Adam Kuper - Colonias, Metropoles_um Antropologo e Sua Antropologia

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Adam Kuper é mais conhecido no Bra- sil por seus trabalhos sobre a antropolo- gia britânica, de claro recorte histórico e de tom, ao mesmo tempo, crítico e irô- nico. Seu livro Antropólogos e Antropo- logias, traduzido para o português pou- co após ser publicado, tornou-se um clássico em nossos cursos de gradua- ção, assim como vem ocorrendo com The Invention of Primitive Society nos cursos de pós-graduação. Menos conhe- cida é sua produção propriamente etno- gráfica, baseada em pesquisas de cam- po na África e na Jamaica. Muitos igno- ram, ademais, que Adam Kuper não é e não se vê exatamente como um antro- pólogo britânico. Ele nasceu na África do Sul e lá foi criado no período de con- solidação do regime segregacionista. Nesta entrevista, exploramos as cone- xões entre a história social e política da- quele país e o desenvolvimento intelec- tual da antropologia, a partir da pers- pectiva de um de seus filhos e autores. Em agosto de 1999, Adam Kuper, professor da Brunel University, esteve no Brasil a convite do Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social (Mu- seu Nacional, UFRJ), onde proferiu uma série de conferências sobre seu recém- lançado livro Culture: The Anthropol- ogists’ Account. Na ocasião, concedeu esta entrevista a C. Fausto e F. Neiburg. Fausto Podemos começar pela África do Sul, falando sobre antropologia sul-africana e o início de sua própria carreira como antropólogo. Kuper A antropologia desenvolveu-se, na África do Sul, muito ligada às questões políticas locais. Essa antropologia foi muito importante para a definição de pelo menos parte da agenda da moder- na antropologia social britânica, através de Radcliffe-Brown, que lecionou du- rante muitos anos na África do Sul e es- tabeleceu a primeira cadeira de antro- pologia no país; através de Malinowski, que fez visitas à África do Sul, e de mui- tos alunos seus que se envolveram com o país; e através dos antropólogos sul- africanos que migraram para a Grã- Bretanha. Mas há também uma segun- da história, pouco conhecida fora da África do Sul, que é a história da antro- pologia africânder, favorável à segrega- ção racial e que produziu muitos dos su- portes científicos e institucionais para o programa do apartheid. Assim, quando eu era aluno de graduação na África do Sul, havia esses dois tipos de antropolo- gia. Uma delas é muito conhecida, mui- to cosmopolita, muito ligada à vida aca- dêmica britânica; a outra é essa antro- pologia africânder, desconhecida fora da África do Sul, mas muito poderosa dentro dela. Nas universidades de lín- gua inglesa, a antropologia que estudá- vamos era de oposição, produzida como crítica ao apartheid e à antropologia que lhe servia de base. Enquanto es- ENTREVISTA COLÔNIAS, METRÓPOLES: UM ANTROPÓLOGO E SUA ANTROPOLOGIA Adam Kuper MANA 6(1):157-173, 2000

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Adam Kuper é mais conhecido no Bra-sil por seus trabalhos sobre a antropolo-gia britânica, de claro recorte históricoe de tom, ao mesmo tempo, crítico e irô-nico. Seu livro Antropólogos e Antropo-logias, traduzido para o português pou-co após ser publicado, tornou-se umclássico em nossos cursos de gradua-ção, assim como vem ocorrendo comThe Invention of Primitive Society noscursos de pós-graduação. Menos conhe-cida é sua produção propriamente etno-gráfica, baseada em pesquisas de cam-po na África e na Jamaica. Muitos igno-ram, ademais, que Adam Kuper não é enão se vê exatamente como um antro-pólogo britânico. Ele nasceu na Áfricado Sul e lá foi criado no período de con-solidação do regime segregacionista.Nesta entrevista, exploramos as cone-xões entre a história social e política da-quele país e o desenvolvimento intelec-tual da antropologia, a partir da pers-pectiva de um de seus filhos e autores.

Em agosto de 1999, Adam Kuper,professor da Brunel University, esteveno Brasil a convite do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (Mu-seu Nacional, UFRJ), onde proferiu umasérie de conferências sobre seu recém-lançado livro Culture: The Anthropol-ogists’ Account. Na ocasião, concedeuesta entrevista a C. Fausto e F. Neiburg.

FaustoPodemos começar pela África do Sul,falando sobre antropologia sul-africana

e o início de sua própria carreira comoantropólogo.

KuperA antropologia desenvolveu-se, naÁfrica do Sul, muito ligada às questõespolíticas locais. Essa antropologia foimuito importante para a definição depelo menos parte da agenda da moder-na antropologia social britânica, atravésde Radcliffe-Brown, que lecionou du-rante muitos anos na África do Sul e es-tabeleceu a primeira cadeira de antro-pologia no país; através de Malinowski,que fez visitas à África do Sul, e de mui-tos alunos seus que se envolveram como país; e através dos antropólogos sul-africanos que migraram para a Grã-Bretanha. Mas há também uma segun-da história, pouco conhecida fora daÁfrica do Sul, que é a história da antro-pologia africânder, favorável à segrega-ção racial e que produziu muitos dos su-portes científicos e institucionais para oprograma do apartheid. Assim, quandoeu era aluno de graduação na África doSul, havia esses dois tipos de antropolo-gia. Uma delas é muito conhecida, mui-to cosmopolita, muito ligada à vida aca-dêmica britânica; a outra é essa antro-pologia africânder, desconhecida forada África do Sul, mas muito poderosadentro dela. Nas universidades de lín-gua inglesa, a antropologia que estudá-vamos era de oposição, produzida comocrítica ao apartheid e à antropologiaque lhe servia de base. Enquanto es-

ENTREVISTA

COLÔNIAS, METRÓPOLES:

UM ANTROPÓLOGO E SUA ANTROPOLOGIA

Adam Kuper

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ta última era romântica e primitivista,aquela insistia em tratar a África do Sulcomo uma única sociedade, em rápidatransição. Os seus objetos etnográficosmais característicos eram coisas como aimigração de trabalhadores, as religiõesmistas cristãs-africanas, a urbanização,e assim por diante.

NeiburgFoi nesse contexto intelectual que vocêse formou?

