Ghilzay Mir Wais Khan, que em 1709 conseguiu dominar toda a regio de Kandahar, aproveitando a confrontao entre os imprios Persa e Mogol. O domnio Persa voltaria a ser restaurado, mas as bases para uma afirmao consistente dos Pastun no

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territrio do actual Afeganisto foram estabelecidas com a eleio de Ahmad Shah Abdalli (que governou entre 1747 e 1772) por um conselho tribal. Partindo de Kandahar, Ahmad Shah, que mudaria o nome para Ahmad Shah Durrani, estendeu o domnio Pastun do Mar da Arbia ao rio Amu Darya e de Mashad a Caxemira, controlando praticamente quase todo o territrio do actual Paquisto e chegando mesmo a atacar Deli. Sucessivas insurreies internas obrigaram o filho, Timur Shah (1772-1793), a mudar a capital para Cabul, at a uma cidade maioritariamente Tajique, s assim garantindo que o seu sucessor, Zaman Shah (1793-1801), herdava um imprio suficientemente vasto para constituir uma ameaa para os interesses Britnicos na ndia. As constantes lutas pela liderana, em especial as crises de sucesso, produziram sempre importantes fragmentaes e mudanas no poder Afego. Aps a morte de Zaman Shah e um incio de sculo particularmente tumultuoso, Dost Mohammad (1826-1839 e 1842-1863) conseguiu reunificar toda a regio, proclamando-se amir-ul momineen ou comandante dos fiis. Mas, nesta altura, j se fazia sentir o crescente apetite de Russos e Britnicos, comprovado pela estadia em Cabul dos respectivos enviados, Vitkevitch e Burnes. A aparente vantagem britnica no relacionamento com Dost Mohammad foi anulada pelas precipitadas exigncias do Governador de Calcut, Lord Auckland que, alarmado com o apoio Russo a um avano Persa sobre Herat, procurou impor um acordo extremamente desfavorvel e inaceitvel pelo lder afego. Quando Dost Mohammad se recusou a ceder, expulsando Burnes e iniciando negociaes com os Russos, os Britnicos decidiram invadir o Afeganisto e reinstalar no poder um dos anteriores pretendentes, Shuja Shah (1803-1809 e 1839-1842), argumentando estar a ajudar um governo legtimo em luta contra a rebelio interna e a interferncia externa. Apesar do sucesso inicial, que conduziu rendio de Dost Mohammad, rapidamente tornou-se claro que o novo poder s podia sobreviver com o apoio financeiro e militar dos Britnicos e, diminuda a ajuda financeira, foi impossvel controlar as sucessivas revoltas lideradas pelos chefes tribais. As dificuldades aumentaram com o acumular de erros militares, culminando com uma trgica tentativa de retirada em que o contingente Britnico foi completamente aniquilado. Aps o assassinato de Shuja Shah, e apesar de disporem de capacidade militar para voltar a ocupar Cabul, os Britnicos optaram por terminar a primeira guerra anglo-afeg (1839-1842)4, desistindo da ocupao. Mas se o regresso de Dost Mohammad garantiu alguma estabilidade interna, no pode evitar um progressivo desmembramento do Imprio Afego, marcado pelo avano Britnico no Baluchisto (1859) e agravado com os tradicionais problemas de sucesso.

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Um interessante relato das causas e desenvolvimentos da primeira guerra anglo-afeg pode ser consultado em http://www.geocities.com/Broadway/Alley/5443/afopen.htm.

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Mapa 2EVOLUO DAS FRONTEIRAS DO AFEGANISTO

Fonte: Afghanistan Country Study

O insucesso Britnico na primeira guerra anglo-afeg incentivou a expanso do Imprio Czarista na sia Central e, passando pelas estepes do Cazaquisto, os Russos dominaram Taskent e Samarkand (1874). Quando Sher Ali (1863-1866 e 1868-1879), aps ter acordado o traado da fronteira Norte, pareceu escolher o Imprio Russo como aliado, os Britnicos, deram incio segunda guerra anglo-afeg (1878-1880) e invadiram de novo o Afeganisto. No repetindo os erros anteriores, procuraram controlar apenas as relaes externas do Afeganisto, o que conseguiriam pelo Tratado de Gandamak (1879), garantindo ainda alguns territrios estratgicos para a defesa da ndia, nomeadamente o desfiladeiro de Khyber. Abdicando da poltica externa, Abdur Rahman (1880-1901) tentou reunificar de novo as tribos Pastun, destacando-se pela deslocao mais ou menos forada de parte dos

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Ghilzay para regies mais a norte e pela frentica perseguio que dirigiu contra determinadas minorias tnicas, nomeadamente os Hazaras e os Nuristani. Entretanto, evitando o confronto directo, Russos e Britnicos continuavam a redesenhar o mapa do Afeganisto at o limitar s suas actuais fronteiras. Se o Imprio Britnico traou a linha Durand (1893), dividindo as tribos Pastun pelos dois lados da nova fronteira, o Imprio Russo reconheceu a influncia Britnica no Afeganisto, mas aproveitou para conquistar novos territrios e intensificar o seu domnio a Norte.

A Independncia e a Resistncia Modernizao O assassinato de Habibullah (1901-1919), seguido dos tradicionais problemas de sucesso, possibilitou a ascenso ao poder de Amanullah Shah (1919-1929). Aps uma rpida terceira guerra anglo-afeg, que terminou com a assinatura do Tratado de Rawalpindi, em 19 de Agosto de 1919, o Afeganisto aproveitou o final da I Guerra Mundial para garantir uma independncia plena, e, embora subsistissem divergncias com os Britnicos sobre as fronteiras criadas pela linha Durand, passaram a controlar a sua poltica externa. O mtuo reconhecimento entre Afeganisto e URSS, que conduziu ao rpido desenvolvimento de relaes privilegiadas entre ambos, resultou da necessidade de afirmao dos dois Estados na cena internacional. Alimentada pelo interesse comum em fazer frente aos Britnicos, a aliana era reforada pela necessidade sovitica de seduzir as populaes islmicas, evitando o desenvolvimento no seu territrio de movimentos contra-revolucionrios ou a actuao destes grupos a partir do exterior. Este relacionamento privilegiado foi de pronto formalizado por um primeiro Tratado de Cooperao e Amizade, percursor de outros tratados semelhantes, assinado em Maio de 1921. Amanullah, inspirado no modelo de Kemal Ataturk, protagonizou tambm a primeira grande tentativa de modernizar o Afeganisto, mas as profundas reformas internas que procurou implementar encontraram forte resistncia. O crescente descontentamento entre os lderes tribais fomentou a rebelio e, na guerra civil que se seguiu, o rebelde Tajique Habibullah Kalakani, conhecido depreciativamente como Bacha-i Saqao, contou com o apoio Ghilzai para controlar Cabul, obrigando Amanullah a resignar e a partir para o exlio em Itlia. A liderana Pastun foi restabelecida nove meses depois por Nadir Shah (1929-1933), que abandonou as reformas e instituiu um governo conservador, dando incio a um progressivo arrefecimento dos laos com a URSS e normalizao das relaes com a Gr-Bretanha. Esta tendncia foi mantida durante os primeiros anos do reinado de Zahir Shah (1933-1973), num perodo em que, devido juventude do monarca, a poltica afeg foi comandada pela famlia real e pelo primeiro-ministro, cargo desempenhado inicialmente por Hashim Khan (1933-1946), tio de Zahir Shah. Hashim procurou afirmar internacionalmente o Afeganisto, e aps uma aproximao Alemanha, que quase colocou em risco a neutralidade afeg durante a II Guerra Mundial, estabeleceu relaes diplomticas com a China e os Estados Unidos.

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Figura 2REIS E TRIBOS (DURRANI) DO AFEGANISTO

Fonte: Adaptado de um original do Afghanmagazine.com

JOGOS ANTIGOS NUMA NOVA ORDEM INTERNACIONAL O ordenamento entre as potncias resultante da II Guerra Mundial alterou profundamente as bases em que se desenvolvia o grande jogo. Se o vazio criado pela retirada Britnica da regio dificilmente poderia ser preenchido durante as dcadas seguintes, a independncia da ndia e do Paquisto no se limitou a criar novos jogadores prontos a movimentar as suas peas no tabuleiro afego. Estes Estados, na persecuo dos seus prprios interesses, seriam fundamentais para a definio do papel do Afeganisto nas alianas bipolarizadas que caracterizaram a Guerra Fria. Com a presena das tribos Pastun e Baluch dos dois lados da fronteira a fomentar a discrdia, a disputa entre Paquisto e Afeganisto sobre os arbitrrios traados fronteirios herdados do Imprio Britnico rapidamente se transformou num enorme foco de tenso entre os dois Estados. Paralelamente, a ndia atribua um importante papel estratgico ao Afeganisto, procurando utiliz-lo como contrapeso para conter o Paquisto durante os frequentes conflitos entre ambos. O relativo desinteresse dos EUA, que no atribuam um valor estratgico especial ao Afeganisto, impediu o completo restabelecimento do grande jogo. Desejosos de conservar o

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relacionamento privilegiado que mantinham com o Paquisto e receando que a questo Pastun se transformasse numa nova Caxemira, os EUA no se opuseram a uma progressiva integrao do Afeganisto na rbita sovitica, num processo que se desenvolveu lentamente a partir dos laos estabelecidos nos anos cinquenta. Iniciada com aces de charme e propaganda concorrentes com o ajuda norte-americana, a capacidade da URSS para influenciar o poder afego foi aumentando progressivamente at assegurar a dependncia econmica e militar do Afeganisto em relao ao poderoso vizinho do Norte.

