A Estética do Corpo na Filosofia e na Arte da Idade Média

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A Estética do Corpo na Filosofia e na Arte da Idade Média: texto e imagem Ricardo da COSTA (link sends e-mail) Palestra proferida no dia 02 de dezembro de 2011 no IV Encontro de Pesquisa em Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). In: Trans/form/ação, Marília, v. 35, p. 161-178, 2012Edição Especial (link is external) (ISSN 0101-3173). Resumo: A ideia de beleza – e sua consequente fruição estética – variou conforme as transformações das sociedades humanas no tempo. Durante a Idade Média existiram variadas concepções de qual era o papel do

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Interesante artículo sobre el cuerpo en el renacimiento, se encuentra en portugués

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AEsttica do Corpona Filosofia e na Arte da Idade Mdia: texto e imagemRicardo da COSTA(link sends e-mail)

Palestraproferidano dia02 de dezembro de2011noIV Encontro de Pesquisa em FilosofiadaUniversidade Federal do Paran(UFPR).In:Trans/form/ao, Marlia, v. 35, p. 161-178, 2012Edio Especial(link is external)

(ISSN 0101-3173).Resumo:A ideia de beleza e sua consequente fruio esttica variou conforme as transformaes das sociedades humanas no tempo. Durante a Idade Mdia existiram variadas concepes de qual era o papel do corpo na hierarquia dos valores estticos, tanto na Filosofia quanto na Arte. Nossa proposta apresentar a esttica do corpo medieval que alguns filsofos desenvolveram em seus tratados (particularmente Isidoro de Sevilha, Hildegarda de Bingen, Joo de Salisbury, Bernardo de Claraval e Toms de Aquino), alm de algumas representaes corporais nas imagens medievais (iluminuras e esculturas), e assim analisar o tema em trs vertentes: a) o corpo como crcere da alma, b) o corpo como instrumento, e c) o corpo como desregramento.Palavras-chave:Esttica Corpo Idade Mdia Filosofia Medieval.

Abstract:The concept of Beauty and its consequent aesthetic enjoyment varied according the transformations of human societies in time. During the Middle Ages were different conceptions of which the role of the body of hierarchy aesthetic values, both in Philosophy and Art. Our purpose is to present the aesthetic of the body that some medieval philosophers developed in his treatises (especially Isidore of Seville, Hildegard of Bingen, John of Salisbury, Bernard of Clairvaux and Thomas Aquinas), and some representations in medieval images (enlluminures and sculptures), and thus examine the issue in three ways: a) the body as a prison of the soul, b) the body as an instrument, and c) the body as deregulation.

Keywords: Aesthetic Body Middle Ages Medieval Philosophy.I. Da dilacerao baconiana ao microcosmo do mundoImagem 1

A Cabea VI (1949). Francis Bacon (1909-1992), talvez seja a mais notvel e dramtica representao artstica da desintegrao do corpo no sculo XX, da fragilidade do ser. Tenso, angstia, morbidez, terror, sofrimento, dor: o corpo no sairia ileso das dilacerantes especulaes filosficas de nosso tempo. No quadro, a cabea, tradicional locus da razo, se desfaz, enquanto o torturado papa se decompe. Os contrastes das cores escolhidas pelo artista acentuam a tenso dramtica da cena. O mais significativo de tudo que o quadro pretende ser um estudo a partir de um quadro de Velzquez (1599-1660) do Papa Inocncio X (1574-1655). Bacon pretendia ser o Velzquez do sculo XX. Foi?Mas porque principiar o tema sobre o corpo na Idade Mdia com um quadro dopintor (e ateu convicto)Francis Bacon (1909-1992) , amante do grotesco, do angustiante e dodesespero eufrico? Simples. Trata-se de uma anttese. Tradio versus Revoluo. Idade Mdia versus Modernismo (mas tambm Ps-modernismo). Com seu horror alado categoria de arte como choque visceral, Bacon o mais digno representante da declarao trgica do corpo, do ser, no sculo XX.Em diametral oposio, o mundo da tradio filosfica (e artstica) medieval alou o corpo condio de centro da Criao divina. Embora tenham recebido da Antiguidade, como herana filosfica grega (platnica), anegao do corpo o corpo como crcere, priso, tolhimento da alma os medievais contrapuseram a essa tradio o corpo como entrecruzamento das linhas de fora do Universo, microcosmo do mundo.O exemplo medieval mais famoso do homem-microcosmo a imagem que a monja Hildegarda de Bingen (1098-1179) teve em uma de suas vises. Na obra Liber divinorum operum (O Livro das obras divinas, c. 1163-1173), a estrutura do Universo tem uma direta correspondncia com a fisiologia humana. Nessa perspectiva, os atos humanos repercutem e cooperam (ou no) na ordem do cosmos.Imagem 2