KuperEu estudei antropologia durante doisanos na África do Sul, como parte docurso de história. Em 1962, deixei o paíse fiquei nove meses em Paris, depois fuipara Cambridge como estudante dedoutorado. Assim, boa parte de minhaformação antropológica foi feita fora daÁfrica do Sul, mas foi a minha expe-riência lá que me fez querer ser antro-pólogo, e foi a situação da antropologiana África do Sul que me forneceu o mo-delo para os tipos de problemas e abor-dagens teóricas pelos quais me interes-sei. É claro que havia ainda o fato de aminha tia, Hilda Kuper, ser antropólogae aluna de Malinowski. Quando eu ti-nha dezoito anos, ela me levou para umtrabalho de campo na Suazilândia. Elaera péssima motorista e a Universidadede Natal não lhe deu permissão parausar o jipe da universidade na viagem àSuazilândia, alegando que ela sempreacabava se acidentando. Então ela dis-se, “bem, eu tenho um sobrinho de de-zoito anos que é um excelente motoris-ta”. Então acabei indo, levando-a decarro para todo lado. Lembro de um en-contro que foi particularmente impor-tante para mim. Nós estávamos na al-deia da Rainha Mãe, onde minha tiahavia feito bastante trabalho de campo,e sendo homem, eu não podia acompa-nhá-la, então fiquei no regimento que

guardava a aldeia. O príncipe encarre-gado desse regimento, que tinha a mi-nha idade e estava vestido com roupasclássicas dos Suazi, com lança e tudo,levou-me para a sua cabana. Os solda-dos levaram-lhe um recipiente com cer-veja. Ele falava inglês fluentemente,pois como muitos dos aristocratas suazi,fora educado em uma escola pública in-glesa. Em dado momento, ele me per-guntou: “você acredita em feitiçaria?”.Como eu tinha dezoito anos e haviaacabado de deixar de acreditar em qua-se tudo, inclusive em feitiçaria, disse“não”. Ele me olhou penalizado, e medisse algo que nunca esqueço e quesempre conto para meus alunos. CitouHamlet: “There are more things in hea-ven and earth, Horatio/Than are dreamtof in your philosophy” (“Há mais coisasentre o céu e a terra, Horacio/Do que sesonha na sua filosofia”). Então fiqueipensando que era uma observação beminteressante diante da questão da feiti-çaria e da racionalidade, especialmen-te partindo de um príncipe suazi. Nessemomento me ocorreu que talvez eu de-vesse me tornar antropólogo.

FaustoQual era, então, a correlação de forçasentre a antropologia de orientação in-glesa e a africânder?

KuperA antropologia africânder tinha o apoiodo governo. Eram os alunos que se gra-duavam nas suas universidades queiam trabalhar como administradoresnos Bantustãos, no serviço público, naeducação. Eram eles que faziam o pla-nejamento da administração pública.Institucionalmente, tinham controle ab-soluto, mas sabiam que internacional-mente eram párias, e tinham muita des-confiança em relação aos antropólogosdas universidades de língua inglesa,

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que tinham reputação internacional,publicavam nos melhores periódicos,eram convidados para palestras em vá-rios lugares. Havia uma tensão muitoforte e o paradoxo de que quem tinhapoder “em casa” não tinha capital cul-tural internacionalmente, e vice-versa.Mas os antropólogos de fala inglesa aospoucos foram saindo. Nem todos, poisalguns sentiam uma espécie de com-promisso moral e nunca saíram. É o ca-so de Monica Wilson, que era filha, ne-ta e acho que bisneta de missionáriosradicados no Transkei. Ela havia cresci-do lá e estava decidida a ficar.

NeiburgHavia, naquela época, espaços institu-cionais para a antropologia nas univer-sidades ou nas agências federais? Ondeestavam os antropólogos?

KuperDepende do lado em que você estava.No lado de fala inglesa, não havia ne-nhuma oportunidade a não ser nas uni-versidades de língua inglesa. As maisfamosas eram a de Witwatersrand e ada Cidade do Cabo, e também a Uni-versidade de Natal em Durban, ondeminha tia lecionava. Havia tambémuma pequena universidade chamadaRhodes University, em Grahamstown,onde Phillip Mayer tinha uma equipede pesquisa realizando estudos urbanosmuito interessantes. Eram essas as uni-versidades de língua inglesa. No casoda antropologia africânder, os estudan-tes formados acabavam no governo,porque os antropólogos africânderes ti-nham controle sobre os museus nacio-nais e provinciais. Foi interessante ob-servar quando eles começaram a per-der o referencial. Em 1982, fui à Áfricado Sul em uma viagem de caráter pri-vado. Lá, recebi um telefonema de umprofessor de etnologia da Rand Afri-

kaans University. Todos os professoresde etnologia nas universidades africân-deres eram membros do Broederbond,a sociedade secreta que estava no cora-ção do establishment africânder (Broe-derbond significa sociedade de irmãosem africâner). Recebi esse telefonema eo sujeito me disse: “sei que você estáaqui para uma visita de cunho pessoal,mas se você tiver tempo, gostaria muitode conversar com você”. Então fui visi-tá-lo. Foi a primeira vez que pus os pésnessa universidade Rand Afrikaans,que fora construída pelo governo a ape-nas dois quilômetros da minha própria,a Witwatersrand University, como for-ma de desafiar uma universidade libe-ral, esquerdista. Aquela universidadedo apartheid parecia uma fortaleza. En-trar nela dava medo, a arquitetura erarealmente fascista, fazia você se sentirminúsculo. Fui pelo corredor até a salado professor de etnologia, e vi que dooutro lado do corredor estava o Depar-tamento de Pesquisas em SegurançaNacional. Ao encontrar o professor, elecomeçou a falar apaixonadamente, equando percebeu que eu entendia afri-câner, passou a falar nessa língua e mecontou a seguinte história: estava fa-zendo trabalho de campo em Gazanku-lu, uma região muito pobre; ele sabiafalar muito bem a língua local. Quantomais trabalho de campo fazia, mais per-cebia que o apartheid, longe de ajudaraquelas pessoas, era na verdade a prin-cipal causa de suas dificuldades. A suaprimeira reação foi tentar explicar issopara as pessoas em Pretória. À medidaque ele começou a falar com as pessoas,foi percebendo que elas não queriamouvi-lo. Seus colegas começaram a iso-lá-lo, os seus filhos começaram a terproblemas com a direção da escola, aspessoas das agências do governo emPretória começaram a insinuar que eramelhor que ele tomasse cuidado. Com

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o tempo, as únicas pessoas com as quaiscontinuava podendo conversar eram osdois colegas que estavam trabalhandocom ele na pesquisa. Foi então que eleme telefonou, só porque queria desa-bafar.

FaustoQuais eram as relações entre a antro-pologia africânder e a de orientação in-glesa?

KuperHavia duas associações de antropologiana África do Sul, a de língua inglesa, àqual evidentemente também estavamafiliados os antropólogos negros, e a delíngua africâner. E se alguém das uni-versidades de língua africâner fosse aum congresso da Associação de línguainglesa, certamente teria problemas sé-rios com os seus superiores. Um ano de-pois da visita que contei, aquele antro-pólogo foi ao congresso da Associaçãode língua inglesa, e quando ele se le-vantou para apresentar seu trabalho,um funcionário do governo também selevantou e disse que ele não poderia fa-zê-lo, que o material era propriedadereservada do governo. Foi um momentomuito dramático. Cerca de um ano de-pois, houve outro incidente. Eu estavana conferência da Associação de línguainglesa e havia um jovem antropólogoafricânder, o que era muito incomum.Certa noite, sentei-me com ele paraconversar, começamos a beber brandysul-africano, que é muito bom e barato,e ele começou a me contar uma histó-ria. Ele nascera em Potchefstroom, umapequena cidade africânder do Trans-vaal, famosa por ser muito calvinista.Contou-me sobre sua infância lá, sobrecomo foi para a universidade estudarantropologia, sobre as pesquisas quefez em Potchefstroom para o mestrado,junto à comunidade negra da cidade. À

medida que os negros passaram a co-nhecê-lo melhor, eles contaram o se-guinte: “nós tínhamos casas e lojas nes-sa parte da cidade, e o Conselho Muni-cipal apropriou-se de tudo e nos expul-sou. Um dos responsáveis foi o seu tio.Depois disso, ele comprou as terras apreços muito baixos”. Ele foi verificaros arquivos do Conselho Municipal eviu que era tudo verdade; a partir daícomeçou a se questionar e a ganhar dis-tanciamento. Foi muito interessanteacompanhar o processo pelo qual essesantropólogos africânderes – muitos dosquais eram pessoas honestas, mas aomesmo tempo muito provincianas e fe-chadas em uma comunidade extrema-mente leal, hierárquica e disciplinada –foram aos poucos, um a um, chegandoa uma ruptura.

