Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 179/2012

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    ACRDO N. 179/2012

    Processo n. 182/12PlenrioRelator: Conselheiro Jos da Cunha Barbosa

    Acordam, em Plenrio, no Tribunal Constitucional

    I. Relatrio1. O PRESIDENTE DA REPBLICA veio requerer, nos termos do n. 1 do artigo 278. da

    Constituio, bem como do n 1 do artigo 51. e n. 1 do artigo 57. da Lei n. 28/82, de 15de novembro (LTC), ao Tribunal Constitucional, a apreciao da conformidade com amesma Constituio das seguintes normas constantes do Decreto n. 37/XII da

    Assembleia da Repblica:()

    - a norma constante do n. 1 do artigo 1., na parte em que adita o artigo 335.-A aoCdigo Penal;

    - a norma constante do n. 2 do artigo 1., na parte em que altera o artigo 386. do CdigoPenal;

    - a norma constante do artigo 2., na parte em que adita o artigo 27.-A Lei n. 34/87, de16 de julho, alterada pelas Leis n.s 108/2001, de 28 de novembro, 30/2008, de 10 de julho,41/2010, de 3 de setembro, e 4/2011, de 16 de fevereiro;

    - a norma constante do artigo 10., quando conjugada com as normas anteriormentereferidas.

    ()

    2. Para tanto, mostram-se invocados os seguintes fundamentos:()

    1.

    Pelo Decreto n. 37/XII, a Assembleia da Repblica aprovou o regime que institui o crimede enriquecimento ilcito.

    2.

    Este novo tipo criminal aditado ao Cdigo Penal, na formulao adotada pelo Decreto,

    sendo aplicvel a todas as pessoas, singulares e coletivas (artigo 335.-A), embora com moldurapenal agravada quando praticado por funcionrio (artigo 386.).

    3.

    Semelhante tipo criminal aditado Lei n. 34/87, de 16 de julho, que aprovou o regimedos crimes de responsabilidade dos titulares de cargos polticos.

    4.

    a seguinte a formulao dada pelo Decreto ao n. 1 do artigo 335.-A do Cdigo Penal:Quem por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiverpatrimnio, sem origem lcita determinada, incompatvel com os seus rendimentos e benslegtimos punido com pena de priso at trs anos, se pena mais grave no lhe couber porfora de outra disposio legal.

    5.

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    De modo semelhante, dispe o artigo 386. do Cdigo Penal na redao dada peloDecreto: O funcionrio que, durante o perodo do exerccio de funes pblicas ou nos trsanos seguintes cessao dessas funes, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva,adquirir, possuir ou detiver patrimnio, sem origem lcita determinada, incompatvel com osseus rendimentos e bens legtimos punido com pena de priso de um a cinco anos, se penamais grave no lhe couber por fora de outra disposio legal.

    6.Finalmente, de acordo com o Decreto, a seguinte a redao do crime de enriquecimento

    ilcito aditado Lei n. 34/87, de 16 de julho: O titular de cargo poltico ou de alto cargopblico que durante o perodo do exerccio de funes pblicas ou nos trs anos seguintes cessao dessas funes, por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuirou detiver patrimnio, sem origem lcita determinada, incompatvel com os seus rendimentos ebens legtimos punido com pena de priso de 1 a 5 anos, se pena mais grave no lhe couberpor fora de outra disposio legal.

    7.

    Nos termos das normas citadas e, tal como resulta do debate havido no Parlamento queconsta dos trabalhos preparatrios, so trs os elementos objetivos do tipo legal de crime,comuns definio do crime em apreciao: i) adquirir, possuir ou deter patrimnio; ii) semorigem lcita determinada; iii) incompatvel com os rendimentos e bens legtimos do agente.

    8.

    Estabelece o artigo 10. do Decreto que Compete ao Ministrio Pblico, nos termos doCdigo do Processo Penal, fazer a prova de todos os elementos do crime de enriquecimentoilcito.

    9.

    Coloca-se, assim, a questo de saber se estas normas conjugadas consubstanciam umaviolao do princpio constitucional da presuno de inocncia, decorrente do princpio doEstado de direito, consagrado no artigo 2 e com assento expresso no n. 2 do artigo 32. daConstituio.

    10.Com efeito, a Constituio garante, no n. 2 do artigo 32., que todo o arguido se presume

    inocente at ao trnsito em julgado da sentena de condenao, devendo ser julgado no maiscurto prazo compatvel com as garantias de defesa. Este princpio encontra a sua origemhistrica na Declarao dos Direitos do Homem e do Cidado, de 26 de agosto de 1789, nasequncia da Revoluo Francesa. Veio a ser inscrito nos mais relevantes textos internacionaisde proteo de direitos humanos, designadamente na Declarao Universal dos Direitos doHomem (n. 1 do artigo 11.), no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Polticos (n. 2do artigo 14.) e na Conveno Europeia dos Direitos do Homem (n. 2 do artigo 6.).

    11.

    Uma das decorrncias deste princpio , segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, emanotao ao artigo 32. da Constituio (cfr. Constituio da Repblica Portuguesa Anotada,Coimbra, 2007, pg. 518), de resto amplamente citada na jurisprudncia do TribunalConstitucional a este propsito (cfr., entre outros, o acrdo n. 426/91) a proibio deinverso do nus da prova.

    12.

    Tal proibio traduz-se na necessidade de a acusao fazer prova dos factos que alega,necessrios ao preenchimento do tipo legal de crime e dos seus elementos.

    13.

    Traduz-se ainda no direito ao silncio do arguido e a recusar-se colaborar na suaincriminao. Este direito encontra-se previsto na alnea d) do n. 1 do artigo 61. do Cdigo deProcesso Penal, sendo considerado um corolrio do princpio da presuno de inocncia e dasgarantias fundamentais do arguido em processo penal (cfr. Acrdo do Tribunal Constitucional

    n. 695/95 e Maria Fernanda Palma,A constitucionalidade do artigo 342 do Cdigo de ProcessoPenal(O direito ao silncio do arguido), in Revista do Ministrio Pblico, Ano 15, Out./Dez.1994, n 60, pg. 101 e segs.).

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    14.

    Sendo certo, como se viu, que o Decreto determina, nos termos gerais do Cdigo deProcesso Penal, que compete ao Ministrio Pblico fazer a prova de todos os elementos docrime, importa apurar se a conjugao desta norma com a definio do tipo legal de crimecomporta uma inverso do nus da prova violadora do princpio constitucional da presuno deinocncia.

    15.So trs, como acima mencionado, os elementos objetivos do tipo legal de crime. O

    Ministrio Pblico deve, pois, nos termos do regime descrito, fazer prova da aquisio, posse oudeteno do patrimnio, de no ter esse patrimnio origem lcita determinada, bem como dasua incompatibilidade com os rendimentos e bens legtimos do arguido.

    16.

    Resulta da conjugao dos citados preceitos que, para o preenchimento do tipo legal decrime, basta que o Ministrio Pblico alegue que o enriquecimento no possui origem lcitadeterminada.

    17.

    Sublinhe-se que a exigncia de prova no se dirige ilicitude da origem do patrimnio nem,to-pouco, licitude dessa origem.

    18.

    Tal significa que, na circunstncia de o Ministrio Pblico no determinar a licitude daorigem do patrimniopor incapacidade de prova, insuficincia de factos, ou outra razo otipo legal deve ter-se por preenchido.

    19.

    A nica forma de o arguido garantir que a prova no se considera produzida revelar,provando, a origem do patrimnio.

    20.

    Contudo, uma tal exigncia, admitindo que o arguido se encontra em condies de acumprir, viola, por si s, o princpio da presuno de inocncia na sua dimenso de proibio deinverso do nus da prova e o direito ao silncio do arguido.

    21.

    Com efeito, o tipo legal de crime e os respetivos elementos no podem ser configurados demodo a promover a inrcia do Ministrio Pblico, exigindo, em consequncia, a ao doarguido.

    22.

    A conformao constitucional das garantias penais e processuais penais exige justamente ocontrrio: a atuao do Ministrio Pblico charge et a dcharge e a faculdade, noautoincriminadora, de inao do arguido.

    23.

    Poder-se-ia questionar se no deveria a norma ser interpretada no sentido de caber aoMinistrio Pblico a prova da licitude da origem.

    24.

    Contudo, tal interpretao no corresponde letra da lei, uma vez que o elemento do tipolegal de crime definido sem origem lcitadeterminada. Bastaria, nesse caso, afirmar semorigem lcita. Esta configurao do tipo criminal parece afastar a necessidade de prova peloMinistrio Pblico da licitude.

    25

    A referida interpretao conduziria, de resto, ao resultado de forar o Ministrio Pblico auma prova da no provenincia de origem lcita inexistindo, como evidente, umaenumerao taxativa de origens lcitas de bens.

    26.

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    Uma tal conceo que assentasse na existncia de uma lista de fontes lcitas seria, de resto,contrria ao princpio da legalidade em geral e, em particular, ao princpio da tipicidade da leipenal. Com efeito, de acordo com este princpio, os destinatrios da norma devem poderidentificar as condutas que o legislador qualifica como ilcitas; no o contrrio, aquelas que, porno serem lcitas, passariam, automaticamente, a ser ilcitas.

    27.

    O crime de enriquecimento ilcito no encontra, no modo como est definido no Decreto,paralelo nos sistemas penais prximos do Portugus.

    28.

    Com efeito, no obstante ter consagrao, tal como referido nos trabalhos preparatrios,na Conveno das Naes Unidas contra a corrupo, o crime em causa encontra naquelaConveno uma configurao muito distinta.

    29.

    Assim, o artigo 20. da Conveno contm uma recomendao aos Estados partes paraque, no respeito pela sua Constituio e direito internos, considerem a possibilidade de adotarmedidas legislativas de incriminao de funcionrio pblico por enriquecimento ilcito.

    30.

    Deste modo, a Conveno no determina um modelo concreto de crime deenriquecimento ilcito nem, to-pouco, exige a inverso do nus da prova bem ao contrrio,remete a definio do crime em concreto para o direito interno dos Estados, no respeito pelasrespetivas Constituies.

    31.

    Nos sistemas jurdicos que nos so prximos no se encontra lugar paralelo para o modeloque o legislador portugus agora pretendeu definir. Podemos encontrar na Blgica, em Espanhae em Itlia uma procura crescente de criminalizar a corrupo, mas no o enriquecimento ilcitonos termos previstos no Decreto em apreciao.

    32.

    Porventura o modelo que mais se aproxima do que aqui analisamos o adotado pelo

    legislador francs. Todavia, de acordo com o disposto no artigo 321.-6 do Code Pnal, aincriminao do enriquecimento ilcito depende da demonstrao da existncia de conexoentre o agente e outras pessoas condenadas pela prtica de crimes graves. Exige-se, ainda, aprova de um benefcio direto ou indireto para o agente o que, ao menos, pode ser qualificadocomo um crime de resultado.

