Acordão Testemunha de Jeova

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CBM Nº 70032799041 2009/CÍVEL 1 ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PODER JUDICIÁRIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITOS FUNDAMENTAIS. LIBERDADE DE CRENÇA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PREVALÊNCIA. OPÇÃO POR TRATAMENTO MÉDICO QUE PRESERVA A DIGNIDADE DA RECORRENTE. A decisão recorrida deferiu a realização de transfusão sanguínea contra a vontade expressa da agravante, a fim de preservar-lhe a vida. A postulante é pessoa capaz, está lúcida e desde o primeiro momento em que buscou atendimento médico dispôs, expressamente, a respeito de sua discordância com tratamentos que violem suas convicções religiosas, especialmente a transfusão de sangue. Impossibilidade de ser a recorrente submetida a tratamento médico com o qual não concorda e que para ser procedido necessita do uso de força policial. Tratamento médico que, embora pretenda a preservação da vida, dela retira a dignidade proveniente da crença religiosa, podendo tornar a existência restante sem sentido. Livre arbítrio. Inexistência do direito estatal de “salvar a pessoa dela própria”, quando sua escolha não implica violação de direitos sociais ou de terceiros. Proteção do direito de escolha, direito calcado na preservação da dignidade, para que a agravante somente seja submetida a tratamento médico compatível com suas crenças religiosas. AGRAVO PROVIDO. AGRAVO DE INSTRUMENTO DÉCIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL Nº 70032799041 COMARCA DE CAXIAS DO SUL HELINY CRISTINA LUCAS ALHO AGRAVANTE FUNDACAO UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL AGRAVADO ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos.

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Acórdão sobre direito da personalidade onde uma testemunha de jeová se recusa a fazer exame de sangue.

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    PODER JUDICIRIO TRIBUNAL DE JUSTIA

    AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NO ESPECIFICADO. TESTEMUNHA DE JEOV. TRANSFUSO DE SANGUE. DIREITOS FUNDAMENTAIS. LIBERDADE DE CRENA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PREVALNCIA. OPO POR TRATAMENTO MDICO QUE PRESERVA A DIGNIDADE DA RECORRENTE. A deciso recorrida deferiu a realizao de transfuso sangunea contra a vontade expressa da agravante, a fim de preservar-lhe a vida. A postulante pessoa capaz, est lcida e desde o primeiro momento em que buscou atendimento mdico disps, expressamente, a respeito de sua discordncia com tratamentos que violem suas convices religiosas, especialmente a transfuso de sangue. Impossibilidade de ser a recorrente submetida a tratamento mdico com o qual no concorda e que para ser procedido necessita do uso de fora policial. Tratamento mdico que, embora pretenda a preservao da vida, dela retira a dignidade proveniente da crena religiosa, podendo tornar a existncia restante sem sentido. Livre arbtrio. Inexistncia do direito estatal de salvar a pessoa dela prpria, quando sua escolha no implica violao de direitos sociais ou de terceiros. Proteo do direito de escolha, direito calcado na preservao da dignidade, para que a agravante somente seja submetida a tratamento mdico compatvel com suas crenas religiosas. AGRAVO PROVIDO.

    AGRAVO DE INSTRUMENTO

    DCIMA SEGUNDA CMARA CVEL

    N 70032799041

    COMARCA DE CAXIAS DO SUL

    HELINY CRISTINA LUCAS ALHO

    AGRAVANTE

    FUNDACAO UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL

    AGRAVADO

    A CR DO

    Vistos, relatados e discutidos os autos.

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    Acordam os Desembargadores integrantes da Dcima

    Segunda Cmara Cvel do Tribunal de Justia do Estado, por maioria, em

    dar provimento ao recurso, vencido o em. Vogal, que no o provia.

    Custas na forma da lei.

    Participaram do julgamento, alm do signatrio, os eminentes

    Senhores DES. ORLANDO HEEMANN JNIOR E DES. UMBERTO

    GUASPARI SUDBRACK.

    Porto Alegre, 11 de maro de 2010.

    DES. CLUDIO BALDINO MACIEL, Relator.

    R E L AT RI O

    DES. CLUDIO BALDINO MACIEL (RELATOR)

    HELINY CRISTINA LUCAS ALHO interps o presente agravo

    de instrumento contra deciso interlocutria que, nos autos da ao cautelar

    intentada pela FUNDAO UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL,

    mantenedora do Hospital Geral de Caxias do Sul, autorizou a realizao de

    transfuso de sangue em quantidade suficiente para tentar salvar-lhe a

    vida.

    Alega a agravante que a transfuso de sangue procedimento

    incompatvel com suas convices religiosas (Testemunha de Jeov), razo

    pela qual pretende a revogao da deciso recorrida.

    Afirma, ainda, que em face de sua crena religiosa a medida

    autorizadora da transfuso de sangue viola frontalmente a dignidade da

    pessoa humana e a liberdade de escolher a que tratamento deva ser

    submetida.