FaustoVocê sabe qual a origem dessa socieda-de secreta do Broederbond?

KuperNão estou bem certo. Surgiu quando omovimento nacionalista estava real-mente começando, na década de 20.Era uma rede de elites, dirigentes, mi-nistros calvinistas, advogados, políticos,professores, que organizavam o movi-mento nacionalista. E quando chega-ram ao poder, essa rede evidentementepassou a ser extremamente importantedentro do partido e do governo.

NeiburgQuando foram fundadas as universida-des na África do Sul?

KuperA Universidade da Cidade do Cabo é aúnica que foi criada ainda em fins doséculo XIX. A Universidade de Stellen-bosch foi criada em 1910, eu creio, e aUniversidade de Witwatersrand na dé-

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cada de 20. Minha mãe foi uma das pri-meiras alunas e acho que ela entrou ládois anos depois que a universidade fo-ra criada, em 1921 ou 1922.

FaustoO que ela estudou?

KuperMatemática. Na universidade, ela setornou muito amiga de Eileen Krige.Ela e seu marido, J. D. Krige, são os au-tores de um clássico da etnografia sul-africana, The Realm of a Rain Queen,sobre os Lovedu do Transvaal. Minhatia Hilda Kuper a conheceu. QuandoMalinowski veio à África do Sul, antesde eu nascer, ele visitou a minha casa.Quando eu disse que queria me tornarantropólogo, minha mãe sabia bem doque se tratava e ficou realmente brava!Ela disse, “você está completamentelouco!” O irmão de meu pai era Leo Ku-per, um sociólogo muito famoso na Áfri-ca do Sul, e Hilda Kuper era sua esposa.Mas durante a guerra, quando eu eragaroto, meu tio foi servir o exército noNorte da África e depois na Itália, e mi-nha tia Hilda Kuper foi morar conosco,de modo que fiquei muito ligado a ela.

NeiburgE como ela se tornou antropóloga?

KuperNão tenho certeza. Havia uma mulherque dava aulas de antropologia na Uni-versidade de Witwatersrand, a primeiraprofessora da área nessa universidade,chamada Agnes Winifred Hoernlé, nas-cida na África do Sul, em 1885. Ela es-tudou em Cambridge com Haddon eRivers, depois em Leipzig com Wundt, etambém por algum tempo com Durkheimem Paris. Casou-se com um alemão,professor de filosofia. Eles estavam emHarvard juntos quando ele adoeceu, e

naquela época quando uma pessoa ti-nha problemas de pulmão, era manda-da ou para a Austrália ou para a Áfricado Sul. Então eles vieram para a Áfricado Sul, a terra natal dela; ele se tornouprofessor de filosofia na universidade eela fundou o departamento de antropo-logia; ela era uma professora extrema-mente carismática. A antropologia queensinava era muito engajada politica-mente, muito crítica em relação à políti-ca racial da África do Sul, e focalizava oque muitas pessoas identificavam comoos novos problemas sociais, os proble-mas urbanos. Na universidade, não ha-via sociologia ou ciência política quevalesse a pena, então para os jovens es-tudantes o que havia era essa professo-ra carismática abordando algo que erarelevante, que tinha interesse político.Esses estudantes eram bastante cons-cientes politicamente, era o momentoda ascensão do fascismo na Europa eexistia um sentimento de que havia orisco de surgir algum tipo de sistemafascista na África do Sul. Para esses es-tudantes, a antropologia da senhoraHoernlé era algo muito interessante, eacho que Hilda ficou atraída por isso.Ela na verdade não era sul-africana, elaviera da Rodésia para estudar. Na épo-ca, Schapera tinha acabado de voltar,ele havia sido o primeiro a ir estudarcom Malinowski, e incentivou algunsoutros. E nesse período, em torno deMalinowski muita coisa interessanteestava acontecendo.

FaustoQuem foram os primeiros antropólogosde origem sul-africana?

KuperHá o período inicial, com os missioná-rios e administradores, alguns dos quaiseram antropólogos de renome, comoHenri Junod, que escreveu algumas et-

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nografias africanas clássicas e quandose aposentou do serviço missionário tor-nou-se professor de etnologia em Nêu-chatel. Eram pessoas cuja expertise re-sidia em um longo envolvimento na re-gião, em conhecer muito bem a língua,muitas vezes escrevendo gramáticas edicionários, bem como etnohistórias eetnografias. Mas a virada realmente ex-traordinária para a antropologia sul-africana ocorreu quando foi estabeleci-da a primeira cadeira de antropologiana Universidade da Cidade do Cabo,em 1921. Por uma série de casualida-des, essa cadeira, em vez de ir para umsul-africano, foi ocupada por Radcliffe-Brown, pioneiro da antropologia socio-lógica e comparativa. Ele veio e organi-zou o setor, voltando as costas para aantropologia sul-africana já estabeleci-da e tentando criar um discurso total-mente novo na África do Sul. Radcliffe-Brown não procurou fazer isso apenasabstratamente, ele tentou estabelecerna África do Sul uma antropologia queabordasse os problemas sul-africanos, eacabou forçado a reconhecer o grandedebate existente entre os segregacio-nistas e os anti-segregacionistas. Ele in-corporou isso à sua antropologia, e umadas conseqüências, creio eu, foi que elese tornou muito crítico em relação ao ti-po de teoria da cultura que Malinowskie os antropólogos americanos estavamelaborando. Assim, a antropologia delíngua inglesa feita na África do Sul es-teve, desde o início, na linha de frenteda antropologia britânica, desse tipo deantropologia internacional. Os melho-res estudantes da primeira geração fo-ram para a Inglaterra estudar com Ma-linowski e voltaram reforçando essasnovas e instigantes idéias. Os anos dou-rados da antropologia sul-africana fo-ram as décadas de 30 e 40, quando sãopublicadas as grandes monografias et-nográficas, escritas por pessoas que es-

tudaram na Inglaterra com os maioresnomes da antropologia e que depoisvoltaram; pessoas que se consideravamparte da revolução malinowskiana naantropologia. Assim, gente como MaxGluckman, Hilda Kuper, Monica Wil-son, Ellen Helmen e outros mais fazemparte dessa antropologia muito moder-nista, dessa antropologia recém-profis-sionalizada. Mas com o triunfo do na-cionalismo africânder depois da guerra,com a vitória do apartheid, e com a per-da de posição política por parte das uni-versidades de língua inglesa, essas pes-soas ou seus descendentes deixaram aÁfrica do Sul. Com isso, a antropologiasul-africana de língua inglesa tendeu àestagnação depois dos anos 50 e 60.

