ADORNO E A SUBJETIVIDADE INEXPRESSIVA

100
  THEOFILO MOREIRA BARRETO DE OLIVEIRA ADORNO E A SUBJETIVIDADE INEXPRESSIVA UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA  CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES  PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA  JOÃO PESSOA  PB 2007 

description

O presente trabalho tem como objetivo apresentar o problema estético da subjetividadeinexpressiva do indivíduo em Adorno. Adorno desenvolveu uma teorização bastante amplasobre o problema da arte na contemporaneidade, principalmente devido às transformaçõestécnicas pelas quais à esfera da arte e das obras de arte passaram. Quando apresentou seuensaio Sobre o Fetichismo da Música e a Regressão da Audição, destacou que o surgimentoda técnica, como ferramenta de uso artístico no meio musical, modificaria o processo decomposição musical, transformando, assim, a música e todo o entendimento da músicatradicional (música tonal), num produto do mercado. Com a modificação do valor da música,outros problemas surgiram como: a alienação, a reificação do indivíduo e o problema dasformas imanentes das obras de arte. Ou seja, o papel da arte, assim como o do indivíduo,nesta sociedade, teve seus papéis modificados, fazendo com que a arte virasse mercadoria,assim como o próprio indivíduo. Ao traçar um futuro, não muito promissor, para esteindivíduo e toda a sociedade contemporânea, Adorno, em sua obra Filosofia da Nova Música,desenvolve uma proposta dialética através das obras artísticas do expressionismo musical doinício do século XX, com Schoenberg e Stravinsky, fundamentado na teoria crítica, cujospressupostos não estariam ou seriam corrompidos pela forças coercitivas que oprimemindivíduo. Sua proposta dialética tenta mostrar o problema presente em nossa sociedade.Palavras–Chave: Filosofia; Reificação; Expressão; Escola de Frankfurt; Música

Transcript of ADORNO E A SUBJETIVIDADE INEXPRESSIVA

  • THEOFILO MOREIRA BARRETO DE OLIVEIRA

    ADORNO E A SUBJETIVIDADE INEXPRESSIVA

    UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA CENTRO DE CINCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    JOO PESSOA PB 2007

  • THEOFILO MOREIRA BARRETO DE OLIVEIRA

    ADORNO E A SUBJETIVIDADE INEXPRESSIVA

    Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Filosofia da Universidade Federal da Paraba como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia.

    ORIENTADOR: Prof. Dr. Giovanni da Silva Queiroz

    JOO PESSOA PB 2007

  • O48a. Oliveira, M. Theofilo M. Barreto de.

    Adorno e a subjetividade inexpressiva/ Theofilo Moreira Barreto de Oliveira. Joo Pessoa, 2007.

    97p. Orientador: Giovanni da Silva Queiroz. Dissertao (Mestrado) UFPB/CCHLA.

    1. Filosofia. 2. Reificao. 3. Expresso. 4. Escola de Frankfurt. 5. Msica.

    UFPB/BC CDU:1 (043)

  • THEOFILO MOREIRA BARRETO DE OLIVEIRA

    ADORNO E A SUBJETIVIDADE INEXPRESSIVA

    Aprovada em ___/___/_____

    COMISSO EXAMINADORA

    __________________________________________

    Prof. Dr. Giovanni da Silva Queiroz (UFPB) Orientador

    __________________________________________

    Prof. Dr. Joo Emiliano Fortaleza de Aquino (UECE) Co-Orientador e Examinador

    __________________________________________

    Prof. Dr. Marcos Ayala (UFPB) Examinador

  • Para Maria Eduarda Pordeus e Campos, minha amada, minha amante, minha companheira, minha confidente e minha amiga para todas as horas. DEDICO.

  • AGRADECIMENTOS

    Primeiramente gostaria de agradecer a minha me, Juerila Moreira Barreto, pela trgua que me deu durante nossa guerra particular pelo computador;

    A minha irm, Isabella Moreira Barreto Gomes de Brito, pelo apoio logstico em casa;

    A Rosa Cagliani, por nossas conversas e nossos cafs;

    Aos meus amigos, que me suportaram durante o processo de desenvolvimento do meu trabalho, Thiago Sombra, Bia Cagliani, Allan Patrick, Adriana Baiana, Davi Medeiros Cabral, Marlen de Martino, Marcos Rosa e famlia, Mirna Nbrega, Deborah Lugo e todos aqueles que, de algum modo, me apoiaram nas minhas dificuldades e respeitaram minhas decises;

    A minha amiga Luiza Botelho, Sedexgirl, por ter conseguido algumas obras sem traduo para o portugus de Adorno;

    Em especial, ao amigo canelau, Patrick de Oliveira Almeida;

    CAPES, pelo financiamento;

    Ao programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Federal da Paraba;

    Ao meu co-orientador Prof. Dr. Joo Emiliano Fortaleza de Aquino, pelas precisas observaes e sugestes;

    Ao Prof. Dr. Marcos Ayala, pelas observaes e sugestes;

    Por fim e no menos importante do que todos, ao meu orientador Prof. Dr. Giovanni da Silva Queiroz, por mais uma vez acreditar no meu trabalho, pela pacincia, pelas fantsticas orientaes e nossa amizade.

  • RESUMO

    O presente trabalho tem como objetivo apresentar o problema esttico da subjetividade inexpressiva do indivduo em Adorno. Adorno desenvolveu uma teorizao bastante ampla sobre o problema da arte na contemporaneidade, principalmente devido s transformaes tcnicas pelas quais esfera da arte e das obras de arte passaram. Quando apresentou seu ensaio Sobre o Fetichismo da Msica e a Regresso da Audio, destacou que o surgimento da tcnica, como ferramenta de uso artstico no meio musical, modificaria o processo de composio musical, transformando, assim, a msica e todo o entendimento da msica tradicional (msica tonal), num produto do mercado. Com a modificao do valor da msica, outros problemas surgiram como: a alienao, a reificao do indivduo e o problema das formas imanentes das obras de arte. Ou seja, o papel da arte, assim como o do indivduo, nesta sociedade, teve seus papis modificados, fazendo com que a arte virasse mercadoria, assim como o prprio indivduo. Ao traar um futuro, no muito promissor, para este indivduo e toda a sociedade contempornea, Adorno, em sua obra Filosofia da Nova Msica, desenvolve uma proposta dialtica atravs das obras artsticas do expressionismo musical do incio do sculo XX, com Schoenberg e Stravinsky, fundamentado na teoria crtica, cujos pressupostos no estariam ou seriam corrompidos pela foras coercitivas que oprimem indivduo. Sua proposta dialtica tenta mostrar o problema presente em nossa sociedade.

    PalavrasChave: Filosofia; Reificao; Expresso; Escola de Frankfurt; Msica.

  • ABSTRACT

    The present work has as objective the presentation of Adornos thought about the esthetic problem in the lack of subjectivity expression of the individual. Adorno developed a very broad theory about the problem of the art in the contemporary time, mainly due to the technical transformations, by which the sphere of art and art pieces passed. When he presented his essay, About the Fetishism of Music and the Regression of Hearing, he emphasized that the sprouting of technique as a artistic tool in the musical milieu, would modify the musical composition trial, transforming, with it, the music and all the understanding of traditional music (music tonal) in a market product. With the modification of the music value, others problems had arose, such as: the alienation, the reification of the individual and the problem of the immanent forms of the art works. The role of art, as well as of the individual, in this society, had been modified, doing so that the art turned to merchandise, as well as the own individual. Upon drawing a not very promising future for this individual and all the contemporary society, Adorno, in his work Philosophy of the New Music, develop a dialectic proposal through the artistic works of musical expressionism of the beginning of the 20th Century, with Schoenberg and Stravinsky, substantiated in the critical theory, whose budgets, would not or could not be corrupted by the coercive forces which oppress the individual. His dialectic proposal, tries to show the current problem in our society.

    KEYWORDS: Philosophy; Reification; Expression; Frankfurt School; Music.

  • SUMRIO

    1 APRESENTAO ...................................................................................................... 09

    2 CONCEITO DE SOCIEDADE EM ADORNO ........................................................ 11 2.1 Indivduo, Sujeito e Esprito ....................................................................................... 21 2.2 Do Conceito de Reificao Reificao do Indivduo .............................................. 23 2.3 Expresso: Uma Categoria da Dialtica Adorniana................................................. 31

    3 A CONDIO DO SUJEITO NA OBRA FETICHISMO DA MSICA E REGRESSO DA AUDIO ...................................................................................... 40

    3.1 A Condio do Sujeito na Obra Filosofia da Nova Msica ...................................... 51 3.2 A Msica Antes de Schoenberg e Stravinsky e as Modificaes Oriundas

    da Escola Musical de Schoenberg............................................................................... 62 3.3 A Dialtica Inscrita na Filosofia da Nova Msica ..................................................... 67

    4 ROMPENDO LIMITES.............................................................................................. 73

    5 CONCLUSO .............................................................................................................. 86

    6 REFERNCIAS................................................................................................... 95

  • 9

    APRESENTAO

    O presente trabalho tem como proposta discutir o problema da inexpressividade do indivduo como sujeito reificado, na obra Filosofia da Nova Msica de Theodor W. Adorno. No entanto, antes de apresentar o problema, gostaramos de fazer uma pequena ressalva quanto ao tema abordado e explicitar porque este tema ainda um tema pouco abordado na filosofia do autor.

    Muitos comentadores e estudiosos de Adorno optam por trabalhar com as suas obras de maior relevncia, entre elas, O Fetichismo da Msica e a Regresso da Audio, Dialtica do Esclarecimento, Dialtica Negativa1 e a Teoria Esttica. No desenvolvimento destes estudos, algumas obras so priorizadas enquanto que outras no. Sua obra, Filosofia da Nova Msica, uma das que no tomadas como prioritrias. Esta obra, infelizmente, se tornou uma mera ponte para fazermos as devidas ligaes de todo o seu corpo filosfico adorniano. Afinal de contas, Adorno escreveu de forma fragmentria, o que causa certa estranheza e desconforto a quem o estuda pela primeira vez e uma enorme dificuldade a quem o elege como pensador a ser estudado. Como diria Max Paddison A esquematizao do pensamento adorniano (...) representa uma leitura particular de seus amplos e espalhados comentrios sobre linguagem e msica2.

    Ento, decidimos investigar em que consiste sua obra Filosofia da Nova Msica. No desenvolvimento do nosso trabalho, deparamo-nos com a categoria da expresso. Esta categoria, ainda pouco explorada por seus comentadores, tem sua principal relevncia pelo fato de nos dizer o que est alm de sua definio, o carter da inexpressividade do indivduo em uma sociedade beira da administrao total. Este problema, que se inicia ainda de forma muito prematura na filosofia de Adorno, aparece pela primeira vez em seu ensaio O Fetichismo na Msica e a Regresso da Audio, no momento em que o autor discute o problema da imanncia das obras de arte e as mudanas geradas pelo rpido desenvolvimento tcnico. Da mesma forma que Benjamin, Adorno utilizar da crtica como uma forma de apresentar seu ponto de vista sobre os problemas filosficos da contemporaneidade. No entanto, e aqui onde os dois se separam, Benjamin opta por um caminho crtico atravs da

    1 Ainda sem traduo para o portugus. 2

    The schematization of aspects of Adorno's thinking () represents one articular reading of his widely scattered comments on music and language. PADDISON, Max. The Language-Character of Music: Some Motifs in Adorno. Journal of the Royal Musical Association, 16, 2 (1991), p. 267.