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    Aduz, por fim, que no se trata de ponderao entre o direito

    vida, como constou na deciso atacada, porque sua escolha por tratamento

    alternativo transfuso de sangue no representa escolha pela morte.

    Foi deferida antecipao da tutela recursal (fl. 184/188).

    Vieram os autos conclusos para julgamento.

    Convertido o julgamento em diligncia para que fosse a

    agravada intimada para apresentar contrarrazes e para que a agravante

    colacionasse aos autos atestado mdico acerca de sua atual condio fsica.

    A parte recorrida no ofereceu contrarrazes ao recurso.

    A agravante colacionou documentos.

    O Ministrio Pblico ofereceu parecer.

    o relatrio.

    V O TO S

    DES. CLUDIO BALDINO MACIEL (RELATOR)

    Eminentes colegas, meu voto no sentido de dar provimento

    ao recurso.

    Concedo assistncia judiciria gratuita somente para conhecer

    o presente recurso.

    Tendo em vista que a questo posta em julgamento j foi

    exaustivamente apreciada quando da concesso da antecipao da tutela

    recursal, para evitar tautologia, adoto como razes de decidir aquelas

    proferidas na anlise liminar do feito, acrescidas de algumas outras

    consideraes.

    O caso em questo versa sobre tema controvertido na doutrina

    e na jurisprudncia.

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    A escolha em receber transfuso de sangue est, no caso dos

    autos, ligada fundamentalmente crena da paciente, ora agravante e da

    dignidade decorrente destes valores religiosos nos quais acredita.

    Consta do recurso que a paciente Heleny foi internada no

    Hospital Beneficente So Carlos em 28.09.09, tendo alertado que, em

    decorrncia de sua religio, no fosse ministrada transfuso de sangue (fl.

    59). Em razo de sua declarao de vontade a agravante foi tratada desde

    aquela data com eritropoetina.

    Na mesma data foi a recorrente transferida ao Hospital Geral

    de Caxias, ora agravado, sendo que no termo de transferncia constava a

    observao de sua opo religiosa e do uso da eritropoetina (fl. 60).

    A postulante foi medicada at o dia 06.10.09 com a referida

    droga, sem que tenha havido xito na reverso do quadro de anemia grave

    em que ela se encontrava.

    Diante de tal realidade o hospital ingressou com a demanda

    cautelar para que o Poder Judicirio autorizasse a realizao de transfuso

    de sangue, tendo sido deferida a liminar e realizado o procedimento, com o

    intuito de preservar a vida da agravante.

    A deciso judicial teve como base o laudo de fl. 58, no qual o

    mdico responsvel pelo Setor de Nefrologia do nosocmio afirmou:

    Atesto para os devidos fins que o paciente HELINY CASTILHO ALHO portadora de Sndrome Nefrtica, sendo transferida do Hospital de Farropilha h 1 semana para essa instituio. A paciente chegou com 20 Kg acima do seu peso inicial pelo uso de soluo fisiolgica por no aceitar transfuso sangunea.

    Na chegada, apresentava com hemoglobina de 5,6 g/dl. Atualmente a hemoglobina persiste com o valor de 6 g/dl, com elevado riso de morte sbita. Est com anemia auto-imune com teste de Coombs positivo.

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    Concomitantemente, est com quadro infeccioso com estafilococos MARSA resistente, em uso de Vancomicina por cateter venoso central implantado no Hospital de Farroupilha.

    Utiliza as seguintes medicaes para doena renal crnica: Albumina derivada do sangue humano, furosemida, eritropoetina 4000 UI, restrio hdrica.

    Necessita de tratamento nefrolgico contnuo e com imunossupresso para evitar recidivas da sndrome nefrtica. Dever realizar bipsia renal para identificar a causa de sndrome nefrtica. Entretanto, no realizar o procedimento por risco elevado de morte pelo nvel de hemoglobina.

    Solicito parecer tcnico, tico e legal sobre a paciente HELINY CASTILHO ALHO testemunha de Jeov com indicao de transfuso sangunea. Os familiares e a paciente negam o procedimento, apesar dos riscos de morte sbita.

    No momento, encontra-se com risco eminente de bito pelo quadro de anemia severa (hemoglobina de 6 g/dl).

    Como se pode perceber, a magistrada, frente a risco de morte

    da paciente, deferiu a realizao da transfuso sangunea a fim de

    preservar-lhe a vida. Contudo, a recorrente insurge-se por entender que a

    medida viola seus direitos fundamentais e essencialmente sua dignidade.

    O tema demanda cautela na apreciao.

    No se trata de singelamente ponderar qual direito

    fundamental deve ser preservado e qual deve sofrer limitao.

    A liberdade de crena expressada pela paciente, ora

    agravante, reveste sua vida de sentido, sentido este no compreendido, na

    sua verdadeira dimenso, por quem no vive e no comunga de tais valores.

