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Dois Caminhos Para o Capitalismo Dependente Brasileiro- o Debate Entre Fernando Henrique Cardoso e Ruy Mauro Marini

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  • UFRJ

    DOIS CAMINHOS PARA O CAPITALISMO DEPENDENTE BRASILEIRO:

    O DEBATE ENTRE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO E RUY MAURO MARINI

    Adolfo Wagner

    Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa

    de Ps-graduao em Cincia Poltica, Instituto de

    Filosofia e Cincias Sociais, da Universidade Federal

    do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos

    necessrios obteno do ttulo de Mestre em

    Cincia Poltica.

    Orientador: Aluzio Alves Filho

    Rio de Janeiro

    Junho de 2005

  • ii

    DOIS CAMINHOS PARA O CAPITALISMO DEPENDENTE BRASILEIRO:

    O DEBATE ENTRE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO E RUY MAURO MARINI

    Adolfo Wagner

    Orientador: Aluzio Alves Filho

    Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao em

    Cincia Poltica, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais, da Universidade Federal do

    Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo

    de Mestre em Cincia Poltica.

    Aprovada por:

    ___________________________________

    Presidente, Prof. Aluzio Alves Filho

    ___________________________________

    Prof. Andr Pereira Botelho

    ___________________________________

    Prof. Antonio Celso Alves Pereira

    Rio de Janeiro

    Junho de 2005

  • iii

    Wagner, Adolfo.

    Dois caminhos para o capitalismo dependente brasileiro: o debate entre Fernando Henrique Cardoso e Ruy Mauro Marini/ Adolfo Wagner. Rio de Janeiro: UFRJ/ IFCS, 2005.

    xi, 165f.: 30 cm.

    Orientador: Aluzio Alves Filho.

    Dissertao (mestrado) UFRJ/ IFCS/ Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica, 2005.

    Referncias Bibliogrficas: f.151-155.

    1. Capitalismo. 2. Cientistas brasileiros. 3. Teoria da dependncia. 4. Intelectuais. 5. Amrica Latina. I. Alves Filho, Aluzio. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Cincias Sociais/ Programa de Ps-graduao em Cincia Poltica. III. Dois caminhos para o capitalismo dependente brasileiro: o debate entre Fernando Henrique Cardoso e Ruy Mauro Marini.

  • iv

    RESUMO

    DOIS CAMINHOS PARA O CAPITALISMO DEPENDENTE BRASILEIRO:

    O DEBATE ENTRE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO E RUY MAURO MARINI

    Adolfo Wagner

    Orientador: Aluzio Alves Filho

    Resumo da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao

    em Cincia Poltica da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos

    requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Cincia Poltica.

    Este trabalho tem por objetivo situar historicamente o debate realizado por dois

    dos mais expressivos cientistas sociais brasileiros durante a dcada de 70. Em

    questo, as possibilidades para o desenvolvimento capitalista nos paises latino-

    americanos e, particularmente, no Brasil. Fernando Henrique Cardoso e Ruy Mauro

    Marini posicionando-se, a princpio, no interior de uma mesma arena intelectual a

    teoria da dependncia desenvolvero, em suas trajetrias, leituras e posies muito

    diferenciadas e at mesmo antagnicas sobre o tema. Nosso objetivo interpret-las,

    inserindo-as na totalidade histrica da qual seus autores fazem parte, verificando seus

    pontos socais de vista e horizontes intelectuais e polticos.

    Palavras-chave: capitalismo, cientistas brasileiros, teoria da dependncia, intelectuais, Amrica Latina.

    Rio de Janeiro

    Junho de 2005

  • v

    ABSTRACT

    DOIS CAMINHOS PARA O CAPITALISMO DEPENDENTE BRASILEIRO:

    O DEBATE ENTRE FERNANDO HENRIQUE CARDOSO E RUY MAURO MARINI

    Adolfo Wagner

    Orientador: Aluzio Alves Filho

    Abstract da Dissertao de Mestrado submetida ao Programa de Ps-graduao

    em Cincia Poltica da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos

    requisitos necessrios obteno do ttulo de Mestre em Cincia Poltica.

    This research aims to historically situate the debate between two of the most

    outstanding brazilian social scientists during the 70s decade. The possibilities for

    capitalism development in the latin-american countries, particularly in Brazil, are being

    pointed out. Fernando Henrique Cardoso and Ruy Mauro Marini, at first, positioning

    themselves in the same intellectual arena the dependence theory will develop in

    their trajectories very different and even antagonic opinions about the theme. Our

    objective is to interpret and insert them in the hole historical context, of which the

    authors are part, verifying theirs social points of view and intellectual and political

    horizons.

    Key words: capitalism, brazilian scientists, dependence theory, intellectuals, Latin

    America.

    Rio de Janeiro

    Junho de 2005

  • vi

    AGRADECIMENTOS

    Esta dissertao foi fundamentalmente o resultado do exerccio de duas qualidades:

    pacincia e perseverana. Qualidades, estas, postas prova no por mim, mas por

    aqueles que me cercam. Gostaria de listar aqui todos e todas que contriburam

    direta ou indiretamente para que esse dia chegasse. Mas so muitos os nomes e

    receio acabar cometendo algum ato de injustia por esquecimento. De uma forma

    geral, gostaria de pedir desculpas pela ausncia e agradecer pela compreenso que

    tiveram, sabedores que so da minha capacidade em adiar o urgente.

    Quero, porm, utilizar este espao para alguns agradecimentos especiais.

    Em primeiro lugar, ao professor Aluzio Alves Filho, orientador dessa

    dissertao, que sem sua insistncia no chegaria ao fim.

    Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Cincia Poltica

    (PPGCP/IFCS) pela convivncia e a pacincia que tiveram com todos ns.

    Ao professor Theotonio dos Santos, pela cordialidade com que me recebeu

    em sua casa e pelo testemunho que fez sobre tempos passados e presentes, que

    tanto nos ajudou em nossa dissertao.

    s direes, colegas e alunos da EM Joaquim da Costa Ribeiro e EM Sandro

    Moreira, pela pacincia com que lidaram com minhas ausncias.

    Mrcia Guerra, a quem devo muito e um pouco mais, sempre a me

    mostrar a luz no final do tnel.

    Ded, Vav, Ana e Carmem, com quem minhas dvidas vm desde os

    tempos da graduao.

    A Chico e Prola, por me ensinarem um pouco de tudo nesses anos que

    passaram.

    A vocs, obrigado por tudo.

  • vii

    A Csar e Ivone, por me permitirem o aprender em liberdade.

    Lu e Aninha,

    pelo carinho e pela pacincia que nunca faltaram.

    Ao Gabriel e ao Joo Pedro, afirmaes de vida e esperana.

    A todos que insistem e persistem na velha idia

    de conhecer o mundo para transform-lo.

  • viii

    LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 Diferenas entre o mximo e o mnimo da produo industrial,

    antes e durante a recesso nos principais pases imperialistas 96

    Tabela 2 Mximo de desemprego durante a recesso de 1974/1975 97

    Tabela 3 Taxa de alta do custo de vida nos principais pases

    imperialistas 98

    Tabela 4 Dficits do balano de pagamentos de pases dependentes e

    semicoloniais em 1974 (em bilhes de dlares) 101

    Tabela 5 Concentrao da Renda no Brasil (1960-1976) 107

    Tabela 6 Salrio Mnimo e Alimentao Mensal Mnima: Tempo de

    Trabalho Necessrio Para a Compra da Rao Alimentar

    Mnima (Definida pelo Decreto-Lei 399 de 30 de abril de 1938)

    Mdia por Ano 108

  • ix

    SUMRIO

    Introduo 1

    Captulo 1. Preliminares metodolgicas 4

    A determinao social do conhecimento

    O positivismo e a naturalizao do mundo

    Max Weber e a cincia axiologicamente neutra

    Cincia e ideologia na perspectiva de uma sociologia crtica do

    conhecimento

    Viso social de mundo, ideologia e utopia

    Os princpios para o conhecimento cientfico

    A posio do intelectual na sociedade de classes

    Captulo 2. A arena intelectual do debate entre Cardoso e Marini 18

    Os antecedentes tericos e histricos da Teoria da Dependncia

    A Cepal e a Teoria do Subdesenvolvimento

    A Teoria do Subdesenvolvimento em Celso Furtado

    O PCB e a revoluo democrtico-burguesa

    A Teoria da Modernizao

    W.W. Rostow e as etapas do desenvolvimento econmico

    A Aliana para o Progresso: desenvolvimento ou contra-

    insurgncia?

    Gino Germani e a modernizao da Amrica Latina

    A Teoria da Dependncia

    Captulo 3. O mundo e o Brasil no final da dcada de 70 83

  • x

    Os marcos tericos para a anlise da conjuntura dos anos 70

    Os ciclos e as ondas longas

    Algumas tendncias do processo de acumulao sob o capitalismo

    tardio

    A crise recessiva internacional de 1974/75

    Outros aspectos da conjuntura internacional do perodo

    A crise do regime ditatorial brasileiro e os caminhos da transio

    O Brasil do Milagre

    A crise da ditadura militar e a poltica de distenso outorgada

    As cincias sociais no Brasil na virada da dcada de 70

    Captulo 4. Marini e Cardoso: Duas vises sobre o capitalismo

    brasileiro 119

    Duas trajetrias contrastantes

    Fernando Henrique dos bancos da Universidade de So Paulo para o

    Movimento Democrtico Brasileiro

    Ruy Mauro Marini uma vida em militncia e exlio

    A Dialtica da Dependncia: uma interpretao marxista do capitalismo

    dependente

    A crtica e a crtica de Fernando Henrique Cardoso

    As razes do neodesenvolvimentismo uma rplica sem trplica

    Concluso 147

    Referncias bibliogrficas 151

  • Introduo

    A indagao que originou essa dissertao de mestrado data do perodo em que

    cursvamos o bacharelado em Cincias Sociais da Universidade Federal do Rio de

    Janeiro - UFRJ. O ano era 1994, quando Fernando Henrique Cardoso venceu as

    eleies presidenciais. A frente partidria que sustentava sua candidatura era

    articulada em torno de uma plataforma marcada pelas propostas de reforma

    neoliberal e composta por um arco de agremiaes entre as quais configuravam

    aquelas cujos principais representantes haviam desempenhado importante papel na

    sustentao do regime ditatorial instalado no pas com o golpe militar de 1964.

    poca, como muito outros estudantes, ns perguntvamos se havia relaes entre

    as posies adotadas pelo recm eleito presidente da Repblica e as historicamente

    defendidas pelo socilogo. Ser que havia algum fundo de verdade na frase

    atribuda a Fernando Henrique Cardoso que teria dito: esqueam tudo o que

    escrevi? Ou o novo presidente estava apenas dando conseqncia ao que j

    afirmava antes em seus livros?

