Adoecer e Morrer Mulher Jovem Cancer Mama

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ARTIGO ARTICLE 2671 1 Programa de Pós- Graduação, Faculdade de Enfermagem, Universidade Federal de Mato Grosso (FAEN/UFMT). Av. Bosque da Saúde 635, Bosque da Saúde. 78.050-070 Cuiabá, MT. [email protected] O adoecer e morrer de mulher jovem com câncer de mama Falling ill and dying of a young woman with breast cancer Resumo O estudo teve como foco a vivência de mulher jovem com câncer de mama e objetivou compreender o adoecer, o morrer e a morte dela, a partir dos sentidos atribuídos aos eventos de sua vida. Apóia-se na ideia de que se morre a partir do que foi vivido e no modo com que este vivido vai sendo ressignificado ao longo do tempo. Trata-se de pesquisa qualitativa que se configura como um estudo de situação, o qual permitiu construir a Linha da Vida de Beth através do emprego de sua História de Vida em que se destaca suas narrati- vas, eventos considerados, por ela, marcantes e que conformaram o seu modo de viver e, nele, o mor- rer. Além da descrição minuciosa de como se de- ram os encontros de entrevista, também discute-se duas categorias centrais do estudo, denominadas de “Morrer a vida – as pequenas mortes vivencia- das por Beth” e “Beth vivendo seu morrer e mor- te”. O estudo enfatiza a necessidade dos profissio- nais da saúde tomarem para si a responsabilização por um modo de cuidado que não vise tão somente a cura, mas que tenha como foco a dimensão hu- mana com o objetivo de prover o bem estar e a manutenção da vida, enquanto esta for possível. Palavras-chave Morte, Câncer de mama, Rela- ções familiares, Cuidados à saúde Abstract This study focused on the experience of a young woman with breast cancer and sought to understand the progression of her falling ill, dying and death based on the significance attributed to the events of her life. It concentrates on the idea that one dies from how one has lived and in the way that a new meaning is attributed to this life over the course of time. It is qualitative research that is presented as a situational study that en- abled the construction of Beth’s Life Line using her Life History in which, judging from her nar- ratives, events considered significant by her and that confirmed her way of living, stand out and are reflected in her death. Besides the detailed de- scription of how the interview meetings occurred, it also discusses two central categories of the study, called “Ebbing of life – the small deaths experi- enced by Beth” and “Beth living out her dying and death.” The study emphasizes the need for the health professionals to assume responsibility for a kind of care that does not only seek a cure, but also focuses on the human dimension, aiming to en- sure well-being and maintenance of life, while this is still possible. Key words Death, Breast cancer, Family relati- onships, Health care Janderléia Valéria Dolina 1 Roseney Bellato 1 Laura Filomena Santos de Araújo 1

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CÂNCER DE MAMA

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1 Programa de Pós-Graduação, Faculdade deEnfermagem, UniversidadeFederal de Mato Grosso(FAEN/UFMT). Av. Bosque daSaúde 635, Bosque da Saúde.78.050-070 Cuiabá, [email protected]

O adoecer e morrer de mulher jovem com câncer de mama

Falling ill and dying of a young woman with breast cancer

Resumo O estudo teve como foco a vivência demulher jovem com câncer de mama e objetivoucompreender o adoecer, o morrer e a morte dela, apartir dos sentidos atribuídos aos eventos de suavida. Apóia-se na ideia de que se morre a partir doque foi vivido e no modo com que este vivido vaisendo ressignificado ao longo do tempo. Trata-sede pesquisa qualitativa que se configura como umestudo de situação, o qual permitiu construir aLinha da Vida de Beth através do emprego de suaHistória de Vida em que se destaca suas narrati-vas, eventos considerados, por ela, marcantes e queconformaram o seu modo de viver e, nele, o mor-rer. Além da descrição minuciosa de como se de-ram os encontros de entrevista, também discute-seduas categorias centrais do estudo, denominadasde “Morrer a vida – as pequenas mortes vivencia-das por Beth” e “Beth vivendo seu morrer e mor-te”. O estudo enfatiza a necessidade dos profissio-nais da saúde tomarem para si a responsabilizaçãopor um modo de cuidado que não vise tão somentea cura, mas que tenha como foco a dimensão hu-mana com o objetivo de prover o bem estar e amanutenção da vida, enquanto esta for possível.Palavras-chave Morte, Câncer de mama, Rela-ções familiares, Cuidados à saúde

Abstract This study focused on the experience ofa young woman with breast cancer and sought tounderstand the progression of her falling ill, dyingand death based on the significance attributed tothe events of her life. It concentrates on the ideathat one dies from how one has lived and in theway that a new meaning is attributed to this lifeover the course of time. It is qualitative researchthat is presented as a situational study that en-abled the construction of Beth’s Life Line usingher Life History in which, judging from her nar-ratives, events considered significant by her andthat confirmed her way of living, stand out andare reflected in her death. Besides the detailed de-scription of how the interview meetings occurred,it also discusses two central categories of the study,called “Ebbing of life – the small deaths experi-enced by Beth” and “Beth living out her dyingand death.” The study emphasizes the need for thehealth professionals to assume responsibility for akind of care that does not only seek a cure, but alsofocuses on the human dimension, aiming to en-sure well-being and maintenance of life, while thisis still possible.Key words Death, Breast cancer, Family relati-onships, Health care

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Introdução

Este estudo apoia-se na ideia de que se morre apartir do que foi vivido e que este vai sendo res-significado ao longo do tempo. Toma por base acompreensão da história de vida de uma mulherjovem com câncer de mama, cujos eventos con-siderados marcantes conformaram o seu modode viver e, nele, o morrer. Entendemos que essaressignificação do vivido se torna mais intensana experiência de adoecimento por câncer, frenteàs modificações que provoca, obrigando à pro-dução de rearranjos para a manutenção do coti-diano1.