FaustoAlgo que me impressiona é o fato deque no início dos anos 30 os semináriosde Malinowski tinham mais ou menosvinte pessoas e cerca de um quarto des-se total era de sul-africanos. Por que aÁfrica do Sul exportou tantos antropó-logos?

KuperPorque na África do Sul a questão polí-tica é essencialmente uma questão deraça, etnicidade ou cultura, qualquerque seja a definição dada aos termos.Essas eram as questões políticas. Assim,pessoas politicamente conscientes, oumesmo pessoas que quisessem fazer al-guma coisa socialmente útil, se envol-viam com a antropologia de uma ma-neira muito específica. No entanto, tam-bém era até certo ponto evidente queas questões presentes na África do Suleram semelhantes a algumas das ques-tões encontradas em outros territóriosbritânicos na África. Então havia essesdois aspectos no interesse pela Áfricado Sul, que era vista como o exemplomais avançado e complexo de um certo

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tipo de sociedade africana em processode industrialização.

NeiburgIsso provavelmente tem relação com asingularidade da África do Sul no con-texto do Império Britânico.

KuperBem, de onde mais vinham os antropó-logos? A Austrália mandava antropólo-gos para a Grã-Bretanha, bem como aNova Zelândia, e até certo ponto tam-bém o Canadá. Talvez a África do Sulmandasse mais gente, mas estava emuma posição semelhante. Nessas situa-ções quase-coloniais, a pós-graduaçãoainda tinha que ser feita na metrópole,qualquer que fosse o campo.

NeiburgConte-nos um pouco sobre a sua mu-dança para a Inglaterra. Você comple-tou sua formação básica em antropolo-gia na África do Sul e depois foi para aInglaterra fazer o Ph.D. Como foi essaexperiência? Você já tinha estado na In-glaterra antes?

KuperEu já tinha estado lá. Meu pai levou-nos, a mim e meu irmão, para passarum feriado na Inglaterra, ficamos cercade uma semana. Mas eu sabia que teriade deixar a África do Sul em algum mo-mento. Fui para a Inglaterra logo depoisde uma série de ações extremamenterepressivas empreendidas pelo governonos anos 60. Houve um grande confron-to em Sharpville, quando atiraram emnegros desarmados; foi decretado esta-do de emergência, muitas pessoas fo-ram presas sem julgamento por perío-dos indefinidos. Para muitos de nós tor-nou-se óbvio que a situação era deses-peradora, e que ficar na África do Sulenvolveria um compromisso político

completo durante um prazo muito lon-go, e uma vida muito arriscada. Entãodecidi partir. Mas eu queria fazer a mi-nha vida na África. Fui fazer o meu Ph.D.em Cambridge. Não obtive permissãopara fazer pesquisa na África do Sul,mas consegui ir para Bechuanaland, queé vizinha à África do Sul. Quando termi-nei meu Ph.D., em 1966, casei-me, e mi-nha mulher e eu voltamos para Bechua-naland. Depois fomos para Uganda, on-de moramos durante três anos e meio,com minha mulher fazendo pesquisapara o seu Ph.D. e eu dando aulas nauniversidade. Eu teria permanecido emUganda indefinidamente com muita sa-tisfação, estava começando a fazer pes-quisas por lá. Mas logo ficou evidenteque a situação política era crítica, e defato o golpe de Idi Amin aconteceu ape-nas alguns meses depois. Na ocasião,havia três ofertas de trabalho para an-tropólogos sociais: em Cingapura, emHong Kong e no University College deLondres. Eu me inscrevi para as três,com a esperança de ir para Hong Kong,mas se isso não fosse possível, Cinga-pura também estaria bom. Mas só fuichamado para entrevista em Londres,fui selecionado para o cargo, e assimvoltamos para Londres em 1970.

FaustoEm qual faculdade (college) você estu-dou em Cambridge? Quem eram osseus colegas?

KuperEstudei no King’s College. Os dois su-periores do College, e do departamento,eram Meyer Fortes e Edmund Leach. Eujá contei várias vezes a história dos meusdois primeiros dias em Cambridge, atéjá a publiquei. No primeiro dia EdmundLeach me chamou para almoçar, e du-rante o almoço me disse (lembrem-sede que era um departamento muito pe-

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queno, tinha seis membros, e eu já sa-bia que havia duas facções): “veja bem,há dois grupos no departamento, há omeu grupo, no qual as pessoas traba-lham na Ásia, e há o outro grupo, emque as pessoas trabalham na África. Equanto a você?” Eu respondi, “bem, euvou trabalhar no sul da África”. Assimacabou o interesse de Leach por mim,mas ele foi suficientemente educadopara continuar a conversa. Ele disse,“deixe-me dizer-lhe algo sobre Cam-bridge. Meyer Fortes – que por sinaltambém era um judeu sul-africano – jáestá aqui há muitos anos, e é claro queele sabe muita coisa sobre os Tallensiem Gana. Mas ele nunca conseguiu en-tender Cambridge. O que você precisasaber sobre Cambridge é o seguinte: éum lugar fundamentalmente de classemédia baixa”. Eu disse, “Muito obriga-do.” No dia seguinte, Meyer Fortes meconvidou para almoçar, e disse: “Entãovocê vai trabalhar na África? Onde?”Eu respondi: “Acho que no sul da Áfri-ca”. Ele disse: “Então vá conversar como Schapera em Londres”. Disse ainda:“E deixe-me dizer-lhe algo sobre Cam-bridge. Edmund está aqui há muitotempo, é claro, mas ele nunca iria lhedizer isso. Aliás é provável que ele nemsaiba disso. O que você sempre precisater em mente a respeito de Cambridgeé que eles não gostam de judeus”. Am-bas as afirmações eram verdadeiras eme foram úteis. Mas eu praticamentenão aprendi antropologia em Cambrid-ge, não havia orientação, nada. Vocêlia, e ia aos seminários, que eram pales-tras geralmente muito chatas. Depois,fiz meu trabalho de campo, escrevi mi-nha tese, e obtive meu primeiro empre-go. Foi aí que comecei a aprender an-tropologia, pois quando fui para Ugan-da, em 1967, eu precisei dar aulas deintrodução à antropologia social. E eunão sabia nada sobre isso.

NeiburgE quanto ao seu primeiro trabalho decampo, para o seu Ph.D.?

KuperBem, meu primeiro e segundo trabalhosde campo foram feitos no Kalahari, jun-to a um grupo com o qual Schapera jáhavia tido contato, foi ele quem sugeriuque eu fosse para lá e os estudasse. Erauma região muito distante e isolada nodeserto do Kalahari. Assim, estudei es-se grupo para o meu Ph.D. e voltei paralá novamente por nove meses antes deir para Uganda. Era um grupo de pasto-res de língua bantu, e eu tinha interes-se no seu sistema político. No fundo, euqueria saber se, quando eu fosse aoencontro de alguma tribo sul-africanamuito isolada, eu encontraria aquilo deque falavam os antropólogos africân-deres, uma espécie de sociedade tribalviável, com um chefe, e assim por dian-te. Descobri que mesmo lá nessa área,tão isolada, a política da aldeia, a políti-ca tribal, estava completamente pene-trada pela estrutura nacional, mesmoem um estado colonial tão enfraqueci-do como Bechuanaland. Em segundolugar, descobri que a estrutura políticada aldeia, longe de ser a chefia autori-tária que os sul-africanos gostavam deimaginar, era na verdade a de uma so-ciedade extremamente anárquica, de-mocrática, mal-organizada, porém aber-ta, muito tolerante em relação a críticase desvios.