    A dignidade que emana da sua escolha religiosa tem tamanha importncia

    para ela que, entre correr o risco de perder a vida, mas permanecer ntegra

    em relao aos seus valores/ideais religiosos, e receber uma transfuso de

    sangue, tendo violados seus valores e sua dignidade de pessoa humana,

    esta escolheu manter-se ntegra em sua crena.

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    O presente recurso a representao clara da irresignao da

    agravante frente ao que considera desrespeito s suas convices, pois no

    aceita ser submetida a tratamento com o qual no concorda.

    A postulante no quer morrer, no est escolhendo morrer,

    como afirma em suas razes recursais, apenas nega-se a receber

    tratamento que viola suas crenas e aceita em face disso correr risco de

    morte ou ter sua melhora postergada.

    A Constituio Federal protege o direito vida, a dignidade da

    pessoa humana e a liberdade de crena na mesma proporo. O direito

    vida, diferentemente do que se possa acreditar, no valor super-

    preponderante, condio para o exerccio dos demais direitos, mas isso

    no o torna blindado quando conflitante com os demais valores

    fundamentais postos na Carta Magna.

    O caso em anlise j sofreu apreciao pela doutrina e

    jurisprudncia estrangeiras, prevalecendo o entendimento de que sendo o

    paciente maior, capaz e estando no gozo de suas faculdades mentais pode

    recusar e optar por realizar tratamento mdico, mesmo ciente do risco que

    impe a sua vida.

    A jurisprudncia ptria escassa a respeito do assunto.

    Porm, em se tratando de menor, unssona no sentido de que cabe ao

    Poder Judicirio substituir a vontade dos pais e autorizar o tratamento

    mdico at que o paciente tenha capacidade de decidir por si.

    No presente recurso trata-se de paciente maior, lcida, capaz,

    que desde o primeiro momento em que procurou ajuda mdica excepcionou

    sua concordncia aos tratamentos que violassem suas convices

    religiosas.

    No se vislumbram, portanto, razes pelas quais a vontade da

    agravante deva ser substituda pelo Poder Judicirio, uma vez que, sendo

    ela capaz, pode optar pelo tratamento que lhe convier e que lhe aprouver

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    para manter-se, antes de tudo, com a autodeterminao derivada do

    princpio da dignidade da pessoa humana preservada.

    No vejo como possa a recorrente ser submetida a tratamento

    mdico com o qual no concorda e que para ser procedido necessita do uso

    de fora policial; tratamento este que no obstante possa preservar-lhe a

    vida, retira dela toda a dignidade proveniente da crena religiosa, podendo

    tornar a existncia restante sem sentido, desnecessria, vazia.

    Desse modo, constata-se que o pedido da postulante para

    que o Poder Judicirio proteja essencialmente seu direito de escolha, direito

    calcado na preservao de sua dignidade, para que somente seja submetida

    a tratamento mdico compatvel com suas crenas religiosas.

    A questo est, em ltima anlise, em saber quais os limites da

    interveno de um Estado democrtico e pluralista na rbita individual,

    mesmo em situaes extremas.

    O Estado brasileiro, conquanto laico ele prprio, conformado

    pelos valores do pluralismo, sendo direito de seus cidados viver de acordo

    com distintos valores e crenas. A liberdade de pensamento, de conscincia

    e de crena so, ainda, direitos fundamentais expressamente previstos na

    Constituio Federal (art. 5, IV e V).

    Por outro lado, so inviolveis a intimidade e a vida privada dos

    cidados (art. 5, X, da CF).

    Tambm a Constituio Federal, no caput do art. 5, garante a

    inviolabilidade do direito vida.

    Os princpios so normas constitucionais que, ao contrrio das

    outras normas (as regras), no so excludentes entre si. Quando se trata de

    princpios constitucionais, a sua exegese impe ao intrprete o trabalho de

    ponderao entre eles a partir do caso concreto. Tanto o direito vida, por

    um lado, como o direito liberdade de pensamento e de crena, por outro,

    quanto, ainda, a intimidade e a privacidade da pessoa humana, so

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    princpios e valores que no se excluem uns aos outros, mas que devem ser

    ponderados e harmonizados ante o caso concreto para saber quais, afinal,

    tm preponderncia.

    A melhor baliza para o trabalho de ponderao dos princpios

    em questo , sem dvida, o valor da dignidade da pessoa humana, sendo

    ele um dos fundamentos do Estado Democrtico e da Repblica brasileira

    (art. 1, III, da CF).

    Todos os valores constitucionais, inclusive o direito

    fundamental liberdade de conscincia e de crena, devem ser respeitados,

    sempre resguardado o direito fundamental de todos e de cada um de viver

    de acordo com seus prprios e especficos valores, ainda que exticos ou

    no compartilhados pela maioria da sociedade.