    Originalmente nossa inteno era a de investigar a trajetria intelectual do

    socilogo-presidente e buscar elementos que permitissem compreender se

    concretamente existia um deslocamento entre as suas posies de outrora e as de

    ento. Vamos nesse esforo a possibilidade de tentar compreender o

    comportamento de um conjunto de intelectuais que pareciam ter se movimentado

    de forma bastante parecida a do presidente.

    O tempo, porm, foi nosso adversrio e nos demos conta de que a inteno

    era por demais ousada. Optamos por delimitar e precisar um perodo sobre o qual

    desenvolveramos a pesquisa. Foi ento que no ano de 2002 tivemos acesso aos

    textos nos quais Ruy Mauro Marini polemizava com Cardoso sobre as possibilidades

    de desenvolvimento das economias capitalistas dependentes. Em uma reunio de

    orientao acabamos nos definindo pelo recorte que deu origem a este trabalho.

  • 2

    Um debate sempre um momento de revelao. Na contenda as posies

    de uns e outros se tornam mais ntidas, pois ao mesmo tempo em que se busca e

    explora as fraquezas do argumento do adversrio, toma-se cuidado para no se

    deixar cair em contradio. Isso acaba provocando um movimento em direo ao

    refinamento das categorias e noes que so expressas a partir dos pontos de vista

    de cada um dos envolvidos.

    Mas algo assim pode tambm no acontecer e o debate acabar contribuindo

    para que no compreendamos ou nos aproximemos da compreenso do que

    verdadeiramente pode estar em jogo. Portanto, no basta apenas tomar aquilo que

    dito. preciso partir da, mas inserindo a contenda no contexto histrico em que

    se desenvolve.

    A polmica travada por estes dois importantes cientistas sociais, tendo por

    mvel a chamada teoria da dependncia, ocorreu na dcada de 1970 sendo mais

    intensa no final desta. Essa dissertao tem por propsitos:

    a) localizar as questes que estavam no centro do debate entre os dois, bem

    como os argumentos de cada um;

    b) ao recuperar o contexto histrico em que a polmica se travou,

    ensejamos compreender as questes subjacentes quelas posies, particularmente

    os pontos sociais de vista dos quais Cardoso e Marini partiram e os horizontes

    intelectuais e polticos abertos por eles.

    O primeiro captulo consiste de uma breve explicao dos pressupostos

    metodolgicos que utilizamos para definir nossa problemtica; pressupostos que

    orientaram a pesquisa.

    O segundo captulo uma exposio da arena intelectual na qual o debate

    entre Cardoso e Marini se desenrola. Aqui buscamos extrair os que, na nossa

    compreenso, seriam os denominadores comuns de onde parte e com os quais

    dialoga a teoria da dependncia.

  • 3

    O terceiro captulo uma descrio da conjuntura brasileira da dcada de

    1970, aonde tentamos apresentar subsdios que nos permitissem ao final do nosso

    trabalho compreender as movimentaes, os argumentos e as motivaes destes

    dois cientistas sociais.

    O quarto e ltimo captulo parte da reconstituio da trajetria de Cardoso e

    Marini, particularmente at o perodo em que focamos nosso estudo. Da

    apresentarmos uma sntese do que consideramos as principais polmicas colocadas

    por um e por outro. Inseridas na totalidade histrica da qual so partes, pudemos

    alinhavar algumas indicaes que orientaram o fechamento do nosso trabalho.

    Por ltimo nossas concluses. Estas devem ser vistas, como todo trabalho

    que se enseja um esforo de elaborao de conhecimento cientfico, como parciais

    e limitadas. Vemo-las como um ponto de partida para novas reflexes.

  • Captulo 1

    Preliminares metodolgicas

    Todo trabalho com pretenso ao rigor cientfico remete a opes. Isso necessrio,

    no apenas para dar clareza ao que se pretende realizar e ao caminho a ser

    seguido, mas tambm a idia que se tem de construo do conhecimento.

    Julgamos que no possvel pensar em cincia como mera empiricidade

    capaz de reproduzir o vivido, o quotidiano. Isso quer dizer que no podemos tomar

    as coisas pela sua aparncia. Portanto, precisamos dispor de um conjunto de

    ferramentas capazes de nos propiciar a tarefa de tentar produzir conhecimentos. A

    respeito, observa Alves Filho:

    Contrariamente ao proceder do senso comum, quem se dedica atividade cientfica no toma a chamada realidade imediata como dado que o mero olhar possibilita interpretar e entender. Ao contrrio, a atividade cientfica pressupe tanto a construo do objeto de estudo quanto das ferramentas que permitam investig-lo, na tentativa de produzir algo chamado conhecimento, sempre provisrio e incompleto, sujeito a crticas e a retificaes. Anlogo a um trabalhador braal, por exemplo, a um marceneiro que tem que saber escolher a madeira e as ferramentas apropriadas para fabricar um tipo de mvel, um trabalhador intelectual tem que saber construir o objeto de sua pesquisa assim como saber utilizar ferramentas apropriadas (entre as disponveis) para levar a cabo a sua tarefa.1

    O presente captulo, o primeiro de nossa dissertao, justo a tentativa de

    apresentar os marcos metodolgicos e conceituais a partir dos quais a

    estruturamos. No fazemos nele um debate sobre as vrias questes que sero

    insinuadas e expressas. O captulo reflete uma opo e traz consigo, obviamente,

    problemas que merecem grande ateno. Mas, para no fugirmos ao que nos

    propomos, evitamos tomar esse caminho.

    Isso no quer dizer que as polmicas que por ventura venhamos a suscitar

    sejam por idias apresentadas ou mal apresentadas no devam ser tratadas

    1 ALVES FILHO, A. A ideologia como ferramenta de trabalho e o discurso da mdia: 86.

  • 5

    posteriormente. Para ns, acima de tudo, este trabalho o incio e no o

    coroamento de uma reflexo.

    A determinao social do conhecimento

    Qual a maneira de lermos um determinado autor? Como podemos compreender

    um debate entre dois intelectuais e da tirarmos concluses sobre suas

    aproximaes e diferenas? Estas preocupaes, de uma certa forma, conformam o

    fio condutor da construo deste trabalho.

    A primeira pergunta que nos parece pertinente a fazer a seguinte: quando

    um cientista social escreve um livro, um artigo, uma comunicao ou um outro

    trabalho qualquer, que ponto de vista epistemolgico est subjacente a sua

    iniciativa? Desta pergunta, alguns temas precisam ser desenvolvidos. Em primeiro

    lugar, o que diferencia um cientista social, como sujeito interessado na produo do

    conhecimento cientfico, de uma pessoa que no tem esse tipo de preocupao, ou

    melhor, que orientada por padres tpicos do chamado senso comum? Em

    segundo, qual a relao existente entre o contexto histrico-social no qual o debate

    se inscreve e as posies dos autores?

    a) O positivismo e a naturalizao do mundo

    A tradio positivista, sem fazer distino entre as cincias da natureza e as da

    sociedade, parte de algumas premissas bastante difundidas no senso comum. De

    acordo com Lwy, estas seriam:

    1. A sociedade regida por leis naturais, isto , leis invariveis,

    independentes da vontade e da ao humanas; na vida social, reina uma harmonia

    natural.

    2. A sociedade pode, portanto, ser epistemologicamente assimilada pela

    natureza (o que classificaremos como naturalismo positivista) e ser estudada pelos

    mesmos mtodos, dmarches e processos empregados pelas cincias da natureza.

  • 6

    3. As cincias da sociedade, assim como as da natureza devem limitar-se

    observao e explicao causal dos fenmenos, de forma objetiva, neutra, livre

    de julgamentos de valor ou ideologias, descartando previamente todas as

    prenoes e preconceitos.2

    Sem querermos aprofundar uma discusso sobre a concepo positivista de

    cincia, achamos ser necessrio ressaltar algumas conseqncias lgicas da

    conceituao acima, notadamente no que mais diretamente tem a ver com os

    propsitos deste trabalho.

    Antes de qualquer coisa, ela postula que as leis sociais possuem o mesmo

    carter das leis naturais. Portanto, no apenas o mtodo para o estudo destas duas

    realidades o mesmo, como ao cientista caber a mesma atitude objetiva. Este

    dever orientar-se pela observao livre de valores, paixes e preconceitos. No

    caso das cincias sociais, isso resulta em um procedimento que busca mensurar a

    recorrncia de determinados fatos e classific-los. A cincia pode-se assim dizer,

    acaba resumida a um procedimento simplesmente tcnico.

    Comentando essas caractersticas do positivismo, Lwy faz uma crtica, ao

    nosso entender, fundamental a esta escola. Os positivistas no percebem a

    singularidade das cincias da sociedade em relao s cincias da natureza. Eles

    ignoram ou fazem ignorar -a situao especial do cientista que est imerso no

    objeto para o qual se dirige seu estudo. Ao no assumir este lugar especial de

    sujeito-objeto e no reconhecer a existncia de valores e preconceitos no seu

    prprio olhar sobre o mundo, o positivista torna-se prisioneiro de sua prpria

    mistificao.

    Na realidade, a boa vontade positivista enaltecida por liberar-se de um esforo de objetividade das pressuposies ticas, sociais ou polticas fundamentais de seu prprio pensamento uma faanha que faz pensar irresistivelmente na clebre histria do Baro de Mnchhausen, ou este heri picaresco que consegue, atravs de um golpe genial, escapar ao pntano onde ele e seu cavalo

    2 LWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Baro de Mnchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento: 17.

  • 7

    estavam sendo tragados, ao puxar a si prprio pelos cabelos... Os que pretendem ser sinceramente seres objetivos so simplesmente aqueles nos quais as pressuposies esto mais profundamente enraizadas.3

    Essa boa vontade a qual Lwy se refere est relacionada com um certo

    empenho, da parte do cientista em se livrar atravs de um exerccio de auto-

    disciplina, justamente do conjunto de juzos que poderia comprometer a

    objetividade necessria para a aquisio do conhecimento social. a que o

    positivista tornar-se-ia prisioneiro de uma mistificao. Para Lwy, os pressupostos

    defendidos pelos autores da tradio positiva seriam, em si mesmos, juzos de

    valores.