  • 10

    arte de vanguarda de sua poca, voltando-se mais para o surrealismo e o dadasmo. Como ele tambm acreditava no cinema (uma das formas artsticas que cresceram muito por causa do desenvolvimento da tcnica) Benjamin tentou indicar a possibilidade da revoluo atravs da politizao da arte. J Adorno, que tambm seguiu os passos de Benjamin, preferiu fundamentar-se nas obras artsticas musicais, devido a sua formao musical, devido s transformaes pelas quais a msica passou em sua poca e para tambm afirmar seu modo de pensar.

    Sabemos que o modo que procede a escrita adorniana um tanto complexa quanto escorregadia.3 Ento, para que no percamos o foco da nossa discusso sobre o problema da inexpressividade do indivduo, dividimos nosso trabalho em trs partes. Na primeira seo, apresentaremos o que o autor entende por sociedade, indivduo, sujeito, esprito, reificao e expresso. importante entrarmos nestes conceitos para que a compreenso do problema fique mais clara, no levando o leitor a uma natural confuso relacionada disposio em que aparecem alguns destes conceitos.

    Na segunda seo, expandiremos a discusso expondo como cada um desses conceitos se apresentam nos dois principais ensaios em que o problema da inexpressividade se desenvolve: O Fetichismo da Msica e a Regresso da Audio e a Filosofia da Nova msica. No primeiro entenderemos como a inexpressividade do sujeito foi ganhando propores pelo grande desenvolvi-mento da tcnica, que no s afetou o sujeito, mas tambm as formas artsticas da poca. Enquanto que, no segundo ensaio, veremos um desdobramento maior da categoria de expresso, quais os resultados derivados desse desdobramento e a que resultado o autor chega em sua exposio.

    Na terceira seo, mostraremos como os desdobramentos da proposta de sada de Adorno refletem em outras sadas para o problema da inexpressividade e quais, das sadas, optaremos por seguir.

    Uma concluso busca clarificar nossa posio diante do que foi exposto.

    3Despite frequent remarks to the contrary by critics who correctly judge Adorno's writing to be difficult, it is

    writing that begs to betranslated, much as music begs to be performed. GILLESPIE, Susan. Translating Adorno: Language, Music, and Performance, The Musical Quarterly, 79, 1, 1995, p. 55-65.

  • 11

    2 CONCEITO DE SOCIEDADE EM ADORNO

    Para entendermos e entrarmos no problema da subjetividade como condio da inexpressividade do indivduo em uma sociedade administrada, necessrio, do ponto de vista da filosofia de Adorno, que tenhamos uma prvia compreenso do seu conceito de sociedade. Para alcanarmos o problema proposto, devemos passar por alguns momentos chaves de sua filosofia, que se iniciam neste conceito de sociedade e do qual dependem a exposio e o desenvolvimento do problema, como tambm o desdobramento de uma possvel soluo. De antemo, podemos j observar que este conceito apresentar os fatores principais que foram determinantes para a condio de inexpressividade do indivduo que se encontra impotente em se manifestar e se afirmar como subjetividade autnoma e de efetivar sua liberdade, numa sociedade beira da administrao total.

    Temos o conhecimento de que, para Adorno, o conceito de sociedade no um conceito fixo, ou cristalizado. Para o autor, o conceito de sociedade sempre estar se remodelando de acordo com as transformaes sociais contidas em cada sociedade existente, ou seja, um processo em permanente movimento. Contudo, para Adorno, h ainda uma escassa quantidade de conceitos sobre sociedade que realmente a definam. De acordo com ele, se tomarmos a idia de que sociedade o conjunto de seres humanos, incluindo todas as subdivises em subgrupos, ou ainda, se tomarmos somente uma determinada poca e afirmarmos que a sociedade desta determinada poca se constituiu de todos os homens que nela existiram, ainda assim no alcanaramos o conceito adequado de sociedade, por que no compreendemos o seu sentido. Se tomarmos estes conceitos, de aparncia apenas formal, prejulgaramos que o conceito de sociedade somente um conceito de uma reunio de seres humanos, em que todos estes so idnticos como sujeitos. como se o que especificamente social no consistisse eventualmente no predomnio das circunstncias (das foras coercitivas) sobre os homens, que j no so mais tomados como homens, mas sim como produtores impotentes de simples troca. J aqui, encontramos em Adorno o primeiro ponto que nos conduz ao nosso problema, pois os homens comearam a no ser mais tratados como homens e sim como portadores de objetos de valor.

  • 12

    Se relacionarmos o conceito existente de sociedade4 com o das pocas passadas, vemos que apenas podemos falar em sociedade no mesmo sentido da fase do capitalismo tardio. De acordo com o autor, a definio de sociedade de J. C. Blunstchli que caracteriza uma compreenso de sociedade que est em vigor h mais de cem anos como um conceito do terceiro estamento concebida como um conceito de modelo burgus constitudo pela sociedade vigente. Nestas circunstncias, o conceito de sociedade s pode ser extrado de acordo com as camadas sociais mais altas das sociedades analisadas. J aqui obtemos mais uma demonstrao de que as formalizaes do conceito de sociedade, decorrentes das pocas passadas at os dias de hoje, foram conceitos que no captaram o verdadeiro sentido do conceito de sociedade, pois se o conceito de terceiro estamento s pode ser obtido atravs de um modelo social burgus, esta conceituao torna-se equivocada e falha, porque alm de delimitar uma determinada classe social exclu todo o restante dos indivduos que sustentam a burguesia e que, nestas pocas, eram considerados apenas vassalos ou servos.

    Uma sociedade no se constitui somente da burguesia embora muitos indivduos s fossem aceitos na burguesia se fossem oriundos de alguma famlia da nobreza , mas sim de todos os indivduos que a compe sem nenhuma distino.

    Para Adorno, conceito de sociedade no , em absoluto, um conceito de ordem classificatria, como tambm no uma abstrao ideolgica como aquela que a sociologia clssica procura. Se fssemos tomar como definitivos estes dois caminhos, acabaramos por confundir um, que um ideal cientfico, com o outro que de ordem contnua e hierrquica das categorias do objeto do conhecimento. Para entendermos o que o autor realmente quer definir por sociedade devemos tomar, previamente, ainda que de forma abstrata, sua afirmao de que a sociedade ser a dependncia de todos os indivduos [com] respeito totalidade que formam. Nesta, todos dependem tambm de todos.5 Assim, h a possibilidade de se manter um todo graas multiplicidade de relaes que cada indivduo pode desenvolver em sociedade.

    Atravs desta determinao, que o autor d inicialmente ao conceito de sociedade, no podemos capt-lo imediatamente nem muito menos defin-lo por completo, pela via de diferentes leis cientfico-naturais. Notemos que esta incapacidade de se apreender o conceito

    4 Aqui nos referimos sociedade do final do incio do sculo XX. 5

    la dependencia de todos los indivduos [en] respecto de la totalidad que forman. En sta, todos dependen tambin de todos. ADORNO. T. W. Epistemologia y Ciencias Sociales. Trad. Vicente Gmez. Madrid: Catedra, 2001, p. 10.

  • 13

    de sociedade atinge diretamente, sob a forma de crtica, as correntes sociolgicas positivistas que viam na filosofia uma forma de determinar o conceito de sociedade. Porm, isto no d muito resultado, porque no possvel obter um conceito de sociedade utilizando a abstrao atravs de fatos particulares, nem apreender como fato, pois no existe fato social que no esteja limitado historicamente a uma sociedade concreta.

    Assim, como no podemos obter um conceito de sociedade seguindo uma lgica de fatos correntes presentes nesta mesma sociedade, tambm no podemos demonstr-lo. A nica forma de se conceber seu conceito se d atravs da teoria. Somente atravs de uma teoria que abarque toda a estrutura de uma sociedade e que dentro dela se componham todas as esferas do conhecimento de ordem econmica, social, psicolgica, etc. que, finalmente, poderemos chegar a um conceito mais adequado de sociedade. Todavia, o autor levanta uma objeo contra a investigao deste conceito. Ele afirma que esta busca pode tornar-se estril, pois o que estaramos avaliando no seriam condies de sentido de verdade do conceito de sociedade, mas apenas enunciados falsos sobre ela. Ento, ele chama ateno dizendo que h uma grande diferena entre um conceito enftico de sociedade e uma definio de uso de sociedade.

    Esta objeo [sobre a busca do conceito de sociedade] confunde um conceito enftico de sociedade com uma definio de uso. O conceito de sociedade ter que ser desdobrado, no fixado terminologicamente de forma arbitrria em prol de sua pretendida pureza. 6

    Segundo Adorno, um conceito enftico de sociedade deve seguir nexos de transparncia entre conceitos bem definidos e experincias repetidas. Ou seja, podemos entender por conceito enftico de sociedade o conceito que consiga captar o sentido de uma determinada sociedade, pois este conceito, por ser enftico, conseguiria, atravs da crtica e da criao de categorias, determinar corretamente o que uma sociedade, como ela se constitu, quem so seus indivduos e como funciona sua dinmica interna. Quando este conceito enftico no alcanado o que geralmente ocorre acabamos caindo na definio de uso do conceito, que consiste em enunciados que determinam um sentido de sociedade a partir dos seus indivduos e de sua dinmica interna; entretanto, ao final de todo este processo de pesquisa e captao, v-se impotente por no realiz-lo adequadamente.

    6 Esta objecin [sobre la bsqueda del concepto de sociedad] confunde un concepto de enftico de sociedad com una definicin de uso. El concepto de sociedad ha de ser desplegado, no fijado terminolgicamente de forma arbitraria en pro de su pretendida pureza. ADORNO. T. W. Epistemologia y Ciencias Sociales. Trad. Vicente Gmez. Madrid: Catedra, 2001, p. 11.

  • 14

    Uma teoria enftica da sociedade, por outro lado, no se preocuparia com o modelo impotente de apelar para uma mediao misteriosa. Esta objeo toma o conceito de sociedade igualando-o aos dados imediatos, ao que precisamente ela, enquanto mediao, subtrai-se essencialmente. Consequentemente, o princpio seguido liga-se ao ideal do conhecimento da essncia das coisas a partir de dentro, por trs do qual se revestia a teoria da sociedade.7

    A teoria no se preocuparia em saber qual o modelo em que se baseia, mas preocupar-se-ia com a mediao que a definir. Esta mediao, cujo movimento dialtico acontece de dentro para fora e no somente de fora para dentro, consistiria numa anlise complexa e completa da sociedade, em que todos os indivduos seriam analisados por eles mesmos, sem haver nenhuma distino de classe social, cor, religio e conhecimento, para podermos extrair o porqu de haver esta subdiviso discriminativa que as foras coercitivas fazem, em seu processo de administrao total. E por causa dessas subdivises, o indivduo no se reconhece em seu processo de afirmao, sendo levado a estabelecer uma outra forma de mediao, a imposta pela indstria, que visa sua completa perda de autonomia e de subjetividade, para mostrar que seu reconhecimento se d, e sempre dever se dar, como uma mercadoria a ser comercializada. Ento, somente recorrendo a esta anlise, atravs da crtica e da criao de categorias que expressem em que realmente consiste o indivduo e a sociedade em que ele vive, que chegaremos definio prpria de sociedade. Este seria o mtodo dialtico de dentro para fora. No adotaramos somente o mtodo positivista como o nico mtodo, ou seja, o mtodo em que a mediao somente externa. Se s utilizssemos o mtodo positivista, o conceito de sociedade no apareceria, no por ser um conceito que viria de uma mediao, mas sim de uma imposio, ou de uma adequao imposta a ns. Adorno tambm no rejeita por completo o mtodo positivista, pois ele o contraponto do movimento dialtico interno para o qual ele chama a ateno.