    Evidentemente, se os valores ou a crena de algum fossem,

    por sua exteriorizao, nocivos a terceiros ou ao corpo social, no haveria

    maior dificuldade na soluo do problema. Mas quando a crena de algum

    no coloca sob risco direitos de terceiros, a questo saber-se se, tambm

    nesse caso, o Estado pode intervir na rbita individual para salvar a pessoa

    dela prpria.

    No mbito individual, na seara de sua liberdade de crena e

    conscincia, para a agravante o valor maior, na eleio do que fazer, parece

    ser a vida, mas a vida conformada pelos valores de seu credo, de sua

    conscincia religiosa, sem os quais ela no parece fazer sentido, tanto assim

    que est, consciente e lucidamente, correndo risco de morte ao no admitir

    submeter-se a um tratamento que possivelmente melhoraria seus

    prognsticos clnicos, mas que significaria uma enorme violncia do ncleo

    de valores que justifica sua existncia.

    No h valores absolutos na Constituio. Mesmo o direito

    vida pode ser relativizado ante outros direitos. Por exemplo, uma pessoa

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    est legitimada, em tese, a matar em legtima defesa para defender-se de

    uma tentativa de estupro.

    E uma mulher creio estaria legitimada jurdica e eticamente

    a colocar sua vida sob intenso risco para defender-se da mesma tentativa de

    estupro. Isso significa que ela pode, licitamente, valorizar mais a sua

    liberdade sexual do que a sua prpria vida. Dir-se-ia de tal mulher ser uma

    pessoa virtuosa.

    A agravante, que possui valores religiosos e morais to

    enraizados a ponto de manter-se, mesmo sob risco de vida, sem descumprir

    os seus valores mais essenciais, os contidos nas regras de sua crena,

    tambm estar legitimada, pelo mesmo motivo, a arriscar a existncia fsica

    por um valor, por um mandado de conscincia, por um valor para ela

    transcendente e eticamente inviolvel.

    As piores experincias totalitrias foram justificadas por

    valores de Estado que arrombaram a tranca das liberdades de conscincia,

    de crena, de pensamento, de escolha do cidado a respeito do seu prprio

    destino, da eleio do significado de sua vida, sempre sob alguma

    justificativa para salv-los de si mesmos ante um valor maior que os seus.

    Por tais motivos, no me parece possa o Estado autorizar

    determinada e especfica a interveno mdica em uma paciente que

    expressamente no aceite, por motivo de f religiosa, o sangue transfundido,

    salvo se se tratasse de uma criana, incapaz de expressar vontade prpria

    com um nvel de conscincia juridicamente aceitvel, ou se, por outro

    qualquer motivo, estivesse a pessoa desprovida da capacidade de discernir

    e de decidir lucidamente a respeito de seu destino. Mas aqui se trata de

    pessoa maior de idade, lcida e consciente, cuja vontade manifesta e

    indiscutvel no se apresenta sob qualquer aspecto viciada.

    A postulante, como j foi dito, tem desejo de continuar vivendo,

    mas no mediante o sacrifcio de suas convices religiosas, ou seja, tem

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    desejo de continuar vivendo com a sua conformao de personalidade, com

    os seus valores, com o seu prprio significado ante a transcendncia, com

    os seus prprios cdigos, no violados, perante Deus, o que, para ela,

    parece fazer parte do ncleo essencial de sua pessoa e de sua existncia,

    vida que no pode ser compreendida somente na sua acepo biolgica,

    mas tambm, por certo, na acepo moral.

    Se qualquer mulher pode escolher, livre e conscientemente,

    morrer reagindo violao de seu corpo por ato no desejado de terceiro,

    por exemplo, parece-me que a recorrente pode fazer a mesma escolha ante

    o que ela considera, possivelmente, violncia to grande a seus valores e

    princpios quanto mostra-se violenta a primeira hiptese.

    A aceitao consciente da idia e da perspectiva da morte

    como alternativa violao de um valor extremo que, para pessoa

    determinada, representa o ncleo essencial de sua existncia, algo que

    no se pode, jurdica e filosoficamente, desprezar.

    Colocada assim a questo, dir-se-ia que o Estado no pode

    intervir nessa relao ntima da pessoa consigo mesma, nas suas opes

    filosficas, especialmente na crena religiosa, constitucionalmente protegida

    como direito fundamental do cidado, mesmo que importe risco para a

    prpria pessoa que a professa (e para ningum mais), sob pena de

    apresentar, o Estado, sua face totalitria ao ingressar cogentemente no

    mbito da essncia da individualidade do ser humano, onde no deve estar.