Também outros elementos estão imbricadosna possibilidade concreta de morte, trazendo es-tigmas e medos, suscitando pavor, vergonha eexpondo a pessoa a sua fragilidade e finitude.Acresce-se a este sofrimento a necessidade de seafastar de suas atividades rotineiras, as possíveismutilações e a dor que enfrentará ao longo dotratamento2.

Na situação específica deste estudo a ressig-nificação da existência da jovem mulher se anco-rou em um encadeamento de ‘pequenas mortes’,às quais o diagnóstico de câncer e o processo deadoecimento, morrer e morte vieram se juntar.Tomamos a concepção de ‘pequena morte’ a cadauma das ‘perdas’ vivenciadas ao longo da vida;ou seja, “são experiências que nos fazem pensarna morte que, embora não tenha ocorrido con-cretamente, trazem muitos atributos que sãocomumente a ela associados, como dor, ruptu-ra, interrupção, desconhecido e tristeza”3.

Entendemos que discutir sobre a morte nãosignifica adquirir um gosto mórbido pelo viver,nem assumir uma perspectiva negativa diantedas situações4. Trata-se de tomar como reflexãouma dimensão que conforma e dá sentido à nos-sa existência, mas, que também é conformada esignificada a partir daquilo que foi vivido pornós. Essa compreensão pode oferecer a nós, pro-fissionais de saúde, elementos essenciais paraconceber possibilidades de cuidado à pessoa aolongo deste processo, resgatando o elementohumano, essencial à perspectiva do cuidado àpessoa e não apenas ao corpo biológico5.

Assim, compreender a vida da pessoa comcâncer aponta para a necessidade de discutir sen-timentos, compartilhar suas dores, tristezas e pre-ocupações, buscando minimizar as tensões deuma situação permeada por incertezas e temoresquando a finitude se torna próxima. Implica emter sensibilidade para olhá-la como alguém quetem consciência da situação em que se encontra e

que precisa de cuidados para sua esfera existen-cial e não somente para seu corpo físico6.

A cultura ocidental moderna, fortemente as-sentada no paradigma científico e no modelo bi-omédico, produz uma radical separação entre odoente e sua doença, assim como entre sua vidae sua morte7. Neste estudo evidenciamos a im-portância de ouvir a pessoa contar-se, buscandocompreender o todo de sua existência e as ressig-nificações feitas ao longo do tempo dos eventospor ela vividos.

Concordamos que a formação dos profissio-nais de saúde tem se calcado nos procedimentostécnicos em detrimento de uma formação huma-nista que possa lhes dar respaldo para incorpo-rar tanto a tecnologia e o saber acumulados aolongo da história quanto o sentido humano ao selidar com emoções e cuidado7. Neste sentido, ne-cessário se faz pensar em modos de estar junto defato e por inteiro no cuidado da vida e para avida, mesmo em situações de finitude.

Diante do exposto, objetivamos compreen-der o adoecer, o morrer e a morte de mulherjovem com câncer de mama, a partir dos senti-dos por ela atribuídos aos eventos de sua vida.

Método

Trata-se de pesquisa qualitativa que se configuracomo um “estudo de situação”8, cujo universo é avida de Beth, mulher de 34 anos com câncer demama e fora de possibilidades terapêuticas decura, vivenciando sua finitude, sendo este o crité-rio de sua inclusão no estudo. A compreensão dasituação e contexto peculiares de sua vida, bemcomo de sua família, permitiu-nos traçar algu-mas inferências mais abrangentes a partir daanálise desta microrrealidade9, dando relevo àssinuosidades das relações de diversas ordens es-tabelecidas durante sua vida, particularmenteàquelas de intensa carga afetiva.

Beth foi contatada através de uma Institui-ção de Saúde especializada em oncologia e con-veniada ao Sistema Único de Saúde localizada namesma cidade em que residia com sua família. Ocontato iniciou-se após aprovação formal daDiretoria da instituição e, além de Beth, partici-param do estudo suas duas filhas adolescentes,Beatriz e Bruna, de 15 e 16 anos, respectivamen-te, e Dona Carlota, sua mãe.

Para a recolha de dados empregamos a His-tória de Vida (HV), que nos possibilitou a com-preensão profunda do seu vivido, a partir do es-tabelecimento de uma relação de confiança entre

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nós10. Esta relação foi sendo construída ao longode nove (09) encontros de entrevista que ocorre-ram no período de outubro de 2011 a maio de2012. Estes se deram, em sua maioria, na casa deBeth, visto que ela já se encontrava acamada,debilitada e com dificuldade respiratória. Tam-bém ocorreram dois encontros em um hospitalespecializado no tratamento oncológico onde elarealizava acompanhamento médico, já em fasefinal do seu processo de morrer.

O corpus do estudo compôs-se de 86 páginasem documento Word resultante da transcrição,na íntegra, das gravações recolhidas nas conver-sas com Beth, bem como, com suas filhas e suamãe, além das observações de campo. Procede-mos inúmeras leituras desse material da Históriade Vida de Beth, do qual alguns acontecimentostrazidos por ela e reiterados ao longo dos demaisencontros foram “saltando aos nossos olhos”.

Buscamos conferir visibilidade às significa-ções trazidas por Beth ao seu vivido, bem comosuas implicações no modo de experienciar o pro-cesso de morrer e a morte. Assim, este estudo seapresenta um pouco diferenciado, pois optamospor descrever, em uma categoria inicial, a apro-ximação com ela e sua família e seu modo parti-cular de contar-se a nós. Construímos, também,um desenho analítico denominado a “Linha davida de Beth”, no intuito de que este a represen-tasse em sua essencialidade de ser humano. Nes-te desenho, elencamos os principais trechos desua narrativa, aqueles que para nós, sintetiza-vam momentos significativos de sua história.Posteriormente, organizamos outras duas cate-gorias nas quais discutimos estes trechos alicer-çados no modo de viver de Beth e em sua experi-ência de sua finitude.

