Adriana Varejão. 1998

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1 Imagens de Troca: Adriana Varejão Inaugurado no ano passado, o espa ço excelente do Pavilhão Branco, nos jardins do Museu da Cidade, é um local privilegiado para a exposição de arte contemporânea. O pavilhão é, agora, dirigido pelo Instituto de Arte Contemporânea que inaugura o seu ciclo de exposições intitulado Imagens de Troca com uma mostra da obra de Adriana Varejão, jovem artista brasileira. O título do ciclo em inglês faz passar melhor o sentido implícito do programa. Trading Images transporta consigo a noção de imagens de comércio e a troca de imagens que subjacem às diversas formas de mestiçagem cultural que, de uma forma ou de outra, remetem para hist órias de dominação. O trabalho de Adriana Varejão assenta na construção que a artista faz da sua pr ópria identidade enauqnto ‘brasileira’. A obra foi cuidadosamente elaborada com base numa pesquisa, antes do mais sobre os despojos f ísicos da chamada conquista do Brasil e do projecto colonial europeu. Ou seja, nos vest ígios desse projecto ainda presentes em obras de arte e de arqui tectura: azulej os, pinturas, exvotos , artefa ctos. Varej ão distanciase de muitos outros artistas que trabalham nesta área de pesquisa — área que tem vindo a ganhar relevância e legitimidade (na expressão sucinta cunhada por Hal Foster, ‘o artista enquanto etnógrafo’) — ao ajaezar uma visão política e cultural talvez um pouc o mani cheista a um se nt ido de rigor, de fa ctu ra , numa acepção quase tradicional do termo. Pois é verdade, Adriana Varejão pinta. Fálo com a facilidade mim ética do copista: a sua aptidão para o trompe l'oeil, que por vezes nos lembra o cuidadoso e depurado realismo de Vija Celmins, é notável, quer na forma como retrata os motivos decorativos e as irregularidades dos azulejos, as cenas marinhas ou os retratos tradicionais, quer quando reproduz o estilo ' naï  f dos exvotos ou da pin tura coloni al. O comércio da artist a é o das imagens: a su a obra é inteiramente construída à volta da circulação e da articulação de imagens readyade das culturas brasileiras.

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Imagens de Troca: Adriana Varejão

Inaugurado no ano passado, o espaço excelente do Pavilhão Branco, nos jardins do

Museu da Cidade, é um local privilegiado para a exposição de arte contemporânea. O

pavilhão é, agora, dirigido pelo Instituto de Arte Contemporânea que inaugura o seu

ciclo de exposições intitulado Imagens de Troca com uma mostra da obra de Adriana

Varejão, jovem artista brasileira. O título do ciclo em inglês faz passar melhor o sentido

implícito do programa. Trading Images transporta consigo a noção de imagens de

comércio e a troca de imagens que subjacem às diversas formas de mestiçagem cultural

que, de uma forma ou de outra, remetem para histórias de dominação.

O trabalho de Adriana Varejão assenta na construção que a artista faz da sua própria

identidade enauqnto ‘brasileira’. A obra foi cuidadosamente elaborada com base numa

pesquisa, antes do mais sobre os despojos f ísicos da chamada conquista do Brasil e do

projecto colonial europeu. Ou seja, nos vestígios desse projecto ainda presentes em

obras de arte e de arquitectura: azulejos, pinturas, ex votos, artefactos. Varej ão

distancia se de muitos outros artistas que trabalham nesta área de pesquisa — área que

tem vindo a ganhar relevância e legitimidade (na expressão sucinta cunhada por Hal

Foster, ‘o artista enquanto etnógrafo’) — ao ajaezar uma visão política e cultural talvez

um pouco manicheista a um sentido de rigor, de factura, numa acepção quase

tradicional do termo. Pois é verdade, Adriana Varejão pinta.

Fálo com a facilidade mim ética do copista: a sua aptidão para o trompe l'oeil, que por

vezes nos lembra o cuidadoso e depurado realismo de Vija Celmins, é notável, quer na

forma como retrata os motivos decorativos e as irregularidades dos azulejos, as cenas

marinhas ou os retratos tradicionais, quer quando reproduz o estilo 'naï  f dos ex votos

ou da pintura colonial. O comércio da artista é o das imagens: a sua obra é 

inteiramente construída à volta da circulação e da articulação de imagens readyade das

culturas brasileiras.

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A representação feita por Varejão do Barroco brasileiro, com a sua herança rica de

objectos fabricados, transporta um olhar crítico sobre a constituição da própria

etnicidade brasileira (o domínio europeu, o comércio de escravos): qual o preço dessa

identidade, à custa de quantas vidas humanas. Nalgumas obras, a superf ície lisa dos

azulejos pintados em trompe l'oeil aparece literalmente rasgada. A tela desfaz se para

revelar como que as entranhas do trabalho: uma sub superf ície extraordinária de

impasto em tinta de óleo, em vermelhos e castanhos, um corpo flagelado, esventrado

por detrás da ornamentação dos azulejos.

Este é um conjunto de trabalhos com uma força notável, apesar da abordagem

conceptual do tema ser às vezes excessivamente literal. Sobrepondo à retórica da

Conquista e das das ‘Descobertas’, uma linguagem ornamental e uma corporalidade

dilacerada, Varejão circula entre as representações das diversas etnias do Brasil. O

corpo aparece na sua obra como uma metáfora poderosa e central. O recorte de papel

vegetal, coberto com motivos orientalizantes delicados, tendo como fundo os azulejos

  brancos, não é mais nem menos do que pele esfolada. Os olhos lacerados em

Testemunhas Oculares — três auto retratos enquanto caucasiana, índia e chinesa —

dilaceram o quadro através do próprio orgão que lhe dá visibilidade,

problematizando se, assim, o olhar do conquistador sobre o Outro subalterno.

Ruth Rosengarten

Adriana Varejão, Pavilhão Branco, Museu da Cidade, Lisboa.

Visão, (dia?) Maio, 1998.