    Porm, h um outro aspecto que a nosso ver por demais importante e que

    precisa ser mencionado aqui: a despeito das crticas que faz aos pressupostos

    epistemolgicos positivistas, Lwy reconhece nessa escola um dado muito

    importante e ao qual ele chama de seu ncleo racional, que seria uma certa

    vontade de conhecimento, a busca com determinao da verdade, condio sine

    qua non para o exerccio da cincia. Este seria, talvez, o critrio definitivo que

    diferenciaria o cientista do apologista. Para este ltimo, no a verdade ou a sua

    busca o que importa; ele tem uma determinada idia a qual defende

    apaixonadamente. Alhures voltaremos a questo.

    b) Max Weber e a cincia axiologicamente neutra

    Para Lwy, Weber no deveria ser considerado um socilogo positivista no sentido

    clssico. Mas haveria uma aproximao entre este autor e essa escola do

    pensamento quanto a certos pressupostos epistemolgicos, particularmente quele

    que defende a idia de uma cincia axiologicamente neutra.4

    Muitos podem relutar em encar-lo desta maneira e o prprio Lwy

    reconhece uma contradio aparente naquilo que seria a dmarche weberiana. De

    um lado, Weber no apenas recusa a idia de uma naturalizao do mundo social,

    3 Idem: 32. 4 Idem: 33.

  • 8

    como assume a importncia dos juzos de valor na formao do conhecimento. Mas

    por outro lado, nega a possibilidade de encontrar respostas cientificamente vlidas

    caso o processo de pesquisa emprica fosse ele influenciado por motivaes

    extracientficas.5

    Weber leva em considerao o lugar, o momento histrico e o sujeito que

    busca o conhecimento. Ser a partir do ponto de vista deste e, portanto, de sua

    subjetividade - que se formar a problemtica a ser estudada, a hiptese a

    trabalhar, as questes que buscar responder e o hall de conceitos que sustentaro

    o desenvolvimento da pesquisa, alm, claro, da prpria definio do objeto. Para

    sermos mais precisos, dessa maneira que Weber concebe a construo dos tipos

    ideais. Mas, uma coisa a sua construo e outra, o curso prprio da pesquisa

    emprica. Encontramos numa passagem dos Ensaios sobre Teoria da Cincia uma

    sntese disto. Na aludida passagem, reproduzida abaixo, Weber estabelece um

    paralelo entre o entendimento de uma demonstrao cientfica envolvendo atores

    pertencentes a culturas distintas, uma ocidental e outra oriental.

    [...] uma demonstrao cientfica, metodicamente correta, que pretende ter atingido seu fim, deve poder ser reconhecida como exata igualmente por um chins, ou, mais precisamente, deve ter esse objetivo, embora no seja talvez possvel realiz-lo plenamente, em virtude de uma insuficincia de ordem material. Assim tambm, verdade que a anlise de um ideal destinado a desvendar seu contedo e seus axiomas ltimos, bem como a explicao das conseqncias que da decorrem lgica e praticamente quando se deve considerar que a busca foi coroada de xito, devem igualmente ser vlidas para um chins embora ele possa no entender nada de nossos imperativos ticos e at mesmo rejeitar (o que por certo ele far muitas vezes) o prprio ideal e as avaliaes concretas decorrentes, sem qualquer contestao ao valor cientfico da anlise terica.6

    Resumidamente, o que concebe Weber nessa breve explicao parece

    resumir aquilo que pensa dever orientar um homem de cincia diante de uma

    realidade que no integralmente cognoscvel. Da a necessidade de um princpio

    de seleo, cujo objetivo ser garantir um conhecimento parcial e limitado. aqui

    5 Aqui tomamos emprestada uma expresso muito usada por Mannheim. 6 WEBER, M. Ensaios sobre a teoria da cincia; apud FREUND, J. Sociologia de Max Weber: 66.

  • 9

    que intervm a personalidade do cientista. Mas a partir da cessaria qualquer

    influncia valorativa e aplicar-se-ia os procedimentos considerados comuns da

    cincia, conseguindo-se assim uma dada objetividade cujos resultados deveriam

    ser aceitos por quem quer que fosse.

    Da cincia, considera Weber, devemos esperar que coloque disposio um

    certo nmero de conhecimentos que nos permitam dominar tecnicamente a vida

    por meio da previso e mtodos de pensamento que nos permitam obter maior

    clareza sobre o campo das relaes sociais. Ao cientista no caberia fazer

    julgamentos morais, pois, na medida em que o faz ele perde a compreenso

    integral dos fatos.7 Dele, por fim, no podemos ter a indicao do caminho a

    seguir, mas as possibilidades de escolha com seus respectivos fatores de sucesso

    ou insucesso, ou seja, uma avaliao da eficcia dos meios em funo do fim

    pretendido (e no uma avaliao de ordem moral desses fins).

    [...] O socilogo tem por tarefa analisar as estruturas da sociedade, as naturezas das convenes, do direito, da poltica e da economia, e no fazer as vezes de reformador social ou decretar qual a sociedade melhor. [...] Pode-se perguntar cincia: Que devemos fazer? Como devemos viver? No dar nenhuma resposta, porque ela teoria. Esta resposta cada um deve procurar em si mesmo, de acordo com seu gnio ou sua fraqueza.8

    Para Lwy, porm, a reside a fragilidade da teoria da cincia de Weber.

    Reconhecendo sua robustez e sua importncia, aponta diretamente para o que

    seria seu calcanhar-de-aquiles: para ele, ao formularmos uma determinada

    questo, j trazemos nisto parte da sua prpria resposta. Se assim, ento:

    a carga valorativa ou ideolgica da problemtica, repercute necessariamente sobre o contedo da pesquisa, e normal que isso seja questionado pelos cientistas que no partilham desses valores ou pressuposies: eles se recusam, com razo, a partir de seu ponto de vista, a se situar sobre um terreno minado e aceitar um campo que lhes parece falso de antemo.9

    7 WEBER, M. Cincia e poltica: duas vocaes: 40. 8 FREUND, J. Sociologia de Max Weber: 68. 9 LWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Baro de Mnchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento: 41-42.

  • 10

    Voltemos citao que fizemos de Weber, quando diz da opo que algum

    faz a partir de um dado campo de alternativas objetivamente apresentadas pela

    cincia. A idia de optar, portanto, agir, est diretamente relacionado a uma

    questo de carter. Seria somente aqui, neste terreno, que poderamos pensar em

    condutas axiologicamente motivadas. aqui, tambm, que se inaugura o campo da

    reflexo tica.

    No nossa inteno desenvolver este tema no presente trabalho. Apenas

    fizemos meno a ele para poder reforar aquilo que, com base em Lwy,

    consideramos sobre a atitude cientfica em Weber. Lwy chega a afirmar, citando

    uma passagem do prprio, que este assumiria em certas ocasies que os valores

    influenciariam a todo o processo da pesquisa cientfica. A soluo seria, como ele

    mesmo prope, que o cientista cumprisse o dever elementar do controle cientfico

    de si mesmo.10 Aqui o ponto fraco da teoria da cincia weberiana que mencionamos

    h pouco. A soluo dada a ele, faz-nos retornar a figura picaresca do Baro de

    Mnchhausen e aos positivistas.

    c) Cincia e ideologia na perspectiva de uma sociologia crtica do

    conhecimento

    Na obra em que busca sistematizar uma compreenso original do relacionamento

    entre cincia e ideologia assim como marcar o lugar do cientista no processo de

    construo do conhecimento sobre a realidade Lwy nos apresenta os eixos

    centrais para a conformao de uma sociologia crtica do conhecimento.

    Ao buscar responder s intenes do positivismo e de Weber em conceber

    uma cincia axiologicamente neutra, ele se basear nos pressupostos marxistas

    particularmente a partir das contribuies de Luckcs e Lucien Goldmann e em

    um dilogo intenso com Mannheim, para dar corpo a sua dmarche, que a que

    orientar este nosso trabalho.

    10 WEBER, M. Ensaios sobre a teoria da cincia; apud FREUND, J. Sociologia de Max Weber: 44.

  • 11

    Para Lwy, a primeira tarefa demonstrar as diferenas entre as cincias da

    natureza e as da sociedade, contrapondo-se, assim, a um dos pressupostos

    fundamentais do positivismo. Ele sugere que as especificidades da segunda em

    relao a primeira seriam as seguintes:

    a) o carter histrico dos fenmenos sociais e culturais, produzidos,

    reproduzidos e transformados pela ao dos homens. A histria, diferentemente da

    natureza, so os homens que fazem;

    b) a identidade parcial entre o sujeito e o objeto do conhecimento. O

    cientista social parte da prpria realidade que estuda e no tem, portanto, a

    mesma capacidade de manter-se distncia. Dessa forma, o ponto de vista a

    partir do qual ele formular sua problemtica que definir o objeto de estudo, as

    questes, os conceitos, etc.11

    Mas aqui vale ressaltar um dado importante sobre as cincias da natureza.

    Para Lwy, a afirmao de que elas seriam axiologicamente neutras, corresponderia

    apenas de certo modo, verdade. At certo modo somente porque se verdade

    que as cincias ditas exatas foram neutralizadas e que as ideologias tm

    relativamente pouca influncia sobre seu valor cognitivo, no menos verdade que

    as condies sociais e as opes partidrias determinam, em ampla medida, tudo o

    que se encontra antes e depois da pesquisa propriamente dita.12

    At aqui, Lwy est em concordncia com Weber. Mas ele o nega a partir do

    momento em que afirma a influncia dos valores em todo o processo de produo

    do conhecimento: desde o recorte dos objetos, a formulao das hipteses at as

    concluses tericas, passando inclusive pela anlise dos fatos.

    Como o autor das Aventuras... prope a superao do dilema do Baro de

    Mnchhausen?

    11 Ponto de vista, este, determinado em funo do lugar e do tempo que ele ocupa. 12 LWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Baro de Mnchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento: 199.

  • 12

    Ao buscar compreender as possibilidades da objetividade nas cincias

    sociais, ele afirma que embora o fazer cincia seja sempre a inteno-de-verdade,

    a busca do conhecimento como objetivo em si, a recusa de substituir este objetivo

    por finalidades extracientficas,13 esse conhecimento sempre socialmente

    determinado. Isso quer dizer que ao construir um saber sobre a sociedade, estamos

    configurando uma determinada viso social de mundo que, por sua vez, est ligada

    a certas posies sociais, isto , aos interesses de grupos e classes sociais.

    Dependendo do ponto de vista que se parta, essa viso social de mundo

    definir um conjunto de problemticas e um horizonte intelectual determinado.14

    Podem ser ideolgicas ou utpicas, na medida em que pretendam manter a ordem

    social ou transform-la, respectivamente. Com isso, temos ento, que nem toda

    produo intelectual cientfica. Mas que cincia e ideologia (na sua concepo

    total), apesar de conceitos distintos articulam-se dialeticamente.