    33.

    Deste modo, o modelo de incriminao do enriquecimento ilcito atravs de uma inversodo nus da prova seria uma singularidade do modelo portugus no contexto europeu.

    34.

    No est, assim em causa a criminalizao do enriquecimento ilcito que tem assento nosinstrumentos internacionais j citados mas uma eventual inverso do nus da prova operadapelo legislador e a consequente violao do princpio da presuno de inocncia.

    35.Este princpio encontra-se tambm violado na sua dimenso ou sub-princpio in dubio pro

    reo.

    36.

    Com efeito, outro corolrio do princpio da presuno de inocncia a necessidade decondenao beyond a reasonable doubt. Tal significa que, em caso de dvida, o juiz devedeclarar no se encontrarem provados os factos e, neste caso, o non liquet favorece o arguido(cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, Lisboa, 2000, pg. 83).

    37.

    Assim, caso o Ministrio Pblico no demonstre a origem lcita do enriquecimento, cria-sea dvida sobre a licitude ou ilicitude desse enriquecimento.

    38.

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    Ora, uma vez que a definio do tipo legal de crime se encontra desenhada de tal formaque a no demonstrao da licitude da origem d lugar ao seu preenchimento, a dvidamencionada conduzir, inelutavelmente, condenao do arguido o que consubstancia umaviolao ao princpio da presuno de inocncia.

    39.

    As normas objeto do pedido so, ainda, suscetveis de violar o princpio constitucional daproporcionalidade, na dimenso necessidade.

    40.

    Com efeito, no entrando aqui na controvrsia sobre a qualificao do crime como deperigo, concreto ou abstrato, sempre se dir, em linha com o afirmado pelo Tribunal no citadoacrdo n. 426/91 que a constitucionalidade de uma norma que preveja um crime de perigoe, sobretudo, um crime de perigo abstrato deve ser julgada, em primeiro lugar, luz doprincpio da necessidade das penas e das medidas de segurana, implicitamente consagrado non. 2 do artigo 18. da Constituio. Com efeito, em relao s incriminaes de perigo (e,especialmente, s de perigo abstrato), sempre se poder entender que no indispensvel aimposio dos pesados sacrifcios resultantes da aplicao de penas e de medidas de segurana,visto que no est em causa, tipicamente, a efetiva leso de qualquer bem jurdico. A imposiode penas e de medidas de segurana implica, evidentemente, uma restrio de direitosfundamentais, como o direito liberdade e o direito de propriedade, que indispensveljustificar ante o disposto no n. 2 do artigo 18. da Constituio. Assim, uma tal restrio s admissvel se visar proteger outros direitos fundamentais e na medida do estritamenteindispensvel para esse efeito.

    41.

    A restrio que a criminalizao desta conduta importa para os bens jurdicosconstitucionalmente protegidos como o direito liberdade e o direito de propriedade devejustificar-se num teste rigoroso de proporcionalidade. Seria necessrio demonstrar que scriminalizando o enriquecimento se conseguiria atingir o resultado visado pelo legislador (cfr.Germano Marques da Silva, Direito Penal Portugus, I, Lisboa, 1997, pg. 75). Ora, como se viu,podem ser encontradas outras formas de, protegendo os mesmos bens jurdicos, salvaguardarprincpios constitucionais fundamentais, ademais quando aplicvel a todas as pessoas.

    42.

    Acresce que, na formulao adotada pelo Decreto, no so claros os bens jurdicos aproteger pela norma e pela respetiva incriminao. Tal indeterminao coloca em crise no s ojuzo de proporcionalidade como a prpria possibilidade concreta de definio do tipo legal.Com efeito, e o citado acrdo n. 426/91 paradigmtico disso mesmo, a definio dos crimesno pode nunca surgir desligada dos bens jurdicos que se pretende proteger (cfr., sobre o temae sobre a necessidade de revisitar a jurisprudncia do acrdo n. 426/91, Jorge de FigueiredoDias, O Direito Penal do Bem Jurdico como princpio jurdico-constitucional, in XXV Anos deJurisprudncia Constitucional Portuguesa, Coimbra, 2009, pg. 39).

    43.

    No menos relevante a possvel violao do princpio da legalidade penal e do seu sub-

    princpio nullum crimen, nulla poena sine lege praevia.44.

    Do Decreto no resulta com suficiente preciso o momento da prtica do facto,legitimando a interpretao segundo a qual a norma aplicvel a factos ocorridos em momentoanterior ao da sua entrada em vigor.

    45.

    Com efeito, uma vez que a norma se refere a aquisio, posse ou deteno e sendo a posseum facto aparente e continuado, pode bem suceder que a posse atual se tenha iniciado emmomento muito anterior o que implicaria uma aplicao retroativa ou, ao menos, retrospetivada lei penal o que sempre seria inadmissvel luz do disposto no artigo 29 da Constituio.

    46.

    Finalmente, razes de confiana, princpio nsito ao Estado de direito consagrado no artigo2. da Constituio, militam a favor da deciso de inconstitucionalidade do Decreto em causa.

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    47.

    Foram publicamente expressas, por diversos meios, as dvidas de juristas sobre aconformidade constitucional do Decreto em apreciao, nas suas sucessivas verses. Tal foi ocaso, entre outros, dos Professores Vital Moreira e Costa Andrade. No mbito do procedimentolegislativo tais dvidas foram tambm suscitadas nas declaraes de voto apresentadas,designadamente na do Partido Socialista e, com especial interesse pela sua clareza de

    argumentao jurdica, na dos Senhores Deputados Paulo Mota Pinto e Maria Paula Cardoso.Ainda, no mesmo sentido se pronuncia o parecer do Conselho Superior do Ministrio Pblico,nos termos do qual, aconselhado que qualquer que venha a ser a formulao aprovada pelaAssembleia da Repblica, se faa submeter a lei a fiscalizao preventiva do TribunalConstitucional.

    48.

    Numa rea com a sensibilidade do Direito Penal, onde esto em risco valores mximos daordem jurdica num Estado de direito como a liberdade, no pode subsistir dvida sobre aincriminao de condutas.

    ().

    3. No seguimento de tais fundamentos, conclui-se requerendo, nos termos do n. 1do artigo 278. da Constituio, bem como do n 1 do artigo 51. e n 1 do artigo 57. daLei n. 28/82, de 15 de novembro, a fiscalizao preventiva da constitucionalidade dasnormas do n. 1 do artigo 1., do n 2 e do artigo 10. constantes do Decreto n 37/XII da

    Assembleia da Repblica, por violao dos artigos 2., 18., n. 2, 29. e 32., n. 2 daConstituio.

    4. Notificada que foi, a Autora das normas em causa limitou-se a oferecer omerecimento dos autos.

    Nada obstando, cumpre proceder apreciao solicitada.

    II. Fundamentao

    5. O objeto da presente fiscalizao abstrata preventiva, dependendo do requerimentoformulado, consiste na fiscalizao da constitucionalidade das normas do n. 1 doartigo 1., do n 2 do artigo 1., do artigo 2., no que respeita aos aditamentos e alteraes aprevistos, e do artigo 10., todos constantes do Decreto n 37/XII da Assembleia daRepblica, por violao dos artigos 2., 18., n. 2, 29. e 32., n. 2 da Constituio, ouseja, importa saber se as normas sindicadas podem ser tidas como desconformes

    Constituio, designadamente por violao dos princpios consagrados nas normasconstitucionais identificadas.Tais normas apresentam o seguinte teor:

    ()

    Artigo 1.

    27. alterao ao Cdigo Penal

    1 - aditado seco II do captulo I do ttulo V do livro II do Cdigo Penal, aprovadopelo Decreto-Lei n. 400/82, de 23 de setembro, e alterado pela Lei n. 6/84, de 11 de maio,pelos Decretos-Leis n.s 101-A/88, de 26 de maro, 132/93, de 23 de abril, e 48/95, de 15 demaro, pelas Leis n.s 90/97, de 30 de julho, 65/98, de 2 de setembro, 7/2000, de 27 de maio,77/2001, de 13 de julho, 97/2001, 98/2001, 99/2001 e 100/2001, de 25 de agosto, e 108/2001,

    de 28 de novembro, pelos Decretos-Leis n.s 323/2001, de 17 de dezembro, e 38/2003, de 8 demaro, pelas Leis n.s 52/2003, de 22 de agosto, e 100/2003, de 15 de novembro, pelo Decreto-Lei n. 53/2004, de 18 de maro, e pelas Leis n.s 11/2004, de 27 de maro, 31/2004, de 22 de

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    julho, 5/2006, de 23 de fevereiro, 16/2007, de 17 de abril, 59/2007, de 4 de setembro, 61/2008,de 31 de outubro, 32/2010, de 2 de setembro, e 40/2010, de 3 de setembro, o artigo 335.-A,com a seguinte redao:

    Artigo 335.-A

    Enriquecimento ilcito

    1 - Quem por si ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir oudetiver patrimnio, sem origem lcita determinada, incompatvel com os seusrendimentos e bens legtimos punido com pena de priso at trs anos, se pena maisgrave no lhe couber por fora de outra disposio legal.

    2 - Para efeitos do disposto no nmero anterior, entende-se por patrimnio todo oativo patrimonial existente no pas ou no estrangeiro, incluindo o patrimnioimobilirio, de quotas, aes ou partes sociais do capital de sociedades civis oucomerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veculos automveis, carteiras dettulos, contas bancrias, aplicaes financeiras equivalentes e direitos de crdito, bemcomo as despesas realizadas com a aquisio de bens ou servios ou relativas aliberalidades efetuadas no pas ou no estrangeiro.

    3 - Para efeitos do disposto no n. 1, entendem-se por rendimentos e bens legtimos

    todos os rendimentos brutos constantes das declaraes apresentadas para efeitosfiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens comorigem lcita determinada.

    4 -Se o valor da incompatibilidade referida no n. 1 no exceder 100 salriosmnimos mensais a conduta no punvel.

    5 - Se o valor da incompatibilidade referida no n. 1 exceder 350 salrios mnimosmensais o agente punido com pena de priso de um a cinco anos.

    2 -A seco VI do captulo IV do ttulo V do livro II do Cdigo Penal, aprovado peloDecreto-Lei n. 400/82, de 23 de setembro, e alterado pela Lei n. 6/84, de 11 de maio, pelosDecretos-Leis n.s 101-A/88, de 26 de maro, 132/93, de 23 de abril, e 48/95, de 15 de maro,pelas Leis n.s 90/97, de 30 de julho, 65/98, de 2 de setembro, 7/2000, de 27 de maio, 77/2001,

    de 13 de julho, 97/2001, 98/2001, 99/2001 e 100/2001, de 25 de agosto, e 108/2001, de 28 denovembro, pelos Decretos-Leis n.s 323/2001, de 17 de dezembro, e 38/2003, de 8 de maro,pelas Leis n.s 52/2003, de 22 de agosto, e 100/2003, de 15 de novembro, pelo Decreto-Lei n.53/2004, de 18 de maro, e pelas Leis n.s 11/2004, de 27 de maro, 31/2004, de 22 de julho,5/2006, de 23 de fevereiro, 16/2007, de 17 de abril, 59/2007, de 4 de setembro, 61/2008, de 31de outubro, 32/2010, de 2 de setembro, e 40/2010, de 3 de setembro, passa a denominar-seEnriquecimento ilcito por funcionrio, sendo composta pelo artigo 386., que passa a ter aseguinte redao:

    Artigo 386.