As Opes do Prncipe Vermelho Empenhado em fomentar uma nova srie de reformas polticas e sociais, o primeiro-ministro Mahmoud Khan (1946-1953) foi confrontado com a nova realidade regional e internacional que caracterizou o ps-guerra mas, apesar de algum auxlio econmico recebido do Ocidente, no conseguiu sensibilizar os EUA a ocupar o lugar dos Britnicos. A resistncia s reformas e o agravar da questo Pastun, em especial aps a Loya Jirga5 ter decidido apoiar a autodeterminao dos Pastun do Paquisto, conduziriam ascenso ao cargo de primeiro-ministro de Muhammad Daud (1953-1963), primo do Rei, que rapidamente se tornaria uma figura incontornvel da poltica afeg. Daud, que representou a ascenso ao poder de uma nova gerao com educao ocidental e favorvel modernizao, procurou fomentar uma nova aproximao aos EUA para garantir o apoio econmico e militar indispensvel para atingir os seus objectivos. Mas como os norte-americanos, preocupados com as consequncias da questo Pastun, condicionaram o fornecimento de armas adeso do Afeganisto ao Pacto de Bagdade, a que j pertencia o Paquisto, foi impossvel o entendimento com os EUA. Daud, que necessitava desesperadamente de meios militares, ficava assim dependente da boa vontade sovitica e, ao mesmo tempo que aceitava a ajuda econmica dos EUA, investia no desenvolvimento de relaes privilegiadas com a URSS em busca de apoio militar e econmico. Seguindo os princpios do grande jogo, transformou o Afeganisto num dos mais importantes pontos de contacto directo entre Leste e Oeste no final dos anos cinquenta, dando corpo peculiar poltica de Daud, que se sentia mais feliz quando acendia cigarros norte-americanos com fsforos soviticos. Este jogo de influncia seria abalado pelo progressivo deteriorar das relaes com o Paquisto, consequncia do agravar da tenso sobre a questo Pastun, que, no incio dos anos sessenta, evoluiu at ao corte de relaes diplomticas e quase conduziu guerra os dois pases. O consequente encerramento das fronteiras provocou uma crescente dependncia do Afeganisto em relao URSS, diminuindo a colaborao com o Ocidente e dificultando o escoamento dos produtos afegos. A inflao e a inevitvel crise econmica que se seguiu, o impasse na resoluo da questo Pastun e a habitual reaco interna s reformas modernizadoras, conjugadas com alguma oposio aproximao URSS, estiveram na origem do afastamento de Daud, levando Zahir Shah a assumir pela primeira vez um papel importante na governao do pas.

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Reunio dos chefes tribais, tradicionalmente o principal rgo legislativo do pas

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Uma Monarquia Quase Constitucional A afirmao de Zahir Shah caracterizada pela tentativa de impor uma monarquia constitucional que limitaria os poderes reais e alargaria a participao na vida poltica. A nova Constituio, reconhecendo o papel do Islo e atribuindo Xaria um papel residual, foi aprovada por uma Loya Jirga em 1964, mas nunca seria completamente implementada. Apesar de criar um sistema com duas Cmaras parcialmente eleitas, a nova Constituio garantiu ao Rei grande parte do poder, vedando aos outros membros da famlia real a participao na vida poltica e no governo. Muito embora a criao de partidos polticos estivesse prevista na Constituio, o Rei, que nunca pareceu empenhado em abdicar de qualquer dos poderes que detinha, no procedeu promulgao da respectiva lei, o que no impediu uma crescente agitao poltica provocada pela organizao dos oposicionistas em grupos mais ou menos clandestinos. Entre os principais grupos oposicionistas que se desenvolveram durante os anos sessenta, e que viriam a desempenhar um papel decisivo durante as dcadas seguintes, o mais importante foi o Hezb-e-Democratic-e-Khalq ou Partido Democrtico do Povo (PDPA), fundado em Janeiro de 1965. Agrupando inicialmente diversos sectores da esquerda afeg, que assim conseguiram assegurar representao parlamentar, rapidamente se fragmentou em diversas faces, profundamente divididas por desavenas pessoais e ideolgicas, nomeadamente pelo afastamento entre a URSS e a China. Estas faces passaram a ser conhecidas pelos nomes dos jornais que criaram e que, apesar de rapidamente proibidos pela monarquia, contriburam para divulgar as opinies comunistas. O Parcham (bandeira) e o Khalq (povo ou massas), de inspirao sovitica, liderados respectivamente por Karmal e Taraki, partilhavam a mesma base ideolgica e diversos pontos de vista comuns, mas divergiam nos meios a utilizar para implementar a revoluo. Sem um trao tnico vincado mas com uma proeminente presena das elites Pastun, o que possibilitou uma progressiva influncia entre os oficiais do exrcito afego, o grupo de Karmal era mais moderado e essencialmente urbano, sendo relativamente tolerado pelo regime monrquico. No gozando desta complacncia e com uma menor capacidade de seduo nos meios urbanos, o Khalq reunia uma faco mais radical e decidida a implementar a revoluo popular no Afeganisto. Enquanto procuravam assegurar o apoio das populaes mais desfavorecidas das diferentes minorias tnicas, desenvolviam uma verdadeira agitao popular que originou muitas vezes reaces violentas nos meios mais tradicionalistas. O sholai-jaweid (chama eterna), porta-voz da ideologia Maoista, inspirava diversos grupos ainda mais radicais, implantados especialmente nos meios universitrios e entre os Hazaras. Sem que uma organizao comum fosse criada, os grupos maoistas rapidamente se tornaram o alvo preferencial dos partidrios de um Estado Islmico, conhecidos por Ikhwanis, que, inspirados pelos princpios da organizao egpcia Muslim Brotherhood, se comeavam a organizar na Universidade de Cabul para formar a Jamiat-e-Islami ou Associao Islmica. Apesar das eleies de 1965 e 1969, o Parlamento nunca desempenhou um papel importante no desenvolvimento de um novo sistema poltico, e a aco de Zahir Shah que, incapaz de fazer frente ao aumento da corrupo e degradao da situao econmica, se limitava a mudar consecutivamente de primeiro-ministro, no conseguia evitar o progressivo enfraquecimento do regime. Se as difceis relaes entre os diversos grupos oposicionistas

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no possibilitavam uma aco comum contra o poder institudo, as confrontaes entre eles, nomeadamente os violentos tumultos estudantis, contriburam para deteriorar a situao poltica e criar um clima intimidatrio entre as elites afegs. Quando o descontentamento nas foras armadas j era evidente, pois a formao quase exclusiva na URSS possibilitara uma crescente influncia Parcham, um perodo de dois anos consecutivos de seca, no incio dos anos setenta, provocaram o alastrar da fome e conduziram a um verdadeiro descalabro econmico.

A Repblica Nacionalista de Daud O crescente descontentamento criou as condies ideais para um regresso de Muhammad Daud (1973-1978) cena poltica afeg. Dando corpo a uma ambio congelada pela proibio constitucional de 1964, o General Daud apelou ao imenso prestgio que mantinha entre as Foras Armadas, aproveitando uma viagem de Zahir Shah ao estrangeiro para derrubar a monarquia. Daud liderou golpe de Estado de 17 de Julho de 1973, executado por um grupo de oficiais maioritariamente Parcham, cujo apoio fora assegurado graas ao relacionamento privilegiado que mantinha com Karmal, filho de um dos seus colaboradores mais prximos. Aps o golpe, Daud passou a chefiar o governo provisrio e o conselho da revoluo, preparando a aprovao por uma Loya Jirga de uma Constituio que, estabelecendo uma repblica nacionalista e de partido nico, lhe garantia um poder quase absoluto. Quando a nova Constituio foi aprovada, em Janeiro de 1977, j Daud, obcecado em consolidar a sua posio, tinha excludo da esfera do poder todos os que via como potenciais ameaas, tarefa iniciada com o afastamento dos Parcham que o tinham ajudado a conquistar o poder. Decidido a evitar a repetio dos erros do passado, Daud imprimiu uma nova dinmica poltica externa afeg. Apesar de no excluir um relacionamento privilegiado com a URSS, tentou fortalecer os laos com a ndia, procurando assegurar treino militar compatvel com o armamento fornecido por Moscovo, mas evitando a propagao ideolgica associada formao fornecida na URSS. O desenvolvimento das relaes com o Iro, tentando incrementar novas rotas comerciais e assegurar o auxlio econmico indispensvel para promover uma nova vaga de modernizao, que foi progressivamente alargado a outros pases muulmanos da regio, conduziria a um surpreendente normalizar das relaes com o Paquisto, patrocinado conjuntamente pelo Iro e pelos EUA em 1977. As escolhas de Daud, especialmente a nova orientao da poltica externa afeg, no coincidiram com as expectativas geradas nos dirigentes soviticos que, animados pela participao parcham no governo provisrio, esperavam que o Prncipe Vermelho reavivasse a aliana preferencial com Moscovo. Procurando manter alguma capacidade para influenciar a poltica afeg, a URSS continuou a assegurar a maior parte do apoio externo recebido por Cabul, no s a nvel econmico como militar, mesmo quando as opes de Daud desagradavam profundamente aos lderes soviticos. Apesar do mal-estar se ter acentuado aps o agendamento para meados de 1978 de uma visita de Daud a Washington, no possvel provar a participao directa da URSS na revoluo Saur. Mas se Moscovo, no promoveu

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nem participou activamente na queda de Daud, desempenhou um importante papel no desenrolar dos acontecimentos, j que patrocinara, em 1977, a reunificao do PDPA, sob a liderana de Taraki. A incapacidade para impulsionar decisivamente a economia Afeg contribuiu para o deteriorar da situao interna, mas a instaurao de um regime autoritrio e obcecado pela consolidao no poder, de que o afastamento dos Parcham fora o primeiro indcio, desempenhou um papel fundamental na progressiva eroso da base de apoio de Daud. Um crescente movimento repressivo, que se revelou especialmente feroz contra os movimentos islmicos, vistos como a principal ameaa ao regime, enviou para as prises grande parte dos opositores. Obrigados a desenvolver a oposio a partir do exlio, os activistas que se refugiaram no Paquisto durante este perodo, nomeadamente Burhanuddin Rabbanni, Gulbuddin Hekmatyar e Ahmad Shah Massud, foram recebendo um apoio moderado de Islamabad, que os considerava um importante trunfo para o possvel reacender da questo da autodeterminao Pastun. A situao poltica degradou-se muito rapidamente aps o assassinato do idelogo parcham Mir Akbar Khyber, em Abril de 1978, que nunca viria a ser devidamente esclarecido. Os dirigentes do PDPA, convencidos que ordem para a eliminao de Khyber partira dos servios secretos afegos, transformaram o seu funeral numa grande manifestao contra o poder institudo, agravando a tenso social em Cabul. Daud, alarmado com uma ameaa comunista que at a minimizara, ordenou de imediato a priso dos principais lderes do PDPA e tentou iniciar uma nova purga nas foras armadas. Esta nova onda repressiva incentivou o General Abdul Qadir, um influente parcham, a liderar o golpe militar que consumou a Revoluo Saur e que, segundo verso oficial posteriormente difundida pelo PDPA, teria sido dirigido por Hafizullah Amin a partir do local onde se encontrava em priso domiciliria. A morte de Daud, eliminado juntamente com grande parte da famlia e alguns dos colaboradores mais prximos, representou o fim do longo domnio dos Durrani, possibilitando a instaurao de um regime comunista controlado pelo PDPA e colocando o Afeganisto na completa dependncia da Unio Sovitica.