    H que se conhecer a sociedade, contudo, e no conhec-la desde dentro. Nela, produto de homens, estes, todavia, podem, apesar de tudo e, por assim dizer, de longe, reconhecerem-se a si mesmos, diferentemente do que ocorre na qumica e na fsica.8

    7 Una teora enftica de la sociedad, en cambio, se despreocupara del imponente modelo para apelar a la misteriosa mediacin. Esta objecin mide el concepto de sociedade con el rasero de su inmediata datidad, al que precisamente ella, en tanto que mediacin, se substrae esencialmente. Consecuentemente, a regln seguido se ataca el ideal del conocimiento de la esencia de las cosas desde dentro, trs el que se acorazara la teoria de la sociedad. ADORNO. T. W. Epistemologia y Ciencias Sociales. Trad. Vicente Gmez. Madrid: Catedra, 2001, p. 11.

    8 La sociedad, sin embargo, hay que conocerla e no conocerla desde dentro. En ella, producto de los hombres, stos todava pueden, pese a todo y, por decirlo as, de lejos, reconocerse a s mismos, a diferencia de lo que ocurre em la qumica y em la fsica. ADORNO. T. W. Epistemologia y Ciencias Sociales. Trad. Vicente Gmez. Madrid: Catedra, 2001, p. 11.

  • 15

    A ao que rege a sociedade burguesa, conduzida pela pseudo-racionalidade, ou seja, pela sua capacidade de anlise, motivada objetivamente de forma compreensvel, foi a forma, segundo o autor, que a gerao de Max Weber e Dilthey encontraram para definir sociedade. Esta forma de se conceber o conceito de racionalidade veio somente sob o signo de um ideal de compreenso unilateral, porque aquilo que era primordial no conceito de sociedade ao contrrio da identificao que os sujeitos tinham para poderem se compreender acabou sendo excludo, deixando esta identificao sem a forma de referencial correta, substituindo-a pela forma de identificao atravs das mercadorias.

    No s Max Weber e Dilthey foram alvos das crticas de Adorno acerca do conceito de sociedade, mas tambm Durkheim, que dizia que deveramos tratar dos fatos sociais apenas como coisas. Contudo, ao fazer isto, ele estava no s renunciando ao indivduo, mas se colocando no mesmo patamar de todo mtodo cientfico-natural que, ao invs de compreender o objeto, imputa-lhe um conhecimento, para que nossa compreenso fique mais adequada aos padres sociais coercitivos. Sem falar que, ao fazer isso, ele s refora a reificao do indivduo e o coloca em uma cela fechada sem poder expressar nada de sua subjetividade. Ao fazerem isso, desse modo, esses socilogos vetaram a capacidade e a autonomia de criao de categorias que pudessem compreender o que o indivduo e o que a sociedade. A reflexo sobre sociedade era iniciada sempre a partir do momento em que no havia uma compreenso sobre o que ela . Eles partiam do pressuposto de que a sociedade se limitava classe burguesa, de forma a conduzir o conhecimento sobre a sociedade a uma relao unilateral de pesquisas errneas e falhas. O sentido do conceito de sociedade no era atingido, justificando ainda mais a sua definio de uso.

    Se a sociologia se define como o estudo das sociedades, ento a sociologia mope por no conseguir ver alm de si mesma, no conhecendo seu objeto, limitando mais ainda o que deveria compreender, ou seja, a entrada da humanidade no inumano.9 E em que consistiria a entrada da humanidade no inumano? Seria justamente a passagem ou a caracterizao do indivduo em coisa ou objeto de consumo: sua reificao. Quando o indivduo no se reconhece mais em sua sociedade e tambm quando ele no reconhece mais o outro indivduo, que deveria lhe proporcionar o reconhecimento, ele passa a tentar estabelecer uma relao, consigo mesmo e com o outro, atravs do consumo de mercadorias; sem perceber j havia adentrado na realidade do inumano. Uma vez j dentro desta realidade,

    9 La entrada de la humanidad en lo inhumano. ADORNO. T. W. Epistemologia y Ciencias Sociales. Trad.

    Vicente Gmez. Madrid: Catedra, 2001, p. 12.

  • 16

    a dificuldade de tentar restabelecer sua identidade consigo e com o outro enorme, para no dizer quase impossvel. Porque, alm de no abordar a busca pelo conceito de sociedade e por sua prpria identidade, ele ficar submetido a uma ideologia que o far refm de si mesmo, ocasionando por fim sua alienao e sua limitao no processo de expresso de sua prpria subjetividade. Para compreendermos o conceito de sociedade, devemos ir alm da relao entre sujeitos. Devemos saber, atravs da crtica, da criao de categorias e de sua expresso, de como se deve dar a mediao entre eles e com o meio social em que vivem, ou seja, com os materiais (objetos) com os quais eles se relacionam, para chegar definio conceitual efetiva e correta. Assim, mais do que nunca a sociologia, como tambm a filosofia, deveriam compreender de forma mais adequada esta entrada do humano no inumano, ou seja, a entrada no indivduo na realidade da mercadoria, sem deixar seus conceitos se tornarem estreis e sem fundamento.

    Estes conceitos posicionam-se como anti-tericos, pois acabam por serem conceitos que so dispensados, so esquecidos ou reprimidos, tornando-se apenas fragmentos tericos que quase no dizem nada. Adorno diz que um dos conceitos que adquiriram esta nomenclatura foi o conceito alemo de compreenso (Verstehen). Este conceito, que nas primeiras dcadas do sculo XX foi tomado como o conceito secularizado do esprito hegeliano (Geist), tornou-se um dos modelos ideais da realidade irreconciliada que aceita pela sociedade como mecanismo coletivo de coao. O mesmo que a indstria cultural fez com as obras de arte reificadas. Adorno continua ainda com a crtica s numerosas categorias dominantes que existem nas correntes sociolgicas que combatem aqueles que no se utilizam de uma racionalidade positivista. Neste fragmento ele diz:

    Ultimamente se emprega com profuso o papel como um conceito sociolgico chave, como uma categoria que faria inteligvel a ao social. Este conceito foi privado de sua referncia a esse ser-para-outro caracterstico dos indivduos que, irreconciliados e alienados de si mesmos, se acorrentam uns nos outros sob o contrainte sociale. Os papis so prprios de uma estrutura social que adestra os homens para que persigam unicamente sua autoconservao e, ao mesmo tempo, lhe nega a conservao de seu eu. O onipotente princpio de identidade, a abstrata equiparabilidade de seu trabalho social, os levam a extino da identidade consigo mesmos.10

    10 ltimamente se emplea con profusin el rol como un concepto sociolgico clave, como una categora que hara inteligible la accin social. Este concepto ha sido privado de su referencia a ese ser-para-otro caracterstico de los individuos que, irreconciliados y enajenados de s mismos, los encadena los unos a los otros bajo la contrainte sociale. Los roles so propios de una estructura social que adiestra a los hombres para que persigan nicamente su autoconservacin y, al mismo tiempo, les niega la conservacin de su yo. El omnipotente principio de identidad, la abstracta equiparabilidad de su trabajo social, les lleva a extincin de la idendidad consigo mismos. ADORNO. T. W. Epistemologia y Ciencias Sociales. Trad. Vicente Gmez. Madrid: Catedra, 2001, p. 12.

  • 17

    Desse modo, a anulao que comea a existir no conceito de sociedade ganha maiores propores, de forma que o alvo atingido, o individuo em sua relao de identidade consigo mesmo. Estas falsas ou falaciosas definies de sociedade acarretam grandes problemas tambm para as esferas da arte e da obra de arte. Pois, como o individuo no tomado mais como indivduo, e sim como qualquer outra coisa, para se relacionarem, eles devem desenvolver um papel social. Como esta representao no leva o indivduo sua transcendncia, sada dessa mesma situao de representao e reificao, ele desempenha apenas uma representao vazia de seu sujeito. A busca pelo conhecimento, que possa trazer uma possibilidade de liberdade, acaba se tornando impossvel de se efetuar, pois ele no mais questionar porque representa e no mais consegue ser ele mesmo.

    Assim, se as cincias sociais se servem deste tipo de conceitos, como o de papel, para coagir o indivduo, elas simplesmente esto a servio da ideologia dominante.

    Mas, para que o autor possa prosseguir em tentar definir o que sociedade, uma alternativa se apresenta como via segura e frtil. Esta via se d pela crtica. Atravs da crtica, Adorno encontra recursos pelos quais pode revelar o que est por trs das mscaras que encobrem os indivduos, que so forados a se submeterem ao domnio do universal sobre o particular, domnio que existe nas sociedades industrializadas. Ele pode, assim, combater a reduo dos homens a agentes e portadores do intercmbio de mercadorias [que] se oculta [na] dominao dos homens sobre os homens11.

    Ainda no est muito claro o que para o autor o conceito de sociedade. O que agora entrar em cena, o que fundamental tanto para a definio de sociedade quanto para a efetuao da liberdade do indivduo, ser o problema das sociedades se submeterem e tambm terem como regentes as leis de troca.

    Como uma concepo crtica poderia sobreviver em meio a uma sociedade que mesmo mudando determinados procedimentos para com seus indivduos, ainda se mantm na ideologia de uma sociedade de trocas?

    Na realizao destas sociedades, como uma realizao universal, em que se pratica objetivamente a abstrao e que a sociabilidade jogada para um segundo plano, a capacidade da crtica se afirma quando o social no mais visto como primeiro plano. O que est em jogo, aqui, o conceito de reificao; nas sociedades capitalistas, as relaes entre os homens

    11 La reduccin de los hombres a agentes y portadores del intercambio de mercancas [que] se oculta [en] la dominacin de los hombres sobre los hombres. ADORNO. T. W. Epistemologia y Ciencias Sociales. Trad. Vicente Gmez. Madrid: Catedra, 2001, p. 13.

  • 18

    so mediadas por relaes de troca, no mesmo sentido das relaes mercantis. Tais relaes esto submetidas s leis que regem o mercado, que lhes conferem autonomia. Assim sendo, as relaes entre os homens encontram-se mediadas por leis exteriores. Relaes entre homens se do como relaes entre coisas, entre produtos, entre mercadorias. Mas, como sabido, as leis do mercado so naturalizao (ideolgica) de um processo de dominao social exercido por uma classe sobre outra.