FaustoPor isso você deu o título An AfricanDemocracy para o livro?1

KuperSim. E fui criticado por isso porque asmulheres não tinham direitos políticoscompletos, e havia uma pequena mino-ria de servos bosquímanos, que eviden-

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temente eram excluídos do sistema. Is-so tudo é realmente verdade, mas aindaassim, para os homens, e na realidadepara a maioria das pessoas da aldeia,tratava-se de um sistema muito abertoe democrático. Eu voltei para Bechua-naland em parte porque em 1966 o paísse tornou independente, com o nomede Botsuana, e eu queria ver que mu-danças e conseqüências isso havia tra-zido no âmbito local. Assim, o meu livrose chama An African Democracy tam-bém no sentido de que Botsuana estavase tornando um Estado democrático e aaldeia estava se tornando um segmentode governo local dentro de um Estadodemocrático independente.

NeiburgComo você começou a pesquisar a his-tória da antropologia britânica?

KuperFoi algo completamente acidental.Quando voltei para a Inglaterra em1970, retomei minha amizade comSchapera, que já estava aposentado.Ele estava editando uma série de textosintrodutórios à antropologia para a edi-tora Penguin. Eu não sei nem por queele teve a idéia, nem por que me convi-dou para escrever um livro para essasérie, tratando da história da antropolo-gia britânica2. De qualquer maneira,era uma idéia absurda. Eu tinha trintaanos, era inexperiente, por que ele iriame pedir para escrever esse livro sobreum tema a respeito do qual eu nunca fi-zera nenhuma pesquisa, não tinha ne-nhuma publicação, nem mesmo haviapensado sobre o assunto? Mas eu disseque sim, principalmente porque eu pre-cisava do dinheiro. Então, escrevi esselivro, trabalhando durante a noite, li tu-do que pude encontrar. Nessa épocanão havia arquivos, a coleção de Mali-nowski, que era o principal arquivo, es-

tava sendo organizada por Firth, e eleme negou acesso, porque o arquivo ain-da não estava aberto. Ele também se re-cusou a ser entrevistado por mim, masalguns dos outros me concederam en-trevistas; quase tudo mentiras e fanta-sias e propaganda, a não ser por LucyMair que me deu uma entrevista total-mente honesta. Mas havia uma quanti-dade suficiente de textos publicados, demodo que pude produzir uma espéciede história. Assim, escrevi esse pequenolivro, que foi publicado quando eu esta-va em campo na Jamaica. E de repentecomeçaram a me chegar resenhas his-téricas. O Times Literary Supplement,que na época preservava o anonimatode seus resenhistas, publicou resenhasanônimas de três páginas: três páginasinsultando o livro. Eu estava na Jamai-ca, recebendo essas coisas, sem saber oque estava acontecendo na Inglaterra.Foi horrível, mas por outro lado o livroestava vendendo muito bem.

FaustoAmbos os grupos, ou seja, os estrutu-rais-funcionalistas e os de orientaçãomais malinowskiana, tiveram o mesmotipo de reação?

KuperTodos ficaram muito incomodados. Épreciso lembrar que a Inglaterra de en-tão ainda era muito hierárquica e con-servadora. Isso foi no final de 1967. Osprofessores de antropologia eram muitopoucos, havia talvez sessenta ou seten-ta antropólogos, e todos se conheciam.Os professores eram homens muito,muito poderosos, verdadeiros barões.Max Gluckman, Firth, Evans-Pritchard,Meyer Fortes, eram grandes figuras,personalidades fortes, muito importan-tes e muito conscientes de sua própriaimportância. E todos pensavam quequando se aposentassem, iriam escre-

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ver a história da antropologia britânica.Algo que explicasse a antropologia, ex-plicasse como tudo levava a eles (oupelo menos à sua escola). E de repentevem esse joão-ninguém, esse rapazi-nho, que direito tem ele de escrever ahistória da antropologia? E além de tu-do cheia de críticas a eles! Alguns fica-ram incomodados apenas porque eudei mais espaço para tal ou qual pessoado que para eles. Ou porque deixei demencionar o que consideravam a suacontribuição mais importante. De modoque eu nunca poderia ter feito a coisacerta. Enfim, todos odiaram o livro, oque mostra quão ignorante eu era; eusequer pensava que o livro causaria es-sas reações histéricas.

FaustoMas mesmo Meyer Fortes reagiu assim?

KuperNão. É claro que é diferente quando vo-cê conhece alguém e tem um envolvi-mento. Mas outros, como Max Gluck-man, ficaram horrorizados. Escreve-ram-me várias cartas extremamente crí-ticas e ofensivas. Foi uma reação sur-preendente.

FaustoE Mary Douglas, que nessa época esta-va no University College?

KuperEla é minha amiga. E no University Col-lege estava acontecendo outra coisa.Mais ou menos nessa mesma época,quando eu voltei da Jamaica, em 1974,surgiu subitamente um cargo cult mar-xista na antropologia, na universidade.Todos os velhos livros deviam ser quei-mados, talvez junto com os velhos pro-fessores, e um novo mundo iria surgir,com uma nova antropologia na qual to-dos seriam iguais e livres e os impérios

iriam se dissolver. Isso tudo era muitoexcitante, os jovens professores e estu-dantes de antropologia lendo Althussere aqueles textos todos na hora do almo-ço. Era como sessões de leitura da Bí-blia, sessões coletivas, nas quais todostinham que participar. Havia apenasduas pessoas no departamento que nãose impressionavam com isso tudo, MaryDouglas e eu. E nós sofremos muitaspressões por parte dos estudantes edos jovens professores ativistas. Assim,nós nos apoiávamos mutuamente e de-senvolvemos um certo tipo de solida-riedade.

NeiburgComo você vê, em termos teóricos, arelação entre a sua produção em histó-ria da antropologia, que começa comAnthropology and Anthropologists, eseus trabalhos mais empíricos, basea-dos em pesquisa de campo?