REGRESSO AO GRANDE JOGO NA RBITA DA UNIO SOVITICA Numa altura em que as relaes entre os EUA e a URSS comeavam a esfriar, aps um perodo de desanuviamento, o emergir da questo afeg preparava-se para ocupar um papel central nesse relacionamento. A instaurao da Repblica Democrtica do Afeganisto aumentou o apetite das superpotncias que, mais do que pelos recursos naturais prprios, nomeadamente o urnio, foram atrados pela valorizao geo-estratgica do pas num perodo de grande instabilidade regional. A incorporao do Afeganisto na zona de influncia da URSS, facilitada pela proximidade geogrfica, conduziu progressiva assimilao de uma excessiva valorizao da sua importncia pelos governantes soviticos, e Moscovo procurou aproveitar os laos ideolgicos e a fraqueza dos novos lderes afegos para maximizar um investimento de muitos anos. Os EUA, que durante muitos anos

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prestaram algum apoio econmico ao Afeganisto, no tinham sido tentados a alterar esse posicionamento aps o derrube Zahir Shah, pois a j considervel influncia de Moscovo apenas poderia aumentar marginalmente com o golpe de Daud6. Como a poltica externa do Afeganisto durante a Repblica incentivou as expectativas de manter a estabilidade regional e assegurar a independncia afeg, principais ambies dos governantes norteamericanos, foi maior o choque provocado pela instaurao de um regime claramente prsovitico e que colidia frontalmente com os objectivos dos EUA. O interesse norteamericano pela evoluo dos acontecimentos aumentou dramaticamente quando deixou de contar com o Iro como aliado, assumindo o Afeganisto um papel central na definio da poltica externa dos EUA para a regio. Contando com o Afeganisto como aliado, a URSS aproximava-se perigosamente dos estratgicos portos dos mares quentes e das importantes rotas do petrleo do Golfo Prsico, fornecendo a motivao necessria a um maior empenhamento norte-americano, que a posterior ocupao sovitica s poderia incentivar. O tabuleiro afego tambm atraa outros jogadores, em especial os que se sentiam ameaados com a desestabilizao da regio. O crescente clima de instabilidade no Iro, onde as foras islmicas comandadas pelo Ayatollah Khomeini conseguiam assegurar o poder no incio de Fevereiro de 1979, desempenharia um papel fundamental para o desenrolar dos acontecimentos no Afeganisto. Criando um clima de incerteza e ameaando contagiar toda regio com um enorme fervor religioso, a revoluo iraniana no s inspirou as primeiras revoltas populares contra o regime comunista afego, como condicionou o comportamento de todos os outros actores, regionais ou globais. O novo regime de Teero condenou a invaso sovitica e apoiou empenhadamente os movimentos que combatiam o regime de Cabul, em especial os grupos xiitas, contribuindo para aumentar o interesse pela questo afeg de uma Arbia Saudita preocupada com a possvel exportao da revoluo iraniana. Para o Paquisto, considerando as relaes preferenciais tradicionalmente existentes entre a ndia e a URSS, a instaurao de um regime comunista no Afeganisto era inaceitvel, pois no s impedia a concretizao da recente aproximao entre os dois pases, como o colocava entre duas frentes que, se conjugadas, podiam constituir uma sria ameaa independncia paquistanesa. Aproveitando os laos tribais e o crescente nmero de refugiados que chegavam ao seu territrio, o Paquisto procurou incentivar a resistncia afeg, apoiando activamente os opositores ao novo regime, papel que seria reforado medida que aumentava o interesse norte-americano. Vendo na invaso do Afeganisto uma ameaa estabilidade na sia, a China aproveitou a fronteira comum para apoiar os rebeldes, pelo menos at os soviticos ocuparem o corredor de Wakhan, em Julho de 1981, ao mesmo tempo que colocava a retirada das tropas soviticas entre as principais questes a resolver para assegurar uma normalizao das relaes com a URSS. A ndia, pelo contrrio, no podia esquecer os seus objectivos estratgicos no Afeganisto e, como principal aliada no comunista da URSS, limitou as crticas a tmidos apelos para a retirada das tropas soviticas e para uma resoluo poltica do conflito.

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Memorando dirigido a Henry Kissinger aps o golpe de Daud por Harold H. Saunders e Henry R. Appelbaum, do National Security Council, disponvel em http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB59/zahir15.pdf.

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Mapa 3O MUNDO VISTO DA URSS

Fonte: Adaptado de um original do Atllas Strategique

A Revoluo Saur e a Dinmica Khalq Aps o golpe de Estado de 27 de Abril de 1978 Noor Mohammad Taraki (1978-1979) passou a chefiar os principais rgos da Repblica Democrtica do Afeganisto, Karmal ocupou a vice-liderana e os restantes cargos dirigentes foram divididos entre as duas faces do PDPA. As rivalidades pessoais e as diferentes vises sobre o ritmo a imprimir

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revoluo Saur rapidamente comearam a provocar atritos na liderana afeg, com Taraki, que procurava impor uma linha mais radical, a enfrentar a oposio dos moderados Parcham. Karmal, colocado como embaixador na Checoslovquia na sequncia da breve luta entre as duas faces, foi posteriormente acusado de liderar uma conspirao contra Taraki, sendo obrigado a permanecer no exterior at invaso sovitica. Enquanto Amin comeou a aproveitar as constantes hesitaes de Taraki para reforar o poder que detinha, controlando uma importante parte dos meios repressivos do Estado, os dirigentes Parcham, transformados nos principais alvos das interminveis purgas internas no PDPA, ocupavam os poucos lugares livres nas prises afegs. Assegurada a predominncia Khalq, a tentativa de implementar rapidamente profundas reformas sociais sem considerar a especificidade da sociedade afeg provocou sucessivas ondas de rejeio da maioria da populao, levando diversos lderes religiosos a declarar uma jihad contra o regime comunista. A reforma educativa, ao pretender instituir uma alfabetizao alargada da populao, obrigando as mulheres a deixar os espaos que tradicionalmente lhe estavam reservados e procurando implementar escolas mistas, transformou-se numa importante fonte de conflitos. A abolio de outros hbitos tribais, nomeadamente o dote de casamento, importante fonte de rendimentos para muitas das famlias mais desfavorecidas, contribuiu para o alastrar do descontentamento, especialmente nos meios rurais, onde uma sociedade tipicamente feudal era ainda confrontada com uma reforma agrria que punha em causa os relacionamentos tribais. Contando com uma base de apoio extremamente reduzida e quase exclusivamente urbana, a nova liderana comunista enfrentou uma escalada de rebelies e revoltas, e a sistemtica utilizao da violncia, longe de resolver o problema, s aumentou o fosso entre o PDPA e a maioria da populao. As revoltas atingiram um ponto crtico em Maro de 1979 quando, indignados com a reforma educativa e inspirados pelo exemplo da revoluo religiosa que se desenvolvia no vizinho Iro, os rebeldes tomaram temporariamente Herat, assegurando o apoio de parte do exrcito afego estacionado na regio para perseguir e eliminar muitos dos dirigentes comunistas e dos conselheiros soviticos. O alarme provocado por esta aco contribuiu para aumentar o clima de desconfiana no interior do PDPA, incentivando as purgas internas. A incapacidade das foras governamentais para controlar a situao estaria na origem de sucessivos pedidos a Moscovo para aumentar o apoio militar, com Taraki e Amin a solicitarem repetidamente aos lderes do Kremlin o envio de tropas do Exrcito Vermelho para esmagar a rebelio7. Argumentando que a utilizao de militares da URSS seria contraproducente a nvel interno, pois desacreditaria os governantes afegos perante o prprio povo, mas tambm externamente, porque seria aproveitada por outros pases para justificar o apoio s foras anticomunistas afegs, esta pretenso seria sempre negada pelos mesmos lderes soviticos que a colocariam em prtica nove meses mais tarde.

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Uma interessante srie de documentos relacionados com a invaso sovitica do Afeganisto pode ser consultada em http://cwihp.si.edu/pdf/afghan-dossier.pdf.

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Aproveitando a viagem de Taraki a Cuba, onde participara na VI Conferncia dos Pases No-alinhados, Leonid Breznev solicitou a sua presena em Moscovo a 10 de Setembro de 1979, aproveitando o encontro para comunicar o descontentamento da liderana sovitica com o rumo demasiado radical que tinha tomado a revoluo Saur. Brejnev apelou ento unidade no interior do PDPA, salientando os perigos que corria o processo revolucionrio com a concentrao excessiva de poder nas mos de Amin. Pressionado por Moscovo, Taraki pareceu finalmente decidido a agir, especialmente aps receber informaes dos servios secretos afegos sobre um golpe que Amin teria preparado durante a sua ausncia. Argumentando que fora ele o verdadeiro alvo da conspirao, Amin recusou obedecer s ordens de Taraki e exigiu a demisso de vrios ministros, criando um clima de suspeio inultrapassvel entre os dois. Na verdade, Amin j iniciara o golpe de Estado em que afastou definitivamente Taraki e garantiu o poder absoluto e, isolando o lder histrico do PDPA na sua prpria residncia, tornou infrutferos os derradeiros esforos dos soviticos para evitar nova confrontao entre os Khalq. Conhecedor da precariedade da nova liderana, Hafizullah Amin (1979) aproveita ao extremo a poderosa mquina repressiva que desenvolvera para consolidar o seu domnio. Garantida a eliminao fsica de Taraki, intensificam-se as perseguies no interior do PDPA, ao mesmo tempo que os cargos dirigentes do Estado e do Partido so distribudos pelos seus familiares directos e apoiantes prximos. Durante os trs meses e meio em que governou o Afeganisto, Amin, que j no podia confiar nos lderes soviticos, desenvolveu diversos contactos nos meios hostis a Moscovo. Consciente das dificuldades que resultariam de uma nova ofensiva islmica, iniciou contactos com alguns dos lderes da oposio e, recuperando a tradicional postura afeg de relacionamento com as superpotncias, ter tambm iniciado contactos com representantes norte-americanos e paquistaneses, procurando avaliar as possibilidades de alterar profundamente a poltica externa afeg. Esta ameaa de realinhamento externo, que causou enormes preocupaes em Moscovo num perodo conturbado para a estabilidade regional, conjugada com a incapacidade demonstrada pela KGB para concretizar as tentativas para afastar Amin, contriburam decisivamente para que os lderes soviticos ordenassem a invaso do Afeganisto. S assim foi possvel aos soviticos eliminar Amin e, atribuindo todos os seus cargos a Babrak Karmal, dar incio liderana Parcham e a uma desastrosa presena militar sovitica que duraria dez anos e desempenharia um importante papel na desintegrao da prpria URSS.