    Justamente aqui que a crtica deve ser aplicada, para que no deixemos passar em vo o grande descaso que est sendo construdo pelos que detm o poder coercitivo sobre os indivduos, que so forados a sobreviver e se submeterem a tais determinaes. Sabemos que a dominao e o prevalecimento das sociedades de trocas sobre as formas utpicas de sociedades livres so a continuao administrada do imperialismo antigo, isto fato. Mas deixarmos este fato passar impune sem pelo menos critic-lo o mesmo em que regredirmos para um estado de irracionalidade e nos mantermos nele por um longo e dispendioso tempo.

    Contudo, para que a crtica possa exercer sua funo necessrio que seja levado em conta, no processo de socializao dos indivduos, os conflitos existentes nas e entre as sociedades, na qual sua superao se mostrar como uma possibilidade de soluo. E este momento s surgir quando as sociedades de classes ainda no se apresentarem apenas como um epifenmeno. Assim, a investigao social que deve estimular a conscincia social no indivduo no deve se deixar levar por uma objetivao social, cujas relaes de produo conservam precariamente os velhos antagonismos de classes, mas sim, ultrapass-las, mostrando que no s os trabalhadores das classes mais baixas devem ter conscincia de sua real situao. por isso que os grandes movimentos sociais que realmente surtiram algum efeito contra as foras predominantes que abusavam do indivduo e que se tornaram grandes formas de se fazer revoluo, encontram-se no seio dos filhos dos trabalhadores explorados e na populao estudantil, que est preocupada em formar novas conscincias.

    Em outro lugar, Adorno afirma:

    Os trabalhadores continuam considerando que a sociedade est dividida entre os de cima e os de baixo. Assim, por exemplo, sabido que a igualdade formal de oportunidades de formao no corresponde em absoluto com a proporo dos filhos de trabalhadores na populao estudantil.12

    12 Los trabajadores siguen considerando que la sociedad est dividida en un arriba y un abajo. As, por ejemplo, es sabido que la igualdad formal de oportunidades de formacin no se corresponde en absoluto con la porporcin de los hijos de trabajadores en la poblacin estudantil. ADORNO. T. W. Epistemologia y Ciencias Sociales. Trad. Vicente Gmez. Madrid: Catedra, 2001, p. 15.

  • 19

    Segundo o autor, as diferenas sociais ainda se apresentam como diferenas que esto subjetivamente veladas em virtude da grande concentrao de capital que a cada dia s aumenta. Estas diferenas atingem diretamente a constituio do indivduo na sociedade, porque quanto mais se deixam encobertas estas diferenas, mais ainda o poder de crtica que o indivduo poder exercer diminui; se diminui, o poder das classes burguesas aumenta, executando, em um movimento unilateral, a anulao do indivduo. Porque unilateral? Porque quem detm o poder a classe burguesa, ou seja, a indstria, que extrai, ao mximo, a liberdade do indivduo reificando-o. Ao reific-lo a indstria o coloca numa posio em que ele no consegue se expressar, impossibilitando-o de conhecer o problema que o circunda. Sem poder se expressar e com a indstria literalmente administrando esta situao, s resta ao indivduo duas perspectivas; a primeira aceitar sua classificao de nulo, pois no h mais o que fazer; e a segunda, a perspectiva da crtica. A primeira deixa o indivduo sem noo de referncia humana, ou seja, de si mesmo, enquanto a segunda, que a opo que Adorno seguir, possibilita uma sada para o indivduo desta sua condio de reificao.

    Ali onde os homens crem estar mais prximos uns dos outros, como na televiso, que levada at seus lugares, na realidade essa proximidade medida pela distncia social, pela concentrao do poder. A existncia humana individual , para alm de todo o imaginvel, mera reprivatizao; o mais real, aquilo ao que se agarram os homens, ao mesmo tempo o mais irreal. 13

    E mais, mesmo que uma sociedade consiga resolver tal dilema, e que se apresente como uma sociedade transparente, livre deste fardo, ainda assim no seria possvel v-la livre da administrao e de sua diviso do trabalho. A no ser que todas nossas necessidades bsicas fossem supridas de maneira milagrosa e que ningum mais necessitasse trabalhar, coisa que se mantm ainda num patamar completamente utpico e impossvel de se realizar. Mesmo os processos institucionais sociais mais poderosos so derivados de origem humana, isso quer dizer, so objetivaes da diviso social do trabalho, feitos por homens, na qual a autonomizao deste mesmo poder dominador se converte ao mesmo tempo em fora dominante e ideologia, ou seja, em aparncia social. Esta aparncia, que deve ser quebrada e transformada, torna-se cada vez mais densa, pois no se deixa romper as relaes de classes;

    13 All donde los hombres creen estar ms cerca de unos a los otros, como en la televisin, que se les lleva hasta sus hogares, en realidad essa cercana est medida por la distancia social, por la concetracin del poder. La existncia humana individual es, ms all de todo lo imaginable, mera reprivatizacin; lo ms real, aquello a lo que se agarran lo hombres, es al mismo tiempo los ms irreal. ADORNO. T. W. Epistemologia y Ciencias Sociales. op. cit., p. 16.

  • 20

    gera-se um conflito imanente sociedade alm de que o indivduo excludo destas relaes e a reificao apodera-se da conscincia social.

    (...) os sujeitos se vem impedidos de reconhecerem-se a si mesmos como sujeitos. A oferta de mercadorias, que os inundam, contribui tanto quanto a indstria cultural e os inumerveis mecanismos diretos de controle intelectual. A indstria cultural nasceu da tendncia do capital explorao. 14

    Portanto, a necessidade de uma forma de pensamento duplo que deve ser institudo na sociedade deve vir tona, porque somente desta forma os indivduos (ou homens, os trabalhadores, os estudantes e toda a sociedade) poderiam reverter a situao agravante da dominao social.

    Se o conceito de humano [que necessrio para o conceito de sociedade], o que importa definitivamente, se converteu na ideologia que encobre o fato de que os homens so somente apndices do maquinrio social, poderamos dizer sem medo de exagerar que, na situao atual, so literalmente os prprios homens, em seu ser assim e no de outro modo, a ideologia que, apesar de seu absurdo manifesto, se dispe a eternizar a vida falsa. O crculo se fecha. Se exigiria homens vivos para transformar o atual estado de enrijecimento, mas este se calou to profundamente em seu interior, as custas de sua vida e de sua individuao, que os homens apenas parecem ser j capazes dessa espontaneidade de que tudo dependeria. Disto extraem os apologistas do existente novas foras para revitalizar o argumento de que a humanidade, contudo no est [ainda] madura15.

    Assim, depois desta apresentao de como est, para Adorno, a sociedade e o indivduo dentro dela, resta-nos ainda extrair seu entendimento pelo sentido do termo sociedade. Para o autor, o sentido do conceito de sociedade s poder ser constitudo quando este aparecer junto a uma teoria que no se deixe seduzir por nada que possa destruir seu principal componente, o indivduo, e que se preserve sempre de forma negativa, no deixando

    14 (...) los sujetos se ven impedidos de reconocerse a s mismos como sujetos. La oferta de mercanecas, que los inunda, contribuye tanto a ello como la industria cultural y los imnumerables mecanismos directos de control intelectual. La industria cultural naci de la tendencia dela capital a la explotacin ADORNO. T. W. Epistemologia y Ciencias Sociales. op. cit., p. 17.

    15 Si el concepto de lo humano [que es necessario para el concepto de sociedad], lo que en definitiva importa, se ha convertido en la ideologa que encubre el hecho de que los hombres son slo apndices de la maquinaria social, podra decirse sin miedo a exagerar que, en la situacin actual, son literalmente los hombres mismos, en su ser as y no de otro modo, la ideologa que, pese a su manifiesta absurdez, se dispone a eternizar la vida falsa. El crculo se cierra. Se requerria hombres vivos para transformar el actual estado de endurecimiento, pero ste ha calado tan profundamente en su interior, a expensas de su vida y de su individuacin, que los hombres apenas parecen ser ya capaces de esa espontaneidad de la que todo dependera. De esto extraen los apologistas de lo existente nuevas fuerzas para revitalizar el argumento de que la humanidad todava no est [an] madura. ADORNO. T. W. Epistemologia y Ciencias Sociales. Trad. Vicente Gmez. Madrid: Catedra, 2001. p. 18.

  • 21

    cair a possibilidade de expressar todo o seu real e verdadeiro conhecimento; logo, um conhecimento (a definio mais verossimilhante de sociedade) que antecipe a transcendncia dessa situao em que o feitio ser desfeito e a sociedade e os indivduo se tornaro livres.

    2.1 Indivduo, Sujeito e Esprito

    Aparentemente, quem inicia a leitura dos textos adornianos, depara-se logo com um intenso movimento existente entre as definies de indivduo, sujeito e esprito. Dependendo do contedo ou do texto a ser estudado, um dos termos pode aparecer mais que os outros. Mas o problema, a princpio, se d quando o autor resolve utilizar os trs conceitos, ora diferentes, ora significando a mesma coisa em um mesmo texto, gerando assim a confuso e a dificuldade em entender o que ele quer dizer. Desse modo, para que esta confuso no permeie a leitura do nosso trabalho e tambm, a compreenso e o sentido do problema que estamos a trabalhar a subjetividade inexpressiva do indivduo , iniciaremos aqui uma rpida explicao de que consistem estes trs conceitos, e de como eles se definiro em nosso trabalho para que no haja confuses terminolgicas sobre estes temas.

    De acordo com Adorno, o prprio sentido do termo sujeito apresenta uma grande dificuldade de definio e exposio. Sua primeira definio de sujeito consiste tanto na definio de indivduo, ou seja, o termo sujeito est se referindo ao indivduo que vive numa sociedade, como tambm, este mesmo termo pode se referir, e aqui ele se utiliza de seus conhecimentos kantianos sobre sujeito, conscincia geral, de uma ou de mais sociedades. Assim, sujeito pode referir-se tanto ao indivduo particular [einzelne individuum] quanto a determinaes gerais; de acordo com os termos dos Prolegmenos kantianos, conscincia em geral.16 Contudo, a distino ainda no parece muito clara, pois, para o autor, ambos os significados necessitam um do outro, de forma que se torna mais difcil, para no dizer, impossvel, a apreenso de um sem o outro. Para Adorno, existe uma impossibilidade de se desmembrar um do outro de forma cognitiva, pois a individualidade humana perderia todo o seu sentido se no fosse indicada pelo sujeito. O caminho reverso tambm se pe nestes mesmos termos.

    16 ADORNO, T. W. Sobre Sujeito e Objeto, in Palavras e Sinais: modelos crticos 2. Trad. Maria Helena Ruschel. Petrpolis: Vozes, 1995, p. 181.