    Para situarmos as vises sociais de mundo que iluminam o fazer do cientista

    social preciso compreend-las no conjunto da totalidade histrica concreta, ou

    seja, em relao conjuntura econmica, social e poltica dada em um determinado

    momento. Como sugere, por fim, Miriam Limoeiro Cardoso em um artigo escrito h

    poucos anos:

    Quando tentamos identificar uma ideologia e alcanar os seus sentidos, tendemos a concentrar esforos em apreender seus nexos estruturais, tomando-a como parte de uma dada realidade social. Se bem-sucedidos, conseguimos colocar a ideologia em questo nas relaes sociais que a sustentam, estabelecendo assim o modo estrutural da sua constituio.15

    Vamos aqui precisar cada um desses aspectos.

    13 Idem: 214. 14 Aqui preciso ressaltar a possibilidade de que a partir do mesmo ponto social de vista venham a se desenvolver diferentes vises de mundo. 15 CARDOSO, M. L. Ideologia do Desenvolvimento: Brasil JK JQ: 121.

  • 13

    Viso social de mundo, ideologia e utopia

    Karl Mannheim, em sua obra Ideologia e utopia,16 define dois tipos distintos de

    ideologia: a primeira, definida como uma concepo particular e a segunda, uma

    concepo total de ideologia. A primeira, noo que lembra bastante o conceito no

    Marx de A Ideologia Alem, teria includo:

    todas as expresses cuja falsidade devida iluso de si mesmo ou de outros, intencional ou no, consciente, semiconsciente ou inconsciente, que ocorre em um nvel psicolgico e se assemelha estruturalmente mentira.17

    O segundo termo ideologia total aquele que Lwy passar a designar

    por viso social de mundo. Mannheim, tambm utiliza a expresso perspectiva de

    um pensador, referindo-se assim ao

    modo global do sujeito conceber as coisas, tal como determinado por seu contexto histrico e social.18

    A ideologia total pressupe que existe uma correspondncia entre uma dada

    situao social e histrica e uma dada perspectiva ou ponto de vista. Este conceito

    aproxima-se daquilo que Marx fala na A misria da Filosofia:

    As categorias econmicas so apenas as expresses tericas, as abstraes das relaes sociais da produo. [...]

    [...] Os mesmos homens que estabelecem as relaes sociais de acordo com a sua produtividade material, produzem tambm os princpios, as idias, as categorias, de acordo com as suas relaes sociais.19

    O que Marx est dizendo nessa passagem que os homens constroem suas

    idias do mundo a partir do tempo e do lugar que ocupam nesse mesmo mundo.

    Devemos levar em considerao que quando pensamos no lugar que algum ocupa,

    deve ser guardada principalmente a referncia quanto situao de classe, que no

    esquema do marxismo clssico, quer dizer o lugar que se ocupa no processo

    16 MANNHEIM, K. Ideologia e Utopia. 17 Idem: 287. 18 Idem: 288. 19 MARX, K. Misria da Filosofia: resposta Filosofia da Misria do senhor Proudhon: 98. Este texto citado por Mannheim para ilustrar o sentido do que ele designou como concepo total da ideologia.

  • 14

    produtivo. Mas no se esgota nisso pois esta no movida apenas pelo interesse

    econmico.

    Lwy vai resumir essa idia dizendo que:

    Os problemas sociais so o palco de objetivos antagnicos das diferentes classes e grupos sociais. Cada classe considera e interpreta o passado e o presente, as relaes de produo e as instituies polticas, os conflitos scio-econmicos e as crises culturais em funo de sua experincia, de sua vivncia, de sua situao social, de seus interesses, aspiraes, temores e desejos.20

    Para ele, porm, no apenas a situao de classe que determina o olhar ou

    ponto de vista de um cientista social. Este tambm determinado por aspectos

    como nacionalidade, gerao, religio, sexo, entre outros. Estes fatores podem

    tanto estimular como desviar a ateno do sujeito para um ou outro aspecto.

    Esse conjunto de determinaes vai, portanto, inconscientemente (ou

    tambm conscientemente), orientar todas as etapas do trabalho cientfico. Elas

    inclusive estabelecem o horizonte intelectual do cientista, compreendendo-se isso

    como os limites estruturais intransponveis do campo de visibilidade cognitiva, o

    mximo de conhecimento possvel a partir de uma dada perspectiva.21

    Quanto a diferenciao usada por Lwy entre ideologia e utopia, no

    pretendemos nos alongar demais no assunto. Para uma rpida definio basta dizer

    que ao situar uma determinada viso de mundo no interior de uma totalidade,22

    esta pode expressar um ponto de vista crtico-social ou conservador. Para facilitar a

    compreenso dos conceitos de Mannheim, Lwy sugere essa definio: viso social

    de mundo utpica quando esta expressa um desejo e se orientam na direo da

    ruptura com a ordem vigente; ideolgica, quando esta estiver orientada no sentido

    da conservao dessa mesma ordem.

    20 LWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Baro de Mnchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento: 202. 21 Idem: 211. 22 Aqui usamos a expresso tal como sugerida por Luckacs, como totalidade histrica que compreende a sociedade como devir em mltiplas dimenses: econmica, social, poltica, cultural e, certamente, histrica.

  • 15

    Os princpios para o conhecimento cientfico

    Aqui, portanto, faz-se necessrio recolocar uma questo. Como possvel

    diferenciar na essncia - um cientista de um apologista? O que define o fazer

    cincia?

    A resposta que encontraremos nas Aventuras um conjunto de princpios

    que descrevem a idia de cincia como prtica relativamente autnoma de

    conhecimento, como prtica que busca descobrir a verdade. So eles:

    1) a inteno-de-verdade, a busca do conhecimento como objetivo em si, a

    recusa de substituir este objetivos por finalidades extracientficas [...];

    2) a liberdade de discusso e crtica, a confrontao permanente e pblica

    das teses e interpretaes cientficas.23

    Negados esses dois princpios, o que teremos o surgimento do apologista,

    que traveste seus interesses mais imediatos em forma de cincia, usando-a apenas

    para reforar sua posio que se perpetuar, mediante a ausncia do livre debate,

    em um clima de obscurantismo.

    Essa idia da autonomia da cincia e conseqentemente do cientista, o

    compromisso deste com a verdade ao mesmo tempo em que com as conseqncias

    e aplicaes de seus resultados, encontra nas palavras de Florestan Fernandes um

    bom exemplo.

    O primeiro ato de autonomia intelectual do socilogo desenha-se nesse plano de auto-afirmao como e enquanto cientista: a cincia o compromete eticamente tanto com os seus critrios de verdade (e de verificao da verdade), quanto com as transformaes do mundo que possam resultar das aplicaes de suas descobertas.24

    23 LWY, M. As aventuras de Karl Marx contra o Baro de Mnchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento: 214-215. 24 FERNANDES, F. A sociologia no Brasil: contribuio para o estudo de sua formao e desenvolvimento: 128.

  • 16

    A posio do intelectual na sociedade de classes

    Quando escreve A evoluo poltica de Luckacs,25 Lwy apresenta uma definio do

    que o intelectual e seu posicionamento no politicamente, mas socialmente

    falando na sociedade de classes capitalista.

    A primeira afirmao a de que a intelectualidade no constitui uma classe

    social, mas sim uma categoria social cujo papel o da produo ideolgica. Eles

    so escritores, filsofos, pesquisadores, jornalistas, telogos, por fim, todos aqueles

    que produzem artigos ideolgico-culturais. Estes constituem um setor menor de

    uma categoria que incluiria outros tipos de atividades que so classificadas de

    trabalhos intelectuais apenas no sentido da contraposio idia de trabalho

    manual.

    Seu comportamento seria definido pela sua origem de classe dado que

    podem vir de classes distintas assim como da sua filiao a categoria social.

    Aparentemente, o grau de profissionalizao e institucionalizao da sua atividade

    influencia neste aspecto.

    Como categoria social mais afastada do processo de produo direta, os

    intelectuais gozam de uma certa autonomia em relao s classes sociais. Essa

    autonomia se manifesta em uma certa instabilidade que alguns poderiam sugerir

    por liberdade de opinio na maioria das vezes os leva a aproximar-se de uma das

    classes em luta na sociedade capitalista.

    Dentre as classes sociais, porm, aquela que mais se aproxima dessa

    intelectualidade a pequena burguesia.26

    A relao entre intelectualidade e a pequena-burguesia, seria

    sociologicamente explicada por dois fatores fundamentais. O primeiro porque,

    25 LWY, M. A evoluo poltica de Luckacs: 1909-1929. 26 Entendemos aqui a pequena burguesia como os setores mdios urbanos e rurais, pequenos proprietrios, profissionais liberais, militares, funcionrios pblicos, etc.

  • 17

    grosso modo, a maior parte da intelectualidade recrutada justamente na pequena

    burguesia, principalmente entre aqueles que atuam como trabalhadores

    intelectuais. O segundo motivo, porque os meios de subsistncia e trabalho

    oferecidos aos intelectuais pertencem, por natureza, pequena burguesia (o que

    no impede, afirma Lwy, que uma parcela de intelectuais, por sua profisso,

    pertena a uma outra classe social).

  • Captulo 2

    A arena intelectual do debate entre Cardoso e Marini

    Apesar das diferenas existentes entre Ruy Mauro Marini e Fernando Henrique

    Cardoso, ambos so autores que num momento histrico determinado trabalharam

    nos marcos de um mesmo campo de reflexo o da teoria da dependncia.27

    No desconhecemos a resistncia de Cardoso idia de fornecer noo de

    dependncia o status de conceito terico, defendendo o que ele chama de anlises

    concretas de situao de dependncia,28 baseando-se no pressuposto de que a

    teoria da dependncia se inscreve sob os marcos mais gerais, a sim, da teoria

    marxista. Mas mesmo falando isso Cardoso no nega que aqueles que como ele

    tem escrito sobre dependncia na Amrica Latina e tentado analisar as relaes

    entre os pases perifricos e centrais do modo de produo capitalista, poderiam

    configurar o campo de uma possvel teoria da dependncia.

    Achamos esse debate epistemolgico da maior importncia, mas no iremos

    desenvolv-lo aqui em profundidade. Partimos da idia de que possvel encontrar-

    se um ncleo duro de um campo de reflexo que se construiu em torno da noo

    de dependncia. H nuances e tambm diferenas importantes entre seus autores.