Liber divinorum operum, iluminura 2, folio 9: O esprito do mundo e a roda (detalhe), sc. XIII.O Livro das Obras Divinas dividido em trs partes. A primeira (O Mundo da Humanidade) dedica uma seo ao homem A natureza humana. O homem o centro da criao divina. Como na iluminura correspondente quela viso (imagem 2), o homem jovem, delgado, ntegro. Suas pernas so robustas. Com os braos abertos para o Universo, ele recebe a influncia dos quatro ventos (Levante, Austral, Ocidente e Norte) e dos sete planetas ento considerados (Lua, Mercrio, Sol, Marte, Jpiter e Saturno). Seu corpo expressa a intercesso do prprio Cosmo: a cabea (esfrica) representa o poder da Humanidade; os olhos, a porta de acesso ao conhecimento; os ouvidos permitem o desfrute dos sons da Glria dos mistrios; o nariz aprecia o agradvel perfume da ordem das obras, e a boca o instrumento da palavra divina criadora. Na passagem da obra que aborda aquela viso do homem, h uma explicao de sua posio central no Universo:Por fim, e no centro da roda, surge a imagem de um homem, cuja cabea alcana a parte superior e os ps a parte inferior do crculo de ar denso, branco e luminoso. direita, as pontas dos dedos de sua mo direita; esquerda, as pontas dos dedos de sua mo esquerda esto estiradas e alcanam o mesmo crculo, tocando dois pontos diferentes da circunferncia.O motivo pelo qual a imagem estendeu os braos porque o homem est no centro na estrutura do mundo, j que mais poderoso que todas as outras criaturas que se encontram na prpria estrutura. Embora seja de pequena estatura, grande pela energia de sua alma, e como tem a capacidade de mover a cabea para cima e os ps para baixo, alcana tanto os elementos superiores quando os inferiores, e assim pode mov-los (Segunda viso, XV).II. A metfora organicistaEssa intercesso transcendental da imagem humana j estava presente na mesma poca em um dos tratados filosficos medievais mais importantes (do perodo pr-escolstico): o Policraticus (c. 1159) de Joo de Salisbury (c. 1120-1180). Neste que considerado o primeiro texto de filosofia poltica ocidental, h uma famosssima passagem em que a sociedade comparada ao corpo humano:Na comunidade poltica, o prncipe ocupa o lugar da cabea, e se encontra sujeito somente a Deus e a quem, em nome dEle, faz seu papel na terra, da mesma forma que, no corpo humano, a mesma cabea tm vida e governada pela alma. O Senado ocupa o lugar do corao, j que dele procedem os comeos dos atos bons e maus. Os juzes e os governadores das provncias reclamam para si a misso dos olhos, dos ouvidos e da lngua. Os oficiais e os soldados correspondem s mos. Os que assistem ao prncipe de modo estvel so semelhantes aos flancos. Os questores e escrives no os que controlam os crceres, mas os encarregados do errio privado do prncipe podem ser comparados ao ventre e aos intestinos. Se estes so congestionados por uma desmedida avidez e retm com excessivo empenho o que acumularam, provocam inumerveis e incurveis doenas, at que essa dor traga a destruio de todo o corpo.Os agricultores se parecem aos ps, pois tambm se encontram continuamente no solo. Para eles especialmente necessria a ateno da cabea, j que tropeam em muitas dificuldades enquanto pisam a terra com o trabalho de seu corpo, e merecem ser protegidos com tanta ou mais justa proteo para se manterem de p, sustentarem e moverem todo o corpo. Retire de qualquer corpo essas peas dos ps que, por mais robusto que ele seja, no poder caminhar por suas prprias foras, mas tentar se arrastar torpemente com as mos, sem consegui-lo e com grande fadiga, ou s poder se mover com o auxlio das bestas (Livro V, 2, 6).Da passagem, no posso deixar de ressaltar a importncia que a filosofia poltica de Salisbury d base da sociedade: os camponeses. O poder, sob a influncia do pensamento filosfico cristo, deveria atentar para os mais necessitados para eles, especialmente necessria a ateno da cabea.... As duas extremidades do corpo eram assim unidas pela razo filosfica pr-escolstica.O que a filosofia de Joo de Salisbury ressaltava, a arte exprimia: a Idade Mdia foi um dos perodos da Humanidade em que os contatos sociais entre as ditas classes dirigentes e o povo foram mais estreitos. Seu patrimnio artstico o prova, pois o campons est em toda a parte, como j nos recordou a historiadora Rgine Pernoud (1909-1998) nos quadros, nas tapearias, nas esculturas das catedrais, nos vitrais (como o da imagem 3, da catedral de Chartres).Imagem 3