  • 22

    Inversamente, o indivduo humano singular to logo se reflete de alguma maneira sobre ele [o conceito de sujeito] numa forma conceitual universal enquanto indivduo, e no se tem em mente s o esse a qualquer de um homem particular [besonderen Menschen] transforma-se j num universal, semelhana do que fica explicitado no conceito de sujeito (...).17

    Ou seja, para o autor, at este ponto, tanto sujeito quanto indivduo querem significar a mesma coisa. Agora, necessrio fazer algumas ressalvas sobre esta similaridade de determinaes. Sempre que o autor estiver expondo estes dois conceitos para falar sobre a sociedade, necessrio prestar ateno se ele introduzir o conceito de esprito, porque a partir do momento em que o autor comea a falar de sujeito, indivduo e esprito, necessrio compreendermos que existiro trs planos em que cada conceito ser posto. Geralmente a ordem pode ser compreendida de baixo para cima na seguinte relao: indivduo, plano material primrio; sujeito, plano material/abstrato primrio; e esprito plano abstrato superior. Entendamos como funciona isso.

    Quando o autor utiliza somente os conceitos de sujeito e indivduo juntos, ele est se referindo ao plano do material, em que o objeto a ser observado o homem efetivo, o sujeito emprico (suas relaes de trocas, de comportamento, conhecimento, enfim, o que compete ao mundo social concreto). Quando o autor introduz o conceito de esprito, este se relaciona mais diretamente com o termo sujeito do que com o termo indivduo (apesar de todos os trs se relacionarem de forma direta ou indireta). O nvel em questo no estar s se referindo ao plano material, mas fazendo um elo, de ligao, com o plano mais abstrato, universal. A hierarquia estabelecida pelo autor segue um padro dialtico de um sistema lgico, tal qual como a dialtica hegeliana, de forma que o plano abstrato (esprito) para poder se relacionar com o concreto (indivduo), necessita de uma mediao, que feita pelo movimento de conexo entre eles (sujeito).

    Por fim, o termo esprito pode ser entendido no mesmo sentido hegeliano, s com uma pequena diferena. A determinao deste esprito no ser embasada numa relao direta sua com o absoluto. A relao se dar mediante a concepo entre sujeito e objeto dentro da sociedade, mas obedecer mesma ordem lgica que o esprito hegeliano obedece, de se partir de um ente indeterminado para se determinar, ou seja, ser o momento de negao que se converter em uma determinao.

    17 ADORNO, T. W. Sobre Sujeito e Objeto, in Palavras e Sinais: modelos crticos 2. Trad. Maria Helena Ruschel. Petrpolis: Vozes, 1995, p. 181.

  • 23

    Em resumo, o autor no explica muito bem como ele utiliza estes trs conceitos. Ele estabelece-os simplesmente como mecanismos de compreenso de sua filosofia. Para nossa apresentao, preferimos instituir uma ordem que estes conceitos obedeam. Quando estivermos somente utilizando os termos indivduo e sujeito, estes significaro a mesma coisa. Quando, no desenvolvimento da discusso, for inserido o termo esprito, este se comportar sempre a explicar como o processo abstrato de seu desenvolvimento se dar durante a constituio de um conhecimento, relativo ao sujeito, ao indivduo ou s obras de arte.

    2.2 Do Conceito de Reificao Reificao do Indivduo

    O conceito de reificao necessrio para o entendimento da nossa proposta, assim como tambm foi para o autor. Alm de Adorno relacion-lo com a situao do indivduo e sua incapacidade de expresso neste mundo administrado, ele ampliar um pouco mais a abrangncia deste conceito devido a influncia que recebeu de seus estudos desde Husserl at Marx. Como a proposta do nosso trabalho no definir nem detalhar o prprio conceito de reificao, mas sim relacion-lo com o problema da subjetividade do indivduo, nos embasaremos na dissertao de mestrado de lvaro Valls18, na qual alm de explicar a evoluo do pensamento adorniano sobre o conceito de reificao, ainda relaciona este conceito e o coloca na perspectiva esttica da filosofia adorniana, apresentando-a um pouco mais. Porm, importante frisarmos que, para Adorno, o termo reificao, s se consolidar e s ter a mesma conotao que coisificao ao final de suas prprias pesquisas, porque no incio, o termo coisificao ainda tinha um sentido abstrato, derivado dos seus estudos sobre Husserl e da perspectiva neokatiana vigente. Desse modo, para que no haja algum tipo de confuso sobre o termo em questo, no decorrer da nossa exposio, escolhemos utilizar o termo reificao para nos aproximarmos mais da definio final a que Adorno chegou, utilizando, somente em alguns casos, o termo coisificao, com o intuito de caracterizarmos o incio de sua busca pela definio mais madura como tambm para nos mantermos mais prximos de Marx, a quem Adorno dever seu completo entendimento sobre este conceito, distanciando-se, assim, das definies primrias encontradas em seus estudos sobre Husserl e sobre Kierkegaard.

    18 VALLS, lvaro L. M. Estudos de esttica e filosofia da arte: numa perspectiva adorniana. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.

  • 24

    Segundo lvaro Valls a primeira definio que Adorno encontrou sobre reificao, se apresentou a ele ainda jovem, quando sob a orientao de Hans Cornelius e a partir de um ponto de vista de uma filosofia da imanncia, quando pesquisava sobre a teoria da coisa de Husserl, com a inteno de demonstrar que Husserl pressupe um mundo transcendente.19

    De acordo com Valls, Adorno pretendia esclarecer e corrigir determinadas contradies que existiam na filosofia de Husserl referente aos componentes idealistas tradicionais e aos realistas transcendentes da teoria da coisa, em prol de justificar que as coisas no so vivncias isoladas, mas sim relaes entre vivncias leis de sua evoluo.20 No entanto, o que ele entendia por coisificar, ainda se restringia [ao] domnio da teoria do conhecimento, e que consiste apenas em tomar logo todos os objetos como coisas.21 Em outras palavras, ele no tinha ainda a dimenso do social inserido em seu primeiro conceito de reificao. Dimenso a qual fez com que ele retirasse esta primeira dissertao da avaliao pela Universidade de Frankfurt.

    No momento em que Adorno retirou sua primeira dissertao da avaliao, ele teve que iniciar um processo de amadurecimento filosfico um tanto apressado, que fez com que rompesse com a perspectiva neokantista de transcendncia de Husserl, pois esta perspectiva no conseguia se desvincular de uma forma de ideologia, partindo em busca de uma linha de raciocnio filosfico prpria, que ele pensava encontrar em Kierkegaard. Adorno, quando se debrua sobre a filosofia de Kierkegaard, tambm viu que o conceito de reificao neste autor ainda era deficiente e insuficiente. Em Kierkegaard este conceito aparecia, mas no era tratado com a devida importncia. Resulta da, posteriormente, o seu afastamento da filosofia kirkegardiana; buscando uma definio mais concreta do conceito de reificao, ele se aproxima das leituras de Lukcs sobre Marx.

    Assim, sua segunda definio do conceito de reificao, se apresentou em sua habilitao sobre Kierkegaard intitulada Kierkegaard: Construo do Esttico22. Para Adorno, Kierkegaard conhecia a coisificao, mas no a interpretava corretamente, to pouco conseguia vislumbrar o problema. Para Kierkegaard, a questo do social no era importante, pois ele no estava inserido nas camadas burguesas nem nas camadas proletrias. A condio

    19 VALLS, lvaro L. M. Estudos de esttica e filosofia da arte: numa perspectiva adorniana. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS p. 68.

    20 Apud VALLS, lvaro L. M. op. cit., p.68. 21 VALLS, lvaro L. M. op. cit., p. 69. 22 Sem traduo ainda para o portugus.

  • 25

    deste autor era a mesma de um Privatier23, ou seja, ele se encontrava fora do processo de produo econmico, mas permanecia ainda sob a influncia da reificao. Apesar deste problema, Kierkegaard no o tomar como importante, fazendo com que cada vez mais a definio adorniana de reificao tenda mais para os estudos marxistas, na qual a reificao se comportar de forma parecida como a apresentada aqui por Kierkegaard, mas socialmente contextualizada.

    (...) quando a gente faz compras a gente se aproxima tanto quanto possvel do objeto, mas tambm se afasta de si mesmo, a gente se esquece de si mesmo e, continua Kierkegaard, nada nos recorda que o homem que observa o quadro e o tecido e no o quadro e o tecido que o observam.24

    Desse modo, mesmo com esta definio, que se aproxima do que Adorno entende em

    sua fase madura por reificao, ele abandona a perspectiva kirkegardiana, que alm de visar

    uma salvao atravs da religio no tematizava histrico-socialmente o problema da

    reificao. Assim, Adorno partiu em busca de um novo conceito de reificao que precedesse

    uma anlise da mercadoria em seu prprio mundo, ou seja, o mundo industrial capitalista. Sabemos que, no momento em que Adorno faz uma crtica definio de reificao de

    Kierkegaard, discordando assim de seu ponto de vista, ele tambm afirma, atravs desta

    crtica, seu posicionamento marxista, embasado nos escritos lukacsianos, principalmente em

    Histria e Conscincia de Classe e tambm sob a influncia de seu amigo Benjamin. No entanto, este perodo de aproximao com Lukcs no dura muito. Enquanto Lukcs falar e

    estar preocupado com a importantssima figura do proletrio, fundamental para todas as

    correntes tradicionais do marxismo25, e um dos eixos centrais de sua filosofia, Adorno, de

    maneira muito estranha, far com que desaparea totalmente de seus escritos uma soluo

    otimista que motivava o autor hngaro. Lukcs visava o proletariado como a fora

    revolucionria, o que para Adorno acabou sendo descartado, afastando-se assim da principal

    soluo apontada por Lukcs para o problema da reificao, de forma que no sobrou nenhum

    23 Utilizarei a mesma definio apresentada por lvaro Valls em seu trabalho: Privatier, [] (...) algum que no necessita desempenhar uma profisso, pois vive de rendas; no caso de Kierkegaard as rendas da fortuna acumulada pelo seu pai, que fora comerciante na capital. Sren Kierkegaard no seria, nesse caso, um trabalhador, mas tampouco seria um capitalista (no sentido empresarial). VALLS, lvaro L. M. Estudos de esttica e filosofia da arte: numa perspectiva adorniana. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS. p. 78.

    24 VALLS, lvaro L. M. Estudos de esttica e filosofia da arte: numa perspectiva adorniana. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, p. 80.

    25 VALLS, lvaro L. M. op. cit., p. 89.

  • 26

    vestgio ou possibilidade de que Adorno tenha alguma resposta para esse problema

    apresentado por Lukcs em Histria e Conscincia de Classe. Adorno comea a se aproximar

    de Marx, em quem ver o principal fundamento para sua definio madura de reificao.

    Quando Adorno apresenta sua aula inaugural, intitulada A atualidade da filosofia, ele debate e tematiza suas bases tericas, posicionando-as de forma original e, como marxista,

    afirma sua nova perspectiva filosfica. Sua justificativa consiste numa crtica crise do idealismo alemo, movimento filosfico em que a forma do pensar se constitua na

    composio sistemtica dos questionamentos sobre o sujeito e o objeto. No entanto, esta forma de pensar ainda se restringia maneira totalizante em que filsofos criavam sistemas

    fechados em si mesmos, os quais buscavam abarcar o todo. Para Adorno, esta perspectiva

    deve ser abandonada, porque, com a morte de Hegel, este movimento tido como idealismo

    alemo tambm chegou ao seu fim. As incongruncias que existiam nessas formas do pensar

    no cabiam mais neste sculo, pois assim como os paradigmas eram outros, as transformaes

    sofridas neste sculo estavam num ritmo frentico, movido tanto a eletricidade quanto pelo

    vapor das mquinas como principalmente pela diviso social do trabalho e da grande

    produo de mercadorias.