A Invaso Sovitica Apesar do entusiasmo inicial que provocou em Moscovo, a Revoluo Saur rapidamente se transformou numa fonte de crescente preocupao para os lderes soviticos. Apesar do crescente apoio militar e econmico da URSS, as constantes confrontaes pessoais e o acentuar do radicalismo impediam a constituio de uma base de apoio estvel governao comunista, e a incapacidade do PDPA para controlar a situao com os seus prprios meios tornou-se evidente para o Kremlin aps a revolta em Herat. Mas se, em Maro de 1979, os dirigentes soviticos consideravam inadmissvel (Andropov) o envio de tropas para resolver um assunto interno do Afeganisto (Gromyko), at porque deitaria a

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perder tudo o que fora conseguido com imensa dificuldade, particularmente a dtente... (Gromyko)8, algo ter mudado at ao final desse ano para justificar a invaso de Dezembro. A afirmao de Hafizullah Amin como lder mximo do pas foi, a nvel interno, a principal alterao que justificou a aco militar da URSS. Moscovo temia as consequncias do excessivo radicalismo dos dirigentes locais e, em vez de promover a implementao rpida do comunismo, procurava assegurar uma influncia duradoura no Afeganisto, opo definitivamente posta em causa com a ascenso da Amin. Apesar de importantes responsveis militares soviticos terem comeado a estudar as possibilidades de colocar o Exrcito Vermelho no terreno logo aps a rebelio em Herat, uma interveno militar s comea a ganhar forma quando, a 1 de Setembro de 1979, a KGB elabora um memorando9 responsabilizando Amin pela evoluo dos acontecimentos no Afeganisto. As aces enumeradas no relatrio, sugeridas por Breznev a Taraki durante o derradeiro encontro entre ambos, transformaram-se nos principais objectivos imediatos da poltica afeg da URSS e, constatada a incapacidade da KGB para promover a eliminao de Amin, esto na origem da invaso do Afeganisto pelas tropas soviticas. Apesar de parecer hoje claro que a KGB transmitiu liderana sovitica uma viso exagerada dos perigos de uma possvel alterao radical na orientao da poltica afeg, ainda no possvel confirmar se existiu alguma ligao entre Amin e a CIA, ou se essas alegaes resultaram apenas do trabalho da KGB para justificar a invaso. Ao contrrio de quase todos outros dirigentes do PDPA, incluindo Taraki, que j era informador no tempo da NKVD, Amin nunca ter sido um colaborador directo da KGB e, tendo estudado nos EUA, desenvolvera por diversas vezes contactos com importantes sectores no comunistas. O maquiavlico comportamento de Amin aps o golpe de Setembro, aparentemente ditado pelas enormes ambies pessoais, s contribuiu para aumentar as suspeitas dos dirigentes soviticos sobre as suas verdadeiras intenes. Ao mesmo tempo que difundia a ideia de que o afastamento de Taraki contava com o apoio dos lderes soviticos, comprometendo internamente a URSS com o seu regime, Amin acusava o embaixador sovitico de colaborar com Taraki numa tentativa para o assassinar, obrigando Puzanov a deixar o pas, em Novembro de 1979, aps ter sido considerado persona non grata. Amin, acreditando ainda

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Meeting of the Politburo of the CC of CSPU, March 17, 1979; The Soviet Union and Afghanistan, Cold War International History Project, http://cwihp.si.edu/pdf/afghan-dossier.pdf. Referido por Vasily Mitrokin, clebre arquivista da KGB refugiado no Ocidente, em The KGB in Afghanistan, pag. 52, ( http://cwihp.si.edu/pdf/wp40.pdf ) o memorando sugere: 1-Deve ser encontrado um meio para remover Amin da liderana, pois ele culpado de seguir uma m poltica interna. Dever ser responsabilizado pessoalmente pelas exageradas medidas punitivas e pelo falhano das polticas internas. 2-Taraki dever ser persuadido de que o estabelecimento de um governo de coligao democrtica essencial, cabendo a liderana ao PDPA, incluindo os Parcham. Representantes religiosos e tribais de inclinao patritica e membros das minorias nacionais e das elites intelectuais devero ser integrados no governo. 3-Os prisioneiros polticos ilegalmente presos, em especial os Parcham, devero ser libertados e reintegrados. 4-Dever ser promovido um encontro no oficial com Babrak Karmal para discutir a poltica interna no Afeganisto.....

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na possibilidade de assegurar o apoio do Kremlin ou movido por qualquer objectivo inconfessvel, solicitou em Dezembro, e por diversas vezes, o envio de tropas soviticas, justificando o seu pedido com o Tratado de Amizade e Cooperao assinado em Moscovo um ano antes. Mas, tal como no sculo XIX, quando os contactos entre Dost Mohammad e Vitkevitch provocaram a reaco Britnica, a potncia dominante no estava disposta a tolerar qualquer ameaa de namoro com o adversrio, e as tropas enviadas pela URSS para Cabul tinham como objectivo assegurar o afastamento de Amin e a instaurao de um poder mais dcil e fiel. A ideia de enviar tropas soviticas para o Afeganisto ganhou apoiantes no Kremlin devido aco de Yuri Andropov, ao tempo responsvel pela KGB. Numa nota pessoal10 que enviou a Breznev nos primeiros dias de Dezembro, Andropov salientava a ameaa que Amin representava para a manuteno da influncia sovitica no Afeganisto, sugerindo o apoio a uma nova reunificao do PDPA, liderada por Karmal e Sarwari, e a utilizao de todos os meios ao dispor da URSS, incluindo a utilizao das foras armadas, de forma a garantir o afastamento de Amin. A proposta, que contou com o decisivo apoio de Dimitri Ustinov, Ministro da Defesa, salientava, entre outros, o perigo que resultaria de uma possvel instalao de msseis Pershing no Afeganisto, ameaando todo o Sul da Unio Sovitica e o centro espacial de Baikonur ou as consequncias do apoio norte-americano constituio de um novo Imprio Otomano, que poderia vir a incluir parte da URSS11. Apesar da oposio generalizada dos comandos militares12, justificada pela tradicional resistncia afeg ocupao estrangeira e pela desastrosa experincia dos norte-americanos no Vietname, mas tambm pelo enfraquecimento que tal movimento implicaria para as foras soviticas estacionadas na Europa e na fronteira com a China, as desvantagens de tal aco para a poltica externa sovitica foram negligenciadas. Prevaleceu a viso do Afeganisto a fugir ao controlo sovitico transmitida pela KGB, uma catstrofe que teria de ser impedida pela participao dos militares soviticos na substituio de Amin por Karmal, aco que viria a ser aprovada por unanimidade numa reunio restrita do Politburo, a 12 de Dezembro, em que participaram apenas Breznev, Suslov, Andropov, Ustinov e Gromyko. A evoluo do relacionamento entre as superpotncias tambm influenciou a deciso dos lderes soviticos, pois os ventos j no sopravam a favor da dtente no final de 1979. Apesar da assinatura do tratado SALT II por Jimmy Carter e Leonid Brejnev, a 18 de Junho, a controvrsia suscitada nos EUA em torno da sua ratificao, em parte motivada pela perda das estaes de controlo instaladas no Iro, j pronunciava a confrontao sobre os euromsseis, iniciada com a deciso da NATO de instalar vectores de mdio alcance no territrio europeu que, curiosamente, foi tomada a 12 de Dezembro de 1979. A crescente instabilidade regional provocada pela revoluo iraniana, que fazia Moscovo temer um

Personal memorandum, Andropov to Breznev; The Soviet Union and Afghanistan, Cold War International History Project (n.d.), http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB57/r7.pdf.11 12

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Lyakhovsky, Alexander; The Tragedy and Valor of Afghan, GPI Iskon, Moscow, 1995, pp.109-112.

Kornienko, Georgy M.; The Cold War: Testimony of a Participant, Moscow, Mezhdunarodnye otnosheniya, 1994, pp. 193-195.

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avano da influncia islmica nas repblicas soviticas da sia Central, agravou-se em Novembro, quando o despoletar da crise dos refns da embaixada dos EUA em Teero tornou imprevisvel a reaco norte-americana. Vendo um sinal de fraqueza na indeciso de Washington ou tentando antecipar-se a uma possvel aco dos EUA no Iro, aps a qual qualquer reaco militar sovitica seria vista pelos norte-americanos como uma resposta directa, os dirigentes soviticos optaram por intervir militarmente no Afeganisto. Mas, ao mesmo tempo que assegurava o domnio sobre a sua zona de influncia, maximizando a segurana, a potncia continental aproximava-se mais das guas quentes do ndico do que alguma vez no passado, transformando-se numa ameaa demasiado importante para poder ser ignorada por paquistaneses e norte-americanos.