O vitral representa o trabalho no ms de fevereiro: o campons descansa. Estende as mos e os ps em sua lareira. Aquece seus instrumentos de trabalho. Relaxa. O fogo intenso. H madeira em abundncia. A Igreja preocupava-se com seus pobres; a Filosofia, com a perfeita plasticidade do corpo social. A vida deveria ser pulsante; o corpo deveria se valer de toda a sua extenso fsica s assim suas partes poderiam viver em uma viva conexo existencial.Alm de sintetizar toda a criao divina e estar no entrelaamento de todos os nveis do Universo, o corpo representava a prpria sociedade em movimento, sua organicidade. A Idade Mdia era, nesse aspecto, uma festa: em seu calendrio, os feriados reuniam as ordens. Nos nveis sociais mais elevados, o corpo era visto, sentido, e sobretudo exposto nas reunies sociais, nas cortes, como, por exemplo, a procisso corporal que pode ser apreciada em uma iluminura do Roman d'Alexandre (cpia do sc. XII). Os corpos em sociedade, diante do corpo-mor: o do rei.Imagem 4

Como ohomem-macrocosmode Hildegarda de Bingen, os corpos em desfile da iluminura doRoman dAlexandreso delgados, elegantes, coloridos. Trata-se de uma procisso laica. Profana. So corpos jovens! Nunca devemos perder de vista a juventude do mundo medieval. No centro da mundanidade, acabeado corpo social o rei (conduzido por seus dois pajens) ; sua esquerda, seis damas conversam animadamente; direita, quatro msicos entretm o ambiente.III. O corpo sujeitadoNo entanto, no devemos imaginar que somente com o Renascimento do sculo XII houve uma redescoberta do corpo. A esttica corporal sempre foi objeto de considerao pelos pensadores medievais. J no sculo VII, Isidoro de Sevilha (560-636) fizera sua prpria definio do corpo e sua imbricao com os quatro elementos (fogo, gua, terra, ar), ideia herdada da medicina grega. Seu tom essencialmente cientfico, sem qualquer desconsiderao da materialidade corporal:O corpo denominado assim porque, ao se corromper, perece. decomposto e mortal, e deve se dissolver. Por sua vez, carne uma palavra derivada de criar (creare). O smen do macho denominado crementum, pois a partir dele se concebem os corpos dos animais e dos homens. Por isso, os pais so chamados criadores. A carne est integrada pelos quatro elementos: terra porque tem carne; ar, na respirao; lquido, no sangue, e fogo, no calor vital. Cada um desses elementos ocupa sua parte prpria, e retorna sua essncia quando a integridade corporal se dissolve.O significado de carne e de corpo diferente. A carne sempre corpo, mas nem sempre o corpo carne. A carne tem vida enquanto vive no corpo. O corpo que no vive no carne. Assim se d o nome de corpo ao que est morto depois da vida ou ao que nasceu sem ela. comum ver corpos com vida, mas carentes de carne, como a erva ou as rvores (...) A parte fundamental do corpo a cabea. E se chama caput porque nela tm origem todos os sentidos e todos os nervos, e porque dela procede todo o princpio da vida. Nela se encontram todos os sentidos, e ela como a personificao da alma, que vela pelo corpo.Etimologias, XI, 14-17 e 25.Imagem 5