Os preceitos éticos em pesquisa foram inte-gralmente respeitados. As pessoas aqui citadas,bem como as instituições, tiveram suas identida-des preservadas através do uso de nomes fictíci-os. A pesquisa matricial à qual este estudo se vin-cula foi aprovada pelo Comitê de Ética do Hos-pital Universitário Julio Müller, que também au-torizou entrevistas com sujeitos de 05 a 18 anos.

Resultados e discussão

Aproximando-se da história de Beth

e desenhando sua Linha da Vida

Conhecemos Beth em outubro de 2011, umamulher de 34 anos, que havia recebido diagnós-tico de câncer de mama em 2006 e, para tratá-lo,

realizou inúmeras seções de radioterapia e qui-mioterapia, cirurgias e outros procedimentospara alívio de sintomas. No dia em que nos en-contramos ela já sabia que não havia possibili-dade de cura para sua doença, pois se tratava deum tipo de câncer de mama agressivo, já commetástase para pulmão e ossos.

Quando chegamos a sua casa, ela estava noquarto, deitada na cama, com facies de dor e di-ficuldade para respirar, mostrando-se gemente eofegante. O seu estado físico nos preocupou bas-tante, deixando-nos receosas de manter a entre-vista, pois poderíamos estar aumentando seuincômodo e desconforto pelo esforço de reme-moração e fala. Colocamo-nos a disposição paraagendar o encontro para ocasião mais propícia,porém Beth disse que queria conversar conosco.

Assim, tão logo começou a falar, as nossasincertezas sobre a adequação de estar ou não alise dissiparam, pois ela demonstrava uma neces-sidade, quase afoita, de contar-nos sobre sua vidae sua história de adoecimento. Começou a narrarsua vivência a partir de nossa pergunta inicial:“Conte-nos como se deu a sua experiência de ado-ecimento, desde o diagnóstico até os dias de hoje”.

Ao longo de quase duas horas, Beth falou demodo contínuo, dando-nos a impressão de es-tarmos ouvindo a narração de um trecho de li-vro, já lido diversas vezes. Apesar de ser a “suahistória” que estava sendo por ela contada, Bethparecia se posicionar como narradora dos fatose não como protagonista das situações. Assim,

Despedimo-nos e fomos embora com a sensa-ção de que havíamos ouvido uma história ensaia-da, pois Beth manteve o mesmo tom de voz namaior parte do tempo. Emocionou-se algumas ve-zes, mas retomava o assunto sem grandes interfe-rências (Observações de campo – 24/10/2011).

Percebemos certa externalidade de Beth aonarrar sua experiência de vida e, nela, a de adoe-cimento, como se isso tivesse acontecido em umplano diferente daquele que estava sendo vividopor ela naquele momento. Em meio a sua histó-ria ela falou do ex-marido, se referiu ao seu pa-drasto dizendo da relação conturbada, mas sem-pre com certa superficialidade, como que sepa-rando aquilo que era importante para sua vidadaquilo que considerava ser possível sabermos.Talvez isso tenha acontecido pelo fato de termosnos apresentado como enfermeiras, o que podea ter levado a considerar que estivéssemos ali parainvestigar os sinais e sintomas clínicos de suadoença e de seu tratamento, posição geralmenteassumida pelos profissionais de saúde ao se apro-ximarem da pessoa doente.

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Tínhamos claro que nossa intenção não erade que Beth nos contasse a história da doença,que poderíamos encontrar em seu prontuáriona instituição de saúde em que estava sendo acom-panhada. Indubitavelmente, intencionávamosnos aproximar de seu modo de vida para então,compreender sua experiência de adoecimento efinitude. Assim, concluímos que aquele questio-namento inicial feito a ela não respondia ao queprecisávamos compreender, pois o direcionamen-to não deveria ser para a doença e, sim para suavida. Por isso, voltamos à sua casa, e, ao invés deperguntarmos sobre o diagnóstico e o períodode adoecimento, perguntamos sobre sua vida,sobre sua infância e sua família.

Percebíamos que as situações por ela experi-enciadas no cotidiano se constituíam no subs-trato da vivência do adoecimento por câncer, vistoque é a partir do viver e no modo de viver que oadoecer se reveste de sentido. Nossa atitude, en-tão, era de atenção11 a essas situações, sem dife-renciá-las em antes e após o adoecimento, mastomando-as como a totalidade do viver.

Refocamos nosso olhar para a história de vidade Beth, retomando o nosso pressuposto de quepara compreender a vivência do processo demorrer não basta entender o adoecimento. Essereposicionamento fez com que ela também sedespisse da história, aparentemente ensaiada,sobre seu adoecimento e nos contasse sua vida,assinalando o que nela considerava importante.

A postura de escuta, o comprometimento derespeito por sua história e a constante preocupa-ção com seu bem estar, fez com que entre nós seestabelecesse uma relação de confiança. Essa re-lação permitiu o adensamento da história, al-cançando diferentes graus de profundidade aolongo do tempo.

Concordávamos que nossa posição não erade “gravador humano” que se limita a registrar odito, mas de alguém que reagia a uma gargalha-da e um soluço, atento ao todo da interação, sejapor meio da fala ou de expressões não verbais,silêncios e intensidade de voz. Na HV, é necessá-rio que a pessoa entrevistada ocupe o lugar cen-tral da relação. Ao “se contar”, ela se conta a ou-tra pessoa numa determinada circunstância econdicionada a certa construção seletiva da me-mória; também o pesquisador se posiciona nes-sa interação com uma intencionalidade, definidapelos objetivos de sua própria investigação12.