A Interveno dos EUA O domnio regional dos EUA, baseado no relacionamento privilegiado com o Iro, a Arbia Saudita e o Paquisto, no foi posto em causa com a chegada dos comunistas ao poder no Afeganisto. Apesar de instalar no poder um governo claramente pr-sovitico, a revoluo Saur no provocou uma alterao imediata na definio da poltica norte-americana para a regio, que continuou focada na evoluo da situao poltica no Paquisto e no Iro. A inquietao gerada pelas reformas radicais introduzidas por Taraki s comeou a preocupar os EUA em Fevereiro de 1979, quando o embaixador Adolph Dubs foi morto durante um ataque da polcia afeg para o resgatar ao grupo de maoistas xiitas que o raptara. Este grave incidente criou um clima de tenso que afectou decisivamente as relaes entre os EUA e o Afeganisto, levando o Congresso a ameaar cortar toda a ajuda econmica que ainda prestava a Cabul. Apesar de terem reduzido consideravelmente o apoio ao Paquisto aps o golpe de Estado de 1977, preocupados com o programa nuclear paquistans e as constantes violaes dos direitos humanos perpetradas pelo regime do General Mohammad Zia-ul-Haq, os EUA recuperaram progressivamente o relacionamento privilegiado com Islamabad logo que o equilbrio regional foi abalado pela revoluo Iraniana. A ascenso de Khomeini e a instaurao de um regime profundamente anti-americano no Iro, privando os EUA de um aliado essencial para travar potenciais investidas da URSS para Sul, acentuaram a percepo desta ameaa, contribuindo para aumentar a preocupao com a influncia sovitica no Afeganisto. O interesse norte-americano aumentou consideravelmente e, apesar dos desmentidos oficiais, os EUA comearam a apoiar os opositores ao regime de Cabul ainda antes da interveno militar da URSS no Afeganisto. Durante o mandato de Jimmy Carter, a formulao da poltica externa norte-americana foi marcada pelo claro contraste de opinies entre o secretrio de Estado, Cyrus Vance, e o conselheiro para os assuntos de segurana, Zbigniew Brzezinski. Se Vance privilegiava o dilogo e o desanuviamento entre as superpotncias, Brzezinski demonstrava uma maior tendncia para o confronto e uma enorme preocupao com as manifestaes do crescente expansionismo sovitico e, medida que aumentavam as dificuldades no relacionamento Leste-Oeste, as opinies do conselheiro ganharam mais peso na definio da estratgia norte-americana. Seguindo as sugestes de Brzezinski, o presidente Carter assinara em

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Julho de 1979 a primeira directiva que autorizava a assistncia clandestina aos rebeldes, ciente de que tal aco aumentava a probabilidade de uma interveno militar da URSS no Afeganisto13. Logo que esta se concretizou, Brzezinski enviou uma nota ao Presidente Carter, que a seguir se transcreve, traando o cenrio que presidiria abordagem da questo afeg pelos norte-americanos enquanto se manteve a presena sovitica.

NOTA DE BRZEZINSKI PARA O PRESIDENTE CARTER, 26 DE DEZEMBRO DE 1979 ...Como lhe mencionei cerca de uma semana, estamos agora a enfrentar uma crise regional. Tanto o Iro como o Afeganisto sofrem com a agitao, e o Paquisto est num clima de instabilidade interna e de apreenso externa. Se os soviticos tiverem sucesso no Afeganisto, e ...[apagado] o velho sonho de Moscovo de ter um acesso directo ao Oceano ndico ter sido concretizado. Historicamente, os britnicos providenciaram uma barreira a esse objectivo, com o Afeganisto a funcionar como Estadotampo. Assumimos esse papel em 1945, mas a crise Iraniana levou ao colapso do equilbrio de poder no Sudoeste Asitico e poder conduzir presena sovitica at aos golfos Arbico e de Oman. Neste contexto, a interveno sovitica no Afeganisto constitui um importante desafio para ns, tanto a nvel interno como a nvel externo. Apesar do Afeganisto se poder vir a transformar num Vietname sovitico, os efeitos iniciais da interveno podero ser-nos desfavorveis devido s seguintes razes: Internas: A A interveno sovitica susceptvel de estimular os apelos para uma aco militar mais imediata dos EUA no Iro. A determinao sovitica contrastar com a nossa conteno, que deixar de ser rotulada de prudente para passar a ser crescentemente considerada como tmida; B Simultaneamente, a instabilidade regional poder tornar a resoluo da questo iraniana mais difcil para ns, e poder levar-nos a uma confrontao cara-a-cara com os soviticos; C provvel que os acordos SALT sejam afectados, talvez de forma irreparvel, devido agressividade militar sovitica ter sido to chocante; D Genericamente, a nossa abordagem do relacionamento com os soviticos ser atacada tanto direita como esquerda. Internacionais: A O Paquisto, a menos que possamos projectar confiana e poder na regio, ...[apagado]; B Com o Iro instvel, no existir uma muralha firme no Sudoeste asitico para travar o avano sovitico para o Oceano ndico; C Os Chineses iro por certo perceber que a determinao sovitica no Afeganisto e no Camboja no restringida pelos EUA. Factores compensatrios Existiro, por certo, alguns factores favorveis: A A opinio pblica mundial poder sentir-se ultrajada com a interveno sovitica. Os pases muulmanos ficaro preocupados e poderemos estar em posio para explorar isso;

Ver entrevista com Zbigniew Brzezinski em Le Nouvel Observateur n 1732, 15 a 21 Janeiro de 1998, p. 76, disponvel em http://archives.nouvelobs.com/ .

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B Existem j 300 000 refugiados afegos no Paquisto e podemos acusar os soviticos de provocarem um sofrimento humano massivo. Este sentimento ir por certo aumentar, e as aces patrocinadas pelos soviticos no Camboja j se encarregaram de o acentuar. C Existir uma maior ateno entre os nossos aliados para a necessidade de fazer mais pela sua prpria defesa. Um Vietname sovitico? Contudo, no deveremos estar demasiado esperanados em o Afeganisto se transformar num Vietname para os soviticos: A As guerrilhas esto mal organizadas e pobremente dirigidas; B No tm um santurio, um exrcito organizado e um governo central tudo o que existia no Vietname do Norte; C Tm um apoio internacional limitado, em contraste com a enorme quantidade de armas que os vietnamitas receberam da URSS e da China; D provvel que os soviticos procurem agir decididamente, ao contrrio dos EUA, que seguiram no Vietname uma poltica para controlar o inimigo. Consequentemente, os soviticos podero ter capacidade para se afirmar efectivamente e, independentemente das questes morais, na poltica internacional nada garante melhor o sucesso que o prprio sucesso. O que est para ser feito? Seguem-se alguns pormenorizada: pensamentos preliminares necessitando de uma discusso mais

A essencial que a resistncia afeg continue. Isto significa mais dinheiro e armas para os rebeldes, assim como algum aconselhamento tcnico; B Para tornar isso possvel devemos assegurar o Paquisto e encoraj-lo a apoiar os rebeldes. Isto requer uma reviso da nossa poltica para o Paquisto, assegurando-lhe mais garantias e maior apoio militar; C Deveramos encorajar os chineses a tambm apoiarem os rebeldes; D Deveramos desenvolver, em concertao com os pases islmicos, campanhas de propaganda e de apoio secreto aos rebeldes; E Deveramos informar os soviticos de que as suas aces esto a colocar em perigo os acordos SALT e iro influenciar a visita de Brown China, uma vez que os Chineses estaro indubitavelmente mais preocupados com as implicaes para eles prprios das atitudes soviticas to perto das suas fronteiras. A menos que digamos que os soviticos no levaro muito a srio as nossas manifestaes de preocupao, com o efeito que isso implica nas nossas relaes, sem terem alguma vez sido confrontados com a questo de saber se o seu aventureirismo local vale os danos causados a longo prazo nas relaes EUA-URSS; F Finalmente, deveramos considerar apresentar as aces soviticas no Afeganisto na ONU como uma ameaa paz. http://www.cnn.com/SPECIALS/cold.war/episodes/20/documents/brez.carter/

Domnio Parcham pela Fora Sovitica Os lderes soviticos, derrubando o desptico regime de Amin e instalando no poder Babrak Karmal (1979-1986), pretendiam reunificar o PDPA e assegurar um regime mais moderado,

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capaz de pr fim s constantes disputas no interior do partido e abrir o regime participao das correntes polticas e religiosas no comunistas. Karmal, no entanto, cedeu ao tradicional desejo de vingana afego, e o ajuste de contas com os Khalq, responsabilizados pelos erros do passado recente, rapidamente se transformou no principal objectivo do seu regime. Tal postura inviabilizou uma vez mais a criao de uma frente comum contra a oposio islmica radical, deixando para os militares soviticos todo o esforo de guerra contra diversos grupos armados em ascenso. Com uma base de apoio extremamente reduzida, dominando apenas os principais aglomerados populacionais e as vias de comunicao entre eles, o governo de Karmal nunca teve capacidade para controlar efectivamente todo o territrio, e nem a forte presena militar sovitica teve capacidade para impedir a actuao de grupos de guerrilheiros apoiados do exterior e contando com um apoio considervel entre a populao. Em vez de contribuir para estabilizar a situao, a presena das tropas soviticas reacendeu a tradicional resistncia afeg ocupao estrangeira e despertou o apoio externo aos rebeldes. Mal equipados e pouco preparados para enfrentar uma guerra de guerrilha, os militares enviados por Moscovo no s eram alvo de constantes emboscadas, sofrendo pesadas baixas, como inspiravam o recrutamento de voluntrios, que chegavam de todo o mundo islmico, dispostos a combater na jihad contra os invasores infiis um pouco por todo o mundo islmico. Com o Afeganisto a ocupar uma posio central no reacender da Guerra Fria, a oposio islmica refugiada no exterior passou a receber um crescente fornecimento de armamento norte-americano que, conjugado com o apoio logstico do Paquisto e o poderoso impulso financeiro da Arbia Saudita, possibilitou a progressiva transformao de grupos mal organizados e mal armados em temveis combatentes mujahidin. Este apoio, desenvolvido em grande parte pela aco dos servios secretos, nomeadamente pela colaborao entre a CIA e o ISI14, foi canalizado exclusivamente atravs do Paquisto, contribuindo decisivamente para o crescimento de complexas redes de contrabando e corrupo com importantes ramificaes em crculos do Estado e das Foras Armadas. Dotado de um poder discricionrio na distribuio do apoio, o regime liderado por Zia-ul-Haq favoreceu os grupos Pastun mais radicais, especialmente a faco do Hisb-i-Islami (Partido Islmico) dirigida por Gulbuddin Hekmatyar, que o ISI se apressara a pr em contacto com a CIA ainda antes da invaso sovitica, e que se transformou num aliado incontornvel para Islamabad. Os soviticos responderam aos reveses iniciais aumentando os efectivos militares mas, progressivamente, adequaram os seus meios e tcticas de combate s condies especficas da guerra no Afeganisto. Utilizando agentes infiltrados da KHAD15 para localizar bases inimigas e recorrendo a helicpteros, que passam a empregar com considervel xito no transporte de tropas e no ataque ao solo, os soviticos cortaram