    Enriquecimento ilcito por funcionrio

    1 - O funcionrio que, durante o perodo do exerccio de funes pblicas ou nostrs anos seguintes cessao dessas funes, por si ou por interposta pessoa, singular

    ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver patrimnio, sem origem lcita determinada,incompatvel com os seus rendimentos e bens legtimos punido com pena de prisode um a cinco anos, se pena mais grave no lhe couber por fora de outra disposiolegal.

    2 - Para efeitos do disposto no nmero anterior, entende-se por patrimnio todo oativo patrimonial existente no pas ou no estrangeiro, incluindo o patrimnioimobilirio, de quotas, aes ou partes sociais do capital de sociedades civis oucomerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veculos automveis, carteiras dettulos, contas bancrias, aplicaes financeiras equivalentes e direitos de crdito,bemcomo as despesasrealizadas com a aquisio de bens ou servios ou relativas aliberalidades efetuadas no pas ou no estrangeiro.

    3 - Para efeitos do disposto no n. 1, entendem-se por rendimentos e bens legtimos

    todos os rendimentos brutos constantes das declaraes apresentadas para efeitosfiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens com

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    origem lcita determinada, designadamente os constantes em declarao de patrimnioe rendimentos.

    4 - Se o valor da incompatibilidade referida no n. 1 no exceder 100 salriosmnimos mensais a conduta no punvel.

    5 - Se o valor da incompatibilidade referida no n. 1 exceder 350 salrios mnimosmensais o agente punido com pena de priso de um a oito anos.

    3 -A atual seco VI do captulo IV do ttulo V do livro II do Cdigo Penal passa a ser aseco VII, sendo composta pelo atual artigo 386., que passa a ser o artigo 387..

    (...)

    Artigo 2.

    Quinta alterao Lei n. 34/87, de 16 de julho

    aditado Lei n. 34/87, de 16 de julho, alterada pelas Leis n.s 108/2001, de 28 denovembro, 30/2008, de 10 de julho, 41/2010, de 3 de setembro, e 4/2011, de 16 de fevereiro,o artigo 27.-A, com a seguinte redao:

    Artigo 27.-A

    Enriquecimento ilcito1 - O titular de cargo poltico ou de alto cargo pblico que durante o perodo do

    exerccio de funes pblicas ou nos trs anos seguintes cessao dessas funes, porsi ou por interposta pessoa, singular ou coletiva, adquirir, possuir ou detiver patrimnio,sem origem lcita determinada, incompatvel com os seus rendimentos e bens legtimos punido com pena de priso de 1 a 5 anos, se pena mais grave no lhe couber por forade outra disposio legal.

    2 - Para efeitos do disposto no nmero anterior, entende-se por patrimnio todo oativo patrimonial existente no pas ou no estrangeiro, incluindo o patrimnioimobilirio, de quotas, aes ou partes sociais do capital de sociedades civis oucomerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veculos automveis, carteiras dettulos, contas bancrias, aplicaes financeiras equivalentes e direitos de crdito, bem

    como as despesas realizadas com a aquisio de bens ou servios ou relativas aliberalidades efetuadas no pas ou no estrangeiro.

    3 - Para efeitos do disposto no n. 1, entendem-se por rendimentos e bens legtimostodos os rendimentos brutos constantes das declaraes apresentadas para efeitosfiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens comorigem lcita determinada, designadamente os constantes em declarao de patrimnioe rendimentos.

    4 - Se o valor da incompatibilidade referida no n. 1 no exceder 100 salriosmnimos mensais a conduta no punvel.

    5 - Se o valor da incompatibilidade referida no n. 1 exceder 350 salrios mnimosmensais o agente punido com pena de priso de 1 a 8 anos.

    (...)

    Artigo 10.

    Prova

    Compete ao Ministrio Pblico, nos termos do Cdigo do Processo Penal, fazer aprova de todos os elementos do crime de enriquecimento ilcito.

    ().

    6. Afigura-se de toda a pertinncia, com vista sua compreensibilidade global,proceder a um curto enquadramento da matria objeto da presente fiscalizao abstrata,quer no mbito do direito internacional e comparado, quer no domnio do direito interno.

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    6.1 Ao nvel do direito internacional, nos trabalhos preparatrios, faz-se,essencialmente, referncia Conveno das Naes Unidas contra a Corrupo (doravante,Conveno), a qual entrou em vigor, na ordem internacional, em 12 de julho de 2003, e

    viria a ser aprovada pela Resoluo da Assembleia da Repblica n. 47/2007, de 21 desetembro.

    No seu artigo 20., cuja epgrafe , precisamente, Enriquecimento ilcito, pode ler-seo seguinte: Sem prejuzo da Constituio e dos princpios fundamentais do respetivo ordenamentojurdico, cada Estado parte deve adotar as medidas legislativas ou de outro tipo que se revelem necessriaspara criminalizar o enriquecimento ilcito, quando praticado intencionalmente, ou seja, o aumentosignificativo do patrimnio de um funcionrio pblico no explicvel tendo em conta os rendimentosdeclarados.

    Ora, constituindo a Conveno um instrumento normativo produtor de efeitosjurdicos vinculativos, os seus preceitos contm deveres jurdicos para os Estados Partes,concretamente, o dever de criminalizao de certas condutas. Sucede que, ao contrrio dePortugal, alguns Estados Partes formularam reservas ao artigo 20.. Foi o caso do Vietnamee do Canad, essencialmente com fundamento no mesmo argumento, a saber, o princpio

    da presuno de inocncia, reconhecido no s nas leis fundamentais destes Estados, comono artigo 14., n. 2 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Polticos.

    Isto no implica, note-se, que os Estados signatrios da Conveno que (ainda) notenham criminalizado o enriquecimento ilcito e que no hajam formulado reservas aocontedo da mesma estejam a incumprir as obrigaes assumidas. Com efeito, o prprioartigo 20. que possibilita aos Estados a no incriminao do enriquecimento ilcito comfundamento na Constituio ou em princpios fundamentais dos respetivos ordenamentosjurdicos. Assim se explicam, por exemplo, as declaraes da Finlndia, do Reino Unido edos Estados Unidos da Amrica ao abrigo do Mechanism for the Review ofImplementation of the United Nations Convention against Corruption (disponvel em

    www.unodc.org).A Finlndia considera desnecessria a previso de um tipo legal de crime como o

    enriquecimento ilcito, pois assevera que os mecanismos legais e regulamentares jexistentes so suficientes. J os Estados Unidos e, no mesmo sentido, o Reino Unido -sublinham impressivamente que a implementao do artigo 20., Enriquecimento ilcito,implicaria a transferncia para o arguido do nus da prova relativamente aoestabelecimento da natureza legtima da fonte de rendimento em causa. Uma vez que aConstituio dos Estados Unidos prev a presuno de inocncia do arguido, impossvelcriminalizar o enriquecimento ilcito.

    Vale por dizer que uma eventual no criminalizao do enriquecimento ilcito por partedo legislador nacional ou de qualquer outro Estado que no haja formulado reservas ao

    artigo 20. da Conveno - no implica inelutavelmente o incumprimento de umaobrigao convencional internacional. Portugal pode invocar princpios fundamentais doseu ordenamento jurdico-constitucional inclusivamente princpios que incorporamigualmente normas de ius cogens de direito internacionaldesde que isso no o afaste deum necessrio combate conduta visada atravs de outros meios. Isto mesmo se confirmaa partir da leitura do Parecer do Conselho Superior da Magistratura, de 9 de fevereiro de2011, que apreciou o Projeto de Lei n. 494/XI/2. (PCP):

    [O artigo 20. da Conveno] no implica necessariamente que haja um crime designado deenriquecimento ilcito, mas sim que a legislao permita punir esse enriquecimento ilcito, o que pode serefetivado atravs de outros tipos legais de crime.

    Esta flexibilidade, alis, est bem patente na pgina oficial da Conveno, onde se podeler que os Estados Partes devem obrigatoriamente tipificar como crime: o suborno afuncionrios pblicos, a corrupo ativa a oficiais estrangeiros, a fraude e a apropriao

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    indbita, a lavagem de dinheiro e a obstruo da justia, e devem procurar tipificar ascondutas de corrupo passiva de oficiais estrangeiros, trfico de influncias, abuso depoder, enriquecimento ilcito, suborno no setor privado e desvios de recursos no setorprivado.

    6.2 No espao da Unio Europeia, a qual parte da Conveno, por deciso do

    Conselho de 25 de Setembro de 2008 (2008/801/CE), existem instrumentos que, no sereferindo incriminao do enriquecimento ilcito em si, no podem deixar de seconsiderar com ele correlacionados (vg., a Conveno relativa luta contra a Corrupo emque estejam implicados funcionrios das Comunidades Europeias ou dos Estados-membros da Unio Europeia, de 1997, que foi aprovada pela Resoluo da Assembleia daRepblica n. 72/2001 e a Deciso-Quadro 2008/841/JAI do Conselho, de 24 de outubrode 2008, relativa luta contra a criminalidade organizada).

    6.3 No plano do direito comparado, refira-se que, apesar das dificuldades colocadas incriminao, alguns Estados admitem o crime de enriquecimento ilcito ou injustificado. o caso, sem pretenses de exaustividade, de Hong-Kong (v. o Captulo 201, Seco 10 daPrevention of Bribery Ordinance), do Chile, (v. artigo 241-bis do respetivo Cdigo Penal)

    da Argentina (v. artigo 268., pargrafo 2 do respetivo Cdigo Penal, na redao que lheconferiu a Lei n. 25.188, de 1999), de El Salvador (v. artigo 333. do respetivo CdigoPenal), do Equador (v. artigo 296.1 do respetivo Cdigo Penal), da China (v. artigo 395.do respetivo Cdigo Penal), e da Regio Administrativa Especial de Macau.

    porventura conveniente atentar na evoluo sofrida pelo regime jurdico da figura doenriquecimento ilcito em Macau, pela proximidade relativamente ao ordenamento jurdicoportugus. Ora, o destaque cabe, desde logo, ao artigo 7., n. 1, da Lei n. 14/87/M, de 7de dezembro (Regime Penal da Corrupo), que previa a punio disciplinar pelo ilcito deSinais exteriores de riqueza.