A sujeio do corpo aos quatro elementos tal como descreve Isidoro de Sevilha est muito bem expressa iconograficamente em uma iluminura (folio 91) do sculo XV do Livro das propriedades das coisas (De proprietatibus rerum), obra enciclopdica escrita em 1240 por Bartolomeu de Glanville, conhecido como o Ingls (c. 1202-1271). Seja como for, fosse qual fosse o grau de sujeio que o pensador idealizasse o corpo em sua relao com os quatro elementos vitais, o fato que ele era considerado o centro da realidade, cerne da existncia, vida pulsante e, por isso, necessitava ser domesticado, racionalizado, civilizado. Ademais, percebe-se nessa passagem das Etimologiasa notvel transformao que o pensamento filosfico ocidental processou em relao ao corpo: da concepo platnica de crcere da alma, ele passou a ser pensado como a prpria intercesso da vida.IV. O corpo sublimado: palcio da almaA crescente valorizao do corpo na Idade Mdia teve em Bernardo de Claraval (1090-1153) a ponte filosfico-literria mais representativa e que faria o pensamento ocidental desembocar na Escolstica do sculo XIII. Em vrias passagens da obra do cisterciense, se nota esse clmax. E, curioso observar, o crcere platnico invertido: agora o corpo uma casa sublime:Tu, alma, vives em uma casa sublime, fabricada pessoalmente pelo prprio Deus. Refiro-me a teu corpo, to bem idealizado, disposto e ordenado, que te serve como uma morada gloriosa e deleitvel, e que para teu corpo construiu outro excelso, amplssimo e encantador palcio, que esse mundo sensvel e habitvel.Sermo segundo dedicado Igreja, 1.No sculo XII, o corpo percebido como uma manso. Um deleite para os sentidos. Maravilhoso, a disposio de suas partes esteticamente louvada. Essa linha de fora de natureza platnica mesmo que em um platonismo matizado, invertido proporcionar o que os especialistas nomearam humanismo cristo. Essa nova corrente filosfica estetiza o corpo, torna-o passvel de apreciao, de deleite esttico. Na Arte, sua materializao ensejou delicadas obras esculturais, como, por exemplo, o Ado de Cluny (c. 1260), verdadeiro precursor das obras de arte do Humanismo moderno.Imagem 6