Inter-Services Intelligence, que sempre desempenharam um importante papel na execuo da poltica externa de Islamabad para o Afeganisto. Servios de Informao do Estado, polcia poltica dirigida por Najibullah, que se transformou no organismo mais eficaz do regime de Cabul.15

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grande parte das linhas da reabastecimento da resistncia a partir do exterior e provocaram pesadas baixas em diversos grupos mujahidin. Utilizando o suborno dos chefes das tribos e de alguns grupos de bandidos armados, aproveitando habilmente as diferenas pessoais, polticas, tnicas ou religiosas para promover a desconfiana e animosidade entre os grupos oposicionistas, as foras soviticas recorreram frequentemente a uma poltica de terra queimada na tentativa de eliminar as bases de apoio dos rebeldes. Se a guerra no foi marcada apenas pelos ataques massivos das tropas soviticas contra povoaes suspeitas de apoiar a oposio, e as minas, os atentados bombistas e outras aces violentas dos rebeldes causavam indiscriminadamente vtimas nos meios urbanos, a escalada do conflito agravou drasticamente o sofrimento das populaes das aldeias, aumentando o fluxo de refugiados para os pases vizinhos e tornando quase desabitadas diversas zonas rurais. Inspirados pela poltica de Reagan contra o imprio do mal, os EUA procuravam responder prontamente a qualquer sucesso relativo da URSS e, para promover a permanncia de populaes essenciais para assegurar o apoio logstico aos guerrilheiros, aumentaram a ajuda s organizaes humanitrias, passando a favorecer as que prestassem auxlio no interior do Afeganisto. Os fornecimentos de armamento tambm foram aumentando durante a primeira metade dos anos oitenta, no s em quantidade como em qualidade. Em 1986, pressionada por um poderoso lobby que, a partir do Congresso, incitava os aliados a aumentar o apoio financeiro aos guerrilheiros afegos e defendia o fornecimento de armamento cada vez mais sofisticado, a CIA passou a entregar armas de fabrico norteamericano aos mujahidin, nomeadamente os poderosos e manobrveis msseis terra-ar Stinger, que num pice se transformaram no terror da aviao sovitica.

A Retirada sem Glria da Unio Sovitica Se Moscovo no podia esperar uma resoluo do conflito pela via militar, uma soluo poltica favorvel aos seus objectivos cedo se revelou improvvel. Logo aps a invaso, com o boicote aos jogos olmpicos de Moscovo e as primeiras sanes econmicas, a presso internacional afectou o relacionamento da URSS com o exterior, em especial com os pases islmicos, procurando levar os soviticos a reavaliar os custos e benefcios da aventura afeg. O exacerbar de posies no Afeganisto s enfraquecia a posio de Moscovo, sugerindo que a nica alternativa ao regime comunista seria um governo islmico profundamente anti-sovitico que, conjugado com a exposio dos soldados soviticos ao fundamentalismo islmico, aumentava os riscos de contaminao religiosa s repblicas asiticas da URSS. Acompanhados pelo desenvolvimento de importantes redes de contrabando, os constantes casos de consumo excessivo de lcool e de drogas contribuam para uma crescente desmoralizao entre os militares que, regressando da guerra, agudizavam os problemas sociais e econmicos com que se debatia a URSS, elevando o tom das crticas at o tornar audvel numa sociedade to fechada como a sovitica.

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Mapa 4RELEVO DO AFEGANISTO

Fonte: Globalsecurity.org

O elevado desperdcio de recursos econmicos e vidas humanas, conjugados com um isolamento internacional incompatvel com os objectivos da nova poltica externa sovitica, contriburam para que os ventos de mudana anunciados por Mikhail Gorbachev chegassem rapidamente ao Afeganisto. Conscientes que s uma alterao profunda na abordagem da questo afeg evitaria o prolongar do esforo de guerra por tempo indeterminado, os dirigentes soviticos passam a estudar a retirada das foras militares em dois anos16, definindo a neutralidade do Afeganisto como o objectivo estratgico da URSS. Como o crescente apoio externo oposio contrastava com a fragilidade do governo de Cabul, obrigando a URSS a manter no terreno mais de 100 000 homens, os soviticos procuraram pr fim aos interminveis conflitos internos no PDPA substituindo Karmal por Mohammad Najibullah17 (1987-1992). O novo regime de Cabul passou a promover a reconciliao nacional e, para aumentar a sua base de apoio, decretou um cessar-fogo e uma amnistia, chegando mesmo a promulgar uma constituio em que reconhecia os princpios islmicos

The Soviet Union and Afghanistan, Cold War International History Project, Meeting of CC CSPU Politburo, 13 November 1986. http://cwihp.si.edu/pdf/afghan-dossier.pdf. Najibullah ocupou a liderana do PDPA em Maio de 1986. Karmal renunciou Presidncia do Afeganisto em Novembro, cargo que seria ocupado durante um ano por Hadj Muhammad Chamkani, um islmico moderado.17

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e aceitava o pluripartidarismo. Simultaneamente, comearam a surgir os primeiros sinais de abertura nas conversaes de paz de Genebra, onde a ONU promovia o entendimento entre Paquisto e Afeganisto, procurando pr fim ingerncia externa que sustentava a guerra civil e impedia o regresso dos refugiados. A retirada das tropas soviticas, anunciada em Fevereiro de 1988 por Gorbachev, constituiu um passo decisivo para o entendimento e, em apenas dois meses, foi possvel assinar um acordo aceitvel por todas as partes, em que as duas superpotncias se comprometiam a cessar as interferncias no Afeganisto. Concretizada a 15 de Fevereiro de 1989, a retirada sovitica no alterou o relacionamento tpico da Guerra Fria e no impediu a continuao da guerra. A impossibilidade de constituir um governo de coligao nacional, integrando sectores do governo e dos mujahidin, justificou a manuteno do apoio sovitico a Najibullah, mas implicou idntica atitude dos norte-americanos em relao aos rebeldes, impossibilitando a concretizao dos acordos de Genebra. Os EUA, convictos da eminente queda do governo de Najibullah, procuraram assegurar de imediato a libertao de Jalalabad, uma cidade estrategicamente situada entre Peshawar e Cabul, que serviria de base ao avano dos rebeldes sobre a capital e albergaria um governo interino que seria reconhecido pelos norte-americanos18. A incapacidade dos mujahidin para concretizar esta ofensiva e as tentativas de reconciliao nacional de Najibullah no implicaram nenhuma alterao na estratgia dos EUA, mas tornaram evidente que o conflito ainda estava longe de uma resoluo definitiva.

A DESAGREGAO DA UNIO SOVITICA E O NOVO CONTEXTO REGIONAL Se os princpios do grande jogo no foram alterados pela retirada das tropas soviticas do Afeganisto, o colapso da URSS modificou decisivamente o equilbrio geo-estratgico na regio. O nascimento de novas repblicas na sia Central alterou as prioridades de Moscovo, criando uma barreira fsica projeco da Rssia num perodo em que as convulses internas e os antecedentes histricos limitavam consideravelmente a sua capacidade de influncia na regio. Sem o incentivo da ameaa sovitica, os EUA comeam a desviar a ateno para outras zonas do globo, e o sbito desaparecimento de cena das superpotncias abriu caminho continuao da guerra, que foi acompanhada por um crescente envolvimento das potncias regionais. A fragmentao tnica e a interferncia externa, conjugadas com o tradicional esprito guerreiro afego e a abundncia de armamento, fomentaram a continuao dos combates, colocando o Afeganisto no epicentro da instabilidade regional. Enquanto as diversas faces afegs se digladiavam em combates cada vez mais mortferos, fazendo e desfazendo alianas consoante os caprichos pessoais dos seus lderes, os tnues laos que garantiam um Estado unificado foram desaparecendo. A afirmao dos senhores da guerra, exercendo um poder discricionrio nas suas zonas de influncia, intensificou o desrespeito pelos direitos humanos e potenciou a proliferao das mais diversas actividades ilcitas, contribuindo tambm decisivamente para a total destruio das infra-estruturas do pas.

Afghanistan: The Making of US Policy, 1973-1990, Steve Galster, The National Security Archive http://www.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB57/essay.html.