    Seguiu-se a Lei n. 3/98/M, de 29 de junho, entretanto revogada pela Lei n. 11/2003,

    de 28 de junho. A se prev no s o dever de apresentao, por parte de titulares de cargospolticos e demais trabalhadores da funo pblica, de uma declarao de rendimentos einteresses patrimoniais (artigo 1.),como o crime de Riqueza injustificada (artigo 28.),configurado nos seguintes termos:

    Os obrigados declarao nos termos do artigo 1. que, por si ou por interpostapessoa, estejam na posse de patrimnio ou rendimentos anormalmente superiores aosindicados nas declaraes anteriores prestadas e no justifiquem, concretamente, como equando vieram sua posse ou no demonstrem satisfatoriamente a sua origem lcita, sopunidos com pena de priso at trs anos e multa at 360 dias (n. 1).

    mister concluir, portanto, que a grande maioria dos Estados no admite acriminalizao do enriquecimento ilcito ou injustificado, seja porque o reputam

    desnecessrio no quadro de outros instrumentos de combate corrupo, seja porque tmdificuldades em sustent-lo luz do princpio (fundamental) da presuno de inocncia.Exceo a este quadro mais ou menos estvel o crime de no justificao derendimentos, previsto no artigo 321-6 do Cdigo Penal Francs, introduzido pela Loi n.2006-64, de 23 de janeiro de 2006:

    Le fait de ne pouvoir justifier de ressources correspondant son train de vie ou de ne pas pouvoir justifierde lorigine dun bien dtenu, tout tant en relations habituelles avec une ou plusieurs personnes quis soit se livrent la commissionde crimes ou de dlits punis dau moins cinq ans demprisonnement et procurant celles-ci unprofit direct ou indirect, soit sont les victimes dune de ces infractions, est puni dune peine de trois ansdemprisonnement et de 75 000 damende.

    6.4 O facto de o chamado enriquecimento ilcito ter uma expresso praticamente

    nula no contexto jurdico-penal europeu contrasta, no domnio do direito fiscal, com umconjunto de institutos normativos que pretendem atingir determinados acrscimos

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    patrimoniais no justificados que so desvelados a partir da existncia de umadesproporo entre o rendimento declarado e certas manifestaes de fortuna, os quais,assim, se encontram funcionalmente dirigidos deteo de situaes anmalas onde se

    verifique uma dissonncia entre a capacidade contributiva revelada pelo contribuinte naaquisio de determinados bens e aqueloutra que possvel extrair a partir dos rendimentos

    por ele declarados (cf. E. DE MITA, Fisco e Costituzione II, Milo, 1993, pp. 1174 e ss.,MARIO TRIMELONI, Le presunzione tributarie, in AA. VV. (dir. ANDREAAMATUCCI), Tratatto di diritto tributrio, II, Pdua, 1994, p. 235; JOO RODRIGUES,Critrios normativos de predeterminao da matria tributvel, Coimbra, 2003, pp. 37 ess.).

    Assim sucede, v.g., em Espanha (cfr. artigo 39. da Ley del Impuesto sobre la Renta de lasPersonas Fsicas), em Frana (cfr. artigo 168. do Code Gnrale des Impts) e em Itlia, (como redditometro institudo pelo Decreto del Presidente della Repubblica 29 settembre 1973, n.600).

    6.5 J, entre ns, podemos encontrar, no mesmo mbito, no s iniciativas ao nvel dodireito fiscal como, ainda, no domnio de previses no fiscais.

    No que ao primeiro se refere, temos, desde logo, a avaliao indiciria do rendimentotributvel em funo do confronto com certas manifestaes de fortuna a qual veio a serintroduzida, sob proposta do Relatrio da Comisso para o Desenvolvimento da ReformaFiscal de 1996, pela Lei n. 30-G/2000, de 29 de setembro, que aditou Lei Geral

    Tributria (LGT) a alnea d) do artigo 87. e o artigo 89.-A, passando a prever-se o recursoaos mtodos indiretos quando os rendimentos declarados em sede de IRS se afastaremsignificativamente para menos, sem razo justificada, dos padres de rendimento querazoavelmente possam permitir as manifestaes de fortuna evidenciadas pelo sujeitopassivo nos termos do artigo 89.-A (sendo estas: 1) a aquisio de imveis de valor igualou superior a 250.000,00; 2) a aquisio de automveis ligeiros de passageiros de valorigual ou superior a 50.000,00 e motociclos de valor igual ou superior a 10.000,00; 3) aaquisio de barcos de recreio de valor igual ou superior a 25.000,00; 4) a aquisio deaeronaves de turismo; e, por fim, a realizao de suprimentos e emprstimos feitos no anode valor igual ou superior a 50.000,00, como resulta da conjugao da alnea d) do artigo87., com o n. 4, do artigo 89.-A da LGT).

    E, mais tarde, a Lei n. 55-B/2004, de 30 de dezembro, aditou ao artigo 87. da LGT aalnea f), onde atualmente se dispe haver lugar a avaliao indireta quando se verificar umacrscimo de patrimnio ou despesa efetuada, incluindo liberalidades, de valor superior a

    100.000,00, verificados simultaneamente com a falta de declarao de rendimentos oucom a existncia, no mesmo perodo de tributao, de uma divergncia no justificada comos rendimentos declarados, de modo a abranger outras manifestaes de fortuna para

    alm das tipificadas no n. 4 do artigo 89.-A da LGT (cf., sobre a questo, CASALTANABAIS, A Avaliao indireta e manifestaes de fortuna na luta contra a evaso fiscal,em Direito e Cidadania, n. 20/21, 2004, Cabo Verde).

    De notar, por pertinente anlise do problema de (in)constitucionalidade que nosocupa, dois aspectos que decorrem desse regime legal.

    Em primeiro lugar, a tributao decorrente das referidas manifestaes de fortuna no automtica, dependendo sempre da ausncia, por parte do contribuinte, de razesjustificativas para o desvio. Para esse efeito, dispe-se no artigo 89.-A, n. 3, da LGT, quecabe ao sujeito passivo a prova de que correspondem realidade os rendimentosdeclarados e de que outra a fonte das manifestaes de fortuna ou do acrscimo depatrimnio ou da despesa efetuada (a redao inicial da norma contemplava a seguinte

    exemplificao: herana ou doao, rendimentos que no esteja obrigado a declarar,utilizao do seu capital ou recurso ao crdito).

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    Por outro lado, resulta do n. 10 do artigo 89.-A, da LGT, que a deciso de avaliaoda matria coletvel com recurso ao mtodo indireto constante deste artigo, aps tornar-sedefinitiva, deve ser comunicada pelo diretor de finanas ao Ministrio Pblico e, tratando-se de funcionrio ou titular de cargo sob tutela de entidade pblica, tambm tutela destespara efeitos de averiguaes no mbito da respetiva competncia.

    Como se compreende, tal preceito leva imanente, ao nvel da sua configuraoteleolgica, que o rendimento desvelado pela existncia das manifestaes de fortunaresultantes da lei pode resultar da prtica de atos penalmente censurveis, no apenas naesfera dos crimes fiscais, mas tambm no mbito de certos crimes contra o Estado, com oque se permite o desencadear de eventuais investigaes nesses mbitos.

    Por sua vez, no que se refere s previses no fiscais, deparamos, entre outros, com ocrime de branqueamento de capitais (artigo 368.-A do Cdigo Penal), perda de vantagens(artigo 111. do Cdigo Penal) e perda de bens/confisco (artigo 7. da Lei n. 5/2002, de11 de janeiro - Medidas de Combate Criminalidade Organizada).

    7.Posto este enquadramento, importa abordar as questes de (in)constitucionalidadesuscitadas pelo requerimento sob apreciao, no havendo que seguir o itertraado pelorequerente, mas sem o deixar, naturalmente, de ter no horizonte e, consequentemente,apreciar e decidir as mesmas.

    Vejamos.

    7.1 apreciao de tais questes importa, desde logo, uma abordagem da legitimidadejurdico-constitucional da incriminao.

    No seu pedido, o requerente invoca que o regime aprovado pela Assembleia daRepblica viola o artigo 18., n. 2 da Constituio, considerando que podem ser encontradasoutras formas de, protegendo os mesmos bens jurdicos, salvaguardar princpios constitucionais

    fundamentais, ademais quando aplicvel a todas as pessoase que na formulao adotada peloDecreto, tanto mais que no so claros os bens jurdicos a proteger pela norma e pela

    respetiva incriminao, sendo sempre quetal indeterminao coloca em crise no s o juzo deproporcionalidade como a prpria possibilidade concreta de definio do tipo legal.

    No que importa ao disposto no artigo 18., n. 2 da CRP, enquanto parmetro paraaferir da legitimidade constitucional das incriminaes, o Tribunal pronunciou-se, designadamente, no Acrdo n. 426/91, onde, deixou explcito que o objetivo precpuo dodireito penal , com efeito, promover a subsistncia de bens jurdicos da maior dignidade e, nessa medida, aliberdade da pessoa humana. Nessa medida, a imposio de penas e medidas de segurana implica,evidentemente, uma restrio de direitos fundamentais, como o direito liberdade e o direito de propriedade,que indispensvel justificar ante o disposto no n. 2 do artigo 18. da Constituio. Assim, uma talrestrio s admissvel se visar proteger outros direitos fundamentais e na medida do estritamenteindispensvel para esse efeito.,e, igualmente de forma impressiva, no Acrdo n. 108/99 emque destacou que o direito penal, enquanto direito de proteo, cumpre uma funo de ultima ratio. Sse justifica, por isso, que intervenha para proteger bens jurdicose se no for possvel o recurso a outrasmedidas de poltica social, igualmente eficazes, mas menos violentas do que as sanes criminais. , assim,um direito enformado pelo princpio da fragmentariedade, pois que h-de limitar-se defesa das

    perturbaes graves da ordem social e proteo das condies sociais indispensveis ao viver comunitrio. Eenformado, bem assim, pelo princpio da subsidiariedade, j que, dentro da panplia de medidas legislativas

    para a proteo e defesa dos bens jurdicos, as sanes penais ho-deconstituir sempre o ltimo recurso..Na realidade, como resulta de tal jurisprudncia, o artigo 18., n. 2 tem sido

    convocado como parmetro para aferir dos pressupostos constitucionalmentelegitimadores da interveno legiferante ao nvel da seleo de comportamentosqualificados como crime, impedindo, a esse nvel, a tipificao de condutas desligadas datutela de bens jurdicos, dando-se por assente que um Estado de Direito material no podedesvincular-se do princpio jurdico-constitucional do direito penal do bem jurdico, o qual

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    imbrica na ideia de que o direito penal visa a tutela subsidiria de bens jurdicosdotadosde dignidade penal.