    Algumas so justamente os elementos provocadores deste trabalho. Porm vamos

    aqui ressaltar os elementos mais gerais que circunscrevem e caracterizam o que

    nos permitimos denominar, com base em Theotonio dos Santos, de uma aventura

    intelectual comum [...] chamada de teoria da dependncia.29

    Os antecedentes tericos e histricos da Teoria da Dependncia

    27 Aqui, portanto, devemos dizer que discordamos da classificao que Mantega faz no seu livro sobre a Economia Poltica Brasileira. Ver MANTEGA, G. A economia poltica brasileira: 15-16. 28 Para mais detalhes ver CARDOSO, F. H. Poltica e desenvolvimento em sociedades dependentes: ideologias do empresariado industrial argentino e brasileiro; e CARDOSO, F. H. As idias e seu lugar: ensaios sobre as teorias do desenvolvimento. 29 SANTOS, T. dos. A teoria da dependncia: balano e perspectivas: 125.

  • 19

    A teoria da dependncia nasceu em meados da dcada de 1960. Visava repensar o

    novo padro de desenvolvimento scio-econmico da Amrica Latina, que havia

    sido iniciado como resposta ao impacto da crise de 1929. Tal teoria se construiu no

    bojo das discusses sobre as causas do subdesenvolvimento e mediante o fracasso

    do modelo nacional-desenvolvimentista, muito em voga desde os anos 50 at a

    crise do referido modelo em meados da dcada de sessenta, com o advento dos

    golpes militares na regio. O debate da teoria da dependncia , de um lado,

    travado com as concepes desenvolvimentistas Cepalinas,30 assim como com a

    tradio terica dos Partidos Comunistas, alicerados na premissa etapista da

    revoluo democrtico-burguesa e, de outro lado, o debate travado com as

    teorias da modernizao, em voga no ps-guerra, nos Estados Unidos; teorias que

    tinham em Walt Whitman Rostow seu mais exponencial representante.

    O prximo passo consiste em descrever as principais caractersticas de cada

    uma dessas compreenses da problemtica do desenvolvimento e como a partir da

    crtica a cada uma delas possvel constituir uma sntese daquilo que vamos

    delimitar como sendo o ncleo duro da teoria da dependncia.

    a) A Cepal e a Teoria do Subdesenvolvimento

    Terminada a Segunda Guerra Mundial, as cincias sociais passam a debater

    insistentemente a temtica do desenvolvimento. As antigas colnias europias,

    ento em processo de libertao, e as economias latino-americanas estavam

    vivendo uma fase de grandes transformaes estruturais. Os principais problemas

    levantados giravam em torno da seguinte meta-questo: como explicar (ou

    justificar), naquele cenrio, a existncia de pases com grau de desenvolvimento

    to desigual, ou seja: desenvolvidos e subdesenvolvidos segundo a classificao

    binria ento dominante.

    Criada em 1947, a Comisso Econmica para Amrica Latina - Cepal como

    parte integrante das Organizaes das Naes Unidas tinha como objetivo

    30 Diz-se daquelas polticas desenvolvidas no seio da Cepal.

  • 20

    promover uma reflexo sobre polticas pblicas que viabilizassem o

    desenvolvimento na regio, assessorando os governos dos pases latino-

    americanos. A entidade tinha a sua frente o economista Ral Prebish, principal

    artfice dos estudos que fundam o pensamento Cepalino.31

    Nessa poca, encontrava-se em voga a idia de que a soluo dos

    problemas para os pases empobrecidos estava na aplicao da teoria clssica do

    comrcio internacional, conhecida como a Teoria das Vantagens Comparativas. Tal

    teoria traduzia a idia de que cada pas deveria se especializar na produo de

    mercadorias em que tivesse maiores vantagens relativas. Quanto maior a

    vantagem, menor seria o custo da mercadoria. Vantagem que poderia ser natural

    ou adquirida. No primeiro caso levasse em considerao aspectos como clima, solo,

    relevo, etc. No segundo a vantagem provm da especializao em determinada

    linha de produo, qual permitia que a fora de trabalho de um determinado pas

    adquirisse o domnio da tcnica obtendo, em funo disso, custos mais baixos em

    relao queles pases aonde isso no acontecia.

    Assim sendo, se o comrcio internacional no fosse obstaculizado por

    influncias governamentais, o mercado, atravs da competio mundial, faria com

    que cada pas se especializasse nas linhas de produo em que tivessem mais

    vantagens comparativas. Disso resultaria que todas as mercadorias seriam obtidas

    pelo seu valor mais baixo. O que traria, ento, compensaes para todos.32 Para as

    linhas de produo em que um pas se especializasse haveria uma demanda

    externa ampla o suficiente para que este pudesse adquirir em troca todas aquelas

    mercadorias de que fizesse necessidade.

    A Cepal parte de um outro ponto de vista.

    31 So eles, El desarrollo econmico de Amrica Latina y algunos de sus principales problemas, publicado em 1950 e Estudio econmico de Amrica Latina, de 1951. 32 SINGER, P. Curso de introduo economia poltica.

  • 21

    A preocupao bsica da Cepal era a de explicar o atraso da Amrica Latina em relao aos chamados centros desenvolvidos e encontrar as formas de super-lo. Neste sentido, a anlise enfocava, de um lado, as peculiaridades da estrutura scio-econmica dos pases da periferia, ressaltando os entraves ao desenvolvimento econmico, em contraste com o dinamismo das estruturas dos centros avanados; e, de outro lado, centrava-se nas transaes comerciais entre os parceiros ricos e pobres do sistema capitalista mundial que, ao invs de auxiliarem o desenvolvimento na periferia, agiam no sentido de acentuar as disparidades.33

    A Cepal, portanto, partia do questionamento da teoria clssica do comrcio

    internacional, bem como rejeitava a diviso internacional do trabalho que adviria

    dessa concepo. Em outras palavras, as teses Cepalinas partiam da crtica idia

    de que:

    se pases atrasados se especializassem nos produtos primrios, e os avanados em industrializados, nas relaes comerciais entre eles, os pases atrasados acabariam levando vantagem, pois absorveriam todo o diferencial de produtividade de seus parceiros avanados.34

    Investindo contra esses argumentos, a Cepal sustentar que os pases

    atrasados sofriam enormes desvantagens sendo apenas produtores de bens

    primrios. Ao contrrio do que clssicos e neoclssicos afirmavam, eram os pases

    da periferia que estavam transferindo renda para o centro desenvolvido.

    Inaugurava-se assim, com a chamada lei da deteriorao dos termos de

    intercmbio, uma nova abordagem sobre o problema do subdesenvolvimento e do

    comrcio internacional. Para seus economistas, o que se poderia observar das

    relaes de troca entre os pases era que:

    o centro tirava vantagem de sua supremacia sobre a periferia, impondo preos cada vez mais altos aos produtos industrializados que lhes exportava, enquanto importava produtos primrios a bon march. Isso significava que, na relao de intercmbio entre produtos primrios e industrializados, os preos inclinavam sempre em favor desses ltimos, provocando a famosa deteriorao dos termos de intercmbio da periferia.35

    33 MANTEGA, Guido. A economia poltica brasileira: 32. 34 Idem: 35. 35 Idem: 36.

  • 22

    Como explicar esse processo e quais seriam seus fatores determinantes?

    Para a Cepal, essa situao explicava-se por dois elementos fundamentais: a

    diferena do comportamento da demanda em relao aos produtos primrios

    comparados aquele relacionado demanda de bens manufaturados; em segundo

    lugar, as diferenas no mercado de trabalho e a organizao sindical nos pases do

    centro e da periferia.

    No que diz respeito ao consumo, a Cepal acreditava que a demanda de bens

    manufaturados crescia muito mais rapidamente do que a demanda de bens

    primrios, na lgica de que os primeiros teriam uma maior elasticidade-renda do

    que os segundos. Ou seja, na medida em que a renda aumenta no se consome

    mais bens primrios do que se consumia. Esta diferena de ganho vai normalmente

    para a aquisio de bens manufaturados, notadamente os bens de consumo

    durveis. A essa tendncia ao lento aumento de demanda por produtos primrios,

    deve-se acrescentar a diminuio do uso de certas matrias primas na produo

    das mercadorias, seja pela sua substituio por produtos sintticos, seja pelo maior

    aproveitamento das obtidas, em funo de alguma inovao tecnolgica. Ao final,

    ainda existe a poltica protecionista dos pases desenvolvidos dificultando a entrada

    de produtos primrios em seus mercados, seja atravs de taxaes especiais, seja

    por uma poltica de subsdio da sua produo interna (ou uma combinao dos

    dois).

    No que diz respeito ao mercado de trabalho e organizao sindical, a Cepal

    afirmava que, nos pases centrais, combinando uma menor oferta de fora de

    trabalho com um grau mais acentuado de organizao sindical, os trabalhadores

    ficariam em condies ideais para arrancar salrios mais altos. Isso obrigaria os

    empresrios a aumentarem o preo de seus produtos buscando manter estveis as

    taxas de lucro. J na periferia, aconteceria justamente o oposto: a abundncia da

    fora de trabalho associada fraca organizao sindical eram os componentes que

    geravam os baixos salrios e, conseqentemente, como so eles que determinam

  • 23

    os valores monetrios das mercadorias, os bens primrios teriam seus preos ainda

    mais reduzidos, transferindo para os pases centrais os aumentos de produtividade

    que poderiam beneficiar a economia da regio e os prprios salrios dos

    trabalhadores.

    Prebisch em sua teoria dos ciclos, para explicar salrios x preos, observa:

    durante a fase ascendente (do ciclo) uma parte dos lucros (do centro) so absorvidos pelos aumentos dos salrios, ocasionados pela competio entre empreendedores e pela presso das trade unions. Quando os lucros precisavam ser reduzidos durante o descenso, a parte que foi absorvida pelos aumentos salariais perde sua fluidez, em virtude de conhecida resistncia para a diminuio dos salrios. Assim, a presso desloca-se para a periferia.36

    Em outras palavras, colocado o sistema em movimento, nos perodos

    ascendentes, nos quais ocorre o incremento do processo de acumulao, uma parte

    dos lucros dos pases centrais absorvida pelos salrios, graas capacidade

    organizativa dos trabalhadores. Isso faz com que os preos, quando o ciclo entra

    em seu perodo de baixa, caiam menos nesses paises do que na periferia do

    sistema. Nos pases agrrio-exportadores a baixa organizao sindical e a

    abundncia de fora-de-trabalho deixam os preos dos produtos primrios

    declinarem em perodos de reduo das atividades econmicas. No final, h sempre

    transferncia de renda da periferia para o centro do sistema.