Percebemos que Beth, apesar de manter a ca-dência de sua narrativa com certo distanciamen-to afetivo, emocionava-se ou mudava o tom devoz ao rememorar alguns dos acontecimentos

por ela vividos. Às vezes ‘se perdia’ em suas me-mórias, mas retomava ao mesmo acontecimen-to que gerou a divagação; também um mesmoacontecimento relatado em determinada fase desua vida, era retomado em outra, mostrando-semarcante para seu desfecho, num movimentoem espiral.

Essa compreensão reforçava-nos que a vidanão é linear e nem vivida de forma sequenciadaem momentos distintos, mas o entrelaçamentodos acontecimentos vividos se mostrava bastan-te marcante. Alguns acontecimentos, emboraafastados temporalmente, guardavam vincula-ção estreita entre si, como se fossem reverbera-ções, em um constante movimento, mostrandoque “a vida se constrói no movimento de suadestruição, e se organiza no movimento de suadesorganização”13.

Após o término dos encontros de entrevista,e buscando entender a complexidade dessa de-sorganização/reorganização permanente queconstitui a vida, surgiu a necessidade de cons-truir um desenho no qual pudéssemos represen-tar, imageticamente, a vida de Beth e, nela, aquiloque nos pareceu se constituir em suas ‘pequenasmortes’. Para isso, selecionamos trechos das nar-rativas que nos ‘saltaram aos olhos’ e fomos dis-pondo em uma linha reta, sequenciando-as, cro-nologicamente, do seu nascimento à sua morte.

Todavia, percebendo que não expressava o quehavíamos apreendido das narrativas de Beth, re-fizemos o desenho buscando fugir da ‘cronologi-zação’, mas apoiando-nos nas ‘escansões’ ofereci-das por ela. Essa ideia nos remetia à compreensãode que o “tempo do vivido” não é contínuo, uni-forme, linear, segmentável; mas, descontínuo e nãouniforme, cuja marcação é mais afetiva do quecronológica, desenhando-se em espirais14.

Elaboramos, então, um desenho da linha davida em espiral, de modo que cada volta ou cir-cunvolução correspondesse a um acontecimentomarcante trazido por Beth. Porém, embora a es-piral se mostrasse mais representativa do que alinha reta, ainda não podia expressar o vivido porela. As recorrências de situações de sofrimento eas reverberações que produziam em sua vida nãose mostravam presentes nas circunvoluções daespiral, pois, ainda que retomasse algo do passa-do para influenciar o presente, não transmitia aideia da profunda imbricação e dos entrelaçamen-tos que existiam entre as muitas situações vividas.

Ao mesmo tempo em que, solidárias com ahistória de vida de Beth, que se alicerçava emsituações de muito sofrimento, ansiávamos poroferecer-lhe uma imagem bela e o mais próxima

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àquilo que nos foi possível compreender de seuvivido. Concluímos, então, que a imagem de umaflor, a ‘rosa’, poderia ser usada para apresentarsua história de vida e, nela, o adoecimento e amorte. A rosa traz implícita em seu formato aqui-lo que os matemáticos e filósofos, desde a anti-guidade, denominam de “Razão Áurea” – a dis-posição de suas pétalas se faz em forma de umaespiral que se separam por ângulos que podemser medidos e quantificados, possuindo coerên-cia e correspondência entre si, numa lógica ma-temática, representando a mais agradável pro-porção entre duas medidas15.

Assim, com a rosa mantivemos a ideia inicialda espiral representada pela implantação sequen-ciada das pétalas em torno do seu receptáculo.Também, a ideia de acontecimentos que guar-dam vinculações estreitas entre si, mesmo queafastados temporalmente, pode ser expressa peladobradura delicada de cada pétala e sua sobre-posição umas às outras, conforme vão desabro-

chando, oferecendo apoio e sustentação numarelação mútua de dependência e influência, comoos eventos da vida de Beth. Sintetizávamos narosa (Figura 1) a imagem da Linha da Vida deBeth, tanto no sentido ético de fidelidade ao queela nos narrou, quanto na percepção estética, tra-zendo a forma perfeita da flor para expressaresse vivido único e complexo.

Com isso, podemos afirmar que a linha davida só é possível de ser construída a partir decerto modo de aproximação com a pessoa e quecada uma tratará elementos diferentes de suasvivências e sentimentos que lhe são próprios. Essalinha segue, assim, uma diretriz na sua constru-ção – os eixos de sentido do vivido aos quais opesquisador busca dar destaque.

Passaremos a descrever os inúmeros aconte-cimentos na vida de Beth que estiveram relacio-nados à ideia de ‘pequenas mortes’, pois, segun-do suas narrativas, representaram grandes per-das e muito sofrimento.

Figura 1. Linha da vida de Beth.

1- [...] até os 6 anos eu morei com minha avó. Ela faleceu eu tinha6 anos.

2- Até os 12 anos eu morava trabalhando. Aí eu voltei prá casa daminha mãe. Aí começou a conturbação novamente. Meu padrasto.Aí aconteceu aquele imprevisto, eu saí de casa.

3- [...] cada dia eu ficava numa casa. Todo dia uma hora dessa eutava caçando lugar pra mim ficá. Quando num achava nenhum, euia pro viaduro... dos indigente né?

4- Depois que fiquei sabando que tentô mexê cas menina, daí euchutei ele daqui de casa. Mesmo morrendo de amor por ele... Min-has filha é mais importante do que, do que tudo pra mim. Aí euentrei com divórcio também.

5- [...] dois meses eu passei muito nervoso. A discussão ca minhamãe, meu padrasto... tudo, meu esposo... Aí evoluiu, de repenteapareceu aquele caroço e foi crescendo, crescendo [...] Aí deu queera ... câncer né... (silêncio) Aí começô o tratamento [...]