    Um bem com dignidade jurdico-penal necessariamente uma concretizao dosvalores constitucionais. Nas palavras de FIGUEIREDO DIAS, um bem jurdico poltico-criminalmente tutelvel existe alie s alionde se encontre refletido num valor jurdico-

    constitucionalmente reconhecido, isto , um valor fundamental quepr-existeincriminao e que permite apreciar criticamenteo seu sentido (FIGUEIREDO DIAS, DireitoPenalParte Geral, tomo I, 2. ed., Coimbra Editora, 2007). Neste sentido, a Constituiosurge como o horizonte que h de inspirar e por onde h de pautar-se qualquer programa de polticacriminal (v. Acrdo n. 25/84), isto , dela resulta uma ordenao axiolgica que se afirmacomo critrio regulativo da atividade punitiva do Estado (FIGUEIREDO DIAS, Os novosrumos da poltica criminal e o direito penal portugus do futuro,Revista da Ordem dos

    Advogados, ano 43, 1983, p. 16), assente nesseprincpio da exclusiva proteo de bens jurdico-penaisoperacionalizado a partir do artigo 18., n. 2: A lei s pode restringir os direitos, liberdadese garantias nos casos expressamente previstos na Constituio, devendo as restries limitar-se ao necessrio

    para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

    Apreciando a constitucionalidade do crime de trfico de estupefacientes, este Tribunalassinalou, precisamente, que o objetivo precpuo do direito penal , com efeito, promover a subsistnciade bens jurdicos da maior dignidade e, nessa medida, a liberdade da pessoa humana.Esta incindvelassociao entre o direito penal e os bens jurdicos de eminente dignidade de tutelaassume-se,desde logo, como um desdobramento do princpio constitucional da proporcionalidade,consagrado no artigo 18., n. 2 da CRP (COSTAANDRADE, A dignidade penal e a carnciade tutela penal,RPCC, n. 2, 1992, p. 184).

    Assim espartilhado, o instrumentariumpenal h de limitar-se defesa dasperturbaes graves da ordem social e proteo das condies existenciaisindispensveis ao viver comunitrio(cf. Acrdo n. 83/95), sendo que estamosperante um bem jurdico com dignidade de tutela quando a conduta que o lese merea,pela sua danosidade social, um juzo qualificado de intolerabilidade social (COSTAANDRADE, ob. cit., p. 184).

    Daqui decorre que toda a norma incriminatria na base da qual no seja suscetvel dese divisar um bem jurdico-penal claramentedefinido nula, porque materialmenteinconstitucional (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 126 ).

    Ora, esse patrimnio ideolgico-constitucional conta com um fortssimo lastro na histriada jurisprudncia constitucional bem desvelado, para alm dos arestos j citados, nos

    Acrdos n.s 25/84, 85/85, 288/98, 617/06 e 75/10 sobre as normas relativas exclusoda ilicitude em certas situaes de interrupo voluntria da gravidez, 347/86, 679/94,108/99, sobre normas incriminadoras constantes do Cdigo de Justia Militar, 527/95,

    sobre o crime de conduo sem habilitao, 302/95 e 480/98, sobre o crime de fraude naobteno de subsdio, 99/2002, sobre o crime de explorao do jogo ilcito, 577/11, sobreo crime de aproveitamento de obra usurpada, 312/2000 e 516/2000, sobre crimes fiscais,595/08, sobre o crime de deteno de arma proibida, e 128/2012, sobre o crime de injria.

    Nesta ordem de ideias e atento o pedido sub judicio, cumpre comear por perspetivar, attulo prvio, se as normas sindicandas cumprem o desiderato bsico de assegurar a tutelade bens jurdicos e se, em caso de resposta positiva, ultrapassam o teste especfico danecessidade.

    8. Importa, para tanto, proceder interpretao das normas.8.1 As normas em causa so as constantes dos artigos 335.-A e 386. do Cdigo Penal,

    aditada e alterada, respetivamente, pelo artigo 1., n. 1 e 2, do mencionado Decreto, e, bem

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    assim, o artigo 27.-A, aditado Lei n. 34/87, de 16 de julho, pelo artigo 2. do mesmoDecreto.

    Inicialmente, a norma punia apenas o funcionrio e equiparados e pretendia tratar talcrime como de perigo abstrato, como se depreende da exposio de motivos constantedo Projeto de Lei n. 72/XII, que se transcreve na parte pertinente:

    ()Neste enquadramento, reafirmando que o combate corrupo um combate cvico e de cidadania, que

    mobiliza a defesa do Estado de Direito Democrtico, a primazia da tica na vida pblica e poltica, a sanidade etransparncia da vida econmica e a luta pela obteno de altos nveis de desenvolvimento humano e global.

    hoje um dado adquirido que a disparidade manifesta entre os rendimentos de um funcionrio e o seupatrimnio ou modo de vida, resultante de meios de aquisio no lcitos, representa um foco de grave perigosidadesocial. Nada mina mais os alicerces do Estado de Direito e do livre desenvolvimento econmico do que oenriquecimento ostensivo e injustificado de titulares de cargos polticos ou de quem no exerccio de funes, sobre osquais impendem especiais deveres de transparncia e responsabilidade social.

    Este juzo to mais evidente em contexto adverso ao desenvolvimento econmico e social, sobretudoconsiderando que a corrupo consubstancia um fator danoso promoo do desenvolvimento econmico e social.

    Deve, por isso, a poltica legislativa criminal fazer corresponder a este juzo de perigosidade um tipo decrime de perigo abstrato, simultaneamente preservando os princpios conformadores do Estado de DireitoDemocrtico a par da garantia da operacionalidade do instrumento jurdico.

    (...).

    Vejamos, agora, a norma aprovada pelo Decreto em causa.Em funo de tal norma temos que qualquer pessoa pode ser agente do crime de

    enriquecimento ilcito (artigo 335., n. 1-A). Diferentemente do que constava da redaooriginal do Projeto de Lei n 72/XII (1.), supra mencionado, o crime deixou de serespecfico, no sentido de apenas os funcionrios e os titulares de cargos polticos ou altoscargos pblicos poderem ser agentes do mesmo. A qualidade do agentefuncionrio, titularde cargo poltico ou titular de alto cargo pblicotem apenas como consequncia a agravao da

    pena aplicvel ao crime (artigos 386., n. 1 e 27.-A, n. 1).Pode afirmar-se que o tipo legal de crime de enriquecimento ilcito est construdo a

    partir de trs modalidades tpicas: adquirirpatrimnio sem origem lcita determinada eincompatvel com rendimentos e bens legtimos;possuirpatrimnio sem origem lcitadeterminada e incompatvel com rendimentos e bens legtimos; ou deterpatrimnio semorigem lcita determinada e incompatvel com rendimentos e bens legtimos.

    A descrio dos elementos tpicos supe que o agente adquira, possua ou detenhapatrimnio, entendendo-se por patrimnio todo o ativo patrimonial existente no pas ouno estrangeiro, incluindo o patrimnio imobilirio, de quotas, aes ou partes sociais docapital de sociedades civis ou comerciais, de direitos sobre barcos, aeronaves ou veculosautomveis, carteiras de ttulos, contas bancrias, aplicaes financeiras equivalentes edireitos de crdito, bem como as despesas realizadas com a aquisio de bens ou serviosou relativas a liberalidades efetuadas no pas ou no estrangeiro (artigos 335.-A, n.s 1 e 2,386., n.s 1 e 2, e 27.-A, n.s 1 e 2); sem origem lcita determinada (artigos 335.-A, n. 1,386., n. 1, e 27.-A, n. 1); incompatvel com os seus rendimentos ou bens legtimos,entendendo-se por rendimentos e bens legtimos todos os rendimentos brutos constantesdas declaraes apresentadas para efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem comooutros rendimentos e bens com origem lcita determinada (artigo 335.-A, n.s 1 e 3) ou,tratando-se de funcionrio ou de titular de cargo poltico ou de alto cargo pblico, todos osrendimentos brutos constantes das declaraes apresentadas para efeitos fiscais, ou quedelas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens com origem lcitadeterminada, designadamente os constantes em declarao de patrimnio e rendimentos(artigos 386., n.s 1 e 3, e 27.-A, n.s 1 e 3); e que o valor da incompatibilidade exceda 100salrios mnimos mensais (artigos 335.-A, n. 4, 386., n. 4, e 27.-A, n. 4).

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    Desta descrio tpica resulta que o contedo do ilcito o mesmo ainda que o agenteda prtica do crime de enriquecimento ilcito seja funcionrio, titular de cargo poltico outitular de alto cargo pblico.

    E dela resulta tambm, numa interpretao que a norma, tal como vem redigida,necessariamente comporta, que o que se pretende punir a incompatibilidade existente

    entre o patrimnio adquirido, detido ou possudo e os rendimentos e bens legtimos doagente, patrimnio esse que, no tendo origem lcita determinada, indicia que o acrscimopatrimonial adveio da prtica anterior de crimes.

    Isso mesmo se extrai tanto da epgrafe enriquecimento ilcito, como da parte final do n. 1de cada artigo, quando a se deixa expresso que se pena mais grave no lhe couber por fora deoutra disposio legal, e, bem assim, dos respetivos trabalhos preparatrios, onde se podecolher com toda a clareza que a incriminao em causa visa obstar a que os mais diversoscrimes fiquem impunes em funo das mais diversas vicissitudes, incluindo processuais.

    8.2 Ora, se a finalidade punir, atravs da nova incriminao, crimes anteriormentepraticados e no esclarecidos processualmente, geradores do enriquecimento ilcito, entono h um bem jurdico claramente definido, o que acarreta necessariamente ainconstitucionalidade da norma. Pune-se para proteger um qualquer bem jurdicoindefinido (v.g., a autonomia intencional do Estado, o patrimnio, a liberdade sexual, sade pblica).

    Daqui haver-se- de concluir, em consonncia com o j supra referido, que toda anorma incriminatria na base da qual no seja suscetvel de se divisar um bem jurdico-penal claramentedefinido nula, porque materialmente inconstitucional (cf. FIGUEIREDODIAS, ob. cit., p. 126).

    8.3 Acresce que a construo do tipo no permite a identificao da aco ou omissoque proibida, com o que fica violada a exigncia de determinao tpica do artigo 29., n.1 da Constituio, que do seguinte teor, na parte relevante: Ningum pode ser sentenciado

    criminalmente seno em virtude de lei anterior que declare punvel a aco ou omisso, .9. No poder olvidar-se, ainda, que o tipo legal de crime, tal como se encontra

    configurado, no passa indemne ao princpio da presuno de inocncia.Na realidade, de acordo com o disposto no artigo 32., n. 2, da Constituio, todo o

    arguido se presume inocente at ao trnsito em julgado da sentena de condenao, devendo ser julgado nomais curto prazo compatvel com as garantias de defesa.

    A se consagra, como um princpio fundamental do Estado de direitotambmexpressamente formulado no artigo 9. da Declarao dos Direitos do Homem e doCidado, no artigo 11., n. 1, da Declarao Universal dos Direitos Humanos e no artigo6., n. 2, da Conveno Europeia dos Direitos do Homem , a presuno de inocncia doarguido.