    As piores experincias totalitrias foram justificadas por

    valores de Estado que arrombaram a porta das liberdades de conscincia,

    de crena, de pensamento, de escolha do cidado a respeito do seu prprio

    destino, da eleio do significado de sua vida, invadindo, assim, a intimidade

    e a privacidade do ser humano, invadindo as suas opes filosficas,

    sempre sob alguma justificativa de salv-los de si mesmos por uma

    finalidade maior. Em ltima anlise, o Estado pode agir quando o ato

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    derivado da liberdade de cada um implique prejuzos a terceiros ou

    sociedade. Tal o seu limite. Aquilo que diz respeito exclusiva e ntima

    relao da pessoa consigo mesma parece-me no pode ser submetido

    interveno estatal sem sacrifcio do princpio da dignidade da pessoa

    humana.

    Por tais motivos, no pode o Estado autorizar determinada e

    especfica a interveno mdica em uma paciente que expressamente no

    aceite, por motivo de f religiosa, o sangue transfundido, salvo se fosse uma

    criana, incapaz de expressar vontade prpria com um nvel de conscincia

    juridicamente aceitvel, ou se, por outro qualquer motivo, estivesse a pessoa

    desprovida da capacidade de discernir e de decidir lucidamente a respeito

    de seu prprio destino, de seus valores, de suas escolhas mais ntimas.

    Ainda em outro caso poderia penso - o Estado intervir. Se a

    pessoa, ainda que tivesse manifestado sua vontade por escrito, casse em

    estado de inconscincia. E isto porque da vontade antes expressa sempre

    algum, ante a proximidade da morte, poder recuar, poder arrepender-se,

    inclusive em face da excitao do instinto de autopreservao ante a

    aproximao do momento extremo. Inconsciente, tal pessoa teria suprimida

    tal possibilidade de recuar da deciso anterior, o que permitiria, em meu

    sentir, que, tambm nesta hiptese, o Estado-juiz estabelecesse que o

    direito vida deve ser preservado.

    Mas aqui se trata de pessoa maior de idade, lcida e

    consciente, cuja vontade manifesta e indiscutvel mostra-se atual, militante, e

    no se apresenta sob qualquer aspecto viciada.

    Outra situao seria o que a doutrina denomina privilgio

    teraputico:

    "INTERVENO CIRRGICA. CONSENTIMENTO INFORMADO INOBSERVNCIA DO ART. 15 CC/02. PRECEDENTES. DANO MATERIAL. PERDA DA CHANCE. DANO MORAL CONFIGURADO. O

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    paciente deve participar na escolha e discusso acerca do melhor tratamento tendo em vista os atos de interveno sobre o seu corpo. Necessidade de informaes claras e precisas sobre eventual tratamento mdico, salientando seus riscos e contra-indicaes, para que o prprio paciente possa decidir, conscientemente, manifestando seu interesse atravs do consentimento informado. No Brasil, o Cdigo de tica Mdica h muito j previu a exigncia do consentimento informado ex vi arts. 46, 56 e 59 do atual. O CC/02 acompanhou a tendncia mundial e positivou o consentimento informado no seu art. 15. A falta injustificada de informao ocasiona quebra de dever jurdico, evidenciando a negligncia e, como conseqncia, o mdico ou a entidade passa a responder pelos riscos da cirurgia no informados ao paciente. A necessidade do consentimento informado s poder ser afastada em hiptese denominada pela doutrina como privilgio teraputico, no ocorrentes no presente caso. (REsp 1035346. Publicao em 24.03.2008. Relator Ministro Francisco Falco)

    O privilgio teraputico aplica-se ao caso em que, com risco de

    morte, o paciente no pode ser consultado a respeito do procedimento

    mdico (inconscincia, por exemplo), o que no o caso dos autos, em que

    o paciente, livre e conscientemente, ope-se ao procedimento.

    Afigure-se a hiptese de que determinada pessoa tome cincia

    de que tem uma doena grave. Desde que submetida a doloroso e custoso

    tratamento, ter uma sobrevida de alguns meses. Sem tratamento, ter uma

    sobrevida muitas vezes menor. Neste caso, parece no haver dvida de que

    a pessoa pode optar por no se submeter ao tratamento, mesmo que com

    isto diminua sensivelmente o perodo de vida. Ou seja, tambm aqui

    prevalece, em face do princpio da dignidade da pessoa humana, a deciso

    do paciente devidamente esclarecido, mesmo que isso tambm signifique

    violao ao direito vida, j que a escolha poderia significar consciente

    abreviao da vida em prol de melhores condies de existncia, com

    menos dor, aflio e sofrimento.

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    Sobre o procedimento de obteno do consentimento

    informado, veja-se a lio de Franklin Leopoldo e Silva:

    Se o dilogo inclui o respeito dignidade do paciente, ele

    expressa tambm o reconhecimento do paciente, ele expressa tambm o

    reconhecimento da autonomia, da liberdade do sujeito que se afirma sobre a

    fragilidade que a doena e a morte testemunham. Autonomia expressa a

    essncia humana como liberdade de escolha; antes de tudo a possibilidade

    de optar em relao a tudo o que diga respeito prpria pessoa. A opo

    responsvel o exerccio do direito inerente a todo ser humano de

    responder por si mesmo aos desafios da existncia, isto , de dominar, pela

    razo e pela vontade, o curso de sua prpria histria.