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Com a populao sujeita a condies de vida sub-humanas, o fluxo de refugiados para os pases vizinhos aumentou substancialmente, em especial quando se intensificou o bombardeamento indiscriminado de alguns dos principais centros populacionais. Na ausncia de uma presso externa coerente, com capacidade para ajudar a fortalecer um poder central estvel, a fragmentada base tnica que sustentara a resistncia foi transposta para todo o pas, restando a confrontao entre Pastun e no-pastun divididos entre Norte e Sul. Aproveitando o caos reinante, diferentes grupos terroristas passaram a utilizar o Afeganisto para treinar e organizar as suas actividades, ameaando espalhar pela regio um rasto de terror que, em breve, procurariam estender a outras regies do globo.Mapa 5O AFEGANISTO E O NOVO CONTEXTO REGIONAL

Fonte: World Food Programme

Com o Paquisto, a Arbia Saudita e o Iro na linha da frente, vrios Estados procuraram apoiar os grupos ou faces que melhor defendessem os respectivos interesses ou impedissem os objectivos dos rivais, desenvolvendo complexas redes de influncia com diversos grupos locais. Para o Paquisto, sedento de assegurar a ligao aos novos mercados da sia Central e garantir profundidade estratgica no seu embate com a ndia, a tentao de aumentar a participao na guerra civil afeg era ainda agravada pela necessidade vital de manter a fronteira norte na linha Durand. Conhecedores da realidade local e decididos a impor a sua influncia, os Paquistaneses apostaram na maioria Pastun, procurando utilizar os Talibs para atingir os seus objectivos. Interessados em assegurar a independncia dos novos Estado e subtrair os seus recursos ao controlo Russo, os EUA,

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que mantm o isolamento do Iro como importante objectivo, no encontram razes para se opor ao crescente envolvimento do Paquisto. Mas este apetite j era seguido com apreenso por outros pases da regio, especialmente o Iro e a Rssia, que viam na influncia paquistanesa uma ameaa aos seus interesses econmicos. Enquanto a ndia, a China e a Turquia mantinham um envolvimento discreto no conflito, as repblicas criadas aps a dissoluo da URSS eram inevitavelmente afectadas pela insegurana regional. Preocupados essencialmente em consolidar o poder pessoal e afirmar a viabilidade dos novos Estados, os seus lderes sentiam que o agravar da guerra civil afeg e a ascenso dos Talibs era uma ameaa directa sua segurana, temendo a importao do islamismo para os seus territrios. Interessados em diversificar as exportaes sem o controlo da Rssia e vendo na explorao dos recursos energticos a soluo para a estagnao econmica, os Estados da sia Central, especialmente o Turcomenisto, estavam impacientes por assegurar a estabilidade no Afeganisto.

Da Guerra Civil ao Caos Contrariando as expectativas, a anunciada vitria dos mujahidin teria de ser adiada at que a derrocada da URSS pusesse fim ao apoio externo recebido por Cabul, e a retirada sovitica contribuiu mais para acentuar as divergncias entre os rebeldes do que para a queda imediata de Najibullah. Na ausncia de tropas infiis para mobilizar a aco conjunta, a resistncia foi incapaz de encontrar a unio necessria para tomar o poder, e as divergncias polticas rapidamente ganharam contornos inultrapassveis. As diferenas de pontos de vista entre as diversas foras que comandavam a luta armada no interior do Afeganisto e os grupos que coordenavam a oposio no exlio, agravadas por um crescente clima de intimidao e terror que fustigou essencialmente os sectores mais moderados, minaram decisivamente as possibilidades de entendimento e conduziram a uma prolongada guerra civil. Fundamentada na fragmentao tnica e na interferncia externa, a guerra civil foi caracterizada por um constante fazer e desfazer de alianas que, impedindo a consolidao de um poder central estvel e contribuindo para a total destruio do pas, transformou o Afeganisto num conjunto de feudos medievais em permanente conflito. Apesar de controlar uma zona cada vez menor, o regime de Najibullah s foi derrubado quando deixou de contar com o apoio financeiro de Moscovo e, incapaz de satisfazer os tradicionais pagamentos ao lderes locais, foi confrontado com a desero do General Rashid Dostum, comandante das foras Usbeques. Agrupando o Jumbesh-e-Milli-Islami (Movimento Nacional Islmico) de Dostum, os Hazaras do Hezb-e-Wahdat (Partido de Unidade Islmica), chefiado por Abdul Ali Mazari, e os Tajiques do Jamiat-e-islamic, liderados por Burhanuddin Rabani e comandados por Ahmad Shah Massud, a Aliana do Norte conseguiu dominar Cabul em Abril de 1992. Embora contando inicialmente com a colaborao de alguns grupos Pastun, como o Jabha-e-Nejat-e-Milli Afghanistan (Frente Nacional para a Libertao do Afeganisto), um grupo moderado liderado por Pir Sibghatullah Mojaddedi, o Estado Islmico do Afeganisto, com Rabbani (1992-1996) na presidncia, cedo enfrentou os problemas resultantes da escassa representao da maioria Pastun no novo governo. O afastamento do Hezb-e-Islami, liderado por Gulbuddin Hekmatyar, que representava os sectores islmicos mais radicais, impedia qualquer tentativa de unificao nacional.

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Fortemente armadas, as foras comandadas por Hekmatyar comearam a bombardear indiscriminadamente Cabul, aco que repetiriam at 1995 durante os perodos em que o Hezb-e-Islami no participou no governo, contribuindo decisivamente para a destruio completa de grande parte da capital. O Acordo de Islamabad, assinado em 1993 graas mediao de Iro e Paquisto, possibilitou a integrao de Hekmatyar no governo de Cabul, designando-o primeiro-ministro, mas o clima de confrontao entre os diversos grupos continuou por todo o pas. Hekmatyar, que comeara a perder o apoio do Paquisto e da Arbia Saudita, alia-se a Dostum no incio de 1994, desencadeando um golpe de Estado contra as foras Tajiques de Massud e Rabbani. Muito embora o fracasso da iniciativa tenha conduzido rapidamente ao impasse militar, a guerra civil ganhou um novo mpeto, com os combates a atingirem novamente o centro de Cabul, provocando milhares de mortos e aumentando ainda mais o nmero de refugiados. Em 1994, o Afeganisto estava dividido em diversas regies, correspondendo s zonas geogrficas dos principais grupos tnicos. Os Usbeques, com a base em Mazar-i-Charif, controlavam parte do Norte, os Hazaras dominavam a regio central, e os Tajiques, com Massud, a Nordeste de Cabul, e Ismail Khan, sedeado em Herat, conseguiam assegurar alguma estabilidade nas suas zonas de influncia. Enquanto prosseguiam as disputas de base tnica, diversos grupos combatiam internamente as foras que dominavam cada uma destas zonas, mas situao era particularmente grave na cintura Pastun, onde Hekmatyar no conseguia reunir os apoios necessrios para controlar toda a regio. A Xura de Jalalabad controlava algumas provncias junto da fronteira com o Paquisto, mas a regio de Kandahar e grande parte do Sul eram dominados por dezenas de antigos combatentes mujahidin que, transformados em senhores da guerra, lutavam por manter as respectivas zonas de influncia. Aterrorizando a populao civil que ainda resistia devastao generalizada, estes grupos financiavam as aces militares graas aos enormes proventos que acumulavam atravs da produo de pio e do contrabando de armas. Com grande parte da populao a ultrapassar os limites do sofrimento humano, cada vez mais dependente da ajuda internacional para sobreviver, a sucessiva incapacidade de afirmao do poder central conduzira ao caos generalizado uma sociedade extremamente fragmentada.

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Quadro 1PRINCIPAIS FIGURAS E PARTIDOS DA GUERRA CIVIL

Ahmad Shah Massud (1953-2001) Comandante militar tajique do Jamiat-e-islami, conhecido como leo do Panshir. Exilado no tempo de Daud, combateu contra os soviticos e na guerra civil. Foi Ministro da Defesa e liderou a resistncia aos talibs. Moderado, desde os tempos de estudante que mantinha um dio de estimao por Hekmatyar, mas as suas tropas foram responsveis por massacres contra os Hazaras durante a guerra civil. A 9 de Setembro de 2001 foi alvo de um atentado, aparentemente organizado pela Al-Qida, que lhe custou a vida. Ismail Khan (1946-) Comandante tajique aliado de Massud e governador de Herat. Chegou a ser preso pelos Talibs mas conseguiu fugir. Esteve refugiado no Iro mas regressou para comandar a resistncia em Heart. Gulbuddin Hekmatyar (1947?-) Comandante Pastun da faco mais importante do Hezb-e-Islami. Conhecido pelo radicalismo, foi preso na juventude por assassinar um rival shola. Fugiu para Peshawar no tempo de Daud e recebeu a maior parte da ajuda externa na luta contra a URSS. Foi aliado preferencial de Islamabad, mas perdeu o apoio do Paquisto a favor dos Talibs. Primeiro Ministro duas vezes, refugiou-se no Iro, de onde foi expulso, regressando recentemente ao Afeganisto, onde j se transformou num alvo dos EUA. Abdul Ali Mazari (1946-1995) Comandante mujahid hazara, liderou a coligao xiita do Hezb-e-Wahdat. Controlou o centro do Afeganisto e recebeu apoio do Iro. Lutou contra Massud, mas morreu aps ter sido capturado pelos Talibs. Foi substitudo por Abdul Karim Khalili (?-) que se juntou Frente Unida. Abdul Rashid Dostum (1954-) General usbeque e lder do Jumbesh-e-Milli-Islami, autoritrio e impiedoso nas zonas que controla. Mudou consecutivamente de alianas durante a guerra civil e recebeu apoio de diversos Estados. Refugiou-se na Turquia aps os Talibs tomarem Mazar. Integrou a Frente Unida e o governo interino de Karzai. Abdul Rasul Sayyaf (1946-) Comandante mujahid de origem Pastun, lder do Ittehad-e-Islami Barai Azadi Afghanistan. O movimento, sem uma base tnica muito marcada, agrupava os uabistas . Juntou-se Frente Unida no combate aos Talibs. Pir Sayed Ahmad Gailani (1932-) Pastun, lder dos sufista e do Mahaz-e-Milli-Islami, pequeno grupo mujahidin moderado e pr-monrquico prximo dos Durrani. Mawlawi Mohammad Yunus Khalis (1919-) Comandante mujahid Pastun. Aps se incompatibilizar com Hekmatyar lderou a faco Khalis do Hezb-e-Islami, grupo a que pertenceu o maul Omar e parte dos dirigentes dos Talibs. Mawlawi Mohammad Nabi Mohammadi (?-2002) Comandante mujahid de etnia Pastun, lder do Harakat-e-Inqelab-e-Islami, movimento radical ligado ao clero tradicional a que pertenceram alguns dos dirigentes Talibs.