KuperEu não tenho certeza de que haja algu-ma relação estreita ou necessária entreas duas coisas, além de uma relaçãoacidental e biográfica. Mas o fato de fa-zer ambos os tipos de pesquisa eviden-temente significa que elas se influen-ciam mutuamente. Assim, por exemplo,eu escrevi um livro chamado Wives forCattle, que era um estudo comparativode sistemas tradicionais de parentescodo sul da África3. Uma das coisas queme intrigava era o problema da teoriada linhagem; eu percebi que ela eraempiricamente inútil naquele contextoe decidi dizer: “No sul da África a teo-ria da linhagem é inútil”. Mas ao mes-mo tempo, e aí está outra casualidade,recebi um convite do Annual Review ofAnthropology para escrever um artigosobre a teoria da linhagem. Mais umavez, não sei por que Meyer Fortes meindicou. E decidi tratar do tema histori-

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camente. Abordar o tema historicamen-te foi também uma maneira de enten-der por que essa teoria não era útil, epor que havia sido tão influente. De on-de ela veio? Quais conexões estabele-ce? Esse artigo deu origem a um livrochamado The Invention of Primitive So-ciety4. Suponho que um antropólogopadrão, que estivesse escrevendo, porexemplo, sobre etnografia comparativa,e se deparasse com o problema da teo-ria da linhagem, talvez escrevesse umacrítica teórica da teoria da linhagem. Aminha peculiaridade intelectual é quequando eu começo a pensar sobre essasquestões teóricas, tendo a formulá-las,em parte, em termos históricos. É o quevoltou a me acontecer agora com aquestão da “cultura”. Eu não queria es-crever um estudo histórico, mas estavaincomodado com a questão da cultura,que naquele momento parecia muitoinfluente em vários debates antropoló-gicos nos Estados Unidos e também naGrã-Bretanha. Por várias razões empíri-cas e políticas, era algo que me pareciainaceitável. Em função da minha forma-ção na África do Sul, eu não gostavadesse tipo de teoria. E para tentar en-tender de que tratava essa teoria, o queela tinha de certo e o que tinha de erra-do, a maneira que me parecia mais ób-via era situá-la historicamente. Paramim, portanto, as questões teóricas quevão surgindo demandam algum tipo detratamento histórico. E essas questõesteóricas surgem porque estou preocu-pado com respostas que estão sendodadas a questões etnográficas ou de an-tropologia comparativa. Eu não me vejocomo historiador, sou alguém que pen-sa em termos históricos a respeito dequestões teóricas da antropologia.

NeiburgVamos voltar ao trabalho de campo. Co-mo você acabou indo para a Jamaica?

KuperVeja bem, tudo isso que estou contandoé uma série de casualidades.

NeiburgPossivelmente é assim para todos nós, aquestão é como transformar essas ca-sualidades em problemas e questões.

KuperÓtimo, mas não me peçam para racio-nalizar isso tudo retrospectivamente co-mo uma série de decisões lógicas e coe-rentes. Quando morávamos em Ugan-da, minha esposa fez trabalho de cam-po para o seu Ph.D. com a comunidadegoense que existia na África Oriental.Nós nos interessamos muito por essacomunidade e pedimos uma bolsa parairmos juntos a Goa fazer trabalho decampo. Conseguimos a bolsa, mas o go-verno indiano estava naquele momentoem guerra com o Paquistão e havia al-guns problemas em Goa, e eles esta-vam muito relutantes em nos permiti-rem acesso. O meu chefe de departa-mento, M.G. Smith, era jamaicano. NaJamaica, havia um governo recém-elei-to, presidido por Michael Manley, umgoverno levemente radical. Smith eraum velho amigo de Manley, e Manleypediu-lhe que assumisse boa parte dapesquisa social. Então Smith me disse:“Veja bem, já ficou claro que os india-nos não vão deixar vocês entrarem, vo-cê vai acabar perdendo o seu ano sabá-tico. Vou contratá-lo para fazer pesqui-sa na Jamaica”. Como sempre digo, as-sim como Cristóvão Colombo, eu estavaprocurando a Índia e fui parar na Ja-maica. Mas não sabia nada sobre o Ca-ribe. Nós havíamos nos preparado parafazer pesquisa em Goa. Eu li apenas al-gumas coisas e fui para a Jamaica, on-de fiz um ano de trabalho de campo emdiferentes regiões. Escrevi então um li-vro criticando a antropologia caribenha

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estabelecida, que falava de uma socie-dade plural feita de diferentes cores,classes, e assim por diante5. Isso me pa-recia uma imagem completamente fal-sa do que eu estava verificando empiri-camente. Escrevi esse livro sobre a Ja-maica no qual previ, ainda que não comsuficiente firmeza, que a Jamaica conti-nuaria a ser uma democracia bipartidá-ria. Naquela época as pessoas diziamque haveria um golpe, que surgiria umEstado com partido único. E eu achavaque observando a estrutura dos partidose a profundidade do apoio a eles, ficavaclaro que o país estava dividido com bas-tante equilíbrio, em todos os níveis, en-tre esses dois partidos que estavam for-temente institucionalizados nas aldeias.

FaustoEu gostaria de saber como você organi-zou seu trabalho de campo na Jamaica.Deve ter sido algo muito diferente deestudar uma aldeia no deserto do Kala-hari, pois você disse que estudou a Ja-maica como um país. É claro que se tra-ta de uma pequena ilha, mas mesmoassim...

KuperBem, de fato é uma pequena ilha quetinha na época dois milhões de habitan-tes. Eu tive que optar entre me ligar àfaculdade de ciências sociais da univer-sidade ou à Agência Nacional de Pla-nejamento, que era ligada ao gabinetedo primeiro-ministro. Optei por esta úl-tima, pois através dela eu teria acessofácil a tudo o que eu queria estudar.Eles também me prometeram, e cum-priram a promessa, assegurar total li-berdade editorial. Eu lhes perguntei“Em que vocês estão interessados?” Eeles me apresentaram uma questãomuito geral: na Jamaica, cerca de umquarto da população vivia em Kingston,a principal cidade, que tinha uma taxa

de desemprego muito alta e favelas mui-to precárias. Mesmo assim, as pessoasnão paravam de chegar em Kingstonvindas dos campos, ao mesmo tempoque os grandes empregadores na árearural reclamavam da falta de mão-de-obra. A questão era saber o que estavaacontecendo, e se haveria alguma ma-neira de transformar essa situação, es-tabilizando a migração. Para respondera essas questões, trabalhei alguns me-ses em uma área em Kingston, uma es-pécie de favela; alguns meses em umapequena aldeia rural voltada para o co-mércio, perto de uma cidade comercialdo interior, no meio das montanhas ebem distante de Kingston; mais algunsmeses no litoral, em uma área de turis-mo, e, por fim, um mês em uma fazendade cana-de-açúcar. Eu tinha acesso tam-bém às estatísticas do governo sobre em-prego e agricultura. Acabei produzindouma análise em termos de padrões deposse e herança da terra, e padrões deemprego nas plantações de cana. Fiztambém uma análise dos diferentes pa-drões de emprego em Kingston, sejados migrantes de origem rural, seja da-queles nascidos em Kingston. Essa aná-lise mostrou que os migrantes de ori-gem rural, apesar de ganharem muitopouco, ainda conseguiam empregos emKingston, mesmo que temporários, jáque eles aceitavam tarefas que os nas-cidos em Kingston, que participavamda economia “informal”, não estavamdispostos a aceitar. Assim, tendo enten-dido os mecanismos reais que estavamem jogo na situação, o padrão se mos-trava bastante racional. Mas ao fazer apesquisa, descobri outras coisas tam-bém. O que mais me interessou surgiulogo no início, quando nos mudamos deKingston para a área rural, e ficamos vi-vendo em uma pequena vila. Eu come-cei a andar pelo povoado, a freqüentaros bares, mas ninguém falava comigo,