6- O que tava mais me matando mesmo era ele (o marido). Euficava boa, ia estabilizando, eu passava raiva o câncer voltava... Eujá tava bem, meus exame tava tudo bem, não tinha caroço nenhum,aí vinha meu marido. Parecia que ele tava querendo me matá mes-mo [...]

7- É. E na última ele feiz... rapô até o osso, bem radical mesmo [...]Aí deu no pulmão, deu em várias outras partes (metástases) [...]

8- O tratamento é muito agressivo... As primeiras quimio, em 14dias eu já tava sem nenhum cabelo. Eu ficava 15 dias em cima dacama vomitando [...]

9- [...] eu num dô conta, nem de andá daqui ali eu num dô conta(chorando). Eu tenho que tá segurandu em alguém, entendeu? [...]Quem antes era a cabeça da casa era eu, agora num é eu, é elas (suas

filhas). O papel inverteu. Eu num dô conta mais de fazê o que eufazia antes. A responsabilidade ficô em cima delas (chorando)

10- Aí eu fiquei ruim, ruim. Meus exame tudo tá dando derramepleural, derrame pleural... Aí desde então, quando eu vim (do hos-

pital), eu numca mais me levantei, eu num ando sozinha, num con-sigo fazê nada [...]

11- [...] Que otro meu médico de quimio [...] Falô que num podiafazê mais nada comigo, num queria fazê mais nada. Pô, ia esperáDeus chegá, esperá a morte chegá? Pra ele num tinha mais jeito [...]

12- Aí eu vo fica deste jeito que ceis tão vendo aqui. E cada dia eu toassim, eu to esperando só no Senhor. Porque o Senhor é todo po-deroso, Ele já fez tantos milagre, tantas cura que o Senhor já fez,entendeu?

13- [...] dá tistimunha pra outras pessoas, eu tenho vontade na horaque eu sai dessa situação aqui. Então eu falei pro Senhor que eu mepropunho a fazê isso, sê testemunho vivo pra Ele, pra contá.

14- “minha mãe morreu” (Observação de campo)

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Morrer a vida

– as pequenas mortes vivenciadas por Beth

Preponderantemente, estudos têm tratadodos aspectos biológicos na gênese do câncer, dafunção imune e vigilância orgânica em relação àscélulas cancerosas. Também têm sido foco depesquisas os afetamentos que o câncer de mamaproduz na vida da mulher após o seu diagnósti-co. No entanto, começa a ser estudado o modode ser e viver da mulher na ocorrência do câncer,dando-se ênfase a uma possível correlação entrea defesa orgânica e os estados psicoemocionais,apontando que “determinados estilos de perso-nalidade, tais como negação, repressão, evitaçãoe dificuldades em externar emoções ou conteú-dos internos, cursam com função imune menosativa” na ocorrência do câncer16.

Nesse sentido, a história de Beth nos pareceubastante emblemática dessa relação, não no quese refere ao seu aspecto biológico; mas, sim, quan-to à dimensão psicoafetiva e familiar de sua vidae de sua morte por câncer de mama. Chamou-nos a atenção, desde nosso primeiro encontrocom ela, as narrativas permeadas pela palavra‘morte’ ao se referir não ao câncer, propriamentedito, como seria de se esperar, mas à situaçõespor ela vividas. Estas foram apresentadas comsentimentos de perda em momentos importan-tes para ela, tanto em relação às pessoas quantoa eventos estruturantes de sua personalidade efeminilidade, desde tenra idade.

Logo após o nascimento, Beth foi morar coma avó materna, ali permanecendo até os seis anosde idade. Seu pai tinha outra família, com filhose esposa e não reconheceu sua paternidade (Fi-gura 1, narrativa 1). Quando, aos seis anos deidade, sua avó morreu (Figura 1, narrativa 2),ela foi morar com a mãe, Dona Carlota, que ha-via se casado com outro homem, Genésio. Mas,conforme Beth nos narrou, o padrasto não gos-tava dela e tentava impedir sua mãe de vê-la, vi-vendo em um ambiente conturbado emocional-mente. Entre os 10 e 12 anos saiu da casa da mãe,expulsa pelo padrasto, e foi morar em casa defamília como babá, em troca de abrigo e comida.Aos 12 anos retornou para a casa da mãe, mas,sofreu uma situação de estupro, segundo ela, amando do padrasto. Ao nos narrar este fato, Bethusou de um tom de voz baixo, e limitou-se achamar este acontecimento traumático de aqueleimprevisto (Figura 1, narrativa 3). Diante dissosaiu novamente da casa da mãe e passou a tra-balhar em troca de casa para dormir e comida; e,até os dezesseis anos morou em muitos lugares,

com famílias ou com conhecidos ligados a igrejaque frequentava. Narrou que, quando não en-contrava lugar onde ficar ou dormir, permane-cia na rua, embaixo de viadutos ou na rodoviá-ria (Figura 1, narrativa 4).

Percebemos que, após os seis anos, quando aavó morreu, a ausência de uma estrutura familiarcom certa estabilidade marcou, de forma intensa,as narrativas de Beth, que passou a viver sem areferência de um lar, como “lugar de pertencimen-to” físico e afetivo. Sobre isso, lembramos a ima-gem da casa como a metáfora do ninho17, ou seja,‘o lugar’ do aconchego que oferece proteção con-tra os sofrimentos da vida. Contudo, para Beth,grande parte de sua infância passou-se sob a som-bra da falta de referência de uma ‘casa-ninho’, tra-zendo a imagem da intimidade perdida. Tambéma série de rompimentos de vínculos afetivos leva-a à perda de sua referência de pertencimento a umlar e a uma família.