    Considerando no ser fcil determinar o sentido do princpio da presuno deinocncia, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituio da Repblica Portuguesa

    Anotada,Volume I, Coimbra, 2007, p. 518) apontam, como decorrncias do seu contedo,as seguintes concretizaes: (a) proibio de inverso do nus da prova em detrimento do arguido; (b)

    preferncia pela sentena de absolvio contra o arquivamento do processo; (c) excluso da fixao da culpanos despachos de arquivamento; (d) no incidncia de custas sobre o arguido no condenado; (e) proibioda antecipao de verdadeiras penas a ttulo de medidas cautelares (cfr. AcTC n. 198/90); (f) proibiode efeitos automticos da instaurao do procedimento criminal; (g) natureza excecional e de ltimainstncia das medidas de coao, sobretudo as limitativas ou proibitivas da liberdade; (h) princpio indubio pro reo, implicando a absolvio em caso de dvida do julgador sobre a culpabilidade do acusado.

    Apesar da dificuldade na determinao rigorosa do exato sentido do princpio tambm mencionada no Acrdo n. 270/87 , deve ter-se por certo que a sua

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    concretizao h de levar em conta o ambiente axiolgico especfico deste terrenodogmtico e a particular estrutura de onde o mesmo desponta (como refere MARIAFERNANDA PALMAem A constitucionalidade do artigo 342. do Cdigo de ProcessoPenalO direito do arguido ao silncio, in Revista do Ministrio Pblico, n. 60, Lisboa, 1995,pp. 102-103).

    Assumindo essa pressuposio, JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, aps acentuar que onosso processo penal radica numa estrutura acusatria integrada pelo princpio dainvestigao,concretiza que luz do princpio da investigao bem se compreende,efetivamente, que todos os factos relevantes para a deciso (quer respeitem ao factocriminoso, quer pena) que, apesar de toda a prova recolhida, no possam sersubtrados " dvida razovel" do tribunal, tambm no possam considerar-se como"provados". E se, por outro lado, aquele mesmo princpio obriga em ltimo termo otribunal a reunir as provas necessrias deciso, logo se compreende que a falta delasno possa, de modo algum, desfavorecer a posio do arguido: um non liquet naquesto da provano permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a deciso

    tem de ser sempre valorado a favor do arguido. com este sentido e contedo que se

    afirma oprincpio in dubio pro reo (cf. JORGE DE FIGUEIREDO DIAS,Direito ProcessualPenal, Lies coligidas por MARIA JOO ANTUNES, Polic., Coimbra, 1988-9, p. 145, equanto questo de saber se o princpio da presuno de inocncia se identifica toutcourtcom o princpio in dubio pro reo, v. CRISTINA LBANO MONTEIRO, Perigosidadede Inimputveis e in dubio pro reo, Coimbra, 1997, pp. 60 e ss.).

    Para o citado Autor, a presuno de inocncia assume reflexos imediatos sobre oestatuto do arguido, conduzindo, entre o mais, a que a utilizao do arguido como meio de provaseja sempre limitada pelo integral respeito pela sua deciso de vontade tanto no inqurito como nainstruo ou no julgamento: s no exerccio de uma plena liberdade da vontade pode o arguido decidir se ecomo deseja tomar posio perante a matria que constitui objeto do processo, o que se desvela,

    sobretudo, no direito conferido ao arguido pelo art. 61.-1 c) [do Cdigo de Processo Penal], de noresponder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre ocontedo das declaraes que acerca deles prestar (cf.JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Sobre ossujeitos processuais no novo Cdigo de Processo Penal,in AA. VV.,Jornadas de

    Direito Processual Penal O novo Cdigo de Processo Penal,Coimbra, 1991, pp. 27-28 e RUI PATRCIO, O princpio da presuno de inocncia do arguido na fase do

    julgamento no atual processo penal portugus (Alguns problemas e esboo para umareforma do processo penal portugus), Lisboa, 2000, pp. 25 a 40; tambm sobre aliberdade de declarao do arguido, na sua vertente negativa, v. MANUEL DA COSTAANDRADE, Sobre as proibies de prova em processo penal, Coimbra, 1992, pp. 117 ess., e, especificamente quanto ao direito ao silncio, AUGUSTO SILVA DIAS e VNIA

    COSTA RAMOS, O direito no autoinculpao (nemo tenetur se ipsum accusare) noprocesso penal e contraordenacional portugus, Coimbra, 2009).Ora, esta constelao axiolgica que ilumina o estatuto jurdico-processual do arguido

    em processo penal, com base na qual aquele surge como um autntico sujeito processual,afasta assim deste horizonte as consequncias tpicas dos problemas de repartio do nusda prova decorrentes da afirmao de um princpio da autorresponsabilidade probatriadas partes construdo de acordo com os cnones do processo civil, exigindo que umadeciso condenatria em matria penal assente na demonstrao positiva da culpa doarguido e seja obtida sem sacrifcio do trptico garantstico constitudo pela presuno deinocncia, pelo in dubio pro reoe pelo nemo tenetur se ipsum accusaree dos demais direitos quegravitam em torno do arguido.

    Da decorre, pois, um conjunto de exigncias de sentido que no se limitam aconformar os diversos atos que compem as diversas fases do processo penal, que, e de

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    forma decisiva, operam a montante, ao nvel da previso legislativa dos tiposincriminadores, na medida em que impem ao legislador que as normas penais no consagrem

    presunes de culpa e que no faam decorrer a responsabilidade penal de factos apenas presumidos,impondo-se-lhe, em suma, que legisle no sentido de que no saia diminudo, direta ou indiretamente, o

    princpio da presuno de inocncia do arguido(RUI PATRCIO, O principio da presuno de

    inocncia..., cit., pp. 37-38).A formulao do tipo no impede o entendimento de que verificada a incongrunciaentre o patrimnio e o rendimento, ela qualificada de enriquecimento ilcito sem ser feitaa demonstrao positiva da ausncia de toda e qualquer causa lcita.

    Tenha-se presente, alis, que sendo o elenco de causas lcitas aberto e potencialmenteinesgotvel, sempre se poderia entender que a exigncia de demonstrao positiva da suaausncia afectaria quase irremediavelmente a operacionalidade do tipo. Assim lidas asnormas incriminadoras, est-se a presumir a origem ilcita da incompatibilidade e a imputarao agente um crime de enriquecimento ilcito, o que redunda em manifesta violao doprincpio da presuno de inocncia, determinando, portanto, a inconstitucionalidade dasnormas em causa.

    10. Por ltimo, resta uma sucinta referncia norma constante do artigo 10., tendoem ateno a questo suscitada pelo requerente.

    Ora, o tratamento autnomo de tal questo carece de qualquer razo til, estando, porisso, manifestamente prejudicado pela soluo a que se chegou.

    III. Deciso

    11. Nestes termos, atento o exposto, o Tribunal decide pronunciar-se pelainconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 1., n. s 1 e 2, e 2. do Decreto n.37/XII da Assembleia da Repblica, por violao dos artigos 18., n. 2, 29., n. 1, e 32.,n. 2, da Constituio.

    Lisboa, 4 de abril de 2012.-J. Cunha BarbosaMaria Joo AntunesGil Galvo JooCura Mariano Ana Maria Guerra Martins Catarina Sarmento e Castro Joaquim de SousaRibeiroCarlos Pamplona de OliveiraMaria Lcia AmaralCarlos Fernandes Cadilha(voto adeciso com diferente fundamentao nos termos da declarao de voto anexa) VtorGomes(parcialmente vencido, conforme declarao junta) Rui Manuel Moura Ramos(Noacompanhando, nos termos da declarao de voto junta, o ponto 8.2. da fundamentao).

    DECLARAO DE VOTO

    Manifestei concordncia com o juzo de inconstitucionalidade, mas com base emdiferente fundamentao, em face das seguintes consideraes:

    1. O crime de enriquecimento ilcito, tal como configurado nas disposies dos artigos335-A e 386 que o Decreto 37/XII da Assembleia da Repblica adita ao Cdigo Penal, bem comodo artigo 27-A aditado Lei n. 34/87, de 16 de julho, contm como elementos tpicos a aquisio,posse ou deteno de patrimnio, sem origem lcita determinada, incompatvel com os rendimentose bens legtimos do agente, entendendo-se como rendimentos e bens legtimos, para efeito dopreenchimento do tipo, todos os rendimentos brutos constantes das declaraes apresentadas para

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    efeitos fiscais, ou que delas devessem constar, bem como outros rendimentos e bens que constemdas declaraes de patrimnio e rendimentos ou que tenham uma origem lcita determinada.

    O contedo ilcito da norma incriminadora consiste na discrepncia entre o patrimnioe os rendimentos e bens legtimos do agente e, em coerncia com esse pressuposto, constituielemento do tipo legal a ausncia de determinao da origem lcita do patrimnio.

    Tratando-se de uma incriminao autnoma, como resulta com evidncia dostrabalhos preparatrios, a ausncia de origem lcita determinada, enquanto elemento constitutivo docrime, no se confunde com a demonstrao da prtica de qualquer facto ilcito que se encontre jtipificado atravs da caracterizao dos delitos de natureza econmica ou fiscal (corrupo,peculato, participao econmica em negcio, suborno, trfico de influncia, fraude fiscal). Opreenchimento do elemento do tipo no exige, por isso, a prova da origem ilcita do patrimnio. Enesse sentido aponta o segmento final de cada uma das normas incriminadoras em causa (se penamais grave no lhe couber por fora de outra disposio legal), que faz supor que oenriquecimento ilcito punvel apenas quando no poder considerar-se verificada a prtica dequalquer outro tipo legal que incrimine a provenincia ilcita de rendimentos ou bens. Acriminalizao da conduta tem, assim, um carcter subsidirio, visando cobrir situaes de

    acrscimo patrimonial injustificado que, por dificuldades probatrias, no possam ser enquadradasnum tipo de crime que implique a prpria demonstrao da ilicitude da obteno de patrimnio.

    Neste contexto, no possvel afirmar que existe uma indeterminao ou sobreposiorelativamente ao bem jurdico tutelado, porquanto o que est em causa no a proteo de bens ouvalores que fundamentaram j a criminalizao de outras condutas, mas a responsabilizao penalde situaes objetivas de enriquecimento desproporcionado em relao aos rendimentos lcitosconhecidos ou declarados, independentemente da determinao do facto ilcito pelo qual essesrendimentos chegaram posse do agente.

    E no se v que falhe aqui a legitimidade jurdico-constitucional da incriminao. Obem jurdico que parece pretender tutelar-se, em qualquer dos tipos legais em causa, o datransparncia das fontes de rendimento, que tem j diversas concretizaes no sistema legal,mormente por via da obrigatoriedade da declarao de rendimentos para efeitos de controlopblico da riqueza dos titulares de cargos pblicos (Lei n. 4/83, de 2 de abril). E no pode deixarde reconhecer-se que se trata de um bem em si mesmo socialmente relevante, com particularreflexo na preveno geral da criminalidade econmica e fiscal, e que, em ltima anlise, radica nosdeveres inerentes funcionalidade e justia do sistema social, sabendo-se que entre os valores ebens consagrados na Constituio e os bens jurdicos dignos de tutela penal no tem de existir umarelao de identidade, mas apenas uma relao de analogia material.