A morada da alma expressa (ou no) a beleza de sua forma interior:Quando a luz da beleza [da honesta conscincia] inunda copiosamente o recndito do corao, manifesta-se exteriormente como uma lmpada que ardia sob o alqueire; ela forte como a luz que brilha nas trevas e no pode ser ocultada. O corpo atrado por essa imagem da mente que irrompe com seus raios e se difunde por seus membros e sentidos de modo que toda obra, palavra, aspecto, movimento e sorriso so impregnados de gravidade e honestidade.A beleza da alma, caso no haja dubiedade em seu esprito, se manifesta nestes e em outros movimentos dos membros e sentidos corporais, gestos e costumes, quando exteriorizam sobriedade, pureza, modstia, ausncia de qualquer lascvia e insolncia; ela alheia superficialidade e indolncia, e se acomoda justia que ditada pela piedade, mesmo que tudo isso seja um simulacro no inteiramente correspondente quilo que transborda de seu corao.Sobre o Cantar dos Cantares, LXXXV, 11.Em contrapartida e exatamente por ser um palcio excelso da alma, perfeito que o corpo deveria ser sempre vigiado pela razo, domesticado, disciplinado, ter suas paixes contidas, refreadas:Os quatro delitos do corpo so: a curiosidade dos olhos, a loquacidade da lngua, a crueldade das mos e o prazer lascivo. O corpo foi confeccionado por quatro elementos: o fogo, que sempre tende a subir e d brilho aos olhos; o ar, que separa e forma as palavras; a terra, que confere a corpulncia; a gua, que traz a abundncia dos humores naturais. A curiosidade nasce do descaramento do olhar; a loquacidade, de uma lngua rpida; a crueldade (ou dureza) de uma corpulncia insensata. Tudo isso se manifesta nos animais, que quanto mais se guiam por sua natureza, mais ferozes e cruis so. A paixo da luxria brota do humor natural.Terceira srie de sentenas, 9.Essas digresses filosficas de conteno corporal por vezes reacendiam sua raiz platnica. Por exemplo, em uma de suas metforas corporais, Bernardo resgatou a imagem do corpo como uma priso da alma:Aceitemos a sabedoria popular: quem guarda o corpo, defende um bom castelo. Que vigilncia necessita esse castelo? Crs que a alma defende bem o castelo de seu corpo se seus membros conspiram e se entregam ao inimigo?Sermo segundo na assuno da Santa Maria, 3.A alma tem dois muros: um interior, outro exterior. O muro interior a ira natural, isto , a fora da alma [...] O muro exterior o corpo, que encerra a alma e a mantm encarcerada [...] Aprisionada pelo muro exterior, algumas vezes consente com as baixezas das sedues carnais.Terceira srie de sentenas, 77.O corpo no poderia estar desordenado. Era de natureza nobre demais para ser assim rebaixado. Seu desregramento, portanto, era a suma preocupao da Filosofia Medieval. A fonte dos distrbios eram os sentidos como Plato (c. 424-347 a. C.) fez escola! Todas as consideraes filosficas depreciativas (ou normativas, como queiram) em relao ao corpo na Idade Mdia tinham como base a filosofia platnica. Acrescida a ela, como j destaquei, a metfora organicista, que ressaltava a importncia do bom cumprimento das partes para que o todo estivesse saudvel. Bernardo manteve essa tradio. Na Terceira srie de sentenas, ao denunciar a corrupo na Igreja, ele fez uma dura admoestao:Cristo e a Igreja so um s corpo. Cristo a cabea; a Igreja, o corpo [...] Os olhos desse corpo que devem se preocupar com os membros inferiores so os bispos. Eles so olhos e pastores [...] O nariz so os arcediagos que, com penetrante olfato, devem conhecer a vida dos demais e informar ao bispo. As orelhas so os decanos, que devem ouvir os juzos e proferir as sentenas [...] Boca e lngua so os presbteros e diconos, pregadores da palavra de Deus.Assim deveria ser, mas agora est tudo confuso e preterido. No se levantam mais os olhos, pois eles se abaixaram em direo aos prprios interesses, ao dio, simpatia, e se cumpriram estas palavras: As trevas cobriam o abismo [...] O nariz perdeu o olfato por apreciar a maldade em troca do bem [...] As orelhasperverteram a justia; a lngua e a boca silenciaram.O peito, o dorso, os braos e as mos so os soldados da Igreja. No peito est o corao, sede da audcia [...] O dorso serve para carregar os homens, levantar os braos e manejar as mos.Mas tudo est tresloucado. Como so perversas essas mos que desgarram e arrancam os olhos que deveriam limpar, destroem o nariz que deveriam purificar, amputam as orelhas que deveriam lavar, cerram as mos que deveriam abrir para servir! Nos banquetes surgem crticas sobre a vida dos clrigos, e nas reunies pblicas srias so as discrdias por sua causa!O ventre, tido como a parte vil por sua lassido, receptculo de alimentos, nutridor do corpo; transforma a comida e distribui seu suco vital entre os membros superiores e inferiores. O ventre da Igreja so os monges e eremitas desprezados pelo mundo. Eles recebem o alimento espiritual da doutrina. So o fundamento da Igreja [...] A eles se aplica o provrbio: O gnero humano subsiste graas a uns poucos. Porque se eles desaparecessem, o mundo pereceria por um raio ou por uma rachadura da terra.Os ps que suportam todo o corpo so os rsticos, de cujo trabalho vivem todos demais. Essa a concatenao da Igreja, se quer estar unida sua cabea.Terceira Srie de Sentenas, 118.V. O corpo, coprincpio essencial do ente humanoUm homem belo quando seus membros mantm uma proporo decente no que se refere quantidade e posio, e quando sua cor clara e ntida. Consequentemente, em relao s demais