Cada uma dessas sucessivas ocorrências deperdas emocionais, psicológicas e de lugar de per-tencimento que Beth viveu se configuraram comopequenas mortes, pois entendemos que tais expe-riências afetaram, de modo intenso e dramático,sua formação como pessoa. Pertencer a um lugare estabelecer relações de interdependência comoutros é dimensão constitutiva da formação dacriança, sendo que a sua ausência pode causarangústias, medo, solidão e falta de segurança paralidar com problemas na vida adulta. A família é o“núcleo essencial de constituição do sujeito” àmedida que esteja inserida nesta dinâmica per-passada por desejos, lugares psíquicos, identifi-cações, ambivalências, posições hierárquicas, cons-truções imaginárias, mitos e historicidade18.

Aos 16 anos Beth mudou de cidade e, aindatrabalhando em casa de uma família, conheceuum homem, com 30 anos, com quem passou amorar, sendo que, ao falar dele, destacou o fatode ele não beber e nem fumar, o que lhe passavauma imagem de respeito. Alegou também que,durante os primeiros meses, morou com ele, masnão fazia essas coisas, referindo-se a manter rela-ções sexuais, pois tinha trauma, tinha medo. En-tretanto, acabou por engravidar e, logo em se-guida, descobriu que o homem a traia. Não po-dendo retornar à casa da mãe devido ao padras-to e não tendo para onde ir, passou, novamente,a peregrinar por espaços temporários, até mes-mo na rua ou na rodoviária.

Quando teve sua filha, Beatriz, foi acolhida porcurto tempo na casa da irmã do pai da criança,mas ele não quis assumir a paternidade. Voltou ater que morar na rua, agora com o bebe recém-

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nascido. Após algum tempo, Beth passou a morarcom uma amiga, ainda que em situação precária,e, nesse ínterim, conheceu o irmão dessa amigaque resolveu assumi-la, como companheira. Noentanto, era alcoólatra e um dia ela o encontrouem uma casa de prostituição. Assim, saiu de casa,juntamente com uma filha e novamente grávida.

Beth procurou outro lugar para morar e con-seguiu emprego na casa de uma família onde tevesua filha, Bruna. Pouco tempo depois, conheceuGerson, que, a princípio, parecia ter um compor-tamento que ela considerou respeitoso. Casou-secom ele, sendo que o casamento durou 15 anos;porém, ao adoecer por câncer de mama, em 2006,intensificaram-se problemas conjugais que já exis-tiam e, inclusive, sofreu traições. Ela nos narrou,também, que seu marido havia tentado violentarsexualmente suas filhas, situação que a levou adecidir pelo divórcio (Figura 1, narrativa 5).

As figuras masculinas com as quais Beth serelacionou ao longo de sua vida apareceram emsuas narrativas frequentemente vinculadas a si-tuação de violência e traição, numa circularidadede vivências de tristeza e dor. Percebemos que,para ela, há um fatalismo nesse círculo vicioso, oque reforça a concepção da banalização, mini-mização, negação e naturalização das situaçõesde violência contra a mulher19.

No decorrer da conversa com Beth pudemosperceber detalhes do relacionamento conflituo-so que teve com o marido e a importância dessarelação em sua vida e nos sentidos que atribuiuao câncer de mama. Foi nessa relação, mais doque em qualquer outra ao longo de sua vida, queancorou a maior parte de suas rememorações ereferências de afetividade e sofrimento. Assim,defrontamo-nos com o paradoxo de ser essehomem aquele por quem eu tinha um amor tãogrande por esse meu marido, também era por quemeu morria por causa desse monstro. Também aque-le que tava mais me matando mesmo era ele [...]parecia que ele tava querendo me matá mesmo,pra ficá cas minhas coisas (Figura 1, narrativa 7),referindo-se ao fato de que, quando se sentiamelhor fisicamente, aconteciam brigas e discus-sões entre eles e, por isso, ela voltava a piorar.

O divórcio, aparentemente, provocou a rup-tura desse círculo vicioso de sofrimentos. Toda-via, pudemos perceber a permanência da mágoae da dor permeando sua vida com relação ao ex-marido, pois, inúmeras vezes em sua narrativa,ela retomou o relacionamento, afirmando queainda não o havia esquecido: [...] e eu to aí, daquipra cá oh! Já sofri muito tempo. Num tira a pessoa,mesmo que a pessoa fez uma coisa errada, num

tira a pessoa dum dia pro outro do coração da gen-te né? Foi muito difícil pra mim, nossa! (Beth).

A separação ou o divórcio se configuram,também, como uma pequena morte, uma morteem vida, pois o outro continua a existir, mas dei-xa de fazer parte do convívio, sendo necessárioreelaborar essa perda para conseguir retomar oequilíbrio psicológico3.

A ressignificação da própria vida sem o ou-tro se torna ainda mais difícil quando há baixaautoestima, baixa autoconfiança e vínculos afe-tivos frágeis. A dificuldade desse movimento deressignificação é potencializada pela situação deadoecimento de Beth, que a deixou ainda maisfrágil e com poucas perspectivas de assumir asrédeas de sua vida. Novamente desenha-se o cír-culo reforçador de negatividades, perpetrandoagravamento em sua doença, trazendo a mortenão apenas de sua esperança de cura, mas tam-bém de manutenção de sua relação amorosa.

Tendo nos aproximado das “pequenas mor-tes” vividas por Beth ao longo de sua vida, pas-saremos a apresentar, de modo mais centrado,seus últimos cinco anos, período entre o diag-nóstico de câncer de mama e sua morte, quandovivenciou seu processo de finitude, porém semdeixar de fazer referência ao todo de seu vivido.

Beth vivendo seu morrer e morte

Ao nos contar sua história de vida e adoeci-mento, Beth apontou como causa do apareci-mento do câncer de mama a sua situação famili-ar e afetiva; localizou, inclusive, os últimos mesescomo se fossem de grande tensão e, por isso,com o poder de ter desenvolvido a doença. Nassuas palavras,

[...] dois meses eu passei muito nervoso, muitonervoso mesmo. A discussão ca minha mãe, meupadrasto... tudo, meu esposo... Aí evoluiu, de re-pente apareceu aquele caroço e foi crescendo, cres-cendo, crescendo [...] Aí deu que era... câncer, né?[silêncio]... Aí começô o tratamento [...] (Beth).