    Mantega faz a nosso ver - uma sntese bastante precisa dos citados

    aspectos da concepo Cepalina, nos seguintes termos:

    o subdesenvolvimento depende, para a Cepal, em primeiro lugar, da estrutura interna dos pases perifricos, que se caracteriza pela produo agrcola primrio-exportadora, com baixa integrao entre os diversos setores produtivos e com desemprego estrutural (uma vez que o lento crescimento da produo agro-exportadora no consegue absorver a rpida expanso demogrfica) combinados com o baixo nvel de organizao e sindicalizao da fora de trabalho; e, em segundo lugar, o subdesenvolvimento depende das relaes comerciais com o centro, porque se verifica uma queda constante do poder de compra de bens industriais por parte dos bens primrios, ou seja, cada unidade de bem primrio compra quantidade cada vez menor de produtos industriais,

    36 Prebisch, R. The Economic Development of Latin America, apud MANTEGA, Guido. A economia poltica brasileira: 38.

  • 24

    exportando-se, assim, para o centro j desenvolvido a fonte primeira do desenvolvimento, qual seja, o aumento de produtividade. Essa produo agroexportadora estaria assentada numa estrutura agrria fortemente monopolizada e nas mos de grupos sociais privilegiados pela atual situao, que impediria a melhor ocupao e aproveitamento da terra, exigindo, assim, uma reforma agrria para permitir saltos de produtividade na agricultura perifrica.37

    Deixadas a sorte do mercado, as naes perifricas nunca encontrariam o

    caminho do desenvolvimento. Qual seria, ento, a soluo apontada pela Cepal? A

    sada seria a implementao de uma poltica de industrializao que promovesse a

    reforma agrria, melhorasse a alocao de recursos e assim, impedisse aquela

    transferncia da produtividade para os pases centrais. Como observa Mantega,

    para a Cepal, seria a mudana do eixo da economia,

    at ento voltada para fora, para o desenvolvimento voltado para dentro, ou seja, baseado na industrializao para o mercado interno.38

    A industrializao vista como meio para aumentar a renda e a

    produtividade, revertendo a tendncia deteriorao dos preos dos produtos

    vendidos pelos pases perifricos, permitindo assim que estes detenham para si o

    progresso tcnico bem como os aumentos de produtividade que dele advm. Isso

    permitiria o coroamento de uma economia slida, autnoma e com maiores nveis

    de renda e de consumo para toda a populao, graas ao efeito distributivo da

    aplicao dessas polticas.

    Para tornar isso possvel, a Cepal defendia a centralidade da participao do

    Estado na economia, como promotor do desenvolvimento e responsvel pelo

    planejamento das modificaes necessrias. Como agente principal do processo,

    caberia ao estado resolver os problemas de infra-estrutura que engargalavam a

    industrializao, bem como garantir s novas atividades os recursos que lhe seriam

    necessrios. Uma interpretao do papel do Estado no esquema Cepalino pode ser

    encontrada em Rodrigues, que afirma:

    37 MANTEGA, Guido. A economia poltica brasileira: 38. 38 Idem: 39.

  • 25

    [...] pode ser dito que eles concebem o Estado como uma entidade externa ao sistema scio-econmico, capaz de atend-lo de uma forma consciente e de atuar sobre ele, imprimindo-lhe uma racionalidade que, por si s, ele no possui e conduzindo-o a resultados que, de outra maneira, seria impossvel de atingir. [...] sob sua tutela factvel a consolidao das relaes sociais capitalistas e sua fluida expanso, nas reas chamadas de perifricas ou subdesenvolvidas.39

    Essas medidas tinham como objetivo tambm reforar as economias locais e

    dar-lhes maior capacidade de negociao junto aos banqueiros internacionais e

    representantes do capital comercial internacional, que tiravam proveito da antiga

    situao de fragilidade que as acometia.

    As repercusses dessas propostas foram intensas e imediatas, como salienta

    Cardoso:

    As grandes unidades capitalistas de produo (os trustes e os cartis) opunham-se, ento, internacionalizao da produo industrial. Os banqueiros internacionais estavam acostumados a fazer emprstimos para assegurar o controle da comercializao agrria ou para explorar investimentos mineradores ou de infra-estrutura (transporte, energia, etc.), quase sempre com o aval dos Estados Nacionais e muitas vezes com garantias que incluam o controle dos impostos para assegurar o retorno dos juros e do capital.40

    Nesse sentido podemos dizer que a poltica da Cepal ganha efetivamente um

    carter nacionalista e hostil ao imperialismo comercial e financeiro. Cabe aqui,

    porm, ressaltar aspectos particulares do nacionalismo Cepalino. Ele no significa

    uma ruptura com o capital internacional lato sensu. Vamos entender por que.

    O capital internacional cumpriria um papel importante no processo de

    industrializao, tal como compreendiam os economistas da Cepal. Para poder lev-

    lo adiante, seria necessrio aumentar a massa de capital investido em cada pas, o

    que por sua vez, era muito difcil de se obter levando em conta a capacidade

    produtiva da periferia. Pensar em gerar poupana interna reprimindo ainda mais o

    j reprimido consumo das populaes da regio era algo impensvel.

    39 Rodriguez, O. Teoria do subdesenvolvimento da Cepal, apud GOLDENSTEIN, L. Repensando a dependncia: 27. 40 CARDOSO, F. H. As idias e seu lugar: ensaios sobre as teorias do desenvolvimento: 9.

  • 26

    Assim a Cepal propunha o recurso ao capital estrangeiro (ou poupana externa) como frmula mais indicada para se aumentar a taxa de investimentos e, conseqentemente, a renda nacional, pelo menos at que cada pas atingisse o nvel de poupana suficiente para prosseguir sozinho.41

    As formas indicadas para se buscar a participao desse capital, eram os

    emprstimos intergovernamentais e a captao de recursos atravs da emisso de

    bnus do tesouro no mercado internacional. Seriam preteridos (porm no

    recusados totalmente), portanto, os emprstimos diretos de capital privado

    estrangeiros em funo da alta taxa de juros que lhes vem como contrapartida.42

    A idia, portanto, era a de conseguir trazer um capital que ajudasse a

    consolidar o projeto por uma economia nacional autocentrada, constituindo para

    isso um parque industrial amplo composto por uma indstria de base, de insumos e

    de bens de consumo. Suas restries entrada de capital eram dirigidas queles

    setores ligado s transaes comerciais. Alm disso, apontavam para critrios mais

    rgidos como a participao de empresas transnacionais em reas de transporte

    ferrovirio, energia e demais setores do servio pblico, bem como de segurana

    nacional.

    Para concluir, achamos prudente ressaltar alguns aspectos do pensamento

    Cepalino, naquilo que foi sua grande originalidade e que, em parte, marcou sua

    insuficincia, sobre a qual, mais tarde, os tericos da dependncia vo se debruar.

    A primeira questo a compreender a idia de desenvolvimento que est

    subjacente nas elaboraes Cepalinas. Seus economistas entendiam o

    desenvolvimento como desenvolvimento capitalista e pressupunham que o

    capitalismo traria benefcios a grande maioria da populao entendida aqui como

    a burguesia industrial, os operrios, os camponeses e as classes mdias urbanas.

    Os nicos a perder seriam, obviamente, os setores dominantes da economia agro-

    exportadora. Estes ltimos seriam os responsveis pela misria e o atraso das

    41 MANTEGA, Guido. A economia poltica brasileira: 40. 42 Ibidem.

  • 27

    populaes perifricas. O subdesenvolvimento seria, portanto, conseqncia da

    manuteno de relaes pr-capitalistas associadas com o imperialismo

    internacional; seria, ento, ausncia de capitalismo e no o seu resultado.43 Neste

    quadro terico, j mencionamos o papel que caberia ao Estado.

    Dito isso, deve-se resguardar uma outra caracterstica das teorias da Cepal.

    Se por um lado, a idia anterior a aproximava da tradio neoclssica da economia,

    ela se distinguia desta ao colocar em relevo as especificidades dos pases

    perifricos nas suas condies de pases subdesenvolvidos. Compreendido desta

    forma,

    o subdesenvolvimento no equivalia infncia dos pases capitalistas pioneiros.44

    Isso conclui nossa breve apresentao dos pressupostos mais importantes

    do pensamento Cepalino. Ele expressava o ponto de vista de uma frao da

    burguesia nos pases latino-americanos, cujo desejo de uma economia

    industrializada e por isso mesmo, em sua concepo, autnoma e soberana

    colocava-se contra o domnio corrente dos setores agro-exportadores e

    imperialistas. Ao seu redor aglutinaram-se outras foras sociais principalmente

    aqueles setores mdios urbanos, militares, intelectuais, entre outros. A Cepal pode

    ter no Brasil um dos seus grandes laboratrios. Viu sua poltica refletida no pas

    durante a dcada de 50 e no incio dos anos 60 atravs das orientaes das

    comisses mistas Brasil-Estados Unidos (1951/1953) e BNDE-Cepal (1953/1955) e

    finalmente implementadas atravs do Plano de Metas do governo de Juscelino

    Kubitschek (1956/1961).

    Para compreendermos a experincia brasileira do modelo nacional-

    desenvolvimentista, precisamos compreender as idias de Celso Furtado, o

    economista que foi o principal responsvel pela introduo e execuo da matriz

    Cepalina no Brasil.

    43 Idem: 42. 44 Idem: 44.

  • 28

    A teoria do subdesenvolvimento em Celso Furtado

    O paraibano Celso Furtado (1920 2005), formado em Direito pela Universidade do

    Brasil e doutor em Economia pela Universidade de Paris, fez parte dos quadros da

    ento recm criada Cepal, sediada em Santiago do Chile, a partir de 1948. Em

    1958, j de regresso ao Brasil, ocupa cargos importantes no governo de Juscelino

    Kubitschek (1955 1960). Primeiro foi presidente do Banco Nacional de

    Desenvolvimento - BNDE e, posteriormente, responsvel pela Superintendncia

    para o Desenvolvimento do Nordeste - Sudene. No governo de Joo Goulart (1961

    1964) foi Ministro do Planejamento, entre os anos de 1962 e 1963. Pela sua

    importante insero no planejamento pblico e pela sua contribuio ao

    pensamento da Cepal, torna-se imprescindvel, ainda que de forma sucinta, mapear

    algumas de suas idias bsicas.

    Furtado tomar as economias e sociedades subdesenvolvidas como seu

    objeto de estudo. Seu pensamento emerge nos anos 50, produto da experincia

    Cepalina, inaugurando o que veio a ser conhecido por mtodo histrico-estrutural.