    O que est em jogo nesta reestruturao de Hegel a concluso de que um dos pressupostos do Idealismo Alemo, e do pensamento de Hegel, no se realizou: a

    reconciliao do homem consigo mesmo e com a natureza. O mundo con-temporneo est

    irreconciliado a liberdade no se realizou, a terra totalmente esclarecida resplandece sob o

    signo de uma calamidade triunfal (como se encontra na Dialtica do Esclarecimento). Toda e qualquer forma de filosofia, doravante, s pode apresentar-se como crtica social.

    Suposto, contudo eu dou um exemplo a modo de experimento intelectual, sem afirmar sua exeqibilidade de fato , suposto que seja possvel agrupar os elementos de uma anlise social de tal maneira que o seu contexto constitua uma figura, na qual sobressumido cada momento particular, uma figura que, decerto, no se encontra organicamente pronta, mas sim que deve vir a ser produzida: a forma da mercadoria.26

    Ou seja, o resultado do desdobramento de sua crtica, crtica esta feita tambm aos modos de produo, gerou uma nova forma de filosofar que comeou a ser constituda e que

    26 Apud VALLS, lvaro L. M. Estudos de esttica e filosofia da arte: numa perspectiva adorniana. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, p. 90.

  • 27

    ainda est em vigor hoje em dia, denominada teoria crtica.27 Uma teoria crtica que no procura mais a soluo do problema da coisa-em-si, mas que se debrua sobre a sociedade que est em processo de desenvolvimento, constituindo-se como uma nova forma de conhecimento cientfico. Assim, esta teoria [apareceu] como cientifica, por outro lado uma teoria filosfica, na medida em que ela no investiga, e sim interpreta.28 Assim, com a recusa das formas idealistas de conhecimento filosfico, como tambm a recusa de tentar trabalhar no problema da coisa-em-si, Adorno comea a se despedir do pensamento idealista e de sua apropriao lukacsiana, pois via nesta proposta uma soluo somente sociologizante e se aproxima finalmente de Marx, sob a influncia do amigo Benjamin, que tambm via o problema da mercadoria no s como um problema filosfico, mas tambm como histrico.

    Seu pensamento [de Adorno] pretende ser, em primeira linha, crtica: A interpretao da realidade encontrada previamente e a sua superao relacionam-se mutuamente. Sem dvida, a realidade no vem a ser superada no conceito: mas, a partir da construo da figura do real, segue-se prontamente a exigncia de sua mudana real. 29

    Apesar disso, uma passagem de Histria e Conscincia de Classe cabe aqui perfeitamente, tanto no reforo do posicionamento adorniano, quanto no nosso problema proposto.

    O homem no aparece, nem objetivamente, nem em seu comportamento em relao ao processo de trabalho, como o verdadeiro portador desse processo; em vez disso, ele incorporado como parte mecanizada num sistema mecnico que j encontra pronto e funcionando de modo totalmente independente dele, e cujas leis ele deve se submeter.30

    Segundo lvaro Valls, este sistema mecnico ao qual Lukcs se refere o idealismo fechado, pois somente analisa o indivduo como uma pea que est sempre sendo conduzida.

    27 Horkheimer em seu livro Eclipse da Razo define o termo teoria crtica como: A teoria crtica comea, pois, com uma idia relativamente geral de troca simples de mercadorias, representada por conceitos relativamente gerais. Pressupondo todo o conhecimento disponvel e assimilando todo o material resultante de pesquisas prprias e alheias, [procurando] mostrar como a economia de trocas nas condies atualmente dadas (...) conduz necessariamente ao agravamento das contradies na sociedade, o que em nossa poca atual leva as guerras e revolues. Apud FREITAG, B. A Teoria Crtica: ontem e hoje. So Paulo: Brasiliense, 2004, p. 39.

    28 VALLS, lvaro L. M. Estudos de esttica e filosofia da arte: numa perspectiva adorniana. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS. p. 91.

    29 VALLS, lvaro L. M. Estudos de esttica e filosofia da arte: numa perspectiva adorniana. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, p. 92-93.

    30 LUKCS, G. Histria e Conscincia de Classe. Trad. Rodnei Nascimento. So Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 203-204. A bem da verdade, Lukcs aqui est se referindo ao processo de reificao, tambm de forma crtica. Na concluso, ns retomaremos Marx para rediscutir possibilidades de sadas do processo de reificao.

  • 28

    O indivduo no tem vontade prpria para seguir suas diretrizes. Por isso, Adorno chama a ateno, na nota anterior, para uma exigncia de sua mudana real, na qual esta mudana s ter incio quando compreendermos que o adjetivo de mercadoria j foi imputado ao indivduo, assim como s obras de arte. Neste ponto, Adorno, atravs de Lukcs, chega at Marx, no qual o conceito de reificao se define como um problema abrangente da realidade social, realidade em que a forma da mercadoria subsumiu todos os outros aspectos sociais, ou, dito de outra maneira, onde a relao de troca substituiu as relaes sociais31. Quando Kant constituiu sua filosofia ele criou duas formas de entendimento da realidade. A primeira seria a realidade do sujeito, ou seja, a estrutura transcendente do sujeito, que este consistia nos conceitos a priori do entendimento, base nos quais o sujeito obtinha o conceito da realidade fenomnica, ou seja, do objeto (a segunda realidade). No entanto, Hegel constituiu seu sistema chamando ateno de Kant de que o sujeito no podia ter sua concepo de mundo a priori, fora do mundo espiritual, como Kant queria, pois o sujeito est inserido no prprio mundo, de modo que, se mantivssemos o posicionamento kantiano, seria impossvel apreender a realidade propriamente dita. Ento Hegel, junta o que Kant havia separado. Porm, esta juno feita por Hegel se constituiu ainda como problemtica, e aqui entra a crtica de Marx ao sistema hegeliano, pois Hegel no teriqa concebido nem vislumbrado que as relaes entre os indivduos, devido ascenso da mercadoria, no condiziam reconciliao do esprito consigo mesmo. A relao dos homens/indivduos entre si passou agora a ser uma relao de coisas, ou seja, o homem agora era visto como mercadoria. Ao invs de ele se relacionar consigo e com o outro indivduo, executa uma relao de troca. Relao esta que era e ainda governada pelas leis autnomas do mercado.

    No momento em que Adorno, assim como Marx, apreende esta realidade histrica, realidade vigente no seu momento histrico, o conceito de reificao ganha sua final definio:

    a mercadoria (...) se comporta como uma espcie de sujeito, pois se conserva, se reproduz, se fortalece e domina toda a sociedade, [ou seja toma para si o lugar do indivduo vivente da sociedade] de modo que podemos dizer que a sociedade dominada pela abstrao do valor-de-troca32.

    A mercadoria no mais simplesmente um produto, mas sim um ente personificado, com vida e movimento prprios.

    31 VALLS, lvaro L. M. Estudos de esttica e filosofia da arte: numa perspectiva adorniana. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, p. 94.

    32 Idem.

  • 29

    Quando as relaes sociais so determinadas pelas relaes de trocas, em que o indivduo no se relaciona mais diretamente com um outro indivduo, mas sim de forma indireta, atravs de mercadorias, vemos que o valor que as relaes sociais, culturais e at mesmo de conhecimento tinham at este momento, agora no passam de relaes reificadas. Tem-se a, um consumo que no adiciona, mas aliena e subtrai. Todo o potencial que cada indivduo poderia ter, ou vir a executar, ter sempre um sentido vazio tanto para o sujeito que o produz quanto para o indivduo que o apreende. Como a mercadoria se comporta como um organismo vivo, ela necessita consumir coisas para que se mantenha viva. E

    o seu principal alimento ser a liberdade do indivduo, pois como as relaes de trocas passam a ser agora a motivao para que o indivduo se relacione com o outro, a alienao do indivduo, que se v coagido a consumir e no mais produzir nada de forma livre, far este indivduo depender mais ainda das mercadorias para viver.

    [Quando] o trabalhador livre do capitalismo, que vende sua fora de trabalho, torna-se mercadoria, de tal maneira que a prpria mercadoria como produto apenas sua prpria atividade, tornada objetiva lhe aparece como uma fora estranha que o enfrenta e domina, deixando-o impotente diante dela. 33

    Dessa forma, vemos que a condio de reificao do indivduo se apresentou a ns como um movimento quase que natural, na formao do Capitalismo Tardio. No momento em que as relaes sociais sofreram modificaes, irremediveis at os dias de hoje, vemos que tais modificaes no se limitaram ao reduto da mercadoria. Ela ganhou propores que atingiram tambm a esfera da arte.

    Fez assim, com que a capacidade de expresso artstica do indivduo e, em se falando de uma anlise dos trabalhos de Adorno, o compositor musical, na qual este que se utilizava da arte, ou seja, da msica para retratar de forma mimtica sua realidade, esta capacidade foi bloqueada e/ou at mesmo anulada pelas formas de produo em srie, ou pela ideologia da indstria cultural.

    Todavia, nem tudo foi reificado. O prprio maquinrio da reificao viu o seu aparente limite. Ainda possvel reverter este problema, utilizando um caminho esttico. No to similar quanto o proferido por Schiller em suas cartas A educao esttica e moral do homem,

    33 VALLS, lvaro L. M. Estudos de esttica e filosofia da arte: numa perspectiva adorniana. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, p. 94.

  • 30

    mas atravs de categorias que possam fazer com que o indivduo saia dessa condio de reificao que lhe foi imputada, expressando-se livremente.

    Adorno apresenta uma proposta esttica para o presente problema da subjetividade inexpressiva do indivduo como um sujeito reificado. Esta proposta, que se apresenta ao longo de seu trabalho filosfico e a qual seguiremos fazendo uma anlise, ser apresentada em dois momentos. No primeiro momento consta a denuncia que o autor fez em seu ensaio Sobre o Fetichismo da Msica e a Regresso da Audio. Alm ser uma rplica ao ensaio de Benjamin A Obra de Arte na era da sua Reprodutibilidade Tcnica, este ensaio adorniano destaca o surgimento da tcnica como ferramenta de uso artstico no meio musical, apresenta o problema das formas imanentes das obras de arte, cujo ambiente serve de contraponto subjetividade inexpressiva do indivduo e reflete sobre como o indivduo se encontra a cada dia mais oprimido e mais alienado pela indstria do entretenimento. No segundo momento, analisaremos o texto de 193834 que nos conduz, atravs da crtica a uma nova perspectiva. Este trabalho nos mostra a potencialidade da crtica das obras de artes como possibilidade de libertao da subjetividade do indivduo. Alm disso, Adorno, nesta anlise, nos apresenta duas novas categorias: a de expresso e a de comunicao.

    34 1938 foi a data da publicao do ensaio Fetichismo na Msica e a Regresso da Audio.

  • 31

    2.3 Expresso: uma categoria da dialtica adorniana

    Adorno, no desenvolvimento de suas questes, props uma categoria para que pudesse desenvolver uma futura sada, dialtico-esttica, para o problema da inexpressividade do indivduo na sociedade administrada. A esta categoria ele denominou de expresso (Ausdruck).