Fonte: Adaptado de Zarates Political Collections

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Motivados pela necessidade de lutar contra esta anarquia generalizada e assegurar a aplicao da Xaria, um grupo de antigos mujahidin maioritariamente Pastun liderou uma srie de campanhas militares na regio de Kandahar que lhes viriam a garantir o domnio sobre quase todo o territrio afego. O aparecimento em cena dos Talibs, que ser abordado no prximo captulo, materializado num rpido avano no terreno, pressionou ao reagrupamento em torno de Rabbani, e Hekmatyar regressou ao governo, recuperando o cargo de primeiro-ministro durante um ms. Apesar da conquista de Cabul durante a campanha militar de 1996, pondo fim ao domnio Tajique na capital, os Talibs no puderam impedir que o governo de Rabbani continuasse a ser reconhecido internacionalmente como representante do Afeganisto mas, ameaando continuar com o seu avano para Norte, pressionaram as outras partes a constituir uma frente comum para contrariar a nova ameaa. Agrupando lderes com enormes rivalidades entre si, a Frente Unida19 conseguiu impedir as tentativas dos Talibs para controlar todo o Afeganisto, mas sem um comando militar comum e uma estratgia unificada, revelou total incapacidade para efectuar uma contra-ofensiva consistente. No auge do avano dos Talibs, quando a maioria dos lderes da Frente Unida foi forada a partir para o exlio, Massud continuou a assegurar a resistncia no terreno e, baseado no Vale de Panshir, controlava alguns territrios e impedia o completo domnio dos Talibs.Figura 3CRONOLOGIA DA HISTRIA DO AFEGANISTO

Fonte: Adaptado de um original do Afghanmagazine.com

O EMIRADO ISLMICO DO AFEGANISTO O afastamento do poder da maioria Pastun, em especial dos Durrani, que costumavam ocupar a liderana do Afeganisto, aliado ao caos que assolava principalmente o Sul do pas, incitou a organizao de um novo grupo. Comandados por antigos mujahidin de etnia

Jabha-yi Muttahid-i Islami-yi Milli bara-yi Nijat-i Afghanistan ou Frente Islmica Nacional Unida para a Salvao do Afeganisto, muitas vezes referida pelas iniciais inglesas (UNIFSA) ou por Aliana do Norte.

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Pastun, que pertenciam maioritariamente a alguns dos grupos mais radicais da jihad, como a faco do Hezb-e-Islami comandada por Yunus Khalis ou o Harakat-e-Inquilab-e-Islami (Movimento Revolucionrio Islmico) de Mohammad Nabi Mohammadi, os Talibs so estudantes de teologia que frequentavam as madrassas de tradio deobandista e com ligaes ao Jammiat Ulama-i-Islam paquistans. O rpido crescimento do movimento atraiu apoiantes em diversos sectores, inclusive entre os ex-Khalq, mas a sua base de sustentao encontrava-se nos refugiados que viviam no Paquisto e nas escolas cornicas. Estas madrassas, que recebiam um considervel apoio Saudita graas simpatia pelo uabismo, representavam a nica forma dos refugiados terem acesso a algum tipo de educao, proporcionando tambm alimentao, alojamento e treino militar em meios extremamente desfavorecidos. Provenientes dos meios rurais e mais iletrados, os Talibs escolheram Muhammad Omar Mujahid para os chefiar, um lder religioso local de origens modestas dotado, como os outros mauls, de um saber rudimentar quando comparado com o conhecimento mais erudito dos ulemas. Explorando at ao limite a viso deobandista do Islo, nomeadamente no que diz respeito ao papel das mulheres, os Talibs promoveram uma interpretao da Xaria profundamente restritiva, muito influenciada pelo Pastunvali, mas a que um contnuo recurso ao conceito jihad transmitia uma dinmica especial. O Ascendente do Paquisto Os Talibs eram pessoas boas e honestas ligadas s madrassas em Queta e Peshawar, e eram meus amigos da jihad contra os soviticos. Vieram at mim em Maio de 1994 dizendo: Hamed, temos de fazer algo sobre a situao em Kandahar. intolervel. No tive reservas em ajud-los. Tinha muito dinheiro e armas da jihad. Tambm os ajudei com a legitimidade poltica. Foi apenas em Setembro de 1994 que outros comearam a comparecer nas reunies silenciosos que eu no reconheci, pessoas que controlaram o movimento Talib. Era a mo escondida dos servios secretos paquistaneses.20 As palavras de Hamed Karzai, que quando as proferiu estava longe de imaginar que viria a chefiar um governo interino afego, sugerem uma profunda participao do Paquisto na ascenso dos Talibs. Na verdade, a vitria de Benazir Bhutto nas eleies de 1993 alterou o eixo orientador da poltica paquistanesa para o Afeganisto. Afastado o Jammat-e-Islami, que sempre apoiara Hekmatyar, Butho e o seu Ministro do Interior, o Pastun Naseerulah Babar, procuraram aproveitar o apoio dos deobandistas do Jammiat Ulama-i-Islam para encontrar uma fora capaz de dar corpo s novas intenes de Islamabad. Alm das tradicionais preocupaes paquistanesas sobre a evoluo da questo afeg, Babar compreendera a importncia de estabelecer uma ligao directa com os novos Estados da sia Central atravs do Afeganisto, e estava decidido a utilizar o ISI para assegurar o xito da iniciativa. O apoio do Paquisto cedo se revelou essencial para o rpido avano dos Talibs. A partir de Outubro de 1994, contando j com o apoio do ISI, comearam por se apoderar de importantes depsitos de armamento at a na posse das foras de Hekmatyar. A pedido do

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Kaplan, Robert D.; The Atlantic Montly; September 2000; The Lawless Frontier 00.09 (Part Three); Volume 286, n. 3, page 66-80.

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Paquisto, os Talibs atacaram os senhores da guerra que, nos arredores de Kandahar, retinham uma caravana de camies enviada por Babar para testar a viabilidade de uma rota Sul ligando Queta a Ashabad, aproveitando este sucesso para derrotar os comandantes locais e controlar a cidade no incio de Novembro. Em Fevereiro de 1995, controlando nove das trinta provncias, os Talibs prepararam um avano sobre Herat e Cabul, mas as foras de Massud ainda tinham capacidade para defender as principais cidades e organizar uma poderosa contra-ofensiva. Aps tomarem Herat, em Setembro de 1995, assegurando o domnio sobre a rota do Sul que liga o Paquisto e o Turcomenisto, os Talibs puderam concentrar o esforo de guerra contra a capital onde, apesar dos bombardeamentos, os Tajiques continuaram a resistir durante um ano. S na ofensiva de Outono de 1996, e aps tomarem Jalalabad, os Talibs puderam entrar na capital, transformada a partir da numa base para as investidas a Norte. Em Maio de 1997, graas ao apoio do General Malik Pahlawan, que se revoltara contra Dostum, os Talibs aproveitaram os desentendimentos nas hostes Usbeques para ocupar Mazar-i-Charif, mas acabaram por ser massacrados e expulsos de uma cidade que s voltariam a ocupar em Agosto de 1998. Aps conquistarem Bamian, em Setembro, o avano dos Talibs foi dificultado pela forte resistncia Tajique e, apesar de conseguirem espordicos avanos no terreno e dominarem a rota do Norte para a sia Central, continuaram refns da habilidade e experincia de Massud, que mantendo a capacidade para realizar algumas contra-ofensivas, impedia a estabilizao da situao militar e a total submisso do Afeganisto aos estudantes de teologia. Apesar de terem conquistado uma reputao de temveis combatentes, revelando nas ofensivas a tradicional bravura afeg e a disponibilidade de sacrifcio tpica da jihad, os Talibs tambm souberam explorar habilmente as divergncias entre os restantes grupos. Em Kandahar, por exemplo, asseguraram a estabilidade recorrendo ao suborno, mtodo s possvel graas ao apoio financeiro do Paquisto e de certos sectores da economia subterrnea, que utilizaram diversas vezes para assegurar o xito das suas operaes e a pacificao das zonas mais problemticas. Quando necessitaram de recorrer a grandes aces armadas, souberam conciliar a mobilidade proporcionada pela caracterstica utilizao de veculos todo-o-terreno com o modo de guerra Pastun, que em vez de uma guerra permanente, apoiada em exrcitos numerosos, valoriza as aces espordicas mas continuadas. Atravs das tropas regulares, asseguravam um rgido controlo nas regies que iam conquistando, mas a realizao de sucessivas campanhas militares contra os seus adversrios no era posta em causa graas mobilizao regularmente efectuada entre as tribos Pastun, o voluntariado islmico internacional e as madrassas paquistanesas, que encerravam sempre que os Talibs precisavam de reforos, incitando os seus estudantes a participar na jihad.

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Mapa 6A ESTRATGICA LOCALIZAO DO AFEGANISTO

Fonte: Adaptado de um original do Pblico

Os Talibs no Poder Logo que se apoderaram de Kandahar, os Talibs comearam a mostrar o tipo de regime que pretendiam impor, elegendo como objectivos principais o fim da anarquia generalizada e a aplicao da Xaria num Afeganisto reunificado. Decididos a instaurar um regime islmico verdadeiro, baseado numa interpretao extremamente restritiva da Xaria, comearam por desarmar a populao e controlar os senhores da guerra, substituindo o terror da desordem por uma ordem aterrorizadora. O al-Amr bi al-Maruf wa al-Nahian al-Munkir ou Ministrio para a Promoo da Virtude e Preveno do Vcio, responsvel pela aplicao da moral e dos costumes, foi utilizado para impor uma sociedade retrgrada e obscurantista nas zonas que os Talibs iam conquistando, transformando-se rapidamente num poderoso instrumento repressivo. Entre as normas aplicadas por este organismo, hoje do conhecimento de todo o Mundo, necessrio destacar o tratamento discriminatrio dispensado s mulheres, a quem, na prtica, era negada a prpria existncia, mas tambm no devem ser esquecidas

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as vigorosas restries divulgao cultural e a completa interdio de todos os tipos de divertimentos. Na ausncia de um qualquer sistema judicial, a aplicao discricionria da Xaria pelos responsveis locais garantia a ordem e o terror, com os castigos corporais e as execues sumrias a transformarem-se nos nicos espectculos pblicos autorizados. A imposio desta viso extremamente restritiva do Islo tornou-se mais problemtica quando os Talibs comearam a conquistar regies ocupadas maioritariamente por outras etnias. A intransigncia religiosa, que impedia os Talibs de aceitar qualquer diferena de opinio nesta matria, conjugada com o determinante papel atribudo religio na organizao da vida social e poltica, criou uma total incapacidade para a negociao, impedindo todas as tentativas de entendimento com outros grupos. Sem uma e