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com exceção de uma mulher de classealta. Era bem deprimente. Fiquei umasemana lá e no domingo subi a serra efui até o povoado seguinte. Assim quecheguei, todos vieram falar comigo, ab-solutamente eufóricos, e depois passa-ram a me visitar, a ir até minha casa pa-ra beber e jantar. Finalmente me expli-caram aquela situação: todos sabiamque eu era do governo, da Agência Na-cional de Planejamento, e todos supu-nham que eu apoiava Manley e eramembro do People’s National Party. Aprimeira vila era quase toda de oposi-ção, ligada ao Jamaica Labour Party.Mas assim que subi a serra, entrei navila que apoiava o governo e o People’sNational Party, que me consideravamum deles e logo vieram falar comigo.Descobri então que a área rural inteiraera como uma colcha de retalhos: seuma vila era ligada ao PNP, a próximaseria ligada ao JLP, depois PNP, JLP,PNP, JLP, e assim por diante, porque seum povoado era de um partido, o po-voado rival tinha que ser do outro. Amesma coisa acontecia nas favelas deKingston – uma era de um partido, a ou-tra era do outro. Era algo extraordina-riamente estruturado.

NeiburgDepois da Jamaica você foi para a Ho-landa?

KuperSim, cerca de dois anos mais tarde. Ha-via um grande departamento de antro-pologia, especializado principalmenteem Indonésia. Havia uma certa tradiçãode antropologia africana lá, então meconvidaram para que consolidasse issoum pouco mais. Foi lá que escrevi meulivro Wives for Cattle, trabalhando prin-cipalmente sobre material histórico daÁfrica do Sul. Eu também fiz um tra-balho de campo muito breve com al-

guns alunos, nas Ilhas Maurício. Tor-nei-me um professor holandês; era umavida agradável de cidade pequena. De-pois, fui convidado a passar um ano emStanford, no Center for Advanced Stu-dies in Behavioral Sciences. Foi um anomaravilhoso, 1981. Encontrei todo tipode pessoas, e percebi que estava me tor-nando provinciano; minha mulher deci-diu que deveríamos voltar para Londres.

FaustoWives for Cattle é o último livro em quevocê trabalhou diretamente com mate-riais da África Meridional?

KuperDepois disso, publiquei vários artigos,principalmente artigos históricos sobrea África do Sul pré-colonial. Primeiro,em South Africa and the Anthropolo-gist, e depois, mais recentemente, reunialguns ensaios que foram publicados,no mês passado, em um livro chamadoAmong the Anthropologists6. Mas achoque não se trata tanto de estar me dis-tanciando da África do Sul; o que estáocorrendo mais recentemente é que es-tou transitando de estudos mais etno-gráficos para estudos mais teóricos ehistóricos. Ainda assim, estou começan-do um projeto comparativo junto comalguns amigos na Europa, abordandoas empresas familiares.

NeiburgSobre o que é esse estudo?

KuperO paradoxo é o seguinte: as pessoasimaginam uma moderna sociedade demercado capitalista, em que as empre-sas são extremamente racionais. Mas,na realidade, se observarmos a maioriadas sociedades européias, entre 85% e95% das empresas são familiares. Isso émuito inesperado, dada toda a teoria a

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respeito da natureza do mercado e dofuncionamento do capitalismo. E nãosão apenas as empresas menores – háempresas como a Fiat e a Olivetti, naInglaterra temos alguns dos maioresbancos, grandes empresas e assim pordiante. Mesmo nos Estados Unidos,mais de 80% de todas as empresas sãofamiliares. Claro que muitas delas sãopequenas lojas. Essas empresas fami-liares fazem com que se tenha que pen-sar de maneira diferente sobre o capita-lismo. Se consultarmos a literatura so-bre empresas familiares, veremos que équase toda produzida pelas escolas deadministração de empresas. Os espe-cialistas dessas escolas desenvolveramestudos de caso dessas empresas e dealguns dos problemas que elas encon-tram tais como a sucessão, a capacita-ção da nova geração, as dificuldadespara levantar capitais, e coisas assim.Em outras palavras, as empresas fami-liares são apresentadas como um amon-toado de problemas, porque elas não seadequam a uma idéia abstrata do capi-talismo. Assim, o conselho que dão àsempresas familiares é que elas se tor-nem mais parecidas com as empresascomuns. Mas se colocarmos questõesantropológicas, então é possível come-çar a pensar: por que mais de 85% dasempresas são familiares? Se você ado-tar uma visão darwinista, elas são maisbem-sucedidas, pois sobrevivem. Entãodevem estar fazendo alguma coisa me-lhor do que os outros tipos de empresas.E, darwinianamente falando, quais sãoas vantagens que elas apresentam? Evi-dentemente, é algum tipo de confiança,que é construída com base em uma éti-ca de parentesco, e que depende de terum tipo de economia dentro da empre-sa que é diferente daquela fora dela. Aeconomia dentro da empresa é de ser-viços mútuos. Em algumas delas vocêdescobre que mesmo para os trabalha-

dores é um negócio familiar, já quemembros de uma mesma família traba-lham na companhia. Torna-se possívelquestionar se se trata de uma economiacapitalista, ou uma economia do dom,ou uma economia do parentesco, den-tro do sistema capitalista, não na suaperiferia, mas no coração do sistema. Eisso nos leva a pensar sobre o parentes-co de uma maneira diferente, porquese há uma empresa familiar, isso vaiafetar as relações familiares, o casa-mento, vai afetar todas essas coisas in-ternas à família.

NeiburgComo você começou a conceber o livrosobre a cultura?7 É um livro centrado naantropologia americana. Você poderianos falar sobre a sua relação com a an-tropologia americana?

KuperFoi só quando o movimento pós-moder-no deslanchou que eu senti que haviaum grande movimento na antropologiaamericana que eu considerava muitoperigoso para o desenvolvimento da an-tropologia nos Estados Unidos, e tam-bém internacionalmente; algo extrema-mente destrutivo diante daquela antro-pologia que reputo importante, basea-da em pesquisas sérias, empíricas, com-parativas, abordando questões de gran-de importância teórica e interesse pú-blico. Tudo isso estava sendo jogado fo-ra por um tipo de relativismo realmentesuperficial e extremado, de caráter mui-to adolescente. Tratava-se, por assimdizer, de um novo cargo cult depois domarxismo, porém pior, mais destrutivo,que foi insidiosamente tornando-se ca-da vez mais poderoso na Europa. Na In-glaterra, muitos dos maiores antropólo-gos foram inteiramente cativados poresse movimento. Qualquer um que fi-zesse outro tipo de antropologia era

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considerado um obstáculo ao progres-so, da mesma maneira que havia ocor-rido naquele outro cargo cult. Então,comecei a procurar aliados, pessoasque, como eu, estavam desencantadascom isso tudo e sentiam que era neces-sário dar uma sustentação a uma antro-pologia sociológica, comparativa, umaantropologia mais positivista. Encontreiessas pessoas por toda a Europa, e essefoi um dos impulsos para a criação daEuropean Association of Social Anthro-pologists (EASA). Isso deu a impressão,para algumas pessoas nos Estados Uni-dos, de que se tratava de um movimen-to antiamericano, o que não é verdade.Eu estava me contrapondo a um movi-mento específico dentro da antropolo-gia americana, o que é outra coisa.