    No entanto, antes de compreendermos o que vem a ser expresso, gostaramos de apresentar, primeiramente, uma definio dada por Rodrigo Duarte ao conceito adorniano, com o objetivo de ampliar nosso entendimento sobre essa categoria.

    O termo Ausdruck (expresso), cujo equivalente latino expressione, denota igualmente bem no alemo o sentido de algo que est como comprimido (gedrckt), latente, e encontra uma sada (Ausgang), por onde rapidamente passa, ocasionando como que uma pequena exploso.35

    Em Adorno, o termo expresso, apresentado em sua obra Filosofia da Nova Msica e somente teorizada na Teoria Esttica no tem uma definio literal exata. Ela se apresenta ao longo de toda a obra, tanto na explicao do que ele entende por obra de arte, da funo da obra de arte, como tambm da funo desta mesma categoria para dizer o que as obras de arte realmente manifestam. Para ns e cremos tambm para Adorno, na Teoria Esttica, o ponto central da sua definio de expresso se encontra nesta curta frase, de carter completamente profundo e conciso: A substncia da expresso o carter lingstico da arte, fundamental-mente diverso da linguagem como o seu medium.36 O que ele diz com esta frase nos remete definio benjaminiana de linguagem em seu texto Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana, em que a ao de nomear as coisas, inicialmente se define por uma orientao para a comunicao de contedos intelectuais, nos referidos domnios: na tcnica, na arte, na justia ou na religio.37 E Benjamin diz:

    35 DUARTE, Rodrigo. Expresso como Fundamentao, in Adornos: nove ensaios sobre o filsofo frankfurtiano. Belo Horizonte: Ed. UFMG. 1997, p. 176

    36 ADORNO. T. W. Teoria Esttica. Trad. Artur Moro. Lisboa: Edies 70, 1970, p. 132. necessria uma preciso aqui; Walter Benjamin diz que a linguagem como medium comunicativa. Para Adorno, entretanto, embora expresso seja uma categoria lingustica, furta-se comunicao. O restante do texto busca desenvolver esta diferena.

    37 BENJAMIN, Walter. Sobre a linguagem em geral e a linguagem humana. In: Sobre arte, tcnica, linguagem e poltica. Lisboa: Relgio Dgua Editores, 1992, p. 177.

  • 32

    Que comunica a linguagem? Comunica a essncia espiritual que lhe corresponde. fundamental saber que esta essncia espiritual se comunica na linguagem e no atravs da mesma. No h, pois, o falante de lnguas, se com isso nos referimos quele que se comunica atravs dessas lnguas. A essncia espiritual comunica-se na lngua e no atravs dela, ou seja, de fora no idntica essncia lingstica. A essncia espiritual idntica lingstica s na medida em que comunicvel. O comunicvel numa essncia espiritual sua essncia lingstica. A linguagem comunica, pois, a respectiva essncia lingstica das coisas, mas a sua essncia espiritual s a comunica na medida em que esta seja imediatamente contida na essncia lingstica, na medida em que comunicvel 38.

    Adorno apresenta sua definio de expresso referindo-se definio benjaminiana de linguagem como medium (linguagem comunicativa). A expresso que as obras de arte portam , entretanto, uma expresso muda, que se comporta de modo diverso do que as coisas quando querem comunicar algo, segundo Benjamin. As obras de arte expressam o seu contedo sem utilizarem a prpria linguagem como medium comunicativo. Acontece aqui o corte entre a definio de linguagem de Benjamin e a definio de expresso de Adorno, pois a comunicao no capitalismo tardio, para Adorno, linguagem reificada. Com isso, somos obrigados a introduzir o conceito adorniano de comunicao (Kommunikation) distinguindo-o do conceito de linguagem como medium de Benjamin. Para este, a linguagem como medium a linguagem comunicativa, ainda que muda, que existe entre as coisas do mundo e ns, os sujeitos; para Adorno, a comunicao existente socialmente a linguagem reificada de uma sociedade tambm reificada. Por isso, a arte nova esfora-se pela transformao da linguagem comunicativa numa linguagem mimtica. Em virtude do seu carter ambguo, a linguagem o constituinte da arte e o seu inimigo mortal.39

    Ento, de acordo com este entendimento, definimos expresso, de acordo com Adorno (e a observao de Rodrigo Duarte), como um esforo que existe e se pe, como movimento de exteriorizao, na e pela subjetividade do indivduo, de forma pura e simples, atravs de

    38 BENJAMIN, Walter. op.cit., p. 179. 39 ADORNO, T. W. Teoria Esttica. Trad. Artur Moro. Lisboa, Edies 70, 1970, p. 132. Deve-se atentar para

    a compreenso adorniana de mmesis. Tradicionalmente, o conceito de mmesis foi compreendido como imitao da realidade. Mas, para Adorno, na poca do capitalismo tardio, a imitao da realidade a imitao do que est j h muito reificado. Assim sendo, h que se dar um novo sentido ao conceito de mmesis que no o de mera imitao. A mmesis um movimento imanente s prprias leis-da-forma. Uma obra de arte autntica (como, por exemplo, aquelas no submetidas Indstria Cultural) mantm uma relao de denncia para com a realidade exterior, apresenta-se de forma refratria para com o meio que a circunda e, por isso, pode ser autnoma, pois obedece somente s suas prprias leis. Mas este processo no deixa de ser ambguo pois a obra de arte deve ser linguagem (linguagem expressiva) e tambm furtar-se linguagem social (comunicativa) que, por ser reificada, inimiga da expresso e da autonomia da obra de arte. A arte fecha-se, mediante a expresso, ao ser-para-outro que avidamente a devora e fala em si: tal o comportamento mimtico da arte. A sua expresso o contrrio da expresso de alguma coisa (ADORNO, T. W. Teoria Esttica, op. cit., p. 132). Esta tenso uma das possibilidades de a arte ainda apresentar-se como crtica da sociedade, tal como a teoria tambm o faz.

  • 33

    uma linguagem imanente prpria forma-arte, fazendo com que a objetividade das obras de arte exponha o conhecimento do real de forma negativa.

    Uma obra de arte (autntica) permite expressar aquilo que encoberto pela ideologia; nisto consiste sua grandeza40. No mesmo sentido, diz Adorno: o contedo social das obras de arte, frente a formas de conscincia convencionais e esclerosadas, reside exatamente no protesto contra a recepo social (...) essa mesmo a regra no caso das obras autnomas41. Expresso , portanto, diferen-temente da comunicao, algo que a obra de arte (autntica) traz consigo, mas que no se submete realidade e que, alm disso, permite decifrar algo desta realidade. Assim como a teoria permite um conhecimento da realidade, a arte tambm o faz; a diferena que tal conhecimento alcanado pela obra de arte se faz mediante uma mediao interna.

    O que eu (...) chamei de mediao no (...) o mesmo que comunicao. (...) De acordo com isso, a mediao est na prpria coisa, no sendo algo acrescido entre a coisa e aquelas s quais ela aproximada. S este ltimo elemento que , porm, entendido como comunicao.42

    Podemos dizer, ento, que uma obra de arte exprime algo que no pode ser comunicado; assim fazendo, determina algo sem confundir-se com este. Todavia, esta determinao pode ser concebida de duas formas; determinao fraca e impotente, que no consegue se apresentar ou se expressar, de forma correta, em que o seu teor de verdade no se realiza por completo, resultando numa forma reificada, seja ela de conhecimento, de obra de arte e de representao do indivduo; e a determinao adequada ou de teor de verdade, determinao esta que se realiza atravs da expresso propriamente dita, atravs da crtica, com o objetivo de passar o teor de verdade do conhecimento, das obras de arte, da subjetividade e da realidade em que se encontra o indivduo.

    Esta determinao, a da expresso, no se limita mera aparncia (blosse Schein), pois a mera aparncia ainda se apresenta como uma determinao fraca e sem teor de verdade, de forma que a ligao existente entre a determinao da subjetividade do indivduo e a realidade

    40 ADORNO, T. W. Conferncia sobre Lrica e Sociedade. in BENJAMIN, HABERMAS, HORKHEIMER, ADORNO. Obras Escolhidas. Trad. Jos Lino Grnnewald et al. So Paulo: Abril Cultural, 1975, p. 203. (Os Pensadores)

    41 ADORNO, T. W. Teses sobre sociologia da arte. in THEODOR ADORNO. Sociologia. Gabriel Cohn (org.). So Paulo: Atica, 1986, p. 110-111. (Grandes Cientistas Sociais, 54)

    42 ADORNO, T. W. Conferncia sobre Lrica e Sociedade, op. cit., p. 114.

  • 34

    determinada, que seria a realidade social, se apresenta sempre com uma determinao reificada tanto do indivduo quanto da realidade social.

    Segundo Adorno, a mera aparncia que as obras de arte reificadas at ento possuem, simplesmente a determinao impotente que o sujeito alienado determinado tenta novamente executar, mas sem muito xito, gerando, assim, os bens culturais industrializados. Por isso, neste contexto, as obras de arte industrializadas tm caractersticas de mera aparncia, pois so dotadas somente de matria e desprovidas de forma-esttica autnoma, tornando-se, assim, simples produtos de consumo mercantil. Mas porque isso ocorre? Porque a realidade social, ou seja, o enunciado do contedo, j est reificado43. Se ele est reificado, a repetio, enunciado da forma, resulta em mero produto de consumo e se precipita ao se relacionar com o contedo. Nessa precipitao, a forma pretensamente esttica do bem cultural, sempre apresenta o mesmo contedo, ainda que este esteja com uma roupagem ou configurao nova. Ao afirmar esta nova configurao, a refrao que deveria ocorrer entre a forma esttica e o contedo social no ocorre, pois como se forma e contedo ainda se co-pertencessem. Forma e contedo ainda so os mesmos. A primeiro o mero produto de consumo, enquanto o segundo a realidade social reificada, que nega o indivduo. O reflexo distoante esperado entre forma e contedo no executado. Em consequncia, a denncia que a crtica deveria fazer da reificao do indivduo no acontece; logo, a obra de arte no pode, em sua determinao social, realizar a dialtica entre a subjetividade autnoma do indivduo e a realidade social heternima, condenando-se a sempre reproduzir o mesmo material sem forma, ou pior, reproduzir o mesmo material sempre como se fosse novo, prolongando assim o vasto caminho de degradao em que a arte se encontra na sociedade administrada.

    por isso que Adorno inicia uma imensa jornada contra as formas de arte reificadas, pois elas tambm esto presas e destinadas a no constiturem qualquer teor de verdade (Warheitgehalt),44 ficando merc do mau uso da indstria cultural. Mesmo que, de alguma

    43 Forma contedo precipitado, diz Adorno em Filosofia da Nova Msica (ADORNO, T. W. Filosofia da Nova Msica. Trad. Magda Frana. So Paulo: Perspectiva, 1978, p. 42).