    Nos Estados Unidos da Amrica, pas bero das liberdades

    civis, ocorreu o conhecido Caso Brooks. Devido a uma lcera, paciente

    Testemunha de Jeov solicitou atendimento mdico e por repetidas vezes

    alertou ao mdico de sua negativa em receber tratamento com sangue,

    inclusive firmando um documento de exonerao da responsabilidade do

    profissional. O mdico, sem informar previamente paciente, transfundiu

    sangue. Levado o caso via judicial, o Tribunal de Apelao do Estado de

    Illinois afirmou que a Primeira Emenda da Constituio dos Estados Unidos

    protege o direito de cada indivduo liberdade de sua crena religiosa e seu

    respectivo exerccio. Aduziu-se que a ao governamental s poderia

    embaraar tal direito quando estivesse em perigo, clara e atualmente, a

    sade, o bem-estar ou a moral pblica.

    No Canad, exemplifica-se com o caso Mallete v. Schulman

    (Ontario Court of Appeal, 72 O.R 2d 417, 1989) Em consequncia de um

    acidente automobilstico, uma Testemunha de Jeov sofreu graves

    ferimentos. Na sala de emergncia do hospital foi encontrada uma diretriz

    mdica, por ela firmada, de que no aceitaria tratamento mdico base de

    sangue, mesmo que em situao de emergncia. O mdico do turno, de

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    forma deliberada, ignorou tal manifestao de vontade, transfundindo

    sangue no paciente. A filha adulta da paciente havia objetado energicamente

    a tal transfuso de sangue, mas mesmo assim o mdico no se furtou de

    faz-la. Quando a paciente se recuperou, demandou o mdico por

    administrar-lhe sangue sem o seu consentimento. A Corte resolveu o caso

    em favor da paciente, condenando-lhe ao pagamento de vinte mil dlares

    canadenses pelos danos ocasionados. O mdico apelou da deciso, mas o

    Tribunal de Apelao rechaou seus argumentos, reafirmando o direito de o

    paciente decidir a respeito do seu prprio corpo: "Um adulto capaz

    geralmente tem o direito de recusar um tratamento especfico ou qualquer

    tratamento, ou de selecionar uma forma alternativa de tratamento, ainda que

    essa deciso possa acarretar consigo riscos to srios como a morte ou

    possa parecer equivocada aos olhos da profisso mdica ou da

    comunidade. Independentemente da opinio do mdico, o paciente quem

    tem a palavra final quanto a submeter-se a tratamento".

    No Chile, no ano de 1996, foi rejeitado o Recurso de

    Proteccin Rol 805-96 na Corte de Apelaes de Santiago. Com o recurso,

    o Hospital San Jos pretendia transfundir sangue contra a vontade do

    paciente, com o argumento que a vida era um bem superior. Ficou decidido

    de maneira sucinta, mas profunda, que ningum pode ser forado a

    defender seu prprio direito.

    Michael Kloepfer (in Dimenses da Dignidade Organizador:

    Ingo Wolfgang Sarlet, Livraria do Advogado Editora, 2005), assim se refere,

    sob a perspectiva do direito constitucional alemo sobre a justificao de

    intervenes no direito vida: Sem o consentimento expresso, intervenes

    na intangibilidade corporal s so justificadas de forma excepcional quando

    o paciente, devido ausncia de conscincia, no tem capacidade decisria,

    e sua concordncia pode ser presumida.

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    Da mesma obra se extrai o posicionamento de Ingo Sarlet,

    para quem a dignidade do ser humano pode ser compreendida como

    qualidade integrante e, em princpio, irrenuncivel da prpria condio

    humana. Na feliz formulao de Jorge Miranda, o fato de os seres humanos

    (todos) serem dotados de razo e conscincia representa justamente o

    denominador comum a todos os homens, expressando em que consiste sua

    igualdade. A dignidade um valor espiritual e moral inerente pessoa, que

    se manifesta singularmente na autodeterminao consciente e responsvel

    da prpria vida e que leva consigo a pretenso ao respeito por parte dos

    demais.

    Gnter Drig, por sua vez, consoante a mesma obra, leciona

    que dignidade da pessoa humana consiste no fato de que cada ser humano

    humano por fora de seu esprito, que o distingue da natureza impessoal e

    que o capacita para, com base na sua prpria deciso, tornar-se consciente

    de si mesmo, de autodeterminar sua conduta, bem como de formatar a sua

    existncia e o meio que o circunda... Por isso o conceito de dignidade da

    pessoa humana parece continuar sendo reconduzido e a doutrina

    majoritria refora esta concluso - primordialmente matriz kantiana,

    centrando-se, portanto, na autonomia e no direito de autodeterminao da

    pessoa (de cada pessoa).