    O rigor da sua contribuio reside justamente na tentativa de descobrir a

    especificidade da formao dessas sociedades.45 A respeito observa Mantega:

    o processo local no seguia necessariamente os passos do capitalismo avanado, o que impedia um bom resultado na mera transposio das teses que o explicavam. [...] o salto dar-se-ia justamente quando se conseguisse apreender a especificidade do capitalismo retardatrio brasileiro ou das relaes sociais que o constituam. Na verdade, no se tratava de negar as leis fundamentais da acumulao do capital, mas sim de verificar como estas se manifestavam num contexto scio-econmico marcadamente distinto daquele que dera origem ao capitalismo europeu e norte americano dos sculos XVIII e XIX. [...] o capitalismo nativo se implantava sob a gide de foras produtivas e relaes capitalistas de produo altamente desenvolvidas [...] na rbita mundial, que controlavam os rumos tecnolgicos e procuravam definir a diviso internacional do trabalho.46

    45 OLIVEIRA, F. de. A navegao venturosa (Introduo). 46 MANTEGA, Guido. A economia poltica brasileira: 78.

  • 29

    em seu livro Desenvolvimento e Subdesenvolvimento (1961), que Furtado

    desenvolve, de forma mais acabada o ncleo central de suas idias sobre as

    sociedades perifricas.

    Para Furtado a mola mestra do desenvolvimento capitalista clssico o

    avano tecnolgico. Graas a este so conquistados aumentos sucessivos de

    produtividade, o que permite o aumento exponencial do excedente o que, por sua

    vez, possibilita maiores investimentos e amplificao do processo de acumulao. A

    imagem a de um movimento espiralado ascendente. Ele comea com a

    transformao das oficinas artesanais em fbricas capitalistas. medida que novas

    tcnicas vo surgindo e sendo incorporadas ao processo produtivo, vo permitindo

    a oferta de cada vez mais mercadorias a menores preos, levando falncia todo

    setor de pequenos produtores que se vem obrigados a buscar a sobrevivncia

    como trabalhadores fabris. Essas foram algumas das transformaes estruturais

    que marcaram o incio da industrializao europia que tambm se beneficiou da

    grande oferta de fora de trabalho existente para diminuir o poder de negociao

    dos trabalhadores, concentrando cada vez mais nos grandes capitalistas a

    possibilidade de investimento em novas tcnicas e tecnologias de produo.

    Porm, como a velocidade do processo de acumulao era maior do que o

    aumento da oferta de fora de trabalho, isso provocou uma importante mudana,

    concedendo aos trabalhadores um maior poder de barganha. Da pra frente a

    presso da classe trabalhadora que provoca a dinamizao do processo de

    acumulao. Isso acontece, pois na medida em que aumenta o poder de presso

    dos sindicatos, os empresrios passam a introduzir novas tecnologias com o

    objetivo de aumentar a produtividade, conseqentemente as vendas, e assim,

    atender as reivindicaes dos sindicatos preservando sua margem de lucro.

    Sendo esta a descrio para o desenvolvimento do capitalismo nos casos

    clssicos, como se daria o processo de industrializao nos pases da periferia?

  • 30

    Segundo Furtado, estes seriam, como j dissemos, bastante diferentes dos

    anteriores. Em primeiro lugar porque j existia um sistema capitalista mundial em

    estgio bastante avanado quando da implantao de relaes de produo

    capitalistas na periferia. Em segundo lugar, pela forte dependncia da periferia das

    atividades agro-exportadoras, que lhe forneciam capital e mercado. Este tema ser

    inicialmente desenvolvido em Formao Econmica do Brasil (1959) livro que,

    sendo anterior ao citado Desenvolvimento e Subdesenvolvimento, marca a

    fundao do pensamento furtadiano. Mantega lembra que para o autor

    considerado, a industrializao do Brasil s sofreu seu impulso decisivo com a crise

    mundial de 1929, cujas conseqncias para a economia cafeeira se arrastaram

    durante toda a dcada de 30. Somente aps este perodo, parecia que o setor

    industrial conseguiria reunir os meios para deslanchar um processo de

    desenvolvimento auto-sustentado.47

    A indstria brasileira havia crescido sombra do setor cafeeiro. Fora ele

    quem, pela sua demanda de manufaturados, havia dado o empurro inicial na

    industrializao do pas. Isso teria acontecido em fins do sculo XIX com a

    introduo da relao de assalariamento em substituio ao trabalho escravo;

    relao na qual dotou-se os trabalhadores com recursos que os permitiam adquirir

    bens de consumo. Comeava a surgir um mercado interno de mercadorias, no incio

    importadas, mas pouco a pouco substitudas por uma produo local.

    Quanto melhor fosse a situao do caf no mercado internacional, maior

    seria o fluxo de renda que passaria ao setor industrial atravs do sistema

    financeiro. Mas uma vez atingido um certo patamar de acumulao, a indstria

    passa a se desenvolver no mais em funo do crescimento do setor de

    exportao, mas sim das suas crises. Este foi o quadro da dcada de 30.

    Porm, para que houvesse um deslocamento real do eixo central da

    economia de um processo para fora para um outro para dentro, era necessrio que

    47 Idem: 81.

  • 31

    o processo de industrializao se desenvolvesse muito alm do que se conseguiu

    fazer, ficando apenas no que Furtado chamou de um modelo de substituio de

    importaes. Mantega sumaria bem a questo aqui considerada, ao dizer:

    Nisso consiste, em linhas gerais, o processo de industrializao brasileiro, orientado, na opinio de Furtado, pela substituio de importaes ou pelo mercado criado pelas atividades primrias exportadoras, e que se assemelha, em funo disso, ao processo de industrializao dos demais pases da Amrica Latina, ao mesmo tempo em que se distingue da industrializao originria dos pases capitalistas pioneiros. Nesse sentido, estamos diante uma trajetria histrica mpar, vale dizer, da dinmica do subdesenvolvimento, que no pode ser apreendida com a teoria que interpretou a expanso do capitalismo europeu ou norte-americano, mas requer uma teoria do subdesenvolvimento.48

    medida que o modelo de industrializao brasileira seguia sendo o de

    substituio de importaes, o processo era pautado pela produo de mercadorias

    semelhantes quelas originrias dos pases centrais e adequadas aos recursos,

    tcnicas e tecnologias ali existentes. Isso conduziria o Brasil a uma m utilizao

    dos seus recursos econmicos. Aqui reside um dos problemas considerados centrais

    do subdesenvolvimento. Ao basear-se em procedimentos e tecnologias poupadores

    de fora de trabalho e com alta densidade de capital, que seriam adequadas aos

    pases centrais, a industrializao nacional encontraria enormes dificuldades para a

    consolidao de um mercado interno j que em uma economia como a nossa o

    resultado seria a baixa gerao de empregos a uma reduzida remunerao.

    Isso tudo se agrava com a instalao das grandes empresas monopolistas

    utilizando grandes montantes de capital devido tecnologia sofisticada e operando com grande escala de produo em flagrante contraste com a precariedade dos mercados subdesenvolvidos.49

    Da adviria uma tendncia para a ociosidade e, buscando compens-la, a

    elevao dos preos das mercadorias. Isso terminaria por reforar a concentrao

    de renda no pas e dificultar ainda mais a formao do mercado interno.

    48 Idem: 82. 49 Idem: 85

  • 32

    Ao lado dos fatores considerados, havia ainda o poder dos latifundirios.

    Poder responsvel pela manuteno da estrutura agrria brasileira intocvel. Os

    grandes proprietrios de terras eram tidos, pelo pensamento Cepalino-furtadiano,

    como a causa maior do nosso atraso. neste ponto da abordagem que se torna

    possvel introduzir a noo de dualidade estrutural. Noo que se tornou central

    nessa matiz do pensamento social latino-americano. Para esta, o setor atrasado

    (latifundirio) um obstculo para a modernizao, na medida em que, por um

    lado, no cria mercado interno e por outro, no atende aos requisitos da demanda

    de alimentos. A tese dualista postula que ao elevar os preos dos alimentos, fora-

    se o aumento dos salrios no setor moderno e, por essa razo, constitui-se em um

    obstculo para o seu florescimento.50

    Da, a soluo para os males do subdesenvolvimento seria o de promover

    uma industrializao baseada em processos que maximizassem o uso de fora de

    trabalho, pagando mais salrios e aumentando assim o mercado interno. Alm

    disso, a transformao da estrutura agrria, de forma a aumentar sua

    produtividade e por fim, a fiscalizao das atividades das empresas multinacionais.

    O Estado seria o agente impulsionador e garantidor da modernizao.

    Essas medidas so necessrias para Furtado, pois somente atravs delas

    que se viabilizaria o desenvolvimento econmico. Aqui importante ressaltar que

    para o autor, isso no quer dizer simplesmente acumulao de capital. H,

    permeando a sua obra, uma tenso gerada pelo fim tico ao qual todo o

    desenvolvimento deve estar subordinado: a idia de que o progresso econmico

    deveria alcanar a grande maioria da populao. Seu modelo o Estado de Bem-

    Estar Social Europeu, resultado da alterao da correlao de foras no seio do

    sistema capitalista, quando este chega a um patamar tal de desenvolvimento no

    qual os trabalhadores j conseguem impor sua vontade sobre o empresariado.

    50 OLIVEIRA, F. de. A navegao venturosa (Introduo).

  • 33

    O importante que a sociedade consiga gerar um excedente grande o

    suficiente para poder ampliar os investimentos, expandir a capacidade produtiva e

    assim, aumentar a produtividade e o consumo. Contudo, essa espiral ascendente

    do progresso s ser possvel na medida em que ela for, paulatinamente,

    envolvendo cada vez mais uma parte maior da populao.

    Devemos recordar, aqui, que o rpido crescimento do capital inverte a

    correlao de foras inicial do sistema.51 Esta, ao absorver cada vez mais a fora de

    trabalho, vai aumentando o poder de barganha dos sindicatos ao mesmo tempo em

    que pe cada vez mais centralidade na capacidade de consumo da classe

    trabalhadora no sustento do processo de acumulao em si. Esta

    passa a ter, na opinio de Furtado, crescente participao na renda social, disputando com os capitalistas os frutos dos incrementos de produtividade. Isso significa que o capitalismo mais avanado resolve a luta de classes cada vez mais a favor dos trabalhadores, tornando-os praticamente scios dos incrementos do progresso e, conseqentemente, diminuindo a importncia da propriedade privada dos meios de produo enquanto fonte de privilgios.52

    Isso, como dissemos, foraria os capitalistas a buscar novas tcnicas e

    tecnologias de produo, com o objetivo de aumentar a produtividade e

    conseqentemente as vendas, para poderem cumprir com as suas obrigaes

    crescentes. Do ponto de vista de Furtado, a perda de poder poltico que adviria

    naturalmente dessa situao, seria compensatria na medida em que o conjunto da

    economia disso tiraria benefcio. No seu entendimento o capital no acumula graas

    a uma suposta explorao da fora de trabalho.53 Esta s viria a ocorrer

    quando os trabalhadores tivessem seu salrio real colocado abaixo das necessidades de subsistncia, ou mesmo quando no auferisse a parte do excedente correspondente a sua modesta contribuio nos incrementos de produtividade.54

    51 No incio do processo de acumulao, quando havia abundncia de fora de trabalho, a capacidade de negociao dos sindicatos era muito pequena e conseqentemente tambm a remunerao dos trabalhadores. 52 MANTEGA, Guido. A economia poltica brasileira: 91. 53 Aqui vale lembrar que no esquema furtadiano os incrementos de produtividade so operados sob responsabilidade e iniciativa do prprio capital. 54 MANTEGA, Guido. A economia poltica brasileira: 89.