NeiburgQuando você foi para o Institute of Ad-vanced Studies de Princeton, em 1994/95, você já tinha o projeto do livro?

KuperEu já fui para Princeton com essa idéia.Geertz havia me convidado e eu fui pa-ra lá. Mas eu não tinha certeza de queseria viável. O que eu queria fazer erauma crítica histórica do desenvolvi-mento e dos usos dessa idéia de cultu-ra, especialmente na antropologia nor-te-americana, mas também mais am-plamente. Depois de quatro ou cincomeses lá, senti que era impossível, queeu não conseguiria organizar todo aque-le material. Então subitamente vi umaestrutura para a primeira parte do argu-mento. E com a estrutura em mente, etendo feito muitas leituras e anotações,eu simplesmente sentava todo dia pelamanhã e escrevia; ao final de dez diaseu havia escrito cerca de cem páginas.Foi uma experiência estranha para mim,eu nunca tinha tido essa experiência dever um livro surgir repentinamente.

FaustoFoi como se você estivesse escrevendoo lado americano do Anthropology andAnthropologists.

KuperMas dessa vez eu sabia de antemão quese tratava de uma crítica, um ataque. JáAnthropology and Anthropologists nãoera um ataque à antropologia britânica.

NeiburgEu gostaria de entender a relação, sehouver, entre a sua experiência comoeditor de Current Anthropology e o li-vro sobre cultura que você acaba de pu-blicar.

KuperBem, trata-se mais uma vez de uma ca-sualidade. Eu logo descobri que Cur-rent Anthropology tem um espaço inte-lectual muito específico. Em primeirolugar, é o único periódico realmente in-ternacional na área de antropologia.Ainda que seja obviamente dominadopelos americanos, sempre teve comopolítica buscar uma lista de colaborado-res e leitores tão internacional quantopossível. Em segundo lugar, era o únicogrande periódico antropológico queainda estava estruturado no modelo dequatro campos e baseado em um mode-lo de tipo evolucionista. Eu fui gradual-mente me interessando por essas ques-tões evolucionistas, que não tiveramnenhum peso em minha formação inte-lectual e na antropologia britânica e eu-ropéia. Nessa época, estavam ocorren-do desenvolvimentos muito interessan-tes nos estudos sobre o Neanderthal,realizados na Europa, e também em vá-rios outros tipos de estudos evolucioná-rios. Eu tive a oportunidade de me en-contrar com algumas das pessoas maisinteressantes nesse campo, e me entu-siasmei pelo que eles estavam fazendo.

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Então escrevi um livro para o públicogeral, de divulgação, um tipo de antro-pologia darwinista8. A parte intelec-tual do trabalho como editor de CurrentAnthropology foi elaborar o materialpara esse livro. A outra coisa que apren-di com essa experiência foi que pelaprimeira vez estive realmente em con-tato com a antropologia do mundo in-teiro. E comecei a pensar no futuro daantropologia como algo que não seriaditado por uma metrópole, mas que re-sultaria de um debate realmente cos-mopolita. Passei a me interessar maispelas inovações que estavam surgindoem outros lugares.

FaustoDeixe-me fazer uma pergunta muitogeral, sem nenhuma intenção biográfi-ca: com relação à antropologia que estásendo produzida agora, qual é a quevocê gosta? Ou seja, se você tivesse queescolher alguns livros que andou lendoe que admira, o que você sugeriria?

KuperBem, eu andei lendo alguns dos traba-lhos produzidos aqui no Museu. Esse éum bom exemplo da antropologia queeu gosto. É empírica, envolvida com ocontexto social e político, tem uma so-fisticação crítica, conhece diversos mo-delos e abordagens teóricas sem serdogmática ou fechada em relação a al-gum deles. Toma conhecimento dos ou-tros trabalhos que estão sendo desen-volvidos na mesma área a partir de ou-tras tradições, e aborda essas outraspesquisas de maneira respeitosa, po-rém crítica, de maneira aberta. É essetipo de antropologia que eu gosto. Aantropologia da qual não gosto é a dotipo extremamente relativista e antiem-pírica, por razões que eu expliquei adnauseam em outros lugares, e tambémo tipo de antropologia ideológica cuja

agenda é definida por questões ideoló-gicas – feminismo, nacionalismo étnicoou qualquer outra. Eu diria que gostode uma antropologia que seja racional,humana, e sofisticada. Algo que eu cha-maria de antropologia cosmopolita.

NeiburgQuando nos contou sobre sua mudançapara a Inglaterra, você comentou quequeria fazer sua vida na África. Qual o sig-nificado dessa afirmação hoje para você?

KuperQuando ocorreu a transição na África

do Sul, no final dos anos 80, convida-ram-me para assumir cargos muito bonsna África do Sul, em algumas das prin-cipais universidades, e eu fiquei loucopara ir. Mas minha mulher se recusoudizendo: “nossos filhos cresceram naEuropa, eles não vão se mudar para lá,eles vão querer construir suas vidasaqui na Inglaterra. Eu não quero estarvivendo lá enquanto meus filhos, e tal-vez algum dia meus netos, estão aqui naEuropa. Eles estão aqui, foi aqui que nósvivemos, e é aqui que ficaremos. Entãonada feito.” Eu fiquei muito desapon-tado, mas evidentemente consegui en-tender a lógica da argumentação, pudecompreender e dar valor ao que ela di-zia. Era verdade, e foi apenas naquelemomento que percebi que nós havíamosvivido como muitos imigrantes, cultivan-do essa fantasia da volta. E quando aoportunidade finalmente apareceu e eupoderia ter voltado, já era tarde demais.Eu já não podia mais. Foi um momentomuito difícil para mim, porque eu sem-pre vi a mim mesmo como sul-africano,não como inglês. Eu precisei entender,como muitos imigrantes, que na reali-dade eu havia me tornado outra coisa.

Transcrição e edição revistas por Adam Kuper

Tradução: John Comerford

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Notas

1 Kalahari Village Politics: An African De-mocracy. Cambridge: Cambridge UniversityPress, 1970.

2 Anthropologists and Anthropology: TheBritish School, 1922-1972. London: Alan La-ne (Penguin). Após os direitos de publicaçãoserem cedidos para Routledge, o título foi in-vertido para Anthropology and Anthropolo-gists, 1973.

3 Wives for Cattle: Bridewealth and Mar-riage in Southern Africa. London: Routledge& Kegan Paul, 1982.

4 The Invention of Primitive Society: Trans-formations of an Illusion. London: Routledge,1988.

5 Changing Jamaica. London: Routledge& Kegan Paul, 1976.

6 South Africa and the Anthropologist.London: Routledge, 1987; Among the Anth-ropologists. London: Athlone Press, 1999.

7 Culture: The Anthropologists’Account.Cambridge, Ma.: Harvard University Press,1999.

8 The Chosen Primate: Human Nature andCultural Diversity. Cambridge, Ma.: HarvardUniversity Press, 1994.