coisas deve-se conceber, proporcionalmente, que algo belo quando possui a claridade prpria de seu gnero, espiritual ou corporal, e quando est constitudo conforme uma proporo devida.Toms de Aquino, Expositio in Dionysium de divinis nominibus, 362..Ao ser expresso em termos filosficos, o corpo foi representado como um instrumento metafrico, alegoria filosfica que personificava a sociedade e suas mazelas suas doenas, crises, desvios. Centro da criao, tinha um papel primordial na filosofia crist. O prprio Cristo dissera que o po era Seu corpo: E tomou um po, deu graas, partiu e distribuiu-o a eles, dizendo: Isto o meu corpo que dado a vs. Fazei isto em minha memria. (Lc, 22, 19). Por isso, usava-se o corpo como ponto de partida das reflexes transcendentais. E a filosoficamente mais elevada foi a de Toms de Aquino (1225-1274). Nela, o corpo foi apresentado como um dos elementos essenciais do ente humano, raiz de um grande nmero de potncias e atividades sensitivas. Belo. Mesmo as potncias intelectivas (a inteligncia e a vontade), para o Aquinate, fazem instrumentalmente uso do corpo para obter suas atividades.Assim, o querer e o entender humanos precisam do material subministrado pelas potncias sensitivas externas (os sentidos: tato, olfato, viso, audio e paladar) e internas (o senso comum, a memria, a imaginao e a potncia cogitativa). Ele afirma:O primeiro princpio pelo qual opera um ser a forma, qual se atribui propriamente a ao. (...) evidente que o primeiro princpio pelo qual o corpo vive a alma. (...) A alma o primeiro princpio pelo qual nos alimentamos, sentimos e nos movemos localmente; e tambm o primeiro pelo qual entendemos.Corpo e alma so os coprincpios essenciais do ente humano, e a alma a nica forma substancial do corpo. Um corpo que no esteja unido alma s pode ser chamado de humano caso usemos o termo equivocadamente. Trata-se de uma unio harmoniosa, ordenada. Diz Toms: A disposio do corpo ao qual est unida a alma racional deve [contribuir para] formar um complexo harmonioso (Comentrio ao De Anima, a.8).O corpo, portanto, no est unido alma acidentalmente, mas substancialmente. No entanto, para Toms de Aquino ele o coprincpio menos nobre do composto humano, e est para a alma assim como a potncia est para o ato e a matria para a forma:Se se supe que a alma intelectiva no est unida ao corpo como forma, apenas como uma espcie de motor, como sustentavam os platnicos, seria necessrio que no homem houvesse outra forma substancial pela qual o corpo, mvel da alma, fosse constitudo em seu ser. Mas se a alma intelectiva est unida ao corpo como forma substancial, como j demonstramos [Suma Teolgica, I, 76, a.1], impossvel que, alm dela, se encontre no homem outra forma substancial. (...) preciso dizer que no homem no existe nenhuma outra forma substancial alm da alma intelectiva, que contm virtualmente a sensitiva e a nutritiva.Suma Teolgica, I, 76, a.4.Percebe-se claramente a vertente aristotlica de sua filosofia ele se vale dos conceitos da Metafsica do Estagirita para construir sua filosofia crist. Aristteles dissera que o corpo era, de alguma maneira, informado por uma forma (Fsica, IV, 4, 204b). A distncia do platonismo do sculo XII e da noo de corpo como priso enorme.Seja como for, outro ponto importante com relao ao corpo humano (que, como se disse, s pode ser dito humano quando unido alma, coprincpio superior) que, para o Aquinate, a alma est em todas as partes do corpo humano:A alma forma substancial do corpo. Por isso necessrio que seja forma e ato no apenas do todo substancial, mas de cada uma de suas partes materiais. Deste modo, assim como ao separar-se a alma no podemos mais falar de homem nem animal, a no ser equivocamente, (...) o mesmo devemos dizer com relao mo, ao olho, carne, ao osso. (...) Prova disso que, quando a alma se separa, nenhuma parte do corpo realiza as suas funes prprias.Suma Teolgica, I, q. 76, a. 8.Assim, as premissas de Toms de Aquino em relao ao corpo humano so as seguintes:1) Ele coprincpio essencial (e inferior) do ente humano. Sendo em ns, portanto, um elemento essencial, preciso dizer que sem corpo no h homem, propriamente;2) O corpo est unido substancialmente alma, coprincpio superior que est para ele assim como a forma est para a matria;3) A alma se serve instrumentalmente do corpo no apenas para as operaes sensitivas, mas tambm para as intelectivas. No possvel, portanto, entender nem querer sem o intermdio do corpo;4) A alma a sua nica forma substancial, sem a qual sequer ele pode ser dito corpo humano;5) A alma est em todas as partes do corpo humano.A superioridade da beleza espiritual face corporal ou, em termos tomistas, a substancialidade da alma em relao ao corpo um tpico esttico da filosofia medieval. Pelo menos desde Clemente de Alexandria (c. 150-215) esse um tema recorrente:A melhor beleza , em primeiro lugar, a da alma (...) quando est adornada pelo Esprito Santo e os resplendores que emanam dEle: a justia, a prudncia, a fortaleza, a temperana, a benevolncia e o pudor. Nunca se viu cores to radiantes como essas. A seguir, deve-se tambm cultivar a beleza corporal, que uma harmonia de membros e partes acompanhada da beleza na cor (...) A beleza a flor espontnea da sade; a sade se cultiva dentro do corpo, mas a formosura, ao florescer fora dele, manifesta a beleza da cor. Ao exercitar o corpo, as mais formosas e saudveis condutas alcanam a genuna e duradoura beleza.Pedagogo, III, 11.ConclusoImagem 7