Beth não apenas traçou a estreita relação en-tre o câncer e esses estados emocionais que viveu,como também ao crescimento rápido e voraz dotumor. Reforça, assim, a concepção presente deque o câncer advém de sentimentos dolorosos,estados de depressão ou de perdas, manifestosem pessoas que se posicionam como perdedoresna batalha da vida20.

Em suas narrativas Beth empregou poucas ve-zes a palavra “câncer” e, quando o fazia, geralmenteera em tom baixo de voz. Algumas vezes se referiua ele como uma doença dessa uma doença tão terrí-

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vel; já em outras, comparava-o a uma gripinhaqualqué. Entretanto, também afirmou que só que édifícil cê sabê que tá com uma doença dessa. A pri-meira coisa que cê imagina é ‘pô, cê vai morrê’.

Ainda que sejam raros os estudos acerca dapossibilidade das situações de vida influírem naocorrência do câncer, para Beth seu tumor nãoapenas resultou dos sofrimentos emocionais quevivenciava junto à família e ao esposo; como tam-bém sua recrudescência se deve a esses sofrimen-tos, particularmente aqueles advindos da sua re-lação conjugal (Figura 1, narrativa 6). A traiçãosofrida do marido põe novamente em movimen-to a circularidade das situações negativas no cam-po afetivo por ela experienciadas ao longo da vida.

Se, adoecer por câncer é algo traumático paraqualquer ser humano, vivenciar esse adoecimen-to em meio a perdas afetivas importantes torna-se insuportável (Figura 1, narrativas 7). Com isso,podemos concordar que a desestruturação ad-vinda de situações de divórcio e abandono, bemcomo atitudes de traição e deslealdade podemdeixar marcas afetivas que prejudicam o enfren-tamento do adoecimento21.

Após cinco anos de tratamento intenso, ci-rurgias repetidas e vários esquemas de quimio-terapia e radioterapia, Beth afirmou: o que maisme mata mesmo não é câncer, mas o tratamento.Suas narrativas nos falam de mutilação em seuseio, dores e medicações que lhe causaram náu-seas, vômitos e a perda dos cabelos (Figura 1,narrativas 8 e 9). Podemos perceber que as rea-ções adversas das terapêuticas podem causar ta-manho sofrimento e dor física e emocional queacabam por receber o status de doença. Nessasituação, o tratamento se torna uma fase tão di-fícil quanto a própria descoberta da doença22.

Percebemos sentimentos paradoxais expressospor Beth em relação à sua possibilidade concretade morte física e à crença na cura através da religi-osidade (Figura 1, narrativas 10 e 11). No bojodessa situação de agravamento das manifestaçõesde sua doença e intensificação do tratamento, ocor-reram desavenças entre suas filhas e sua mãe comrepercussões para esse momento de maior depen-dência de Beth em relação ao cuidado familiar, as-sim como a decisão médica de considerar sua situ-ação como fora de possibilidades terapêuticas decura (Figura 1, narrativa 12). Mas, ainda assim, elareafirmava estar curada, conforme observado:

Beth afirmou novamente que acredita estarcurada e que o que está sentindo são apenas osefeitos do tratamento e que tudo vai passar. Men-cionou o quão mal ficou na semana anterior: eu

parecia morta, suava frio, unhas roxas. Achei

que eu ia morrer, aí passou. Beth repetiu aindaque sabe que está curada, mas que está muito can-sada: eu queria uma forma de acabar com tudo

isso (Observações de campo – 09/11/2011).Nestes momentos, Beth negava a possibili-

dade de morrer, afirmando acreditar que Deus ativesse curado e que o que ela estava sentindoeram os efeitos colaterais do tratamento, masque iriam passar. Percebemos que a religiosidadedava sentido para seu sofrimento e possibilidadede morte próxima. Assim, ao mesmo tempo ne-gava e afirmava a morte, mas sempre amparadapor Deus, acreditando-se um milagre Dele porestar viva e crendo que assim iria permanecer.

Além da negação ou afirmação da morte físi-ca, em alguns momentos Beth vivenciava a bar-ganha com a divindade23 (Figura 1, narrativas 13e 14). Diante do sofrimento advindo do adoeci-mento e da proximidade da morte, Beth buscoutranscender sua experiência, pois desejava, as-sim, encontrar uma explicação para a vida, ape-gando-se à esperança de cura:

[...] Mas, se eu to até aqui é que Deus tem umplano na minha vida [...] Eu creio eu vo vencê,sim. Deus falô que eu vo vencê, vo vivê. E eu creiona palavra Dele que eu vo vivê, então eu vo. Isso ésó um período, uma prova que eu tenho que passá,entendeu? Então... e Ele é fiel pra cumpri. E Ele falôque eu vo vivê (Beth).

Beth comparou a experiência do câncer a umamissão, visto como uma tarefa a ser vivida paraque ela pudesse alcançar um objetivo maior. Orelacionamento com Deus e a fé proporciona-vam a certeza de cura e faziam com que as dorese o sofrimento fossem, ao menos, suportados.

Estudo afirma a necessidade de compreendera espiritualidade e a fé das pessoas, pois, este éum sentimento arraigado na nossa cultura e tãoimportante quanto qualquer outro modo de en-frentamento. Nesse sentido, é necessário com-preender que a dimensão espiritual ocupa lugarde destaque na vida e é imprescindível considerá-la no planejamento do cuidado24.