    O conceito de dignidade da pessoa humana est, ainda, em

    permanente formao, sob os influxos histrico-culturais.

    Registre-se, ainda, a tal propsito, a lio de Ernst Benda

    (idem), de acordo com a qual, para que a noo de dignidade no se

    desvanea como mero apelo tico, impe-se que seu contedo seja

    determinado no contexto da situao concreta da conduta estatal e do

    comportamento de cada pessoa humana. Refira-se, em carter ilustrativo,

    que h uma srie de situaes que, para determinada pessoa, no so

    consideradas como ofensivas sua dignidade, ao passo que para outras

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    trata-se de violao intensa inclusive do ncleo essencial da dignidade da

    pessoa.

    Por isso, tenho que o Poder Judicirio no pode autorizar

    previamente que o hospital ou o mdico adotem, contra a vontade manifesta

    e atual da paciente, a transfuso de sangue, desde que a paciente

    lucidamente permanea com a convico e manifeste, presentemente,

    municiada das informaes adequadas e necessrias, especialmente quanto

    ao grau de risco decorrente de sua opo, que no aceita tal tipo de

    interveno porque a mesma contraria sua crena religiosa.

    Pelo exposto, dou provimento ao agravo para revogar a

    deciso recorrida.

    o voto.

    DES. UMBERTO GUASPARI SUDBRACK

    Inicialmente, entendo que h questes preliminares ao mrito,

    a saber, a carncia da ao, por falta de interesse processual, e a perda do

    objeto recursal. Vejamos.

    Quanto preliminar de carncia de ao, segundo a doutrina

    de NELSON NERY JUNIOR E ROSA MARIA DE ANDRADE NERY (in

    Cdigo de Processo Civil Comentado e Legislao Extravagante, RT, 7

    ed., p. 269), existe interesse processual quando a parte tem necessidade

    de ir a juzo para alcanar a tutela pretendida e, ainda, quando essa tutela

    jurisdicional pode trazer-lhe alguma utilidade do ponto de vista prtico -

    grifei.

    O mdico e a instituio hospitalar, ao prestarem seus servios

    aos pacientes, tm o dever de manejar todas as variveis tcnicas ao seu

    alcance, capazes de atuar de forma decisiva no progresso do estado clnico

    do enfermo, o que inclui, no caso concreto, a transfuso de sangue.

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    A corroborar essa assertiva, o Cdigo de tica Mdica, em seu

    art. 46, dispe que o profissional, em caso de iminente perigo de vida,

    efetuar qualquer procedimento mdico sem o prvio consentimento tcito

    ou explcito do paciente.

    O mesmo cdigo define a medicina como profisso que tem

    por fim cuidar da sade do homem, sem preocupaes de ordem religiosa1,

    tendo o mdico o dever de agir com o mximo de zelo e o melhor de sua

    capacidade profissional2.

    Nesse passo, no h necessidade nem utilidade da

    interveno jurisdicional, no caso concreto, pois o mdico obrigado a

    empreender todos os meios disponveis para salvar a vida dos pacientes. Ao

    profissional da medicina subjaz a obrigao de cunho moral, legal e tico,

    atuvel no empenho de esforos necessrios para a manuteno da vida do

    paciente, em caso de risco, cenrio reproduzido nos autos em exame (fl. 58).

    Nesse sentido, j me manifestei no julgamento da Apelao

    Cvel n 70020868162, cuja ementa passo a transcrever:

    APELAO CVEL. TRANSFUSO DE SANGUE. TESTEMUNHA DE JEOV. RECUSA DE TRATAMENTO. INTERESSE EM AGIR. Carece de interesse processual o hospital ao ajuizar demanda no intuito de obter provimento jurisdicional que determine paciente que se submeta transfuso de sangue. No h necessidade de interveno judicial, pois o profissional de sade tem o dever de, havendo iminente perigo de vida, empreender todas as diligncias necessrias ao tratamento da paciente, independentemente do consentimento dela ou de seus familiares. Recurso desprovido. (Apelao Cvel n 70020868162, Quinta Cmara Cvel, Tribunal de Justia do RS, Relator: Umberto Guaspari Sudbrack, julgado em 22/08/2007).

    Portanto, entendo que no cabe ao Judicirio interferir na

    relao mdico-paciente.

    1 Art. 1, Cdigo de tica Mdica. 2 Art. 2, Cdigo de tica Mdica.

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    Caso superado na preliminar de ausncia de interesse de agir,

    ainda em sede de matria preliminar, voto por considerar prejudicado o

    exame do presente recurso, face perda de objeto da pretenso veiculada

    no agravo de instrumento.

    Isso porque, compulsando os autos, verifico que houve o

    deferimento da medida liminar de transfuso de sangue na paciente, ora

    agravante, empreendida por FUNDAO UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO

    SUL, no af de salvar-lhe a vida.