  • 34

    Em decorrncia, numa moderna democracia capitalista o conflito de classes

    estaria de certa foram superado pois representaria, na verdade, um regime de

    colaborao entre trabalhadores e empresrios, dado ser do interesse de todos a

    continuidade do desenvolvimento econmico.

    b) O PCB e a revoluo democrtico-burguesa

    Paralelamente ao modelo de substituio de importaes Cepalino-furtadiano,

    desenvolvido durante a dcada de 50, toma corpo no Brasil outra elaborao

    terica, esta de intelectuais ligados ao ento Partido Comunista do Brasil - PCB,

    com o qual o citado modelo disputava as preferncias dos setores progressistas

    brasileiros.55 De 1946 a 1964, o partido representava a maior fora da esquerda de

    inspirao marxista do pas.56 Seu impacto na trajetria futura do pensamento

    social autctone inegvel.

    Sob influncia do VI Congresso da III Internacional (1928) dominada pelo

    stalinismo, o PCB vai, nos seus IV (1954) e V (1960) Congressos, dar forma a um

    iderio chamado por Mantega de modelo democrtico-burgus. Entre esses dois

    Congressos, ficou famosa a Declarao Poltica de Maro de 1958, redigida por uma

    comisso formada por Jacob Gorender, Giocondo Dias, Mrio Alves, Armnio

    Guedes e Alberto Passos Guimares; Declarao... posteriormente aprovada pelo

    comit central do Partido. Tal Declaro... foi motivada pelos desdobramentos do

    XX Congresso do Partido Comunista da Unio Sovitica PCUS57 e de uma

    avaliao da necessidade de reconfigurao da poltica do PCB para o pas.58 Nossa

    inteno, neste trabalho, no fazer um histrico do PCB nem tampouco de sua

    formulao. O objetivo aqui apenas buscar os elementos mais importantes

    daquilo que foi um marco no pensamento social e poltico brasileiro, cuja crtica

    ser fundamental para o desenvolvimento posterior da teoria da dependncia.

    55 Idem: 158. 56 GORENDER, J. Combate nas trevas: 22. 57 Neste congresso, Nikita Kruchov revelou os famosos crimes de Stalin. 58 GORENDER, J. Combate nas trevas.

  • 35

    O centro da formulao de todo esse perodo, que compreende os dois

    Congressos citados anteriormente, pode ser assim resumido em suas idias

    fundamentais,

    a sociedade brasileira da primeira metade do sculo59 atual tida como semicolonial e semifeudal, sob o domnio do latifndio e do imperialismo, resistindo ao avano das foras produtivas e ao desenvolvimento da nao, reivindicados pela burguesia industrial e pelo grosso da populao brasileira. Portanto, o caminho para o socialismo no Brasil a grande meta a ser alcanada segundo os adeptos desse modelo - passava pela revoluo democrtica, que eliminaria os restos feudais, libertaria o grosso da populao brasileira da misria e opresso do latifndio, expulsaria o imperialismo e, finalmente, estabeleceria uma sociedade democrtica.60

    De acordo com documentos para o IV Congresso, a sociedade brasileira

    ainda detinha um carter semi-escravista e semifeudal, mesmo aps a Proclamao

    da Repblica. Os senhores de escravos e logo aps eles os latifundirios e os

    grandes capitalistas comerciais e financeiros que compem a frente que governaria

    o pas, articulados com o capital estrangeiro, teriam submetido o Brasil condio

    de semicolnia, que no caso designaria uma situao de dependncia s grandes

    potncias capitalistas.61

    De que maneira essa articulao se materializa? Quais seriam seus

    determinantes? Basicamente, tal articulao se materializava graas concentrao

    da terra nas mos dos latifundirios, que constituiriam uma minoria reacionria e

    parasitria que vivia fundamentalmente da renda da terra, da usura e da

    explorao do trabalho dos camponeses. Esta frao de classe, em conluio com

    potncias estrangeiras, estariam exportando a riqueza natural do pas e o

    colocando sob o controle externo, atravs da entrega do controle das finanas

    pblicas, dos meios de transportes, das fontes de energia, etc.

    59 Como o livro de Mantega foi escrito em 1984, portanto aqui trata-se do sculo XX. 60 MANTEGA, Guido. A economia poltica brasileira: 158. 61 Representando aqui as naes imperialistas.

  • 36

    Essa coligao feudal-imperialista frearia o avano das foras produtivas

    nacionais, prejudicando a atividade dos industriais e comerciantes ligados ao

    mercado interno, seja pela concorrncia desleal com os produtos importados, seja

    com a fragilidade desse mercado de consumo local. Os documentos caracterizavam

    essa como a dupla opresso da populao brasileira opresso do imperialismo e

    opresso dos latifundirios, que a tornava mais pobre e sem poder aquisitivo para

    comprar os produtos industriais. Da resultava uma burguesia nacional fraca e

    dependente do capital estrangeiro. As condies desfavorveis para a indstria,

    como citado anteriormente, ainda eram agravadas pelo alto custo dos gneros

    alimentcios, resultado do desabastecimento do mercado interno em funo da

    produo essencialmente exportadora.62

    Sob essa tica, a coligao feudal imperialista feria os interesses do grosso da populao brasileira, desde os dos trabalhadores da cidade e do campo, at os da burguesia industrial e comercial, sem falar dos interesses da classe mdia urbana, formada de artesos, empregados, pequenos comerciantes, funcionrios pblicos e intelectuais em vias de pauperizao. Tudo isso fazia da revoluo brasileira uma revoluo democrtica popular, de cunho antiimperialista e agrria antifeudal.63

    A orientao estratgica que sai do IV Congresso a da revoluo brasileira

    em duas etapas. A

    primeira etapa seria a da revoluo nacional e democrtica, de contedo antiimperialista e antifeudal. Aps a vitria dela que se passaria a segunda etapa -a da revoluo socialista.64

    Portanto era necessrio, para que se alcanasse o socialismo, o pleno

    desenvolvimento das relaes de produo capitalistas. Haveria, ento, que se

    formar uma frente com todos os setores e classes sociais que objetivassem a

    industrializao nacional; frente capaz de tirar proveito poltico da unidade forjada.

    62 MANTEGA, G. A economia poltica brasileira: 161-162. 63 Idem: 162. 64 GORENDER, J. Combate nas trevas: 33.

  • 37

    Como lembra Gorender, porm, esta frente deveria ser hegemonizada pelos

    trabalhadores.65

    Uma outra caracterstica dessa frente o que vai nos fazer recordar tambm

    o pensamento Cepalino-furtadiano a defesa de que nela, todos os setores

    desejosos de contribuir com o desenvolvimento da indstria nacional pudessem se

    fazer presentes. At mesmo

    atrair a colaborao de governos e capitais estrangeiros cujos capitais possam ser teis ao desenvolvimento da economia nacional, sirvam industrializao e se submetam s leis brasileiras.66

    Estes acordos, porm, teriam seus limites. Luiz Carlos Prestes, a poca do

    Congresso, secretrio geral do Partido, assim sintetizaria essa problemtica:

    Leva-se ainda em conta a atual situao mundial no campo imperialista, onde as contradies entre pases capitalistas e deles com os EUA, como ensina Stalin, tendem a crescer. Existem possibilidades reais de utilizarmos tais contradies, desde que saibamos concentrar o fogo no inimigo mais forte o imperialismo norte americano e abrir para os demais imperialistas monopolistas a perspectiva de entendimentos e acordos.67

    A Declarao de Maro partia das mesmas premissas das teses do IV

    Congresso, mas algumas de suas caracterizaes demarcavam diferenas.68 Os

    acontecimentos que se deram no cenrio nacional e internacional, entre 1954 e

    1958, marcaram uma mudana na avaliao do PCB acerca da economia e da

    poltica brasileira. Internamente, a tentativa de golpe em Vargas e o seu posterior

    suicdio provocaram uma mudana na imagem que este possua entre os dirigentes

    do Partido.69 Externamente, o j citado XX Congresso do PCUS, que leva o Comit

    65 Idem: 33. Veremos essa questo mais detalhadamente quando apresentarmos as crticas da Teoria da Dependncia ao modelo pcbista. O importante nesse momento ressaltar a premncia de uma frente com essas caractersticas. 66 IV Congresso do Partido Comunista Brasileiro, 1955, apud MANTEGA, G. A economia poltica brasileira: 163. 67 Prestes, L. C. Informes de Balano do Comit Central, apud MANTEGA, G. A economia poltica brasileira: 164. 68 GORENDER, J. Combate nas trevas: 33. 69 De acordo com Mantega, Vargas era aos olhos do PCB, tido at ento como lacaio do imperialismo norte-americano e o que teria precipitado os

  • 38

    Central a dar um tom autocrtico na declarao de 1958, atribuindo a ela um papel

    revisionista dos erros de carter dogmtico e sectrio cometido no perodo

    stalinista.70

    A Declarao de Maro reconhecia o desenvolvimento capitalista j em

    efetivao, o que at ento o PCB se obstinava em negar,71 portanto

    no se tratava mais de uma economia exclusivamente semicolonial e estagnada, j que se verificava o ascenso das foras produtivas capitalistas e de uma burguesia nacional.72

    Esta, porm, ainda enfrentava o poder das velhas classes latifundirias em

    acordo com o imperialismo, que juntos ainda dominavam o aparelho de Estado e as

    principais instituies polticas do pas. Na declarao, esse balano est descrito

    dessa maneira:

    Como decorrncia da explorao imperialista norte-americana e da permanncia do monoplio da terra, a sociedade brasileira est submetida, na etapa atual de sua histria, a duas contradies fundamentais. A primeira a contradio entre a nao e o imperialismo norte-americano e seus agentes internos. A segunda a contradio entre as foras produtivas em desenvolvimento e as relaes de produo semifeudais na agricultura. O desenvolvimento econmico e social do Brasil torna necessria a soluo dessas d