Diante da possibilidade de morte, Beth preo-cupava-se em deixar uma casa para suas filhas,afirmando a importância de ter um lugar paramorar:

[...] porque eu suei tanto, isso aqui é patrimô-nio da minhas filha. Se eu vier a falecer minhasfilha tão dentro da casa delas, que tudo uma base éuma casa. Se cê tivé uma casa as otras coisas cêconsegue, tendo saúde cê consegue e tudo isso aquieu construí pra elas (Beth).

O fato de não ter tido uma ‘casa’ como lugarde segurança e proteção durante a infância e ado-

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lescência marcou a vida de Beth, que buscou cons-truir uma para deixar para suas filhas. Essa preo-cupação levou-a, em agosto de 2011, a deixar umdocumento registrado formalmente em cartório,em que expressa sua determinação de que, quan-do morresse, as filhas deveriam ficar sob a guar-da de seu irmão mais velho, que é casado e temum filho; para isso, todos deveriam habitar essacasa que legava para as filhas. Tomamos conheci-mento deste documento através de conversa comsua mãe, depois que Beth morreu. Estudo mos-tra que, em virtude da morte estar bem próxima,a preocupação com os filhos torna-se intensifica-da, gerando aflição em uma espécie de perda deuma situação que não poderá ser vivida25.

Pudemos nos encontrar algumas vezes comBeth nos seus últimos dias de vida, quando elaprecisou ser hospitalizada, sendo que Beatriz, suafilha, nos avisou por telefone: Vem pro hospital.Ela prescisa d vc. Mãe ta muito sem ar. Ta pedindosocorro ‘axando’ q vai morrer (07/12/2011- men-sagem enviada via celular por Beatriz).

Quando lá chegamos, Beth estava agitada,com respiração agônica, transpirando e comolhos assustados. Permanecemos ao seu lado,procurando apoiá-la nesse momento tão difícil,empregando, na medida do possível, os conheci-mentos como enfermeiras, mas, principalmente,a solidariedade humana.

[...] Eles querem me fazer dormir, me de-

ram até um remédio pra dormir. Mas, se eu

dormir, como que eu vou respirar? [...]. Per-guntou-nos qual o jeito correto de respirar: Como

que faz pra entrar mais ar? Beth mostrava, pelasua voz e seu olhar, uma agonia e um desespero quedeixavam qualquer pessoa sem saber o que fazer.Estava muito agitada, como se estivesse em pânico(Observações de Campo – 07/12/2011).

Acalmá-la, ampará-la e dizer-lhe o que esta-va acontecendo, foram dimensões do cuidadopossível, pela ‘presença por inteiro na situação-limite’. O sono repousante que sobreveio à nossaconversa-silêncio mostrou o quanto o cuidado-presença foi efetivo naquele momento.

Beth morreu no dia seguinte e recebemos anotícia, também de sua filha Beatriz, via telefone.Beatriz demonstrou calma e tranquilidade em suavoz, o que nos fez pensar que, após este longoperíodo de adoecimento, já era possível uma acei-tação da morte. Ainda, ela nos falou sobre o fu-neral e quais seriam os horários para realizaçãodos ritos de despedida, além de reiterar o desejode que participássemos. Com isso entendemosque, de algum modo, a relação que se estabeleceuao longo dos nossos encontros serviu de apoio e

amparo, a Beth em seu morrer e, também a fa-mília ao vivenciar sua morte.

Assim, concordamos que embora não sejapossível transformar a circunstância da morte épreciso transformarmo-nos e as nossas atitudesatravés da maneira de lidar e entender o proces-so de morte. Falar da finitude do ser humano,portanto, envolve falar não só dos aspectos téc-nicos da morte como fim das funções encefáli-cas, mas, principalmente, dos aspectos afetivos eemocionais, da tristeza, separação, saudade7.

Considerações finais

Ao compreender o processo de morrer e mortede Beth através dos sentidos por ela atribuídos àsua vida fomos tomadas de grande inquietaçãopela ‘carga’ de sofrimento que as narrativas trazi-am. No entanto, o estudo nos mostrou que semorre a partir do modo como se viveu e que asperdas, ou pequenas mortes, experienciadas aolongo da vida podem tornar-se superlativas ouserem ressignificadas diante da perspectiva demorte próxima.

Essa percepção nos parece importante para asensibilização dos profissionais de saúde, demodo que possam se questionar sobre qual temsido a capacidade efetivamente apoiadora de suaspráticas no cuidado à pessoa e à família que vi-venciam o morrer e a morte.

É preciso enfatizar a necessidade de assun-ção, por nós profissionais da saúde, de um modode cuidado que não objetive tão somente a cura,mas que tenha como foco o bem estar e a manu-tenção da vida, enquanto esta for possível e domodo como possa ser vivida pela pessoa quemorre. Além disso, embora essa perspectiva possaparecer paradoxal – cuidar para a vida enquantoa pessoa caminha para a morte – deve ser “umaatitude” assumida por todos os profissionais desaúde que dela cuidam e não um rol de preceitose ações a serem desempenhados por alguns pro-fissionais em uma dada situação medicamente eformalmente determinada.

Entretanto, para poder cuidar da pessoa quemorre, consideramos que seja necessário que oprofissional de saúde compreenda e aprenda alidar com seus próprios sentimentos de perda emedos frente à finitude da pessoa sob seus cui-dados. Para tanto, estudos que abordem a pers-pectiva da pessoa que está vivenciando sua fini-tude nos mostram como ela deseja ser cuidada,possibilitando-lhe viver o que haja para viver,independente de quanto tempo tenha para isso.

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Colaboradores

JV Dolina realizou a coleta de dados, a análisedestes e redigiu o artigo. R Bellato e LFS Araújocoordenaram a pesquisa matricial e foram asorientadoras do estudo, além de participarem daredação e revisão final.

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Artigo apresentado em 30/04/2013Aprovado em 22/05/2013Versão final apresentada em 22/05/2013

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