    Ora, se efetivamente houve a administrao de sangue, como

    fora informado pela prpria paciente (fl. 05), e ilustrado pelo mandado de

    cumprimento da liminar (fl. 106), resta prejudicado o presente recurso, pois o

    objeto do agravo de instrumento dizia respeito ordem judicial de transfuso

    efetivamente realizada (revogao do mandado autorizativo expedido pela

    Julgadora de 1 grau fl. 21 do instrumento).

    Desse modo, a manifestao judicial acerca do provimento

    pleiteado resultaria em medida incua, uma vez que j realizada a

    transfuso.

    Por fim, se vencido na preliminar de perda do objeto, voto por

    manter a deciso a quo. Vejamos.

    O deslinde do exame da deciso de origem passa pela anlise

    dos requisitos autorizadores da antecipao dos efeitos da tutela, ante as

    circunstncias do caso concreto.

    Inicialmente, no referente tutela antecipada, reputo adequado

    o ensinamento de LUIZ RODRIGUES WAMBIER e OUTROS3, verbis:

    (...) exige-se uma veemente aparncia de bom direito, somado, no caso do art. 273, I, do periculum in mora, ou seja, ao perigo de que, no sendo concedida a medida, venha a deciso final a ser ineficaz, ou haja grande risco de isto ocorrer. No caso do art. 273, II,

    3 Curso Avanado de Processo Civil, v. I: teoria geral do processo e processo de conhecimento. 5 ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 329.

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    exige-se, ao lado do fumus boni iuris, que haja defesa protelatria ou abuso de direito de defesa..

    Esse tambm o entendimento de NELSON NERY JUNIOR E

    ROSA MARIA ANDRADE NERY, conforme se constata na obra Cdigo de

    Processo Civil Comentado. 6 ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2002,

    em comentrio ao art. 273.

    A antecipao de tutela depende da fora da prova, esta capaz

    de convencer o Magistrado da verossimilhana das alegaes do autor. Faz-

    se mister que s mesmas se conjugue o fundado receio, com amparo em

    dados objetivos, de que a previsvel demora no andamento do processo

    cause ao demandante dano irreparvel ou de difcil reparao4.

    Ora, consultando o conjunto probatrio produzido nos autos,

    verifico presentes os requisitos autorizadores da tutela antecipada, a saber,

    a verossimilhana das alegaes do agravado, e o fundado receio de dano

    irreparvel ou de difcil reparao.

    Da leitura dos autos, possvel perceber que a paciente corria

    elevado risco de morte sbita (fl. 58), ou seja, havia perigo de dano

    irreparvel na prestao da tutela jurisdicional. Ademais, no h indcios nos

    autos capazes de firmar a convico deste Juzo acerca de opes

    teraputicas que dispensassem a transfuso de sangue, para o tratamento

    de urgncia da paciente, disposio do hospital, na poca da internao.

    Portanto, a par da verossimilhana das alegaes do agravado,

    respaldadas pelo farto conjunto probatrio dos autos, cujo teor traduz a

    severa molstia que acomete a paciente, o dano morte revelava-se iminente

    quando do deferimento da antecipao no Juzo de origem.

    Ante tais comemorativos, voto por: (i) extinguir o processo, de

    ofcio, sem resoluo do mrito, por carncia de ao, em razo da falta de

    interesse processual do autor, prejudicado a anlise do recurso; superado na

    4 CARNEIRO, Athos Gusmo. Da Antecipao de Tutela. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 19.

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    preliminar, (ii) considerar prejudicado o exame do mrito face perda do

    objeto recursal; superado novamente na preliminar, (iii) desprover o agravo

    de instrumento, de sorte a manter a antecipao de tutela deferida pela

    Magistrada a quo.

    DES. ORLANDO HEEMANN JNIOR

    Estou por afastar as preliminares suscitadas.

    No que se refere falta de interesse processual, entendo no

    caracterizada. Parece-me que h legtimo interesse do corpo mdico em

    preservar-se quanto conduta que venha a ser adotada, at para precaver-

    se de eventual ao judicial da paciente e/ou de seus familiares.

    Entendo tambm no caracterizada a perda do objeto, porque

    h informao nos autos acerca da necessidade de realizao de tratamento

    peridico, impondo-se a definio do Judicirio sobre a questo

    apresentada, ainda mais depois de realizado um procedimento de transfuso

    de sangue, nas circunstncias discutidas.

    Ultrapassadas essas preliminares, acompanho o em. Relator.

    - Presidente - Agravo de Instrumento n 70032799041, Comarca de Caxias

    do Sul: "POR MAIORIA, DERAM PROVIMENTO AO AGRAVO DE

    INSTRUMENTO, VENCIDO O EM. VOGAL, QUE NO O PROVIA. ."

    Julgadora de 1 Grau: DRA. LUCIANA FEDRIZZI RIZZON