    2. Pela mesma ordem de consideraes no pode aceitar-se que a incriminao doenriquecimento ilcito, tal como est concebida, represente uma forma de punio indireta de factosilcitos geradores do enriquecimento e consagre, desse modo, uma presuno de ilicituderelativamente a factos que apenas poderiam ser objeto de perseguio criminal por via do

    preenchimento de outros tipos legais de crime.

    Na verdade, a incriminao resulta, no da presuno de que o agente obteve por viailcita um patrimnio desproporcionado em relao aos seus rendimentos legtimos, mas antes dafalta de determinao da origem lcita desse patrimnio, correspondendo a uma incriminao quesanciona o enriquecimento por causa desconhecida.

    Esta explicitao permite tambm afastar a alegada violao do princpio in dubio pro reo.A falta de origem lcita determinada, enquanto elemento constitutivo do crime, no implica aexistncia de dvida acerca da ilicitude ou licitude da provenincia do patrimnio, mas pressupeunicamente que no tenha sido feita prova (na fase de investigao, para efeitos de ser deduzidauma acusao, ou na fase de julgamento, para efeito de ser proferida uma deciso condenatria) de

    que o patrimnio tem uma origem lcita. Nestes termos, o juiz no poder deixar de fundar acondenao num juzo de certeza sobre a invocada ausncia de provenincia lcita, e, por outro

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    lado, o arguido no est impedido de alegar e provar factos indicirios que coloquem a dvida sobrea falta de licitude dessa provenincia.

    No est excludo, por conseguinte, que o arguido exera o seu direito de contraprovasobre os elementos de facto que respeitem aos pressupostos do ilcito penalbastando que alegueque o acrscimo patrimonial passou a integrar a sua esfera jurdica atravs de meios legtimos, ainda

    que no mencionados nas declaraes apresentadas para efeitos fiscaise, em caso de dvida sobrea verificao dos factos, o juiz est vinculado a resolver em sentido favorvel ao ru.

    3. Formularia, no entanto, um juzo de inconstitucionalidade, por violao dos direitosde defesa, por considerar que o tipo legal, tal como est construdo, impe ao arguido a iniciativa dealegao e prova em relao a factos que integram os elementos constitutivos do crime, violando odireito ao silncio em termos que representam uma inverso do nus da prova.

    Ainda que o direito ao silncio por parte do arguido no seja um direito ilimitado e esteno possa invocar ter sido prejudicado pelo exerccio desse direito quando tenha prescindido defornecer a sua verso pessoal dos factos ou de prestar esclarecimentos sobre questes que sejam doseu conhecimento (acrdo do STJ de 18 de junho de 2008, Processo n. 3227/07), o certo que,no caso, a ausncia de origem lcita determinadacorresponde a um elemento do tipo formuladonegativamente relativamente ao qual a prova a coligir por parte do Ministrio Pbico ou, em sedede julgamento, pelo juiz apenas poder basear-se na discrepncia entre o rendimento declarado e oenriquecimento verificado.

    Nesse condicionalismo, o arguido no fica dispensado do nus da prova, visto que selhe impe demonstrar, sob pena de ser penalmente responsabilizado, que o patrimnio adquiridotem uma origem lcita determinada, ainda que a sua provenincia no se encontre justificada atravsdos rendimentos revelados pelas declaraes fiscais. No opera aqui o simples exerccio do direitode declarao ou o direito ao silncio, por parte do arguido, em funo de uma estratgia de defesaque vise favorecer a sua posio processual. O silncio ter sempre uma consequncia desvantajosa

    na medida em que no permite contraditar a prova negativa da origem lcita, o que significa que aoarguido cabe o nus da prova pela positiva, ou seja, cabe-lhe demonstrar que o patrimnioadquirido, ainda discrepante com os rendimentos declarados, tem uma origem lcita. Dito ainda deoutro modo: deduzida uma acusao por enriquecimento ilcito, e no dispondo o juiz de outroselementos que possam favorecer o arguido, a este que incumbe suscitar o estado de dvida eprestar os esclarecimentos que permitam provar a sua inocncia.

    Ocorre assim a violao do princpio da presuno da inocncia do arguido, navertente da proibio da inverso do nus da prova.

    Carlos Fernandes Cadilha

    DECLARAO DE VOTO

    Vencido quanto pronncia pela inconstitucionalidade da norma constante do artigo2. do Decreto sujeito a apreciao, na parte em que adita o artigo 27.-A Lei n. 34/87,de 16 de julho, pelas razes que sumariamente passo a indicar:

    1. O Acrdo assenta em duas concluses fundamentais, abrangendo por igual as trs

    normas incriminadoras sindicadas:

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    a impossibilidade de discernir na base da incriminao um bem jurdico comdignidade penal claramente definido (artigo 18., n. 2 , da CRP) e a conduta concretamenteproibida (artigo 29., n. 1, da CRP);

    a violao do princpio da presuno de inocncia do arguido (artigo 32,, n. 2, daCRP), decorrente de a estrutura tpica das normas conduzir presuno da origem ilcita daincompatibilidade entre o patrimnio e o rendimento.

    Discordo da segunda e no acompanho inteiramente a primeira.

    2. Quanto primeira questo:

    O acrdo trata do mesmo modo os trs tipos legais de crime que o Decreto sujeito aapreciao pretende introduzir na ordem jurdico-penal. certo que os elementos objetivosdo tipo so, na sua literalidade, com ligeira diferena quanto ao artigo 27.-A da Lei n.34/87, essencialmente idnticos. Mas, a meu ver, uma comum e porventura enganadoradesignao de enriquecimento ilcito, encobre condutas que, em funo da qualidade

    tpica do agente, so suscetveis de lesar diferentes bens jurdicos, havendo que distinguir aincriminao constante do aditando artigo 335.-A do Cdigo Penal (CP) relativamente srestantes inovaes incriminatrias que o Decreto sujeito a apreciao pretende introduzirno ordenamento penal.

    Relativamente aquela primeira norma (artigo 335.-A do CP) acompanho, nesteparmetro, a deciso a que o acrdo chegou, bastando-me, brevitatis causa, as consideraesa tecidas para concluir quanto ausncia de um bem jurdico com dignidade penal ou pelaflagrante desnecessidade da incriminao, face aos instrumentos j existentes parasancionar, relativamente a todos os cidados, os acrscimos patrimoniais de origem ilcitaou cuja declarao seja omitida para efeitos fiscais.

    J quanto s normas respeitantes ao enriquecimento ilcito por funcionrio (futuroartigo 386. do CP) e por titular de cargo poltico e de alto cargo pblico (futuro artigo27.-A da Lei n. 34/87), entendo dever colocar-se a questo noutros termos.

    Efetivamente, como quer que se designe, existe um bem jurdico com evidentedignidade penal, inerente ao princpio do Estado de direito e com afloramentos expressosnoutros lugares da Constituio (p. ex. artigo 266. da CRP), que a confiana oucredibilidade do Estado (lato sensu) perante a coletividade e a da decorrente capacidade deinterveno para a realizao das finalidades que lhe esto cometidas (bem jurdico mediatoda incriminao), que a ocultao da provenincia do patrimnio ou rendimentos dostitulares do poder pblico ou dos intervenientes na gesto de bens e servios pblicos pode

    pr em perigo e que legitima o legislador a impor a transparncia da situao patrimonialdaqueles a quem incumba funcionalmente preparar, manifestar ou executar a vontade doEstado (bem jurdico imediato da incriminao).

    E no vlida a objeo de que relativamente quele fundamento ltimo a punio inadequada (i.e., viola a segunda mxima do princpio da proporcionalidade) porque oenriquecimento ilcito pressupe que o mercadejar com o cargo j tenha ocorrido.Nem a de que seria desnecessria, por tal conduta ser j objeto de represso mediante tiposde ilcito penal autnomos. Pondo de lado questes de poltica criminal, de perfeiojurdica das solues, ou de estrita dogmtica penal, aspetos em funo dos quais no cabeao Tribunal decidir, no vejo que o princpio constitucional da proporcionalidade impea o

    legislador de conferir tutela a um mesmo bem jurdico, ou um bem jurdico complexivo,mediante uma armadura penal em que um dos crimes tipificados seja funcionalmente

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    ordenado a reprimir aes ou omisses ilcitas que as tipificaes j existentes, na prtica enuma avaliao pelo legislador democrtico que no se apresente como ostensivamenteerrada, no se revelem idneas para deter. O reforo da conscincia jurdica da comunidadee do seu sentimento de segurana face efetiva vigncia das normas finalidade primordialda sano penal e, portanto, tambm convocvel no momento da legitimao da sua

    cominao abstrata para as aces ou omisses que se escolham tipificar desde quesatisfaam os requisitos do princpio da legalidade penal. Ora, neste gnero de atuaoilcita, a conduta do agente tem uma forte componente racional ou de clculo (balanocusto/benefcio), sendo a previso de que as dificuldades de prova da origem ilcita dorendimento no facilitaro o seu aproveitamento factor fortemente desmotivador da

    violao dos deveres destinados a assegurar a probidade do servio pblico.

    Deste modo, mesmo que fosse exato e no acompanho o acrdo nessainterpretao que a nova tipificao pressupe necessariamente a origem ilcita doenriquecimento e se destina a funcionar como mero sucedneo de outras incriminaes e

    visa tutelar os mesmos bens jurdicos, no estaria o legislador impedido de consagr-la.