Plato anunciou que o corpo era um empecilho para se chegar Verdade:Enquanto tivermos corpo e nossa alma se encontrar atolada em sua corrupo, jamais poderemos alcanar o que almejamos. E o que queremos, declaremo-no de uma vez por todas, a verdade [...] Ao que parece, a nica maneira de ficarmos mais perto do pensamento abstermo-nos o mais possvel da companhia do corpo e de qualquer comunicao com ele.Plato, Fdon, 66b, 67a.Nietzsche (1844-1900), no outro extremo da histria da filosofia ocidental, alm de matar Deus, tambm assassinou a alma, corporificando tudo: Mas o que est desperto e atento diz: Tudo corpo, e nada mais; a alma apenas nome de qualquer coisa do corpo (Assim falou Zaratustra, Primeira Parte, 4). Entre ambos, a filosofia medieval, com sua glorificao do corpo, mas tambm disciplina e conteno, sublimao e estetizao, idealizao e metfora do mundo.Dilacerada entre a imanncia e a transcendncia, a filosofia medieval reservou ao corpo um estatuto ambguo. De um lado, a influncia platnica (e bblica Rm 8, 13; 1Cor, 15, 35-53; Fl 3, 20-21), de outro a aristotlica e sua coroao com Toms de Aquino. No mais percebido como uma priso, mas um belssimo palcio da alma, morada a seu servio, o corpo medieval pde sorrir. E sorriu. Como o suave e doce anjo da catedral de Reims (sc. XIII, imagem 7). H melhor expresso artstica do paradoxo do corpo na Idade Mdia que aquele delicado (e estico) sorriso angelical?Entre as lgrimas redentoras e a gargalhada suspeita, o corpo medieval inventou o sorriso singelo, feliz. A histria da percepo do corpo a nossa histria, tenso de nosso estar no mundo. A filosofia no poderia deixar de consider-lo.A beleza do corpo consiste em que o homem tenha membros corporais bem proporcionados e uma certa claridade da cor. Do mesmo modo, a beleza espiritual consiste em que a conduta do homem, entendida como o conjunto de seus atos, seja bem proporcionada e conforme certa claridade espiritual da razo.Suma Teolgica, IIa-IIae, q. 145, a. 2c.***BibliografiaHILDEGARDA DE BINGEN. Libro de las Obras Divinas.Liber Divinorum Operum, Traducin de Rafael Renedo. 2007 (indita, realizada por iniciativa de Hildegardiana). Internet, http://www.hildegardiana.es/32divope/index.html(link is external)JACQUES PI, Jssica. La esttica del romnico y el gtico. Madrid: A. Machado Libros, 2003.JUAN DE SALISBURY. Policraticus (ed. IADERO, Miguel Angel, GARCIA, Matias e ZAMARRIEGO, Tomas). Madrid: Editora Nacional, 1984.LE GOFF, Jacques. So Lus. Biografia. So Paulo: Record, 1999.LE GOFF, Jacques, e TRUONG, Nicholas. Uma histria do corpo na Idade Mdia. Lisboa: Teorema, 2005.MINOIS, Georges. Histria do Riso e do Escrnio. So Paulo: Editora UNESP, 2003.NIETZSCHE. Assim falou Zaratustra. So Paulo: Companhia das Letras, 2011.PERNOUD, Rgine. Luz sobre a Idade Mdia. Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, s/d.PLATO. Dilogos (Protgoras Grgias - Fedo) (traduo do grego de Carlos Alberto Nunes). Belm: Editora da UFPA, 2002.Revista espaola de Filosofa Medieval n. 6. Monogrfico. Esttica medieval. Zaragoza, 1999.SAN BERNARDO DE CLARAVAL. Obras completas. Madrid: BAC, sete volumes, 1987-1993.SENNETT, Richard. Carne e Pedra. O corpo e a cidade na civilizao ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1997.TATARKIEWICZ, Wladyslaw. Historia de la Esttica. II. La esttica medieval. Madrid; Akal, 2002.- See more at: http://www.ricardocosta.com/artigo/estetica-do-corpo-na-filosofia-e-na-arte-da-idade-media#sthash.9Jk1Hvc6.dpuf