    44 O conceito de teor de verdade um conceito benjaminiano que foi apropriado por Adorno no desenvolvimento da sua Teoria Esttica e principalmente no seu posicionamento crtico. Este conceito um dos principais conceitos de todo o corpo filosfico do Benjamin, porque ele fundamenta a crtica, ou o modo de constituir a verdade das coisas, do mundo etc. No entanto, ainda muito complexo afirmar onde, no corpo filosfico do Benjamin, est estritamente este conceito. Contudo, sabemos que o foco central deste conceito se encontra precisamente em duas obras, As Afinidades Eletivas de Goethe e na Origem do Drama Barroco Alemo. Jeanne Marie Gagnebin e Marcos Nobre dedicaram-se em abrir mais a compreenso desta terminologia do benjaminiana em seus trabalhos (ver GAGNEBIN, J. M. A propsito do conceito de crtica em Walter Benjamin. Discurso 13, 1983, p. 228 e seguintes e NOBRE, M. A Dialtica Negativa de Theodor W. Adorno: A Ontologia do Estado Falso. So Paulo: Iluminuras, 1998, p 72 e seguintes.)

  • 35

    forma, estas obras de arte ainda contenham algum teor de verdade, o indivduo no ser capaz de apreend-lo, porque os indivduos reificados so ou esto alienados, no estando aptos a ouvir o que as obras de arte cantam.

    Foi por isso que Adorno utilizou a categoria dialtica da expresso, como uma sada para se combater a mera aparncia esttica, vigente nas obras de arte reificadas, na tentativa de conectar criticamente a subjetividade autnoma do indivduo sua realidade social reificada. Nesta tentativa de conexo, a expresso combate a mera aparncia das obras de arte. No entanto, uma condio deve ser respeitada. Sempre que se for combater a mera aparncia das obras, denunciando sua falsidade, nunca devemos iniciar este embate enfraquecido, pois:

    O desdobramento da arte desdobramento de um quid pro quo [sem o qual a expresso no executaria sua funo]: a expresso, pela qual a experincia no esttica penetra profundamente nas obras, torna-se imagem originria de tudo o que fictcio na arte, como se no lugar onde ela mais permevel, relativamente experincia real, a cultura velasse de modo mais rigoroso o possvel pela no violao da fronteira. Os valores expressivos das obras de arte deixam de ser imediatamente os do vivo. Quebrados e modificados, tornam-se expresso da prpria coisa (Sache): o termo de msica ficta j h muito quis disso dar testemunho. Esse quid pro quo no neutraliza apenas a mimese; dela procede igualmente. Se o comportamento mimtico no imita alguma coisa, mas se lhe faz semelhante a si mesmo, as obras de arte tomam a seu cargo o seu cumprimento. Na expresso, no imitam as emoes de indivduos humanos, e sobretudo no as dos seus autores; ao definirem-se essencialmente deste modo so vtimas, justamente enquanto cpias, da objetivao contra a qual resiste o impulso mimtico. Na expresso artstica, leva-se simultaneamente a cabo o juzo histrico sobre a mimese enquanto comportamento arcaico: a saber, praticado imediatamente, ela no um conhecimento; o que se faz semelhante no se torna semelhante; a interveno da mal sucedida tudo isso a exila para a arte que se comporta mimeticamente, da mesma maneira que ela absorve a objetivao desse impulso a crtica que lhe feita.45

    Assim, devemos sempre interpretar a expresso da arte de modo filosfico embasados sempre na crtica histrica, e tendo como meta um compromisso bastante srio, de modo a poder apostar em solues futuras. Com esta interpretao, abrimos a porta para podermos fazer a mediao entre a subjetividade e a realidade social, quebrando deste modo a linguagem da mercadoria e do consumo vigente nesta sociedade, em que a relao indivduo reificado mercadoria indivduo reificado imposta, modificada para uma nova linguagem que se dar na nova relao entre indivduos que ser indivduo expresso indivduo.

    Com este modelo a-sistemtico, pois a proposta de Adorno no a retomada do sistema hegeliano46, mas sim sua correo, novamente poderemos pensar numa sada para a

    45 ADORNO, T. W. Teoria Esttica, op. cit., p. 130-131. 46 Porque justamente o momento histrico outro, fazendo com que o modelo sistemtico no se encaixe e nem

    cristalize tal procedimento. sempre livre.

  • 36

    fetichizao do indivduo, visando agora o prprio carter social, pois em contrapartida com o sistema hegeliano, esta relao se d da determinao da subjetividade do indivduo para a realidade social, e no o contrrio. Acaba sendo mais ou menos o que Marx fez antes com o sistema hegeliano; dessa vez a inverso feita pelo prprio Adorno.

    No entanto, para que possamos viabilizar o movimento desta categoria dialtica e tambm desta dialtica, no corpo filosfico dos trabalhos de Adorno, necessrio tambm apresentar e explicar outras caractersticas que compem esta relao. Como anteriormente falamos sobre a mera aparncia, devemos agora explicar o que vem a ser a aparncia esttica propriamente dita e a caracterstica da mmesis, subcategorias importantes para o desenvolvimento da relao dialtica que a expresso porta.

    Se j entendemos que a mera aparncia a determinao fraca e sem contedo significativo da determinao da subjetividade do indivduo e da realidade determinada, a aparncia esttica, essencial para o desenvolvimento da categoria de expresso e para o desdobramento da verdade contida nas obras de arte, ser a determinao do teor de verdade, composta de forma e contedo que possibilitar a ligao entre a determinao da subjetividade do indivduo com a realidade determinada. O objetivo o de servir de respaldo para a obteno do conhecimento contido nas obras de arte, atravs de uma expresso dialtico-negativa pelas prprias obras. Contudo para que a aparncia esttica se mantenha de forma a conseguir completar a sua relao existente com a expresso, seu processo de concepo dever ser contrrio ao processo hegeliano, em que a aparncia se converte em essncia. Em Adorno, a aparncia, no se converte em essncia, pois a identidade de essncia de apario to pouco acessvel arte como o conhecimento do real47. Porque se esta relao for uma relao de identidade, a arte como o conhecimento do real, no poder ser alcanada pela crtica impossibilitando, assim, a prpria crtica em obter xito em sua fundamentao e ainda nos levando a cair numa repetio do posicionamento hegeliano sobre a concepo de aparncia, deixando de lado o posicionamento adorniano que critica o movimento classicista em questo.

    Reforando um pouco mais nosso posicionamento, chamo aqui uma frase, que em uma leitura desatenta da obra Filosofia da Nova Msica, acaba por no surtir muito efeito na compreenso da obra. Quando Adorno fala: Todas as formas da msica, no s a do

    47 ADORNO, T. W. Teoria Esttica, op. cit., p. 129.

  • 37

    expressionismo, so contedos precipitados48, o autor apresenta de forma concisa e compacta todo o problema que existe entre forma e contedo, como tambm o da aparncia esttica e da mera aparncia esttica. Ao justificar que forma contedo precipitado, ele apresenta a crise existente no mbito da arte, que no consegue se expressar adequadamente. No entanto, este momento de crise excelente para a modificao da situao do indivduo reificado, porque ao denunciar o problema que ocorre categoria da expresso, a crtica se afirma como nica possibilidade de sada desta situao. Ela no pode ser corrompida pela administrao total, porque no consegue ser uniformalizada. Ao ser no-uniformalizada, ela se mantm isenta, dentro da prpria sociedade, possibilitando assim a sada do indivduo de sua condio de reificao e estabelecendo novamente o movimento dialtico-negativo que este indivduo deve ter para com a realidade social.

    Por isso, a determinao da aparncia, na concepo de Adorno, dever se compor da seguinte maneira. O que deve vir tona na aparncia esttica o conhecimento extrado da crtica de maneira dialtico-negativa, em que esta para ser efetivada surgir do prprio sujeito num momento de negao por ele mesmo, da objetivao de sua subjetividade. Quando o sujeito faz este percurso, ele eleva o seu esprito a uma posio em que o separa do corporal, tornando-se um no-ente, em abstrato, para poder determinar o seu momento de verdade, fazendo-o assim, extrair das obras de arte o seu conhecimento codificado.

    O momento do seu no-ser e da sua negatividade penetra nas obras de arte que, sem dvida, no fazem do esprito algo de imediatamente sensvel, no o fixam, mas s se tornam esprito atravs da relao recproca dos seus elementos sensveis. Por isso, o carter de aparncia da arte ao mesmo tempo a sua mthesis na [participao da] verdade. 49

    Desta forma, vemos que a aparncia esttica, caracterstica importante para a

    realizao da expresso, tem conotao distinta da apresentada por Hegel em sua filosofia. Se fosse a mesma, a concepo de superao do movimento dialtico-esttico hegeliano estaria equivocada nos pondo assim em mais uma extenso da proposta hegeliana que, neste contexto contemporneo, no alcanaria o xito que Adorno procura.

    Sobre a subcategoria da mmesis, para que possamos compreender sua funo e sua definio, devemos recorrer definio originria, que o autor buscou em Aristteles.

    48 ADORNO, T. Filosofia da Nova Msica. op. cit., p. 42. 49 ADORNO, T. W. Teoria Esttica, op. cit., p. 128.

  • 38

    De acordo com Aristteles, podemos entender mmesis como a forma mais verossimilhante possvel em que o homem apreende a realidade que o cerca. Na mmesis, cuja definio mais simples se encontra na palavra imitar, o homem reproduzir suas aes, sejam elas boas ou ms, da forma mais prxima possvel da realidade que est sendo representada, com o objetivo de elucidar algum conhecimento sobre o homem.

    A mmesis se constitui na produo de outro saber que, ligado realidade, no provoca o mesmo efeito que ela, justamente porque no a duplica. Enquanto produto e produo, ela pode ser encarada como fico, portanto, no poder mais ser julgada pelos critrios da verdade do ser, mas sim pelos critrios de verdade do no-ser, (...) ela no poder ser julgada por critrios estranhos ou externos a si.50

    No entanto, o que importar para Adorno desta categoria aristotlica ser a sua referncia existente entre o no-ser do homem, considerado como a negao do que tido como verdade na realidade, acabando por alcanar outra verdade.51 e o seu resultado, o ser do homem. Por qu? Quando Marx afirma na 6 Tese sobre Feuerbach que a essncia humana no uma abstrao inerente ao indivduo. [Mas] (...) sua realidade, o conjunto das relaes sociais52, este apresenta a dialtica existente entre homem e mercadoria. O homem, conjunto de suas relaes sociais, interage com a mercadoria, o objeto, se reificando, ou seja, se tornando tambm objeto de consumo, para poder saciar seus desejos e fantasias, para depois novamente se tornar homem, usufruindo desse modo o objeto desejado j pertencente, ou subjetivado no homem. No entanto, o problema est justamente aqui, porque as prprias relaes sociais j esto reificadas. O homem j objeto e o ser j no-ser.

    A recuperao dada por Adorno ao elemento mimtico aristotlico ser a de uma considerao da produo artstica como um lugar de exposio da verdade que no previamente concebida como verdadeira atravs de regras especficas existentes. Porque como:

    Em Adorno, a mmesis produz uma verdade contrria pretensa pela filosofia. O que permanece (...) no o modo de relao entre o saber artstico e conhecimento filosfico, relao que naquela subordinada a arte filosofia e nesta sustenta a tenso entre elas mas a questo do sentido produtivo da mmesis e do espao ficcional de uma obra de arte como lugar de exposio de um contedo de verdade no definido por uma outra verdad