    Mas o que me parece decisivo que a transparncia da situao patrimonial dostitulares ou agentes do poder pbico , por si mesmo, fortemente incentivadora daconfiana dos cidados na imparcialidade ou probidade da sua atuao. A confiana doscidados e nas instituies pblicas e, sobretudo, na capacidade do Estado de fazer cumpriras suas regras por parte dos que o servem, um fator crucial da existncia e coeso dassociedades democrticas. A transparncia da situao patrimonial dos servidores pblicos, arevelao da congruncia entre a evoluo da riqueza no perodo de exerccio do cargo e osrendimentos lcitos conhecidos, constitui um meio de fomento ou um travo eroso daconfiana na imparcialidade no exerccio das funes do Estado. Estamos, assim, peranteum bem jurdico coletivo, inerente organizao democrtica do Estado, e isso quelegitima que aos titulares de cargos polticos e equiparados e a titulares de altos cargos

    pblicos j h muito se imponha a apresentao no Tribunal Constitucional da declaraode patrimnio e rendimentos, nos termos da Lei n. 4/83, de 2 de abril, alterada por ltimopela Lei 36/2010, de 2 de setembro. A confiana da comunidade no so funcionamentodas instituies democrticas um valor constitucional fundamental e, portanto, um bemjurdico com dignidade penal. A atuao funcional dos agentes pblicos tem de poder ser

    vista como determinada exclusivamente com base em critrios prprios, adequados aocumprimento das suas funes especficas no quadro da atividade geral do Estado, e naexata medida em que os critrios no sejam substitudos ou distorcidos por interessesalheios funo (transpondo aqui para todas as funes do Estadolato sensuo que sobre aimparcialidade da Administrao disse Vieira de Andrade, A Imparcialidade da

    Administrao como Princpio Constitucional, Boletim da Faculdade de Direito, Volume L,

    1974, Coimbra, pg. 224).No , por isso constitucionalmente ilegtimo,que, partindo dacircunstncia factual objetiva do enriquecimento desproporcionado ao rendimentos lcitosconhecidos ou declarados, se possa construir uma incriminao que previna e sancione oenriquecimento por causa desconhecida[Germano Marques da Silva Sobre aIncriminao do Enriquecimento Ilcito (no justificado ou no declarado) BrevesConsideraes nas Perspectivas Dogmtica e de Poltica CriminalHomenagem de Viseu a

    Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra editora, pg. 51].

    Apesar disto, ainda acompanho o acrdo na concluso de que a incriminao

    constante do aditando artigo 386. do Cdigo Penal, mesmo no grau de evidncia em que o

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    controlo de constitucionalidade tem de conter-se neste domnio, viola o princpio daproporcionalidade.

    Com efeito, do que se trata nas tipificaes agora consideradas no de punir os factosilcitos geradores do enriquecimento, factos que sero ou podero ser sempre punveisautonomamente quando ilcitos; a falta de transparncia sobre as causas deenriquecimento que incriminada, embora conjugada ou revelada por uma situaopatrimonial desproporcionada aos rendimentos de origem lcita conhecidos ou declarados .Ora, a imposio desse dever a todo e qualquer funcionrio, na lata aceo penalmenterelevante do termo funcionrio, mesmo quando no lhe estejam cometidos poderessuscetveis de condicionar seja a preparao, formao ou tomada de deciso, seja aconformao da execuo desta, ou as opes de prestao do servio pblico, flagrantemente desnecessria (por no existir a o perigo que se visa prevenir) e excessiva,porque a carga ofensiva que comporta para outros direitos fundamentais, como o direito reserva da vida privada do prprio e de terceiros, no tem a legitim-la aquela necessidade.

    Porm, o mesmo no sucede relativamente aos agentes sobre os quais j hoje impendeo dever de declarar em termos extrafiscaiso patrimnio e rendimentos, e que so aqueles aque corresponde o mbito subjetivo de aplicao do artigo 27.-A da Lei n. 34/87, de 16de julho. A exigncia de transparncia sobre as causas do enriquecimento, cujo desrespeitopunido mediante a incriminao do enriquecimento ilcito , aqui, um crime especficode um certo tipo de agentes, a quem a lei legitimamente impe um dever especial detransparncia(cfr. artigo 4. da Lei n. 4/83, de 2 de abril, na redao que lhe conferiu a Lein. 38/2010, de 2 de setembro). H um prvio dever de comunicar com verdade que obrigaos sujeitos deste crime a declarar os seus bens e a fonte dos rendimentos e que pelas razesj aduzidas se destina a proteger as condies organizatrias indispensveis ao viver

    comunitrio. esse dever que a desproporo entre a riqueza ostentada e os rendimentoslcitos conhecidos demonstra no ter sido cumprido e essa falta de transparncia queagora se pretende punir criminalmente deste modo. Elemento objetivo do tipo aaquisio, posse ou deteno de patrimnio sem origem lcita conhecida, o queobjetivamente no implicacontrariamente interpretao que me parece ter prevalecido

    que o tipo presume constitutivamente a origem ilcita do patrimnio ou dos meios comque foi adquirido.

    Ora, como se disse no acrdo n. 577/2011, a separao de poderes do Estadoimpe ao juiz, mormente ao juiz constitucional, que salvaguarde, com as cautelasnecessrias, o espao de liberdade de conformao que, em matrias de poltica criminal,

    pertence primacialmente ao legislador democrtico, cuja legitimidade, assente no votodireto popular, lhe confere especial capacidade para decidir quais as condutas passveis deconstiturem ofensas penais, bem como quais as penas adequadas punio das mesmas. Aatividade de fiscalizao do Tribunal deve ser, portanto, restringida a um controlode evidncia, relegando-se as decises de inconstitucionalidade para os casos em que, demodo evidente ou manifesto, se excederam os limites incriminao penal resultantes doprincpio da proporcionalidade e da ideia de Estado de direito democrtico. Razessuficientes para que, quanto a este parmetro de constitucionalidade e relativamente a estaincriminao, no tenha podido acompanhar o entendimento que prevaleceu.

    3. Quanto segunda questo

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    Acompanho os termos gerais da anlise do princpio constitucional da presuno deinocncia do arguido que o acrdo enuncia e que, j por si, em parte afastam osfundamentos do pedido, designadamente quanto pretensa inverso do nus da prova.Mas no concordo com o juzo de violao do n. 2 do artigo 32. da Constituio, desdelogo porque no compartilho o entendimento de que nos tipos incriminatrios, tal como se

    encontram construdos, se presume a origem criminalmente ilcita da incompatibilidadepatrimonial.

    O que est em causa e atenho-me nas consideraes posteriores ao nico tipo queconsidero subsistir face resposta dada primeira questo a impossibilidade dedeterminar a origem lcita do enriquecimento do agente no perodo abrangido pelo deverde declarar, e de declarar com verdade, o patrimnio e rendimentos. Ora, como enfatiza anorma do artigo 10. do Decreto, e j decorre dos princpios gerais do processo penal deestrutura acusatria integrada pelo princpio da investigao, incumbe ao Ministrio Pblico(no sentido de que a dvida se resolve contra a acusao) a prova tambm deste elementodo tipo. A lei no presume a ilicitude ou a culpa do agente relativamente ao crime que selhe imputa. O que existe uma inferncia de facto de ocultao da origem dos rendimentosface s declaraes prvias obrigatoriamente apresentadas e incongruncia com a situaopatrimonial revelada por qualquer das aces tpicas (adquirir, possuir ou deter . ) que, sefor abalada em qualquer dos seus pressupostos, conduz absolvio do arguido quanto aeste crime.

    Ora, o Tribunal tal como o TEDH (v. os casos Radio France v. France, de2004, Pham Hoang v. France,de 1992, e Salabiaku v. France, de 1988, todos disponveisemhttp://www.echr.coe.int/echr/)tem admitido, como vlida a existncia de presunesde facto, desde que o arguido possa desmontar o nexo lgico-inferencial em que apresuno se sustenta e baste a contra-prova (e no a prova do contrrio) para asseguraruma deciso favorvel ao arguido. Lembro a jurisprudncia relativa f em juzo dos

    autos de notcia (nas suas linhas fundamentais, iniciada ainda no tempo da ComissoConstitucional pelo acrdo n. 168, de 24 de julho de 1979); os casos em que o

    Tribunal foi chamado a ponderar o princpio da presuno da inocncia do arguido apropsito das normas do Decreto-Lei n. 85-C/75 (Lei de Imprensa), de 26 de fevereiro,que estabeleciam a responsabilidade criminal do diretor de publicao peridica se no

    provar que no conhecia o escrito ou imagem publicados ou que no lhe foi possvel impedir apublicao[cf. alneas a) e b) do artigo 26., n. 2], sendo que para efeitos de responsabilidadecriminal, o diretor do peridico presume-se autor de todos os escritos no assinados e responder como autordo crime se no se exonerar da sua responsabilidade pela forma prevista no nmero anterior(artigo 26.,n. 3) (cfr. p. ex. acrdo n. 447/87), colhendo-se do seu discurso fundamentador que oparmetro constitucional assente no artigo 32., n. 2, da Constituio, no se teria por

    violado posto que e tratava da presuno de um puro facto, a saber, o do conhecimento do teor daqueleescrito ou imagem, no sendo arbitrria nem se traduzindo numa manipulao arbitrria do

    princpio in dubio pro reo; por ltimo, e sem preocupao de exausto, lembro ainda odecidido no acrdo n. 246/96, em que se encontrava questionada a constitucionalidadeda norma do artigo 22., n. 2, do Regime Jurdico das Infraes Fiscais Aduaneiras queafastava a punio do crime de contrabando de circulao fazendo-se prova de que a mercadoria originria do territrio aduaneiro ou j se encontra nacionalizada, em que no se deixou de referirque como tem sido reiteradamente afirmado pela jurisprudncia deste Tribunal, no constituiafrontamento ao princpio da presuno de inocncia o facto de a lei estabelecer, em alguns tipos criminais,que a no demonstrao da verificao de certos factos possa atuar em desfavor do arguido.

    Finalmente, no pode considerar-se que a estrutura do tipo colida necessariamentecom o contedo de sentido do princpio nemo tenetur se ipsum accusare. Nenhuma

    http://www.echr.coe.int/echr/http://www.echr.coe.int/echr/http://www.echr.coe.int/echr/http://www.echr.coe.int/echr/
  • 8/2/2019 Acrdo do Tribunal Constitucional n. 179/2012

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    contribuio se exige ao arguido para a prova dos factos constitutivos do tipo e nenhumaconcluso desfavorvel ao arguido se retira do seu exerccio do direito ao silncio. Prestarou no declaraes ou apresentar prova quanto origem lcita do enriquecimento opoque o arguido tomar livremente consoante a estratgia de defesa que escolha.- Vtor Gomes.

    DECLARAO DE VOTO

    Contrariamente ao que o acrdo afirma no seu ponto 8.2., no fao decorrer ainconstitucionalidade da norma sindicada diretamente da invocada inexistncia de um bem jurdicoclaramente definido. Com efeito, respondo afirmativamente questo de saber se as normassindicadas asseguram a tutela de bens jurdicos, acrescentando a este respeito que os bens jurdicosque justificam a presente incriminao sero os mesmos que suportam outras incriminaesplasmadas no sistema jurdico. Estaremos assim perante um bem jurdico compsito, cujalegitimidade jurdico-constitucional est assegurada pelos fundamentos que asseguram a

    legitimidade das normas incriminadoras cuja direta violao conduziu ao enriquecimento que sepretende sancionar. Tal assero, sendo em si mesma demonstrativa da observncia do patrimniovalorativo com assento constitucional, no afetada pela circunstncia de o bem que assim sepretende tutelar surgir aqui numa conceo que resulta da concentrao dos bens que justificam asreferidas incriminaes. O que no implica que esta construo no possa ter repercusses naformulao do tipo, ao impedir a sua necessria concretude, frustrando assim, como se afirma noponto 8.3., a possibilidade de tornar apreensvel o mandamento jurdico-penal inscrito na norma.-Rui Manuel Moura Ramos.